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A BÍBLIA DE ÁLEF A ÔMEGA

Copyright © 2020 by Rodrigo Silva


Todos os direitos desta publicação reservados para
Ágape Editora e Distribuidora Ltda.
EDITOR RESPONSÁVEL: Omar Souza
PREPARAÇÃO DE TEXTO: Luiz Werneck, Omar Souza
REVISÃO DE TEXTO: Pedro Nagem
REVISÃO TÉCNICA: Clodoaldo Tavares dos Santos e Evandro L. Cunha
CAPA: Rafael Brum
PROJETO GRÁFICO: Sonia Peticov
DIAGRAMAÇÃO: Bruna Casaroti
PRODUÇÃO DO EBOOK: Schäffer Agência Editorial
Imagens reproduzidas sob licença de Shutterstock.
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor
desde 1o de janeiro de 2009.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Silva, Rodrigo
A Bíblia de álef a ômega : um guia para entender como a Bíblia chegou até nós / Rodrigo
Silva. -- São Paulo : Ágape, 2020.

Bibliografia
1. Bíblia - História 2. Bíblia - Miscelânea 3. Bíblia - Antiguidades 4. Arqueologia I. Título

20-1885 CDD 220.09

Índice para catálogo sistemático:


1. Bíblia - História

ISBN versão impressa: 978-65-5724-007-6


ISBN versão ebook: 978-65-5724-008-3
ÁGAPE EDITORA E DISTRIBUIDORA LTDA.
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“O dr. Rodrigo Silva conseguiu uma proeza da alquimia literária: fundir
elementos tão distintos e divergentes numa solução elegante e honesta. A
magia desta obra consiste em nos guiar passo a passo ao mundo descrito nos
textos bíblicos. O autor abrange desde noções de crítica textual, passando pelos
delicados e complexos temas da canonização, até nos convidar a confiar na
veracidade das Sagradas Escrituras. Um texto singular por dizer tanto em tão
poucas páginas. Mais que um texto, um convite à teologia bíblica.”
Evandro L. Cunha, Ph.D., professor de Teologia, Religião e Filosofia no Uninta,
doutor em Línguas e Culturas Antigas pela Universidade de Barcelona
“Compreender as nuances da construção do texto bíblico sempre se
demonstrou um grande desafio para todos os que buscaram empreender essa
nobre tarefa. Neste livro, o dr. Rodrigo Silva apresenta um estudo detalhado
sobre elementos imprescindíveis e basilares da constituição do livro sagrado
para os cristãos, a Bíblia. O livro trata da Bíblia como obra divino-humana e suas
nuances históricas, literárias e teológicas. E para todos os que desejam ampliar
seu conhecimento e tentar mudar a realidade temerária da desculturalização
bíblica emergente brasileira, o estudo desta literatura é uma ótima opção.”
Pr. Clodoaldo Tavares dos Santos, professor de Grego e Novo Testamento na
Faama, mestre em Teologia — EST, doutorando em Novo Testamento na UAP
SUMÁRIO

1 A Bíblia como literatura


2 Como surgiu a Bíblia
3 Seleção dos livros
4 Livros perdidos, banidos, adotados
5 Organização dos livros
6 A História da escrita
7 Escrevendo a Palavra de Deus
8 A transmissão do texto bíblico
9 Do pergaminho à internet
10 Crítica textual do Novo Testamento
11 Crítica textual do Antigo Testamento
12 Compreendendo as Escrituras
13 A Bíblia hoje
14 Conhecimento que liberta
15 Como ler e entender a Bíblia?
16 Que tradução devo usar?
17 Uma coletânea de histórias
18 Fatos e curiosidades bíblicas
19 Considerações finais
Referências
INTRODUÇÃO

A BÍBLIA, M LIVRO FASCINANTE

Ainda me lembro com nostalgia quando, aos sete anos, pedi a meus
pais uma Bíblia Ilustrada de presente. Era uma manhã de domingo
e um vendedor chegou à minha casa oferecendo o precioso livro, já
que meu pai não comprara dele a enciclopédia que tentou lhe
vender. Com muita insistência, acabei ganhando aquele exemplar
sob a forte advertência de que aquele seria meu presente de Natal e
que não adiantava pedir outra coisa. Eu nem liguei. Já tinha o que
queria. Apesar de crescer num ambiente não religioso ― meus pais
eram “católicos não praticantes” ―, minha devoção pelo Santo
Livro começara desde cedo.
Era uma Bíblia grande, capa preta e dourada, ilustrada a quatro
cores, repleta de quadros renascentistas, alguns Caravaggio e
outros tipos que ilustravam as histórias do Antigo e do Novo
Testamentos. Eu decorei cada desenho e cava me exibindo para as
visitas, passando uma por uma as páginas ilustradas e dizendo do
que se tratava. Coisa de criança.
Depois vieram os estudos teológicos, o tempo passado em Israel
e outros estudos mais. Porém, nunca me desliguei desse livro. Eu
sempre soube que alguma coisa dentro dele daria um rumo especial
à minha vida. Não deu noutra: aqui estou eu publicando pela
Editora Ágape mais um título, visando tornar conhecido o
conteúdo do maior livro de todos os tempos.
A emoção é tanta que tomei a liberdade de escrever esta
introdução num tom autobiográ co. Como dizia Karl Barth, “tenho
lido muitos livros, mas a Bíblia é o único livro que me lê”. Verdade!
Nas páginas do Gênesis, sinto-me objeto do desejo do Deus que a si
mesmo bastava, mas resolveu contar com a humanidade. Quando
vou para Êxodo, é como se estivesse fugindo a pé do Egito na
companhia dos hebreus. O livro de Jó parece falar das minhas
tragédias e o de Eclesiastes, de minhas inquietudes. Os evangelhos
falam do meu herói (Jesus) e o Apocalipse, da minha esperança.
Dizem que um casal resolveu, certa vez e por conta própria,
estudar junto uma velha Bíblia que tinha em sua casa. Depois de
uma semana lendo todos os dias vários capítulos, o marido virou
para a esposa e falou:
― Se esse livro estiver certo, nós estamos errados.
Uma semana depois, foi a vez de a esposa falar para o marido:
― Se esse livro estiver certo, nós estamos é perdidos!
Na terceira semana, o marido concluiu, maravilhado:
― Se esse livro estiver certo, acho que nós podemos ser salvos!
E eu posso garantir para você: o livro está certo! São anos de
investigação acadêmica con rmando isso. Contudo, a convicção
com a qual escrevo agora ultrapassa em muito as ideias expressas
nesta pesquisa. Trata-se de uma certeza que advém da experiência
com o Autor do livro, Deus. Aquele que nos criou e inspirou os
profetas a traduzir verdades celestes num “sotaque” humano.
Homilético demais? Talvez. Então venha comigo conhecer a
história da Bíblia Sagrada. Aprenda como seus livros foram
escolhidos, como podemos saber que se trata de um livro divino,
quem o dividiu em capítulos e versículos, como podemos con ar na
transmissão de seu conteúdo… essas e outras temáticas, tenho
certeza, falarão à sua alma e fascinarão sua mente. Se você
permitir, o mesmo Deus que tocou em minha vida tocará hoje na
sua. A Bíblia ainda continua fascinando pessoas. Seja mais um a se
deixar ler pelo Sagrado Livro.
CAPÍTULO UM

A BÍBLIA COMO
LITERATURA

OQ E A BÍBLIA?

A Bíblia Sagrada é, sem dúvida, um dos maiores livros da História.


Para aqueles que possuem a fé judaica ou cristã, ela é muito mais
que um livro antigo e interessante. É a voz de Deus expressa em
linguagem humana. Um compêndio por meio do qual o Espírito
Santo usou homens para se dirigir com amor à humanidade e
revelar os propósitos divinos para ela.
Victor Hugo declarou: “A Inglaterra tem dois livros principais,
Shakespeare e a Bíblia. A Inglaterra fez Shakespeare, mas a Bíblia
fez a Inglaterra.” Poderia ter dito mais. A Bíblia quase fez o mundo
inteiro. Praticamente todo o Ocidente e boa parte do mundo
oriental. Em que pesem as críticas feitas ao Livro Sagrado, há de se
admitir que muitas vidas foram transformadas pela Bíblia, e
pessoas dotadas de grandiosíssima envergadura intelectual creram
piamente no que ela diz. Logo, não se trata de um livro qualquer.
Ninguém nega que seu texto foi produzido por homens. A Bíblia
não caiu pronta do céu nem foi ditada por anjos. Contudo, seus
autores não falaram sozinhos, eles foram inspirados e movidos pelo
Espírito de Deus. Noutras palavras, emprestaram sua voz e estilo
para que Deus pudesse falar com “sotaque” humano. E o que o
Todo-Poderoso tinha de tão importante para nos dizer? Que ele nos
ama e que, aconteça o que acontecer, ainda temos um Pai celestial
que em breve intervirá uma última vez na História para trazer a
justiça e inaugurar a eternidade.
Essa mesma visão da inspiração bíblica como um todo pode ser
vista em 2Timóteo 3:16: “Toda Escritura é divinamente inspirada
por Deus” (theópneustos, lit. “soprada pelo Espírito de Deus”; em
hebraico, beruach há-kodesh). Logo, pode-se dizer que a Bíblia foi
um presente dado pelo céu a cada um de nós.
Nenhuma obra literária enfrentou maior questionamento
crítico-cientí co do que o texto da Bíblia Sagrada. Muitos a
acusaram de ter sido modi cada ao longo dos anos para satisfazer
os interesses políticos da Igreja. Mas isso não é verdade. Graças a
diferentes critérios acadêmicos e laboratoriais, podemos dizer que
temos em mãos praticamente o mesmo conteúdo dos livros
canônicos originais, da forma como saíram das mãos dos autores
inspirados. Ainda que um texto ou outro seja tema de disputas
hermenêuticas e tenhamos reconhecidos problemas de crítica
textual (como algumas discrepâncias entre os diferentes
manuscritos), aquilo que era importante para a salvação dos
homens foi maravilhosamente preservado.
Tanto a origem como a preservação do texto bíblico são fortes
argumentos para a existência do Deus que inspirou essas páginas.
A nal de contas, sempre que alguém precisa con rmar algo a seu
favor, apela-se para uma testemunha superior (ainda que
circunstancialmente) que possa apresentar um depoimento em sua
defesa. É assim que funcionam os procedimentos jurídicos em
geral, e também algumas questões corriqueiras do dia a dia. Um pai
que con rma para o diretor que o lho de fato esteve doente pode
ajudar tremendamente na reposição de uma prova.
Por isso, pode-se dizer que a testemunha tem autoridade
singular, pois confere certeza ao depoimento de uma pessoa. Deus,
no entanto, por ser incomparavelmente maior, não precisaria de
outro (circunstancialmente superior) que desse testemunho a seu
respeito. Ele em si mesmo se basta. Contudo, por sua in nita
bondade, Deus preferiu contar conosco. É neste sentido que sua
Palavra é, ao mesmo tempo, um testemunho que ele dá de si usando
seres humanos para reproduzi-la. A Bíblia é, em síntese, um grande
testemunho da existência de Deus.

O LIVRO MAIS FAMOSO DO M NDO

A Bíblia é, sem dúvida, o livro mais impresso e divulgado no mundo


inteiro. Seria também o mais estudado? Difícil dizer. Mas o fato é
que uma pesquisa das Sociedades Bíblicas Unidas (UBS, a sigla em
inglês) concluiu que cerca de 2,5 bilhões de cópias tinham sido
impressas e distribuídas entre 1815 e 1975. Porém, mais
recentemente, o livro Guiness de recordes publicou que esse
número superaria 5 bilhões de exemplares distribuídos em 349
idiomas (algumas fontes falam em 6 bilhões).1 Se considerarmos
ainda aqueles que têm pelo menos partes da Bíblia em seu
vernáculo, esse número saltaria para mais de 2,4 mil línguas e
dialetos ao redor do mundo que possuem a Bíblia traduzida no todo
ou em parte.2
Somente os Gideões Internacionais distribuem por dia mais de
170 mil exemplares da Bíblia em todo o mundo. Isso signi ca que, a
cada minuto — ou o tempo em que você levar para ler toda essa
página —, 120 novas bíblias foram entregues em diferentes cantos
do planeta.
O segundo livro no ranking dos mais publicados e distribuídos
do mundo seria o famoso Livro Vermelho, do líder comunista Mao
Tsé-Tung, que trazia citações do ditador chinês compiladas por Lin
Piao, seu ministro da Defesa. Diferentemente da Bíblia, a
distribuição e a leitura eram obrigatórias, impostas pelo governo.
Mesmo assim, o que se tem aqui é um distante segundo lugar, pois,
de acordo com as fontes o ciais, o Livro Vermelho estaria disponível
em menos de quarenta idiomas, com uma tiragem de pouco mais de
1 bilhão de cópias distribuídas pela China e restante do mundo.
Que contraste, não é mesmo? E as diferenças não param por aí.
O conteúdo de ambos os livros é assombrosamente diferente. De
acordo com o Livro Vermelho de Mao, “devemos apoiar tudo o que o
inimigo combate e combater tudo o que o inimigo apoia”. E mais: “A
revolução é uma insurreição, um ato de violência pelo qual uma
classe derruba a outra.”
Já na contramão dessa cultura, temos os ensinos de Cristo, que
diz: “Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam,
fazei-lho também vós a eles; porque esta é a lei e os profetas”
(Mateus 7:12). Além disso, temos o conselho de Paulo: “Não te
deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem” (Romanos 12:21).
O Livro Vermelho tornou-se uma espécie de bíblia para a
juventude chinesa dos anos 1960 e 1970, e foi peça-chave do maior
fervor ou fanatismo revolucionário do século 20, a chamada
Revolução Cultural, que ceifou a vida de muitas pessoas e tornou a
China um dos países mais isolados do mundo inteiro.

Alguns podem argumentar que a Bíblia também provocou muitas


mortes nos tempos da Inquisição, mas isso não é verdade. Foi a
autoridade eclesiástica de então que mandou matar em nome da fé. A
leitura da Bíblia, além de proibida para a população em geral, era um dos
motivos da pena capital, pois muitos foram mortos apenas por ter em
casa um exemplar do Livro Sagrado ou tentar lê-lo por conta própria sem
autorização da Igreja. Autoridade eclesiástica e ensinamentos bíblicos
não são, necessariamente, sinônimos perfeitos. A história, portanto, das
Escrituras Sagradas está bem distante daquela relacionada ao Livro
Vermelho da China comunista.

NOMES PARA A PALAVRA DE DE S

▶ Bíblia

Não encontramos nas Escrituras o nome “Bíblia”. Esse título foi


usado pela primeira vez, em relação à Palavra de Deus, por João
Crisóstomo, patriarca e reformador de Constantinopla (354-407
d.C.).
O nome Bíblia deriva de Byblos, que é o nome de uma importante
cidade portuária da região dos fenícios que hoje ca no Líbano.
Foram os gregos que deram esse nome ao lugar devido à sua
importância no comércio de papiro, um tipo de papel importado do
Egito. Aliás, Byblos também era o nome que os gregos davam ao
papel que os egípcios preferiam chamar de “wadj” (ou ).
Com a diferença de apenas uma letra, Byblos virou Biblos e
passou a signi car “livro”. O diminutivo de livro em grego é biblion,
que quer dizer “livrinho”, e o plural é bíblia, que quer dizer
“livrinhos”. Foi justamente por ser uma coleção de pequenos livros
que a Escritura Sagrada passou a ser chamada de Bíblia, nome este
que cou até os dias de hoje.

Tudo indica que foi Crisóstomo, um autor cristão do século 4, que usou
pela primeira vez o nome Bíblia para se referir ao Antigo e Novo
Testamentos. Contudo, há indícios de que já em 223 d.C. o título era vez
ou outra usado por seguidores do cristianismo para referirem-se aos
escritos dos apóstolos e, antes deles, judeus helenistas que viviam em
Alexandria valiam-se da expressão “ta bíblia” (os livrinhos) para indicar
uma tradução grega do Antigo Testamento normalmente conhecida
como Septuaginta. Mais à frente você conhecerá a história dessa
tradução.

▶ Escritura Sagrada

No contexto do judaísmo, a expressão Escritura Sagrada é


preferível à palavra Bíblia, tida pelos judeus como um apelido
cristão. No próprio contexto neotestamentário também sempre se
faz uso de termos como “Escritura”, “Oráculos Sagrados”, mas
nunca de Antigo ou Novo Testamentos. Essa divisão surge com a
perspectiva teológica de antiga e nova alianças. Eles também se
valem muito do termo Tanak, que seria uma abreviatura de três
palavras hebraicas, a saber: Torá (lei), Neviim (profetas) e Ketuvim
(escritos). Estas, por sua vez, representam as três maiores divisões
da Escritura, embora também seja comum referirem-se a ela como
apenas a Torá, ou a Lei e os Profetas. Essa divisão, aliás, já era
conhecida nos tempos do Novo Testamento, pelo que Jesus fez uso
dela em diversos momentos de seu ministério (cf. por ex. Mateus
7:12; 11:13; 22:40; Lucas 10:26; 16:16, 17; 24:44; João 1:45; 10:34).

Hoje em dia, os cristãos costumam dividir a Bíblia em Antigo e Novo


Testamentos. Essa é uma nomenclatura que não pode ser confundida,
pois, com o advento de uma cultura tecnológica repleta de updates e
novas versões, a palavra “Antigo” ou “Velho” Testamento pode indicar
algo obsoleto, sem valor para atualidade, fora de moda. Contudo, não é
nada disso. Toda a Palavra de Deus, do primeiro ao último livro, será
sempre atual para aquele que crê.

▶ Antigo e Novo Testamento

O nome Antigo Testamento foi criado por Melito de Sardes em


cerca de 170 d.C. para referir-se aos livros sagrados escritos antes da
vinda de Jesus Cristo a este mundo. Ele não menciona a expressão
Novo Testamento, mas o conceito parece implícito em seu
comentário, pois seria a sequência natural de escritos, tanto que
um documento antimontanista da mesma ocasião referiu-se ao
cânon cristão como sendo a palavra do “Novo Concerto
(Testamento) do Evangelho”. A expressão Novo Testamento, neste
caso, tornou-se o título da coleção de livros canônicos que foram
escritos depois do nascimento de Cristo. A primeira parte,
portanto, seria uma espécie de prenúncio do Messias que haveria de
vir, e a segunda, um anúncio do Messias que veio e que voltará. A
primeira conta a história da criação do mundo e da queda da
humanidade, mas se concentra na história de Israel. Já a segunda
concentra-se no ministério de Jesus e na história da igreja cristã
primitiva.
E por que Antigo e Novo Testamento, e não Antiga e Nova
Escritura? A bem da verdade, algumas antigas versões gregas
preferiam chamar essas porções de Antiga e Nova Alianças (palaia
diathéke e kainé diathéke). Mas, ao que tudo indica, os teólogos
consideraram que, sendo a aliança ou o acordo de Deus com a
humanidade algo que demanda muito mais a ação divina que a ação
humana, seria preferível traduzir o termo por testamentum, que
quer dizer justamente isso, um testamento que Deus, em pessoa,
deixou para nós. Uma herança em forma de livro, daí o uso dos
nomes latinos Vetus Testamentum (Antigo Testamento) e Novum
Testamentum (Novo Testamento).

PEC LIARIDADES DE M LIVRO

Além da grande tiragem mencionada anteriormente, há muitos


outros detalhes que fazem da Bíblia um livro incomum, ou, mais
propriamente, um livro sem igual.
A Bíblia foi o primeiro livro impresso no Ocidente por
Johannes Gutenberg, entre 1450 e 1455. Ela também foi o
primeiro livro impresso em português, no ano de 1487, na
região do Algarve, Portugal.
Foi também o livro mais proibido, perseguido e que sofreu
tentativas de destruição em toda a História. Só à guisa de
ilustração, em 303 d.C. Diocleciano decretou que toda cópia
da Bíblia cristã fosse queimada. Presume-se que centenas, se
não milhares de cópias tenham se perdido. Por pouco não
teríamos o Novo Testamento. Muitos foram mortos apenas
por ter uma cópia parcial da Bíblia em seus lares.
Até mesmo a igreja foi contrária à divulgação bíblica. Em
1199, o papa Inocêncio III proibiu a tradução da Bíblia para o
vernáculo francês e decretou que seria um perigo se ela fosse
lida por pessoas simples do povo. Quem fosse apanhado
lendo-a ou ensinando-a na França seria morto. Várias
bíblias foram queimadas a mando da igreja.
Apesar de tantas destruições textuais, a Bíblia é o livro da
Antiguidade com a maior quantidade de cópias manuscritas
de que se tem notícia. Enquanto a Ilíada de Homero (o
clássico com maior número de cópias preservadas) conta
com apenas 1.757 manuscritos, a Bíblia tem mais de 40 mil
cópias, se incluirmos os textos em grego e hebraico, as
traduções antigas e porções preservadas antes da invenção
da imprensa.
A Bíblia é, sem dúvida, o livro mais controverso da História.
Nomes de peso, como Immanuel Kant (1724-1804), Abraham
Lincoln (1809-1865) e Isaac Newton (1643-1727) o amaram e o
recomendaram sem qualquer hesitação. Por outro lado,
nomes igualmente de peso rejeitam e desprezam sua leitura
— Voltaire (1694-1778), Friedrich Nietzsche (1844-1900) e
Jean-Paul Sartre (1905-1980) são alguns deles. Seja como for,
percebe-se que não é um livro necessariamente dos menos
intelectuais, pois, embora haja mentes brilhantes que o
rejeitem, há outras que o amam profundamente.
Curiosamente, o texto bíblico não se setoriza em apenas um
grupo de pessoas. Ele desperta o interesse e atende as
necessidades de jovens, adultos, crianças, cultos, iletrados,
ricos e pobres. É a obra mais ecleticamente social de toda a
História tanto do Ocidente como do Oriente.
Embora existam muitos livros de autoajuda ou re exivos
que tenham mudado a mente de várias pessoas, nenhuma
produção literária da História modi cou tantas vidas como
a Bíblia Sagrada. Bêbados, tra cantes, prisioneiros,
depressivos, suicidas potenciais e assassinos são apenas
alguns dos milhões e milhões que tiveram a vida
transformada pelo contato com esse livro em particular.

Certa vez, ouvi que a Bíblia poderia ser comparada a uma piscina cheia
de água. Uma piscina com uma parte tão rasa que as crianças poderiam
ficar de pé e outra tão profunda que um elefante poderia nadar nela sem
qualquer dificuldade. Pois bem, a Bíblia é um maravilhoso compêndio
que contém passagens, em alguns casos, bem densas e profundas, mas,
de maneira geral, se apresenta como um conteúdo simples o bastante
para que qualquer um possa, por conta própria, ler e entender os
desígnios de Deus para cada pessoa. (Bruce Metzger, especialista em
crítica textual do Novo Testamento)3
LIVRO PERIGOSO?

A Bíblia foi escrita por homens como nós, escolhidos pela


providência divina para colocar em linguagem humana aquilo que
Deus queria revelar a seus lhos. Mas o que quer dizer esse “como
nós”? Não seriam homens especiais? Claro que sim, porém não no
sentido que muitos interpretam. As calejadas mãos que escreveram
a Bíblia não eram de super-heróis, mas de pessoas errantes, sujeitas
às mesmas paixões de qualquer ser humano.
A diferença, portanto, não estava em que fossem perfeitos ou
jamais errassem, mas no fato de que amavam a Deus e não
recusaram o chamado recebido do céu. Dentre esses autores, temos
nomes como Moisés, Davi, Daniel, Isaías, Pedro e Paulo, sujeitos
comuns dotados de uma grande paixão pela causa divina. Eles são
indiretamente referidos no texto de 2Pedro 1:20,21, que diz: “…
sabendo primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é
de particular interpretação. Porque a profecia nunca foi produzida
por vontade dos homens, mas os homens da parte de Deus falaram
movidos pelo Espírito Santo.”
A Bíblia traz sobre si uma reinvindicação muito séria que, se for
verdadeira, faz dela o livro mais importante de todos os tempos,
mas, se for mentirosa, o mais terrível que a humanidade já
produziu. Ela diz que é de origem divina: “Toda Escritura é
divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender,
para corrigir, para instruir em justiça” (2Timóteo 3:16). Por isso o
escritor George Bernard Shaw estava parcialmente correto quando
chamou a Bíblia de “o livro mais perigoso do mundo”.
A nal de contas, um livro que se declara vindo de Deus só pode
ser creditado a dois fatores: histerismo ou inspiração. Seja qual for
a alternativa adotada, é impossível car neutro em relação a ele,
principalmente nós, que vivemos no Ocidente. Ou ela é
inteiramente absoluta ou incrivelmente obsoleta.
Imagine agora que a Bíblia nunca tivesse sido escrita ou
preservada até nossos dias. O que teria acontecido? Uma resposta
precisa é difícil de ser dada, mas James Kennedy e Jerry Newcombe
lançaram-se ao desa o de encontrar uma resposta. Eles escreveram
juntos o livro What if the Bible Had Never Been Written? [E se a Bíblia
nunca tivesse sido escrita?], e concluíram que praticamente todos
os grandes exploradores, cientistas, escritores, artistas, políticos e
educadores do Ocidente foram tão in uenciados por este livro que,
sem ele, esses homens jamais teriam oferecido tantas contribuições
ao mundo.
Exagero? Difícil dizer. Mas pelo menos uma coisa pode ser dita e
que calaria muitos que consideram a Bíblia um livro sem
signi cado positivo. Conta-se que, em 1936, um antropólogo
descrente da Bíblia estava entrevistando Kata Ragoso, um líder
tribal da Nova Guiné. Em uma de suas perguntas ele quis saber o
que o nativo achava de ter sua cultura terrivelmente modi cada
pelos hábitos trazidos por esse livro de brancos. Era realmente um
motivo de agradecimento? “Se é motivo para eu agradecer, não sei”
— respondeu Ragoso —, “mas para você, deveria ser, caso contrário
eu agora o estaria degolando e encolhendo sua cabeça, conforme o
costume de meus ancestrais.”
Imagine os milhões de pessoas que tiveram sua vida mudada
para melhor por causa da leitura desse livro chamado Bíblia
Sagrada! É claro que houve muitos outros clássicos que trouxeram
benefícios para a humanidade, mas nenhum deles transformou
diretamente tantas multidões de diferentes níveis sociais e
culturais. Tome por exemplo um livro como O capital, de Karl
Marx. Ele realmente in uenciou muito os rumos da economia
moderna, mas quantos presidiários poderiam ser citados que
deixaram o mundo do crime por terem lido os escritos de Marx?
Quantos assassinos se arrependeram de seus crimes e mudaram de
vida por terem lido os pensamentos do marxismo? Quantas pessoas
tiveram uma morte mais tranquila porque, em seu leito, um amigo
leu trechos sobre a dialética e a luta de classes? Logo, por mais que
alguns se mostrem apaixonados por Marx e suas teorias
econômicas, seus escritos, nem de perto, produziram as
transformações de vida que testemunhadas por aqueles que se
apaixonaram por Cristo.
Isso mostra que o mundo pode estar repleto de bons e excelentes
livros, mas só a Bíblia pode se dizer inspirada por Deus. E o que
signi cava originalmente essa palavra “inspiração”?
De um modo bastante simpli cado, podemos dizer que
inspiração, no sentido bíblico do termo, signi ca “o que vem
diretamente de Deus”, isto é, que tem origem divina. Em latim, esse
termo signi ca “soprar para dentro”, assim como um adulto faz ao
insu ar um balão de ar. Seria também essa a imagem gurativa de
Deus soprando o Espírito na mente de uma pessoa. Em seu
correspondente grego, esse termo só aparece uma vez no Novo
Testamento, em 2Timóteo 3:16.
Em 2Timóteo, o termo vem da junção de duas palavras gregas:
Theos (que quer dizer “Deus”) e pneustos (que quer dizer “sopro”,
“espírito”). Logo, algo que foi soprado por Deus ou simplesmente
“inspirado” por ele — o mesmo sentido da versão latina. Assim, a
melhor tradução para 2Timóteo 3:16 talvez fosse “expirado” ou
“soprado” por Deus.
1 Disponível em http://www.statisticbrain.com/bibles-printed/. Acesso em 9/6/2015.

2 Disponível em http://www.guinnessworldrecords.com/world-records/best-selling-book-of-
non- ction. Acesso em 2/6/2015.

3 Disponível em https://www.visionvideo.com/ les/DTB_ColorBookLR.pdf.


CAPÍTULO DOIS

COMO SURGIU
A BÍBLIA

A LING AGEM E DE S

“No princípio era o Verbo” ou “a Palavra”. Assim inicia o Evangelho


de João. Tal a rmação, no entanto, implica uma série de questões
que demandam a mais profunda re exão sobre a gênese da
linguagem humana. Tema que, apesar de reunir muitas discussões
e especialistas, não encontrou consenso algum sobre como e
quando tudo isso começou.
O que surgiu primeiro: o pensamento ou a linguagem? Como,
quando e por que o ser humano passou a falar? Estas são questões
que realmente intrigam os antropólogos, especialmente os que
buscam uma compreensão das origens da humanidade abstendo-se
de qualquer participação divina no processo.
Para os que creem no relato bíblico do Gênesis, isso não é
problema, pois Deus teria criado Adão com a capacidade de falar e
entender a linguagem que, no princípio, seria do próprio Deus. Já
para os que advogam a teoria da evolução, isso pode ser um dilema
insolúvel. A nal, se não existe Criador, se somos frutos de uma
geração espontânea, como adquirimos a capacidade de falar? Com
quem aprendemos a nos expressar por meio da linguagem?
Essas perguntas fazem todo sentido se entendermos que todos os
estudos realizados até hoje no campo da linguagem demonstram
inequivocamente que, para falar, precisamos de alguém que nos
ensine e nos estimule, pois sozinhos nunca aprenderemos. Segundo
os especialistas, toda criança nasce com um órgão biológico no qual
estão inseridos dados de previsões daquilo que é comum a todas as
línguas naturais e das variações que poderão ser encontradas.
Isso é o que eles chamam de gramática universal. Ela só é
desenvolvida se houver a exposição, isto é, se a criança for exposta a
uma determinada língua para, então, desenvolver o órgão da
linguagem. É por meio dos dados que recebeu que a criança irá
“montar” a sua gramática. Mas isso tem um limite. Se ela não for
exposta a uma língua até os 6 anos, em média, terá sérias
complicações. Após esse período, adquirir a fala não será mais um
processo natural, e a expressão pela linguagem será algo
impossível.
Veja que não se trata de um mistério que a ciência simplesmente
ainda não desvendou. Os especialistas já descobriram. O ser
humano, para desenvolver a linguagem, precisa aprendê-la com
alguém que já a utilize previamente. E se não houve esse alguém no
princípio, é complexo teorizar como foi que nossos ancestrais
começaram a falar.
É justamente por essa di culdade até agora insolúvel que, apesar
do grande número de propostas sobre como, por quê, quando e
onde a linguagem começou, trata-se de um assunto reconhecido
por vários especialistas como “o mais difícil problema das ciências
humanas”.4
Por meio do testemunho bíblico, sabemos que Deus, desde os
mais remotos tempos, se comunicou com a humanidade, e esta
respondeu à sua voz interagindo com ela em expressões e falas que
hoje se perderam no tempo. Alguns rabinos a rmam que Adão
falava hebraico, porém essa é uma declaração teológica sem
qualquer tipo de comprovação bíblica ou acadêmica. Seja como for,
embora con gure ser tarefa inglória decifrar a língua de Adão, é
possível dizer que ele conversava com Deus, ouvia-lhe a voz e
compreendia suas palavras.
Mais que isso — Adão e Eva interagiam em diálogos com Deus.
Expressões como: “Ordenou o Senhor Deus ao homem…” (Gênesis
2:16); “Assim o homem deu nomes a todos os animais…” (Gênesis
2:20); “E, ouvindo a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim à
tardinha…” (Gênesis 3:8) deixam registrado que a linguagem
humana é tão antiga quanto o próprio ser humano.
Tal processo de comunicação divino-humana continuou por um
tempo após a expulsão do Jardim do Éden. Não somente os seres
humanos continuaram conversando entre si, apesar da confusão na
torre de Babel (Gênesis 11), como continuaram recebendo
mensagens divinas seja por sonhos ou aparições especiais da
divindade.
Todos os patriarcas bíblicos, Noé, Abraão, Isaque e Jacó tiveram
revelações de Deus, isso muitos séculos antes de Cristo. Porém, com
o passar do tempo, falhas de memória e imprecisões na transmissão
das mensagens zeram com que a comunicação oral de Deus com
um ou outro indivíduo se tornasse um meio inadequado para
preservar o conteúdo da revelação dada aos homens. É aí que surge
o fenômeno de escrituração das mensagens de Deus por intermédio
da Bíblia Sagrada.
Contudo, mesmo que de forma escrita, a comunicação ainda
continua sendo por meio da palavra. A Bíblia é a maior testemunha
de que Deus estabeleceu sua comunicação com indivíduos, povos e,
por m, com a Igreja. A mais importante comunicação divina, no
entanto, se deu por intermédio do envio de Jesus Cristo, o próprio
Filho de Deus, que revelou na carne o caráter do Pai.
O livro de Hebreus inicia dizendo: “Havendo Deus antigamente
falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas,
nestes últimos dias a nós nos falou pelo Filho, a quem constituiu
herdeiro de todas as coisas […] sustentando todas as coisas pela
palavra do seu poder […]” (Hebreus 1:1-3). O que estas palavras
signi cam? Que muitos homens e mulheres, de várias partes e em
diferentes línguas, registraram em linguagem humana a
comunicação que receberam de Deus. Os profetas e hagiógrafos
(escritores sacros) são instrumentos humanos que Deus usou para
registrar, em linguagem humana, sua revelação especial. Daí o
surgimento da Bíblia Sagrada, Palavra escrita de Deus.

INSPIRADOS POR DE S

Quando Paulo diz que toda Escritura é inspirada por Deus, está
evidentemente fazendo referência à já mencionada coleção de
livros sagrados que ele conhecia em sua época, a saber: a Lei, os
Profetas e os Salmos, conforme vimos em Lucas 24:44. Ele também
já considerava os evangelhos ou, pelo menos, os evangelhos de
Mateus e Lucas, pois em 1Timóteo 5:18 ele cita Deuteronômio 25:4,
associado a Mateus 10:10 e Lucas 10:7, e chama de “Escritura” (ver
1Coríntios 9:9,14). Ambos, Antigo e Novo Testamentos vieram de
Deus para os cristãos, e são igualmente considerados Escrituras
(1Coríntios 2:10-13; 1Timóteo 5:18; 2Pedro 3:15,16).
Isso nos leva a entender que a inspiração envolve, via de regra,
um agente humano usado por Deus. É, em outras palavras, a
operação divina que toma conta do autor sagrado, esclarecendo-o,
guiando-o, assistindo-o na execução de sua tarefa. Foi isso que o
autor aos Hebreus quis dizer ao a rmar que Deus falou nos tempos
antigos aos pais pelos profetas (Hebreus 1:1). Mas como se dava esse
processo?
O teólogo alemão Karl Rahner (1961) encontrou um modo
interessante de explicar o fenômeno da inspiração bíblica. Ele
percebeu que o uso do termo latino autor para designar Deus como
quem compôs as Escrituras poderia ser um tanto dúbio. Então ele se
lembrou de que, em alemão, você pode falar de alguém como autor
literário (Verfasser) ou como originador de um livro (Urheber).
Assim, segundo Rahner, Deus originou os livros sagrados, isto é,
propiciou que fossem produzidos, mas não os escreveu no sentido
de que ditou suas palavras ou utilizou-se do profeta como se fosse
uma máquina de escrever ou um teclado de computador. Na
verdade, Deus inspirou os pensamentos e os ensinos na mente de
seus servos, mas a linguagem e as imagens usadas nas Escrituras
eram do próprio profeta de acordo com a cultura e com a
cosmovisão em que ele estava inserido.
A Inspiração é uma operação do Espírito Santo, atuando nos homens,
de acordo com as leis da constituição humana; que não é neutralizada
pela influência divina, mas aproveitada como um veículo para a
expressão completa da mensagem de Deus. […] a Inspiração está
geralmente combinada com o progresso moral e espiritual do
Doutrinador, de maneira que há no todo uma conformidade moral entre
o Profeta e a sua doutrina. (Westcott apud APOLINÁRIO, 1989)
Veja esta declaração de Davi em 2Samuel 23:2: “O Espírito do
Senhor fala por mim […]” Somando o que foi dito com essa
declaração de Davi, podemos concluir que a Bíblia é um livro
divino, mas não caiu pronto do céu. Ela foi se formando ao longo do
tempo, admitiu rascunhos, contextos, pequenas edições. Para que a
Bíblia se concretizasse, o Espírito Santo se serviu de instrumentos
que eram humanos e que conservavam a respectiva personalidade,
caráter, talento e gênio, os hábitos intelectuais e poderes de estilo
típicos de sua época. Deus não violentou nem destruiu as
faculdades daqueles que escolheu para transmitir sua mensagem. O
autor continuava sendo um ser humano com suas peculiaridades e
seu próprio modo de pensar.
É claro que Deus não permitiria à humanidade do profeta
intervir de modo a prejudicar o conteúdo da revelação. Não
obstante, é notório, por exemplo, que homens simples como Pedro
e João escreveram de modo simples, com vocabulário reduzido e
expressões mais simplórias, bem diferente de Salomão ou Paulo
com toda a erudição que lhes dizia respeito. Por isso a carta aos
Romanos é muito mais primorosa e repleta de guras literárias que
o discurso de Pedro expresso no livro de Atos, capítulo 3.
De acordo com o que a própria Bíblia nos dá a entender, com a
história de Gênesis, capítulos 1 a 3, não era plano original de Deus
usar um livro para se comunicar com os seres humanos. Ao que
tudo indica, Adão e Eva tinham franca comunhão com seu Criador
e, possivelmente, com outros agentes celestiais. Mas a entrada do
pecado causou uma ruptura entre criatura e Criador (Isaías 59:2). O
Senhor agora tinha de usar outros meios de se comunicar com o ser
humano, e a revelação nos indica alguns deles:

Anjos vindo em forma humana (Zacarias 1:9; Lucas


1:11,18,19).
Visões (Daniel 7:2; Apocalipse 1:19).
Sonhos (Gênesis 37:5,9; Números 12:6).
A impressão do Espírito Santo (2Samuel 23:11,12; 2Pedro 1:21)
.
As obras da natureza (Romanos 1:20; Colossenses 1:13-18).
Revelações especiais feitas até por quem não era profeta
(Mateus 27:19).

Algumas dessas formas de comunicação divina podem ocorrer


ainda em nossos dias, mas a Providência não as considerou o canal
mais seguro para garantir a preservação dos oráculos celestiais, por
isso o Senhor resolveu escolher algumas pessoas em especial para
que fossem usadas como escritores inspirados por ele para
produzirem o seu livro especial, inspirado e autenticado pelo
próprio Espírito de Deus. Esse livro traria a revelação especial de
Deus dada aos homens.

OS PROFETAS
Os que foram eleitos para a tarefa de produzir a Bíblia eram
“movidos pelo Espírito Santo” (2Pedro 1:21); logo, as palavras, as
expressões e a concatenação das ideias poderiam até ser humanas,
mas a autoria, em última instância, era divina. Os agentes humanos
poderiam, portanto, se valer de pesquisa, depoimento de
testemunhas, descrição de eventos e até material que não fosse
inspirado (Lucas 1:1-4). Todos esses métodos, no entanto, tinham a
direção do Espírito Santo a m de que o lado humano não afetasse a
essência daquilo que Deus intentava transmitir (João 16:13 cf.
Apocalipse 22:19).
Esses escritores eram chamados profetas ou videntes de Deus.
Mas o quem seriam eles? Como reconhecê-los na História? Embora
o texto bíblico, especialmente o Antigo Testamento, traga várias
palavras hebraicas para de nir esses autores inspirados, chama-
nos a atenção que a palavra mais comum em português, “profeta”,
vinha originalmente do mundo grego e servia para referir-se ao que
fala algo em lugar de uma autoridade especialmente divina ou
sobrenatural. Por isso, o vidente bíblico é aquele que fala “por
Deus” aos homens e como tal ele pode, algumas vezes, dar uma
advertência, revelar uma situação especí ca ou ainda antever
acontecimentos futuros.
Vários povos, além dos judeus, diziam possuir mensageiros com
dom profético. Entre eles estavam os babilônios, hititas, gregos,
entre outros. No caso bíblico, a orientação é checar se um profeta
vem ou não de Deus, pois, assim como há verdadeiros profetas,
também há falsos líderes dizendo-se inspirados por Deus quando,
na verdade, não receberam nenhuma mensagem do Altíssimo (cf.
Deuteronômio 18:20-22; Mateus 7:15-20; Romanos 16:17,18;
1Tessalonicenses 5:20,21).
Como podemos reconhecer um falso profeta? Estudando a
Bíblia. Se alguém prega algo que vai contra as Escrituras, é falso
profeta. Mas note que este argumento se torna circular, a menos
que tenhamos primeiramente estabelecido que a Bíblia é, de fato, a
Palavra de Deus. Somente depois dessa certeza podemos tomá-la
como parâmetro de veri cação da autenticidade profética de uma
pessoa.
Também é importante ver se a profecia se cumpre. Se não se
cumprir, provavelmente é porque veio da imaginação da pessoa, e
não de uma revelação de Deus. Há casos, no entanto, que um
prognóstico pode ocorrer por coincidência, previsibilidade comum
ou manipulação de fatos. Novamente, em caso de dúvida, a Bíblia
será a regra de fé, prática e validação da mensagem apresentada.
Por isso, é possível dizer que a Escritura tem, em última
instância, autoridade e característica normativa. Ela não pode ser
desrespeitada (João 10:35) nem violada sem consequências (Mateus
5:17-20). Ela vem de Deus (Mateus 22:31; 2Pedro 1:18-20). Foi
revelada e inspirada pelo Senhor.

Uma impressão de selo de argila de 2,7 mil anos de idade, encontrada


em 2018 em Jerusalém, pode ser a primeira referência ao profeta Isaías
fora da Bíblia. Na Antiguidade, as cartas eram seladas com argila e
enviadas aos seus remetentes, que quebravam o lacre para poder ler o
conteúdo do documento. No exemplar encontrado, há uma inscrição
com as letras hebraicas usadas no período do Primeiro Templo, que
parecem soletrar l’Yesha’yahw (“Pertence a Isaías”). Na linha abaixo, há a
palavra parcial nabi, que quer dizer “profeta”.
O problema, porém, é que, como o selo está quebrado, falta a letra final
da palavra “profeta” em hebraico, o que torna difícil ser dogmático
quanto ao que estaria originalmente escrito ali. Se a última letra for
mesmo um álef, então não restaria dúvidas de que se trata da palavra
“profeta” e que este seria um selo original do vidente de Deus. De
qualquer forma, só a possibilidade que essa inscrição levanta já é motivo
de celebração em termos de arqueologia bíblica.

REVELA ES DE DE S

A declaração de que a Escritura é inspirada por Deus é feita de


várias formas ao longo da Bíblia. No Novo Testamento,
encontramos referências aos profetas mais antigos como “Homens
que falaram da parte de Deus”; “que foram movidos pelo Espírito
Santo”; e “o Espírito de Cristo que estava neles testi cou”. Existem,
portanto, cinco textos principais que você deveria decorar para
entender essa ideia de revelação e inspiração bíblica.

. 2Timóteo 3:16 — “Toda Escritura é divinamente inspirada e


proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para
instruir em justiça.”
. 2Pedro 1:20,21 — “[…] sabendo primeiramente isto: que
nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação.
Porque a profecia nunca foi produzida por vontade dos
homens, mas os homens da parte de Deus falaram movidos
pelo Espírito Santo.”
. Mateus 5:17,18 — “Não penseis que vim destruir a lei ou os
profetas; não vim destruir, mas cumprir. Porque em verdade
vos digo que, até que o céu e a terra passem, de modo nenhum
passará da lei um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido.”
. João 10:35 — “[…] a Escritura não pode ser anulada.”
. João 17:17 — “[…] a tua Palavra é a verdade.”

A Bíblia ainda está repleta de expressões como: “E falou o


Senhor”; “Eis o que diz o Senhor”; “Veio a mim a palavra do
Senhor”. Daí estar corretíssimo referir-se a esse conjunto de
revelações como sendo a “Palavra de Deus”. A palavra “revelação”,
como a temos em português, vem do latim re+velo, que signi ca
“descobrir”, “desvendar”, “levantar o véu”. Revelação signi ca,
portanto, descobrimento, manifestação de algo que está escondido.
A palavra grega correspondente à latina “revelação” é “apocalipse”.
Revelação é outro termo que aparece na literatura teológica
como paralelo a inspiração. Por isso ambos são, muitas vezes,
usados de modo indistinto, quase como sinônimos. A razão é
porque eles exprimem apenas aspectos diferentes de uma mesma
verdade grandiosa. As Escrituras podem, em resumo, ser de nidas
como uma produção literária de escritores inspirados contendo
uma série de revelações dadas diretamente por Deus aos seres
humanos. Revelação bíblica é Deus tornar conhecido seus
pensamentos, suas intenções, seus desígnios, seus mistérios (Isaías
55:8,9; Romanos 11:33,34; Apocalipse 1:1).

PALAVRA DE HOMENS?

Considerando que existe um Deus que transcende o Universo, é


razoável supor que esse mesmo Deus se revele às suas criaturas
numa linguagem que elas possam compreender. Caso contrário,
caria sem sentido a comunicação divino/humana e o
conhecimento do Altíssimo permaneceria uma utopia. A Bíblia é a
mensagem de Deus posta em palavras humanas porque ele resolveu
revelar-se à humanidade para que ela compreenda suas verdades. A
Escritura, pois, tem a ver mais com o conteúdo dessa revelação.
É importante, ao se falar de “inspiração” bíblica, ter bem claro
também o que ela não é:

Não é uma inspiração humana natural. Muitos pensam que


os autores da Bíblia eram apenas gênios literários, como
Carlos Drummond de Andrade ou Cora Coralina. A
Escritura é muito clara em dizer que a genialidade de sua
mensagem não veio da capacidade natural deles. Deus falava
através deles (2Samuel 23:2 c/c Atos 1:16; Jeremias 1:9 c/c
Esdras 1:1; Ezequiel 3:16,17; Atos 28:25).
Não é uma inspiração emocional ou mesmo espiritual como
a que sentimos hoje diante de uma música inspiradora ou
oração fervorosa. A emoção de um culto inspirador pode até
conter graus de elevação espiritual, momentos em que nos
sentimentos mais cheios de poder ou mais emotivos. Isso
não se dava com o profeta de Deus; ou ele era plenamente
inspirado por Deus ou não era. Não havia graus de
inspiração. Além disso, a sensação comum da presença de
Deus pode ser algo permanente (1João 2:27), ao passo que a
manifestação profética era algo ocorrido num dado
momento em que o vidente mal esperava (Daniel 10:4,5).
A inspiração não admite hierarquias proféticas. Ou seja, um
profeta não é mais ou menos inspirado que outro. Uns
podem ter tido visões historicamente mais relevantes,
outros podem ter recebido apenas a mensagem audível e
nada mais. Porém, uma vez reconhecidos como legítimos,
nenhum deles foi mais ou menos inspirado que o outro. O
profeta simplesmente é ou não inspirado, não existe graus
de inspiração profética.
Inspiração não é onisciência. Ou seja, o profeta muitas vezes
se limitava a reproduzir aquilo que via, conforme o Senhor
lhe mostrava. Ele mesmo, muitas vezes, não entendia
plenamente todas as nuanças daquilo que o Senhor
comunicava nem discernia os detalhes do futuro
cumprimento de suas profecias. Daniel é um caso clássico. A
Bíblia diz que ele chegou a adoecer por não compreender
perfeitamente tudo o que recebera em visão e, ao que tudo
indica, mesmo por ocasião de sua morte, ainda guardava
muitas incógnitas em seu coração. Muitos que vieram
depois dele entenderiam suas profecias melhor que ele
mesmo (Daniel 12:4,9).
A inspiração não se prende às intenções do profeta. Foi por
perceber esta realidade que os exegetas usaram uma
expressão latina, sensus plenior, cuja tradução literal seria
“um sentido mais amplo”. Isso signi ca que o texto pode nos
dizer mais do que o profeta intentava transmitir, pois as
intenções de Deus podem ser mais profundas e abrangentes
que o contexto imediato do autor bíblico. Por exemplo,
Isaías, ao profetizar em 7:14 que uma virgem daria à luz um
menino especial, provavelmente tinha em mente um
príncipe de seus dias que nasceria da casa de Acaz. Ele
di cilmente imaginaria a gura de uma virgem de Nazaré
carregando um recém-nascido numa manjedoura da cidade
de Belém. É importante, porém, que se diga que esse
conhecimento mais profundo do texto só pode ser
descoberto pela iluminação que o Espírito Santo concede à
medida que a Igreja vai se aprofundando no entendimento
da revelação dada por Deus.
A inspiração também não é um ditado de Deus ao profeta.
Existe uma ideia popular de origem desconhecida, segundo
a qual Deus teria feito um ditado verbal ao ouvido do
escritor bíblico, de modo que não houvesse espaço para a
atividade pessoal nem para o estilo do escritor inspirado.
Isso não é verdade. Lucas, por exemplo, fez cuidadosa
investigação de fatos conhecidos (Lucas 1:4) e Pedro
reconhecia que o estilo de Paulo às vezes era difícil de ser
entendido (2Pedro 3:16). Essa teoria do ditado faz dos
escritores bíblicos verdadeiros gravadores de áudio sem
nenhum tipo de noção ou raciocínio. Pelo contrário, eles
eram seres pensantes que interagiam com a mensagem que
recebiam de Deus.
A inspiração não é mera re exão. Essa ideia, hoje pouco em
voga, fez sucesso nos anos 1920, quando foi pela primeira
vez exposta no livro Eu e tu, escrito pelo lósofo
existencialista Martin Buber. Ele a chamou de Teologia do
Encontro. Em sua opinião, Deus e o profeta se encontravam
misticamente, mas Deus não falava nada. Apenas deixava-se
sentir. Então, depois de um tempo, o profeta escreve uma
re exão pessoal de seu encontro com Deus e os homens a
canonizam. Um dos grandes divulgadores dessa teoria para
os arraiais do cristianismo foi Emil Brunner.

Em suma, as verdades contidas na Bíblia são divinas, mas o


modo de expressá-las é humano. Noutras palavras, este é um livro
onde Deus fala com sotaque humano.
4 Christiansen, Morten H; Kirby, Simon (eds.) Language Evolution: the Hardest Problem in
Science? [Evolução da linguagem: o problema mais difícil da Ciência?). Oxford, Nova
Iorque: Oxford University Press, 2003. p. 77-93. Allerman, Maggie; Gibson, Kathleen Rita.
The Oxford Handbook of Language Evolution [Manual Oxford da evolução da linguagem].
Oxford, Nova Iorque: Oxford University Press, 2012.
CAPÍTULO TRÊS

SELEÇÃO DOS
LIVROS

COMO FORAM ESCOLHIDOS OS LIVROS DA


BÍBLIA?

Conforme você viu anteriormente, pode-se dizer que, do ponto de


vista de seu conteúdo, a Bíblia não seria um livro propriamente
dito, mas uma coleção de pequenos livros devidamente organizados
numa ordem lógica. Eles foram escritos por cerca de quarenta
autores num período de quase 1,6 mil anos, que vai do século 15 a.C.
ao m do século 1 d.C.
Esses livros são normalmente referidos como o cânon bíblico ou
o cânon das Escrituras. Por esse nome (cânon) entenda a lista dos
livros considerados sagrados pela comunidade religiosa. E mais
uma vez precisamos recorrer ao grego para entender isso. É que a
palavra quer dizer “regra” ou “vara de medir”. O termo foi então
escolhido pelos cristãos para diferenciar livros sagrados (ou
canônicos) de livros comuns, mas alguns dizem que a ideia já vinha
dos judeus.
A Bíblia Sagrada hoje é composta de uma série de livros que são
reconhecidos tanto por católicos como por protestantes,
evangélicos e cristãos ortodoxos. Os católicos e ortodoxos, é claro,
acrescentam alguns livros à coleção que serão analisados mais
adiante. Eles são chamados deuterocanônicos ou apócrifos,
dependendo da fonte que se lê.
Por ora, o que nos interessa é descobrir por que estes, e não
outros livros, foram incorporados no cânon das Escrituras. A
resposta é simples: porque eles foram inspirados por Deus para esse
m. Mas como saber que foram inspirados?
Tanto os judeus quanto os primeiros cristãos reconheceram,
desde o princípio, os livros que eram ou não inspirados por Deus.
Isso se torna ainda mais claro com o Concílio de Jamnia e os
concílios de Hipona Régia e Cartago, que foram os primeiros da
Igreja Cristã a reconhecer o cânon que temos. De igual modo, os
próprios autores desses livros também sabiam que estavam
escrevendo uma obra especial. Isso, portanto, já vem desde os
tempos do Antigo Testamento, quando um profeta iniciava sua
mensagem dizendo “Veio a mim a Palavra do Senhor dizendo […]”
ou “Assim diz o Senhor”.
Estas expressões indicam que eles sabiam de antemão que
estavam escrevendo uma Escritura Sagrada e que sua mensagem
era de procedência divina. A questão era con rmar se sua
“consciência profética” era verdadeira ou charlatã, e havia critérios
para isso. A nal, embora houvesse a advertência dada pelo próprio
Deus para que não se desprezasse as profecias (1Tesssalonicenses
5:20) e que se cresse nos profetas a m de prosperar e estar seguros
(2Crônicas 20:20), o povo também era orientado a não acreditar
rapidamente em qualquer um que se dissesse mensageiro do
Senhor. “Amados, não deis crédito a qualquer espírito; antes,
provai os espíritos se procedem de Deus, porque muitos falsos
profetas têm saído pelo mundo afora” (1Joao 4:1; veja tambem
Mateus 7:15).
Em primeiro lugar, o verdadeiro profeta deveria promover a
obediência a Deus (Deuteronômio 13:1-4). Suas profecias, quando
não fossem claramente condicionais, deveriam se cumprir para que
o povo soubesse que o Senhor realmente falou por intermédio dele
(Jeremias 28:9). O verdadeiro profeta sempre discursaria em
harmonia com a Lei de Deus e com as outras revelações
anteriormente dadas (Isaías 8:19,20). Finalmente, as obras desse
profeta, isto é, os frutos de sua vida, revelariam a veracidade ou não
de suas credenciais divinas (Mateus 7:25). E o principal de seus
frutos seria, para os cristãos do primeiro século, o enaltecimento da
pessoa de Jesus Cristo (1João 4:1-3).
Os apóstolos receberam a promessa de que o Espírito Santo lhes
faria lembrar todas as coisas que Cristo havia dito (João 14:26). Esse
mesmo Espírito os conduziria a toda verdade (João 16:13). Eventos
fenomenais ocorridos por ocasião do Pentecostes e testemunhados
por milhares de pessoas em Jerusalém con rmavam que sua
mensagem não era fruto de uma histeria ou alucinação (Atos 2:4).
O mesmo se pode dizer da inesperada e espantosa conversão de
Paulo, um dos principais inimigos do cristianismo. Sendo ele
mesmo autor de boa parte do Novo Testamento, a Igreja, com o
tempo, reconheceu suas credenciais proféticas e recebeu suas
cartas como Palavra de Deus (1Tessalonicenses 2:13). Essas mesmas
cartas ou cópias delas circulavam pelas igrejas ainda durante o
período apostólico (Colossenses 4:16), e o próprio apóstolo Pedro
reconheceu-as como inspiradas por Deus, equivalentes às demais
Escrituras Sagradas (2Pedro 3:15,16). Paulo, por sua vez, citou uma
expressão de Cristo possivelmente retirada de Lucas 10:7 e a
introduziu com a expressão “Pois assim declara a Escritura”
(1Timóteo 5:18).

▶ Critérios judaicos

De acordo com Gerald Larue (1968), os critérios utilizados na


seleção dos livros sagrados para serem incluídos no cânon judaico
não foram estabelecidos numa “delineação clara”, mas parecem ter
incluído os seguintes itens:

. O escrito tinha de ser composto em hebraico. As únicas


exceções, que foram escritas em aramaico, foram Daniel 2:4-
7:28; trechos atribuídos a Esdras (Esdras 4:8―6:18; 7:12-26), que
foi reconhecido como o fundador do judaísmo pós-exílico, e
Jeremias 10:11. O hebraico era a língua da Sagrada Escritura, e o
aramaico era a língua da fala comum.
. O escrito tinha de ser sancionado pelo uso da comunidade
judaica. O uso de Ester em Purim tornou possível que este fosse
incluído no cânon. O livro de Judite, sem esse apoio, não era
aceitável.
. Os escritos tinham de conter um dos grandes temas religiosos
do judaísmo, como a eleição ou a aliança. Reclassi cando o
Cântico dos cânticos (ou Cantares de Salomão) como uma
alegoria, foi possível ver neste livro uma expressão do amor de
aliança.
. O escrito tinha de ser composto antes da época de Esdras, pois
era popularmente acreditado que a inspiração havia cessado
depois.

Alguns biblistas sugerem que o status canônico dos livros do


Antigo Testamento foi decidido, pelo menos em parte, em razão da
data de composição de cada um deles. Nenhum livro, acreditava-se,
teria sido escrito após o período em que Esdras foi incluído. Isso foi
baseado, em grande parte, na tese farisaica de que a inspiração
profética terminou depois de Esdras e Neemias.
Ressalta-se, no entanto, que essa tese possa ser um critério
problemático para os cristãos que a rmam que o Espírito Santo
inspirou os livros do Novo Testamento, que foram evidentemente
posteriores ao período de Esdras. Ele também pode ser
problemático para aqueles estudiosos que acreditam que vários
livros canônicos, como Daniel, Ester, Cântico dos Cânticos,
Provérbios, os livros de Crônicas, datam de um período muito
posterior. Segundo alguns autores liberais, Daniel teria sido escrito
bem depois de alguns livros “apócrifos”, embora teólogos mais
conservadores tendam a discordar disso.

▶ Critérios cristãos

Que critérios, portanto, Igreja Cristã primitiva teria usado para


reconhecer os livros que eram inspirados por Deus? Por evidências
indiretas e citações de vários autores antigos, eis algumas
perguntas básicas que eles provavelmente fariam:

. Este livro foi escrito por um profeta ou seguidor direto de


Cristo de quem as pessoas davam bom testemunho?
. Os apóstolos ainda vivos aprovavam seu conteúdo ou eram seus
autores diretos?
. O escritor tinha episódios miraculosos ou sobrenaturais que
con rmavam sua vida, sua obra e sua mensagem?
. O livro que ele escreveu era doutrinariamente harmônico com
a inspiração prévia encontrada em outros autores
reconhecidamente inspirados?
. Os demais profetas vivos reconheciam sua autenticidade?
. Sua mensagem edi cava a Igreja e atraía pessoas para Cristo?
. Sua mensagem evidenciava a capacidade divina de transformar
vidas?
. A Igreja, a quem a mensagem era dirigida, sentia inspiração
divina em seu conteúdo assim que o recebia?

Lembre-se de que esses critérios tinham um sentido especial


aplicado a uma época em que havia testemunhas oculares ainda
vivas, que presenciaram os acontecimentos ocorridos no período
apostólico, especialmente relacionados ao tempo em que Jesus
esteve entre eles.

HIST RIA DO C NON


Segundo a Bíblia, a civilização pós-diluviana iniciou-se na
Mesopotâmia, e de lá se espalhou para o resto do mundo. Embora
em diferentes versões, essa mesma a rmação pode ser vista nas
primeiras inscrições humanas e testemunhada por eminentes
especialistas em História Antiga. Mesmo autores não religiosos
comentam admirados sobre o testemunho mundial das mesmas
histórias presentes no livro do Gênesis.
Lévi-Strauss, que considerava o relato da Criação um mito,
admitiu que “grande surpresa e perplexidade surgem do fato de que
esses temas básicos para os mitos da criação são mundialmente os
mesmos em diferentes áreas do globo”, principalmente fora do
Oriente Médio.5
No que diz respeito à Mesopotâmia, pode-se dizer que naquela
região nasceu a civilização humana por volta do quarto milênio a.C.
Os sumérios são normalmente considerados a primeira civilização
a ocupar os territórios entre os rios Tigre e Eufrates. A primeira
cidade por eles fundada teria sido Eridu ou Kish, seguidas pelo
surgimento de Nipur, Lagash, Uruk e Ur, de onde veio o patriarca
Abraão.
Ali os sumérios inventaram a roda, a matemática, os números, a
agricultura e os carros com tração animal. Canais de água foram
cortados, trazendo irrigação constante para as plantações. Depois,
zeram altares e torres foram erguidas em homenagem aos deuses
— algo muito semelhante ao relato de Babel (Gênesis 11). Em torno
das elevadas torres, construíram muralhas forti cadas que deram
origem às primeiras cidades reconhecidas como berços da
civilização humana.
Embora os sumérios tenham inventado também a escrita e esta
já estivesse bem desenvolvida em Ur, tudo parece indicar que, no
período patriarcal, que vai de Abraão ao período da escravidão no
Egito, o povo hebreu não possuía nenhum escrito sagrado. Sua
tradição teológica era passada oralmente de pai para lho. As
comunicações divinas eram feitas a certos “videntes” (profetas, no
caso) por meio de sonhos, visões ou vozes, prática essa ainda
existente mesmo nos tempos da monarquia israelita (cf. 1Samuel
28:6).
Com Moisés, portanto, quebra-se o “silêncio escriturístico” e
começa-se a redação de livros que formariam posteriormente o
conjunto da Bíblia Sagrada. A própria preocupação dos antigos em
preservar com cuidado esses manuscritos indica que eram textos
muito especiais, assim reconhecidos desde sua origem (Êxodo
40:20; Deuteronômio 17:18; 31:24-26; Josué 24:26; 1Samuel 10:25;
2Reis 22:8).

Até o início do século 20, acadêmicos céticos da escola alemã de


Wellhausen afirmavam que Moisés não poderia ter escrito o Pentateuco
por uma razão muito simples: a escrita só seria inventada séculos depois
dele! Contudo, escavações arqueológicas feitas um Ur mostram que, já
no tempo de Abrão, havia um sistema de escrita altamente sofisticado,
com escolas até para crianças aprenderem a ler. Isso sem contar as
inscrições alfabéticas descobertas no Sinai, em Biblos e em Ras Shamra,
e que são igualmente anteriores ao tempo de Moisés. É digno de nota
que pelo menos uma dessas escritas foi encontrada na península do
Sinai, no mesmo lugar onde Moisés recebeu a incumbência de escrever
seus livros, conforme lemos em Êxodo 17:14: “Então disse o Senhor a
Moisés: Escreve isto para memória num livro e repete-o a Josué.”
Antiga escrita cuneiforme, certa de 3 mil anos a.C.

Referências posteriores às Escrituras (Isaías 1:10; 2:3; Oseias 4:6;


8:1; Amós 2:4; Miqueias 4:2) indicam que o povo tinha um conjunto
de textos legais e religiosos aos quais deveriam prestar atenção.
Passagens como Jeremias 18:18; Zacarias 3:4 e Ageu 2:11 aumentam
a hipótese de que era obrigação dos sacerdotes preservar o
conteúdo desses escritos e ensiná-los ao povo.
É, no entanto, no reinado de Josias que encontramos a evidência
mais direta de um conjunto de livros sagrados que foram
apresentados e reconhecidos o cialmente pelo povo. A narrativa
conta da redescoberta do livro da Lei dentro de algum lugar secreto
localizado no Templo de Jerusalém (2Reis 22:8-10 e 2Crônicas 34:14-
18). Tal achado provocou uma reforma religiosa sem precedentes.
Mas, como o próprio texto indica, não se trata da preparação de
algo inédito, mas do achado de um texto sagrado antigo, já
previamente conhecido, mas que, por alguma razão, caíra no
esquecimento do povo. Então veio o exílio da Babilônia, e
novamente os livros sagrados precisaram ser preservados e
reapresentados diante do povo na reforma religiosa promovida por
Esdras e Neemias após os anos de cativeiro.

▶ Cânon hebraico

Existe uma história na tradição judaica segundo a qual Esdras, na


qualidade de escriba e sacerdote, havia presidido um conselho de
120 anciãos chamado Grande Sinagoga, e ali determinaram quais
livros fariam ou não parte da lista de escritos sagrados. O Talmude
também faz referência a esse suposto encontro que envolveu nomes
importantes como Neemias, Ageu, Zacarias, Malaquias, Daniel
(não o profeta) e Simão, o Justo. Isso teria acontecido por volta do
ano 450 a.C.
Contudo, persistem sérias dúvidas quanto à historicidade desse
evento, e muitos acadêmicos não acreditam em sua ocorrência. A.
Kuenen (apud LEUCHTER, 2011) foi o mais acirrado crítico dessa
tradição. Ele argumenta, principalmente, que ela é fruto de uma
interpretação legendária de Neemias, capítulos 8 a 10, e, de fato,
não existe nada ali que indique que eles tomaram qualquer decisão
formal de estabelecer um cânon fechado do Antigo Testamento. O
texto bíblico fala de uma reforma religiosa que se voltou para livros
que já eram sagrados na tradição do povo judeu.
O livro de 2Macabeus — que não faz parte do cânon judaico, mas
é histórico — a rma que, por volta de 450 a.C., Neemias “fundou
uma biblioteca, recolheu os livros sobre os reis e profetas e os
escritos de Davi e as cartas dos reis sobre ofertas voluntárias” (2:13-
15). Isso está em harmonia com o relato de Neemias 8 e 9, segundo o
qual o sacerdote e escriba Esdras havia trazido a Lei (ou uma cópia
dela) de volta da Babilônia para Jerusalém.
Tanto 1 quanto 2Macabeus sugerem ainda que Judas Macabeus
coletou, em 167 a.C., alguns livros sagrados do judaísmo e os trouxe
para o povo. Novamente, nenhuma dessas passagens sugere que o
cânon hebraico tenha sido xado nesse tempo. Eles apenas
rati caram uma lista previamente reconhecida.

O Talmude é uma coleção de 63 tratados judaicos envolvendo assuntos


religiosos, legais, éticos e históricos compilados por antigos rabinos. Ele
foi publicado no século 5 d.C. na Babilônia, onde viviam muitos judeus. É
a mais importante coleção de leis e interpretações do judaísmo seguida
até hoje pelos judeus ortodoxos.
Em 1871, Heinrich Graetz sugeriu que houve um concílio de
rabinos em Jamnia por volta do ano 90 d.C., e ali foi estabelecido o
cânon das Escrituras segundo o judaísmo. Hoje, no entanto, essa
teoria caiu no esquecimento e praticamente nenhum especialista
dá crédito a ela (BROWN, 1990; LEWIS, 1992).
Não existe ainda um consenso que permita a rmar quando,
como e por que o cânon hebraico foi criado. Nem o achado dos
manuscritos de Massada ou do Mar Morto lançou qualquer luz
adicional a esse respeito. Autores conceituados como Jacob
Neusner (2001) chegam a supor que, até o segundo século, e mesmo
mais tarde, nenhum cânon foi formalmente criado pelos judeus, e
que, ao contrário, o conceito de Torá (Lei) teria sido ampliado para
incluir também a Mishná, a Toseftá, o Talmude e o Midrashin,
todos documentos e comentários legais sobre religião escritos pelos
rabinos do judaísmo tardio.
Por outro lado, a ausência de debates quanto ao conteúdo o cial
das Escrituras judaicas, imediatamente antes e depois de Jesus,
pode sugerir que isso não era um problema para eles,
provavelmente porque já tinham sua lista bem de nida. O
historiador Flávio Josefo testemunhava no primeiro século: “Os
profetas escreveram o original dos primeiros relatos das coisas que
eles aprenderam do próprio Deus por meio da inspiração” (Contra
Ápio I, 7).
Foi somente após o surgimento do cristianismo que houve no
judaísmo uma disputa acerca dos “livros que sujam as mãos”, isto é,
livros que fossem realmente inspirados por Deus. A ideia por trás
dessa expressão judaica era a de que, se um livro fosse realmente
inspirado por Deus, ele sujaria as mãos de quem o manuseasse
indevidamente.
De fato, até hoje na sinagoga o rolo da Torá é o objeto mais
sagrado que existe. Não se pode tocar suas letras com o dedo. Por
isso, ao lê-la, é preciso que se use um “Yad”, isto é, um ponteiro de
metal com o formato de uma haste e, na extremidade, uma mão e
um dedo estendido. Se alguém derruba acidentalmente a Torá, toda
a congregação deve jejuar por quarenta dias para reparar o erro.
O cânon judaico contém 24 livros. Cada um era disposto num
rolo de pergaminho conforme o costume mais antigo. Já o Antigo
Testamento, conforme adotado pelo cristianismo, tem muito mais
que isso, e as razões não são difíceis de entender. Primeiro, porque
os cristãos dividiram alguns dos livros que, na versão hebraica,
aparecem como um só volume. Por exemplo, Samuel, Reis e
Crônicas agora aparecem como 1 e 2Samuel, 1 e 2 Reis e 1 e 2
Crônicas. O mesmo se dá com Esdras e Neemias, originalmente um
só livro, mas que hoje aparecem como diferentes compêndios, e
assim por diante.

No fim do século I, ou início do II e seguintes da Era Cristã, alguns


judeus empregavam a expressão “sujar as mãos” para se referir à sua
literatura sagrada. Neste período, alguns judeus começaram os debates
sobre quais livros “sujam as mãos” ritualmente, isto é, quais textos
religiosos são Escritura Sagrada. O significado dessa expressão é um
tanto obscuro, mas ela se refere aos livros que os judeus consideravam
sagrados. […] “Sujar as mãos” era uma referência à sacralidade dos livros
sagrados. Aceitar a propriedade das Escrituras de sujar as mãos era uma
forma de aceitar seu caráter sagrado. (McDonald, 2013, p. 119)

▶ Cânon Alexandrino?

É muito comum nos manuais de introdução à Bíblia fazer alusões à


Septuaginta ou LXX. Trata-se de uma tradução das escrituras
judaicas para o grego realizada por volta de 3º. Século a.C. (mais à
frente falaremos dela). Ocorre que as cópias mais completas que
temos dessa versão grega das Escrituras parecem incluir no cânon
os apócrifos ou deuterocanônicos, que os cristãos de con ssão
protestante não reconhecem como inspirados por Deus.
Em virtude disso, e considerando que os primeiros cristãos
(incluindo Paulo) parecem ter feito largo uso da LXX, alguns
teorizam eu isto seria um forte indicio para o fato de que a igreja
cristã primitiva e os judeus da época de Cristo aceitavam uma lista
de livros canônica maior do que aquela que aparece nas versões
protestantes e na Bíblia Hebraica.
Esta suposta lista é chamada de Cânon Alexandrino, pois
entende-se que era seguida pelos judeus de Alexandria como sendo
a lista completa dos livros sagrados dos cristãos que, por extensão,
teria mais livros que a listagem tradicional, além de extensões aos
livros de Ester e Daniel.
Ocorre, no entanto, que aspectos históricos conspiram contra
veracidade dessa teoria:
Em primeiro lugar, não existe nenhuma fonte histórica anterior
ao 4º século d.C. que evidencie algo como “cânon alexandrino”. Não
há nada que indique que os primeiros escritores cristãos, ou mesmo
seus contemporâneos judeus, tivessem ciência de tal listagem mais
ampla. Ademais, o nome LXX, ao que tudo indica, referia-se
primariamente à tradução grega do Pentateuco apenas, isto é, os
cinco primeiros livros de Moisés. Somente nos tempos de Justino o
Mártir (165 d.C.) é que o termo passou a encampar todo o Antigo
Testamento, às vezes, con gurando uma lista de livros maior que a
do cânon hebraico. Porém, Flávio Josefo, historiador judeu do
primeiro século era claro em a rmar que os judeus “de toda parte”
só reconheciam 22 livros sagrados, o que obviamente, exclui os
deuterocanônicos.
Em Contra Ápio 1.38, Josefo diz:

Pois não temos uma in nidade de livros entre nós, discordando e se


contradizendo [como os gregos têm], mas apenas vinte e dois livros, que
contêm todos os registros de todos os tempos passados; que justamente se
acredita ser divino.

A aparente discrepância dos números (se 22 ou 24 livros), pode


ser explicada, ainda que hipoteticamente, pelo fato de que, de
acordo com a tradição oral judaica (Baraíta Babilônico 13b e 14b),
todos os livros sagrados que não faziam parte do Pentateuco (Torá)
deveriam ser copiados de maneira separada livro a livro. Juntos
eles formariam os profetas e os hagiógrafos. Porém, alguns
escribas, para economizar pergaminho, colocavam Rute junto com
Juízes ou com os Salmos de modo a formar um único rolo. O
mesmo faziam com Lamentações e Jeremias, de modo a formar
outro rolo. Assim, nalgumas sinagogas, os rolos seriam contados
como 22, enquanto os livros eram, na verdade, 24.
Portanto, nem Filo de Alexandria, Josefo ou qualquer outro
autor judeu ou cristão dos tempos apostólicos jamais citou os
deuterocanônicos como parte da Escritura Sagrada. Sua
incorporação no cânon foi um fenômeno tardio, como veremos
mais adiante. O que se pode a rmar, em última instância, é que
desde o 1º século a.C. até o século 4 d.C. as listas canônicas da Bíblia
Hebraica são concordantes em apresentar como sagrados os
mesmos livros que hoje compõem o cânon hebraico das Escrituras
sem nenhum texto a mais ou a menos.
Admite-se que uns poucos Pais da Igreja citam estes livros como
autoritativos em sua argumentação teológica. Porém, além de não
se tratar de uma unanimidade, pois outros autores da mesma época
foram taxativos em negar a inclusão desses livros, leve-se em conta
que estes escritores não eram profetas inspirados por Deus, pelo
que sua opinião contra ou a favor não deve ser o determinante nal
para aceitação ou rejeição da lista deuterocanônica.

Antigos autores cristãos que mencionam a lista de 22 livros sagrados


do Antigo Testamento

A TOR DATA FONTE


Melito de Sardes 170 História Eclesiástica de Eusébio, 26.4.14
AD

Orígenes 210 História Eclesiástica de Eusébio 6.25


AD
Hilário de Poitiers 360 Tratado sobre os Salmos, Prólogo 15
AD
Atanásio 365 Carta 39.4
AD
Cirilo de Jerusalém 386 Palestras Catequéticas 2, 4,33
AD
Gregório Nazianzo 390 Carmina 1.12
AD
Membros do Concílio de Laodiceia 391 Cânon 60
AD
Epifânio ⸺ ⸻
Rufino 410 Comentário sobre os Símbolos dos Apóstolos, 37
AD
Jerônimo 410 Introdução a Samuel e Reis
AD

▶ Cânon cristão

Existe uma acusação muito conhecida de que os livros da Bíblia


foram decididos por questões políticas, desenvolvidas
especialmente em convocações eclesiásticas, como o famoso
Concílio de Niceia, realizado no ano 325 d.C.
Dizem que esse concílio, convocado pelo imperador
Constantino, foi o primeiro encontro de todos os bispos da Igreja
Cristã, e que nele inventaram ou editaram o Novo Testamento,
removendo, por exemplo, outros evangelhos que narravam um
casamento entre Jesus e Maria Madalena ou que negavam a
divindade de Cristo.
Tais a rmações, no entanto, não são precisas e não coincidem
com a verdade dos fatos. Basta para isso pesquisar as atas que
mostram o que foi discutido no concílio e o que os mais antigos
historiadores falaram a respeito dele. O imperador Constantino,
por exemplo, que convocou o encontro, não tinha nenhuma cultura
formal ou teológica para decidir nada.
Embora ele fosse realmente um líder político, sua intenção não
era tomar partido de um ou outro lado, mas fazer com que a igreja
que ele estava apoiando eliminasse divisões internas que poderiam
prejudicar o processo de reuni cação do território romano a partir
de uma suposta cristianização do império. Essas divisões eram
concernentes à relação divina entre Jesus e Deus Pai, a construção
da primeira parte de um credo da Igreja, a xação da data da Páscoa
e a promulgação do chamado Direito Canônico, conjunto de leis e
regulamentos adotados pelos líderes da igreja para a organização do
cristianismo em Roma.
O próprio registro bíblico implica claramente que, durante o
tempo dos apóstolos, os primeiros cristãos estavam em estreita
comunicação e concordância, e foi nessa época que as cartas de
Paulo foram escritas para diferentes congregações, ajudando a uni-
las. Paulo faz referência a textos que estão nos evangelhos
chamando-os de Escritura e Pedro enaltece as epístolas paulinas
como sendo proveitosas. Parece bastante claro, desde o início do
cristianismo, quais dessas cartas e textos foram ou não aceitas no
cânon e isso se tornou mais evidente a partir da segunda metade do
século II, quando as contendas sobre doutrinas começaram a se
espalhar pelas igrejas estabelecidas no mundo mediterrâneo.

Conspiração em Niceia?
Os 318 bispos reunidos em Niceia expediram um credo (symbolum), vinte
cânones e uma carta à igreja de Alexandria. As atas, é claro, chegaram até
nós de forma fragmentária, mas em nenhuma delas, nem mesmo no
registro dos historiadores que descreveram o encontro, há qualquer
indício que afirme que, no Concílio de Niceia, discutiu-se quais
evangelhos fariam ou não parte do Novo Testamento. Não há menção a
esse assunto em nenhuma das pautas, muito menos em relação ao
estabelecimento de uma lista oficial de livros que comporiam a Bíblia
Sagrada.
Uma obscura citação de Jerônimo sobre o livro de Judite, levou alguns a
crerem que houve, sim, uma discussão no encontro acerca do cânon e os
livros deuterocanônicos. Sabemos pelos Cânones Apostólicos (Cânon
LXXXV) e pelos Cânones do Concílio local de Cartago, em 397, que a
maioria dos livros deuterocanônicos foram incluídos no cânon do Antigo
Testamento, mas não há nenhum registro disso sendo confirmado pelo
Concílio de Niceia. Além disso, causa estranheza que Cartago tenha
emitido Cânones relacionados ao cânon das Escrituras em 397 se Niceia
já tivesse emitido um cânone em 325.
Portanto, ainda que tenha havido alguma discussão sobre a
canonicidade bíblica no Concílio de Niceia, não há razão para duvidar da
evidência de que os cristãos primitivos, muito antes desse encontro, já
tinham uma boa noção do que deveria ser incluído ou não na lista de
livros inspirados por Deus. Pode-se argumentar que a confusão veio
depois, não o consenso. E que houve amplo acordo a esse respeito
desde os tempos apostólicos.

▶ Antigos cânones

As evidências indicam que, embora houvesse por algum tempo


certa disputa quanto aos livros de Hebreus, Tiago, 2Pedro, 2João,
Judas e Apocalipse, os cristãos primitivos já tinham em mente
quais livros eram ou não inspirados por Deus para compor as
escrituras cristãs.
O Cânon Muratoriano, escrito 150 anos antes do concílio, já
mencionava os evangelhos que fariam parte da Bíblia. Esse mesmo
cânon, juntamente com Orígenes (outro escritor antigo do
cristianismo), possivelmente já utilizava os 27 livros que temos hoje
no Novo Testamento. Igualmente, outros autores que viveram bem
antes do concílio — como Papias, Justino e Ireneu de Lion — já
abordavam a questão dos evangelhos e dos livros
neotestamentários que seriam ou não inspirados por Deus.
Taciano foi outro autor convertido ao cristianismo pela
pregação de Justino, o Mártir, em torno de 150 d.C. Após longos
estudos de doutrinação, ele retornou à Síria e organizou uma
composição dos quatro evangelhos com o objetivo de harmonizá-
los em todas as suas narrativas. Essa composição recebeu o nome de
Diatessaron, que quer dizer “[harmonia] através dos quatro”. Em
pouco tempo essa obra serviu de texto litúrgico para a igreja siríaca
centralizada em Edessa.
Mesmo entre os autores controversos, reconhecidos como
hereges pela Igreja do século 2, encontramos pistas de um cânon
formalizado pela maioria da Igreja Cristã. Marcião de Sinope é um
exemplo clássico. Atuando ainda como bispo na Ásia menor, ele
propôs uma cisão teológica entre o que ele chamou de “Deus do
Novo Testamento” e “Deus do Antigo Testamento”.
O primeiro seria um Deus bom, caridoso e cheio de misericórdia
para com os homens. Já o segundo seria um Deus legalista,
condenador, pronto para condenar a quem cometesse o menor
deslize. Em virtude desse raciocínio, Marcião rejeitou praticamente
todo o Antigo Testamento e só aceitou partes do Novo. Seu cânon
constava apenas das epístolas de Paulo (menos as epístolas
pastorais) e do Evangelho de Lucas, com exceção dos textos que
ligavam Jesus ao Antigo Testamento.
Embora alguns acadêmicos reputem o cânon de Marcião como
original ou como evidência de que não havia ainda uma lista o cial
de livros inspirados dentro do cristianismo, é possível ver aqui
outra hipótese: de que já havia um cânon quase totalmente
sistematizado. Caso contrário, a tarefa de Marcião se limitaria a
criar um cânon e não rejeitar uma lista já existente.
Em favor dessa ideia é possível citar uma passagem de
Tertuliano que diz:

Desde que Marcião separou o Novo Testamento do Antigo, ele segue


necessariamente aquilo que ele mesmo separou, ao passo que foi apenas
por sua própria autoridade que ele separou o que antes estava uni cado.
Sendo, pois, algo uni cado antes de sua separação, o fato dessa
subsequente separação prova o fato de que foi um homem que efetuou
essa separação. (De praescriptione haereticorum, 30).

Portanto, embora pudesse haver ainda uma ou outra disputa


acerca de alguns livros, pode-se dizer que grande parte do Novo
Testamento já era reconhecida como tal na metade do segundo
século d.C. ou até antes disso. Numa carta escrita no ano 367 d.C.,
Atanásio, bispo de Alexandria, apresentou uma lista dos livros que
comporiam os 27 que temos hoje no Novo Testamento. Ele foi o
primeiro a usar a palavra “canonizados” para se referir a eles.
LISTAGEM SAGRADA

Os nomes com os quais estamos mais acostumados a nomear os


livros do Antigo Testamento vêm do grego através da titulação que
aparece na Septuaginta, uma antiga versão grega das Escrituras que
será apresentada mais adiante. Já os judeus costumavam chamar os
cinco primeiros livros de Moisés a partir das duas primeiras
palavras que apareciam no texto. Assim, seus títulos hebraicos
seriam:

▶ Torá
Bereshit (No princípio…) ― Gênesis
Shemot (Os nomes…) ― Êxodo
Vayikra (E Ele chamou…) ― Levítico
Bamidbar (No deserto…) ― Números
Devarim (As palavras…) ― Deuteronômio

▶ Neviim (Profetas)
Yehoshua (Josué)
Shoftim (Juízes)
Shmuel (1 e 2Samuel)
Melakhim (1 e 2Reis)
Yeshayah (Isaías)
Yirmyah (Jeremias)
Yechezqel (Ezequiel)

▶ Os Doze (tratados como um livro)


Hoshea (Oseias)
Yoel (Joel)
Amos (Amós)
Ovadiá (Obadias)
Yoná (Jonas)
Mikhá (Miqueias)
Nachum (Naum)
Chavakuk (Habacuque)
Tzefanyá (Sofonias)
Chagai Zecharia (Zacarias)
Malachi (Malaquias)

▶ Ketuvim (Escritos)
Tehilim (Salmos)
Mishlei (Provérbios)
Iov (Jó)
Shir Ha-Shirim (Cântico dos cânticos)
Ruth (Rute)
Eichá (Lamentações)
Kohelet (nome do autor) (Eclesiastes)
Esther (Ester)
Daniel
Ezra e Nechemyah (Esdras e Neemias — tratados como um
só livro)
Divrei Ha-Yamim (As palavras dos dias) (Crônicas)

Além disso, existe uma discussão (mais à frente falaremos dela)


concernente aos chamados livros apócrifos ou deuterocanônicos.
Trata-se de um conjunto adicional de livros e capítulos que não
faziam parte do cânon original hebraico (e por isso foram rejeitados
pelos protestantes), mas que terminaram aceitos e incluídos pelas
igrejas ortodoxa, etíope, siríaca e católica. A lista não é uniforme,
alguns livros reconhecidos pelas igrejas orientais não são aceitos
pelo catolicismo ocidental.
É o caso, por exemplo, do Testamento dos Doze Patriarcas, por
um tempo considerado parte da Bíblia adotada pela Igreja
Apostólica Armênia, mas nunca canonizado pelas igrejas do
Ocidente. Outros livros ou trechos, como Oração de Manassés,
Oração de Jeremias, também constam em alguns cânones do
Oriente, e os livros de Macabeus são tão diferentes da versão
católica que foram, por isso mesmo, chamados “Macabeus etíopes”.
Seja como for, é ponto pací co que todos estes livros foram
compostos nalgum período entre 200 e 100 a.C. Os que aparecem a
mais nas bíblias católicas são os seguintes:

Tobias
Judite
1Macabeus
2Macabeus
Eclesiástico
Sabedoria
Baruque
Acréscimos a Ester
Acréscimos a Daniel

LISTA CRIST

O cânon cristão seria o que chamamos de Novo Testamento, e que


complementa o cânon judaico. São 27 livros ao todo, assim
distribuídos:

▶ Evangelhos
Mateus
Marcos
Lucas
João

▶ Livro histórico
Atos dos apóstolos

▶ Cartas (Epístolas)
Romanos
1Coríntios
2Coríntios
Gálatas
Efésios
Filipenses
Colossenses
1Tessalonicenses
2Tessalonicenses
1Timóteo
2Timóteo
Tito
Filemon
Hebreus
Tiago
1Pedro
2Pedro
1João
2João
3João
Judas

▶ Livro profético
Apocalipse (Revelação)

Se levarmos em conta o fenômeno da inspiração profética,


podemos dizer que Deus determinou o cânon e a Igreja apenas o
reconheceu e aceitou. Não foi ela quem o criou. A Palavra de Deus
era reconhecidamente inspirada e tinha autoridade religiosa desde
a sua concepção. Sua origem era celestial, como a rma o salmo
119:89: “Para sempre, ó Senhor, está rmada a tua palavra no céu.”
A revelação de Deus também inclui a preservação daquilo que
Ele queria que permanecesse dos textos inspirados. O texto do
Antigo Testamento comumente usado entre os judeus durante o
ministério terreno de Cristo era inteiramente con ável. Jesus
disse: “Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra
passem, nem um jota ou um til se omitirá da lei, sem que tudo seja
cumprido” (Mateus 5:18). “É mais fácil passar o céu e a terra do que
cair um til da lei” (Lucas 16:17). A mesma providência divina que
preservou o Antigo Testamento preservara o Novo Testamento.
Implícito na “grande comissão”, que tem aplicação com a Igreja de
Cristo de todos os tempos, está a promessa que a Igreja sempre
possuirá o registro infalível das palavras e obras de Jesus. Cristo
declarou: “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão
de passar” (Mateus 24:35; Marcos 13:31; Lucas 21:33).
5 Claude Levi-Strauss, “The Structural Study of Myth”, in: Structural Anthropology
[Antropologia estrutural]. Nova Iorque : Basic Books, 1963, p. 208.
CAPÍTULO QUATRO

LIVROS PERDIDOS,
BANIDOS, ADOTADOS

ESCRITOS PERDIDOS

A Bíblia Sagrada menciona diversos livros dos quais nada sabemos


por que desapareceram da História. Seu conteúdo provavelmente
tornou-se perdido desde cedo e, por alguma razão, não foram
preservados nem pela geração que se seguiu imediatamente à época
de sua produção.
Quanto à lista desses livros, é importante esclarecer que não se
trata de livros perdidos da Bíblia, no sentido de que um dia zeram
parte dela e depois foram excluídos. Também é importante
diferenciá-los dos chamados pseudoepígrafos, isto é, livros escritos
muito tempo depois dos eventos mencionados e falsamente
atribuídos a personalidades famosas, como Enoque, Melquisedeque
e até Adão e Eva.
Começando pelo Antigo Testamento, costuma-se mencionar
como exemplos de livros perdidos o chamado “Livro das Guerras do
Senhor”, mencionado em Números 21:14; o “Livro do Justo”, Josué
10:14; o “Livro do profeta Natã”, 1Crônicas 29:29, entre outros.
Seriam, neste caso, livros inspirados que se perderam?
Esta é uma pergunta difícil de se responder, pois comporta duas
possibilidades. A primeira de que pelo menos alguns deles seriam
inspirados por Deus, mas apenas para uma situação especí ca e,
por isso, não tinham necessidade de entrar no cânon. Este seria o
caso de um registro escrito pelo profeta Isaías sobre o rei Uzias, e do
qual nada sabemos (2Crônicas 26:22). A segunda possibilidade é que
nem todas eram obras inspiradas, mas apenas históricas e, com esse
m, foram citadas pelo autor inspirado. De fato, muitas delas
serviram de base à composição dos livros de Samuel, Reis e
Crônicas. A inspiração profética, portanto, não signi ca ineditismo
ou originalidade, mas orientação do Espírito de Deus no uso correto
das fontes que menciona.
Quanto ao Novo Testamento, a Igreja Cristã foi de nida em
Efésios 2:20 como uma casa “fundamentada nos apóstolos e
profetas”. Tal expressão indica que eles já trabalhavam com escritos
tanto de um grupo quanto de outro. Logo, essa larga aceitação de
livros, ainda nos tempos apostólicos, em contraste com umas
poucas disputas ocorridas posteriormente, indica que eles já
tinham bem amadurecida a ideia de possuir uma coleção de escritos
inspirados. É possível, contudo, que alguns desses escritos não
tenham sobrevivido até nossos dias.
Um caso exemplar seria a forte suspeita de que Paulo havia
escrito mais de duas cartas aos coríntios, e que, infelizmente, se
perderam. Em duas passagens, ele se refere a conteúdos enviados à
igreja, mas que não estão em nenhuma parte das cartas atuais.
Em 1Coríntios 5:9 ele fala de uma carta anterior, de modo que a
que chamamos “Primeira” Coríntios, na verdade, não foi a
primeira. Já em 2Coríntios 2:4 ele diz que escreveu anteriormente
aos membros em meio a muita tribulação e angústia, mas os
estudiosos não conseguem ligar tais circunstâncias com o conteúdo
de 1Coríntios, de modo que são grandes as possibilidades de haver
outra(s) carta(s) perdida(s) de Paulo.
E temos ainda uma referência em Colossenses 4:16 a uma carta
enviada aos cristãos de Laodiceia, cujo conteúdo ninguém
atualmente conhece. De igual modo, alguns estudiosos pensam que
a carta aos Filipenses seria, na verdade, uma coleção de vários
bilhetes.
Por volta do m do primeiro século d.C., Clemente de Roma
atuava como presbítero da Igreja Cristã e, estando em Roma,
enviou cartas para a igreja em Corinto. Ele se demonstrou
familiarizado com as cartas de Paulo e as tratou como palavra de
Deus. Alguns pensam que esse Clemente seria o mesmo
mencionado por Paulo em Filipenses 4:3 (veja Eusébio de Cesareia,
[História Eclesiástica, III. 38, 4). Clemente também faz menções
ocasionais a certas “palavras de Jesus”, e embora elas fossem
autoritativas para ele, não são tratadas como “evangelhos”, muito
menos como escritos inspirados. Ao que tudo indica, eram
sentenças que ele tinha de memória, possivelmente transmitidas de
maneira oral, mas que não foram preservadas de forma escrita,
como no caso dos evangelhos. Um exemplo seria Atos 20:35, onde
Paulo atribui uma frase a Cristo que não se encontra nos
evangelhos.
Eusébio de Cesareia (Ecclesiastical History, III, 25), após apontar
os livros do Novo Testamento na ordem como os temos hoje, faz
menção a outros títulos que circulavam pelas igrejas cristãs de seu
tempo, mesmo sem serem reconhecidos como inspirados por Deus.
Dentre eles estariam um certo Evangelho dos Hebreus, Cartas de
Barnabé e um Apocalipse de Pedro.

▶ Lista dos livros perdidos


mencionados na Bíblia
. Livro do Convênio (Êxodo 24:4,7)
. Livro das Guerras (Números 21:14)
. Livro de Jasar (Josue 10:13; 2Samuel 1:18)
. Livro dos Estatutos (1Samuel 10:25)
. Livro dos Atos de Salomão (1Reis 11:41)
. Livro de Natã (1Cronicas 29:29; 2Cronicas 9:29)
. Livro de Gade (mesmo do item 6)
. Profecias de Aías (2Crônicas 9:29; 2:15; 13:22)
. Visões de Ido (mesmo do item 8)
. Livro de Semaías (2Crônicas 12:15)
. Livro de Jeú (2Crônicas 20:34)
. Atos de Uzias, escrito por Isaías (2Crônicas 26:22)
. Livros dos Videntes (2 Crônicas 33:19)
. Profecias de Enoque (Judas v. 14)
. Crônicas dos Medos e Persas (Ester 10:2)
. Um profeta desconhecido citado por Mateus (Mateus 2:23)
. Epístola perdida de Paulo, provavelmente aos Coríntios
(1Coríntios 5:9)
. Segunda epístola perdida de Paulo, provavelmente aos Efésios
(Efésios 3:3,4)
. Terceira epístola perdida de Paulo, aos Laodicenses
(Colossenses 4:16)

PSE DOEPÍGRAFOS

O termo “pseudoepígrafos” (ou pseudepigrapha) não é muito


conhecido em alguns meios do cristianismo. Contudo, é um título-
chave para a de nição de vários livros atribuídos a personagens do
Antigo e Novo Testamentos, mas que, na verdade, foram escritos
por outros autores anônimos, séculos depois da morte do autor
bíblico. Pseudoepígrafo é a junção de duas palavras gregas: pseudos,
que quer dizer “falso”, e epigrafe, que quer dizer “título” ou “nome”.
Portanto, pseudoepígrafo refere-se a livros falsamente intitulados
ou falsamente atribuídos a alguém. Dependendo do contexto,
podem ser sinônimos de livros “apócrifos”.
O apóstolo Paulo dá um testemunho que indica que já no seu
tempo o cristianismo tinha de lidar com textos falsamente
atribuídos à autoria apostólica. Dirigindo-se aos cristãos da cidade
de Tessalônica, ele os orientou a que não se deixassem levar por
cartas supostamente escritas por ele, mas que, na verdade, eram
falsas (2Tessalonicenses 2:2). Por essa razão, Paulo tomou o cuidado
de escrever, em algumas de suas epístolas, uma nota que dizia: “Eu,
Paulo, escrevo esta saudação de próprio punho, a qual é um sinal
em todas as minhas cartas. É dessa forma que assino” (veja também
1Coríntios 16:21; Gálatas 6:11 e Colossenses 4:18).
Dentre os pseudoescritos que chegaram até nós, encontramos
textos atribuídos a Adão, Noé, Enoque, Moisés, Elias e a
personagens do Novo Testamento, como Tomé, Pedro, João e até
Judas. Mas, repetimos, não foram escritos por eles. No entanto,
existe a possibilidade de que alguns deles contenham alguma
informação que seja legítima, baseada numa fonte oral ou em
outros manuscritos hoje desaparecidos. A Epístola de Judas, por
exemplo, pertencente ao cânon do Novo Testamento, reputa como
verdadeira uma profecia atribuída a Enoque e que consta no
apócrifo de Enoque que diz:

Quanto a estes foi que também profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão,
dizendo: Eis que veio o Senhor entre suas santas miríades, para exercer juízo
contra todos e para fazer convictos todos os ímpios, acerca de todas as obras
ímpias que impiamente praticaram e acerca de todas as palavras insolentes
que ímpios pecadores proferiram contra ele. (v. 14,15)

Esses manuscritos foram produzidos, aproximadamente, entre


300 a.C. a 300 d.C. e se espalharam pelo mundo greco-romano.
Contudo, eles jamais foram incluídos nas Escrituras hebraicas nem
na literatura rabínica tradicional. Entretanto, essa coleção de
antigos textos judaicos tem despertado o interesse de acadêmicos
do mundo inteiro por revelar importantes aspectos do judaísmo
que existiu nos tempos antigos, especialmente no princípio do
cristianismo. Fragmentos desses livros foram também encontrados
entre os manuscritos do Mar Morto.
Existem pseudoepígrafos tanto do Antigo quanto do Novo
Testamento. Uma lista parcial deles inclui os seguintes títulos:
▶ Antigo Testamento (subdivididos em
categorias)

▷ Apocalipses
Apocalipse de Abraão
Apocalipse de Adão
Apocalipse de Baruque
Apocalipse grega de Baruque
Apocalipse de Daniel
Apocalipse de Elias (copta)
Apocalipse de Elias (hebraico)
Apocalipse de Esdras ou 4Esdras
Apocalipse de Sidraque
Apocalipse de Moisés
Apocalipse de Sofonias

▷ Testamentos
Testamento de Abraão
Testamento de Adão
Testamento dos Doze Patriarcas
Testamento de Isaque
Testamento de Jacó
Testamento de Jó
Testamento de Moisés ou Assunção de Moisés
Testamento de Salomão
▷ Outros pseudoepígrafos do Antigo
Testamento
Ascenção de Isaías
4Baruque ou Omissões de Jeremias
Perguntas de Esdras
1Enoque ou livro de Enoque etíope
2Enoque ou Enoque eslavo
3Enoque ou Apocalipse hebraica de Enoque
Livro dos Jubileus
Livro de Janes e Jambres
Livro de José e Asseneth
Livro de Noé
5Macabeus
Odes de Salomão
Oráculos sibilinos
Oração de José
História de Achikar
História dos recabitas
Vida de Adão e Eva
Visão de Esdras
Vidas dos profetas

▷ Pseudoepígrafos ou apócrifos
presentes na versão grega da
Septuaginta
Esdras grego
Odes
Oração de Manassés
1Macabeus
2Macabeus
3Macabeus
4Macabeus
Salmos 151
Salmos 152-155
Salmos de Salomão
Judite
Eclesiástico (Sirac)
Baruque
Epístola de Jeremias
Suzana
Bel e o Dragão

A LXX não é unânime


Os mais antigos manuscritos gregos da LXX, exceto aqueles fragmentos
descobertos no deserto da Judeia e no Egito, datam da época de 3º e 4º
séculos d.C. Nenhum deles contém a lista exata de livros aceitos,
reconhecidos como deuterocanônicos pelo Concílio de Trento (1545-63).
Apenas à guisa de ilustração: o Códice Vaticano (“B”) não tem 1 e
2Macabeus (canônicos, segundo o entendimento católico), mas inclui
1Esdras (não canônico, segundo o entendimento católico). O Códice
Sinaítico (‫ )אּ‬omite Baruque canônico, segundo as versões católicas), mas
inclui 4Macabeus (não canônico, segundo as mesmas versões). O Códice
Alexandrino (“A”) contém três livros apócrifos “não canônicos” (1Esdras e
3 e 4Macabeus). Vê-se, portanto, que até os três mais antigos
manuscritos da LXX demonstram considerável falta de certeza quanto
aos livros que comporiam a lista dos apócrifos ou deuterocanônicos.
▷ Textos considerados apócrifos
pelos protestantes, mas presentes na
Bíblia católica
Judite
Tobias
1Macabeus
2Macabeus
Sabedoria
Eclesiástico ou Sirácide
Baruque
Carta de Jeremias
Oração de Azarias (Daniel)
História de Susana (Daniel)
Bel e o Dragão
Versão grega de Ester

▶ Pseudoepígrafos do Novo
Testamento

▷ Evangelhos apócrifos
Evangelhos da infância de Jesus
Protoevangelho de Tiago ou Evangelho da infância de Tiago
ou Evangelho de Tiago
Evangelho da infância de Tomé ou Evangelho do pseudo-
Tomé
Evangelho da infância de Mateus ou Evangelho do pseudo-
Mateus

▷ Evangelho árabe da infância


Evangelho armênio da infância
Livro sobre o nascimento de Maria
História de José, o carpinteiro

▷ Evangelhos judaico-cristãos
Evangelho dos ebionitas
Evangelho dos nazarenos
Evangelho dos hebreus

▷ Evangelhos gnósticos
Apócrifo de João ou Livro de João evangelista ou Revelação
secreta de João
Diálogo do Salvador
Livro secreto de Tiago ou Apócrifo de Tiago
Livro de Tomé
Pistis Sophia ou Livro do Salvador
Evangelho de Apel
Evangelho de Bardesane
Evangelho de Basilide
Evangelho copta dos egípcios
Evangelho grego dos egípcios
Evangelho de Eva
Evangelho segundo Filipe
Evangelho de Judas
Evangelho de Maria ou Evangelho de Maria Madalena
Evangelho de Matias ou Tradição de Matias
Evangelho da perfeição
Evangelho dos quatro ramos celestes
Evangelho do Salvador ou Evangelho de Berlim
Sabedoria de Jesus Cristo ou So a de Jesus Cristo
Evangelho de Tomé ou Evangelho de Dídimo Tomé ou
Quinto Evangelho.
Evangelho da verdade

▷ Evangelhos da Paixão
Evangelho de Gamaliel
Evangelho de Nicodemos
Evangelho de Pedro
Declaração de José de Arimateia

▷ Outros evangelhos
Interrogatio Johannis ou Ceia secreta ou Livro de João
evangelista
Evangelho de Barnabás
Evangelho de Bartolomeu ou Questões de Bartolomeu
Evangelho de Tadeu
▷ Evangelhos perdidos, mas citados
por outras fontes
Pregação de Pedro
Evangelho de André
Evangelho de Cerinto
Evangelho dos Doze
Evangelho de Mani
Evangelho de Marcião
Evangelho secreto de Marcos
Evangelho dos Setenta

▷ Atos apócrifos
Atos de André
Atos de André e Matias
Capítulo 29 dos Atos dos Apóstolos
Atos de Barnabé
Atos de Bartolomeu ou Martírio de Bartolomeu
Atos de Santippe e Polissena
Atos de Felipe
Atos de João
Atos de Marcos
Atos de Mateus
Atos de Paulo
Atos de Paulo e Tecla
Atos de Pedro
Atos de Pedro e André
Atos de Pedro e dos Doze
Atos de Pedro e Paulo
Atos de Pilatos
Atos de Simão e Judas
Atos de Tadeu
Atos de Timóteo
Atos de Tito
Atos de Tomé

▷ Cartas apócrifas
Carta dos Apóstolos
Carta de Barnabé
Carta de Inácio
Carta dos Coríntios a Paulo
Carta aos Laodicenses
Carta de Paulo e Sêneca
3Coríntios
Carta de Pedro a Felipe
Carta de Pedro a Tiago Maior
Cartas de Jesus Cristo e do Rei Abgar de Edessa
Carta de Públio Lêntulo

▷ Apocalipses apócrifos
1Apocalipse de Tiago
2Apocalipse de Tiago
Apocalipse da Virgem (etíope)
Apocalipse da Virgem (grego)
Apocalipse de Pedro (grego)
Apocalipse de Pedro (copta)
Apocalipse de Paulo (grego)
Apocalipse de Paulo (copta)
Apocalipse de Estêvão
Apocalipse de Tomé

▷ Ciclo de Pilatos
Sentença de Pilatos
Anáfora de Pilatos
Paradosis de Pilatos
Cartas de Pilatos e Herodes
Cartas de Pilatos e Tibério
Vingança do Salvador
Morte de Pilatos
Cura de Tibério

▷ Outros pseudoepígrafos
Descida ao Inferno (de Jesus)
Doutrina de Addai
Duas vias ou Juízo de Pedro
Doutrina de Paulo
Doutrina de Pedro
Martírio de André apóstolo
Martírio de Mateus
Ressurreição de Jesus Cristo (de Bartolomeu)
Testamento de Jesus
Tradição de Matias
Dormição da Beata Maria Virgem ou Trânsito de Maria (de
João, o Teólogo)
Trânsito da Beata Maria Virgem (de José de Arimateia)
Vida de João Batista (de Serapião de Alexandria)

A Igreja Primitiva se desenvolvia, por isso os cristãos gentios


precisavam aprender a “sã doutrina” (Tito 2:1). Paulo e os apóstolos
usarem essencialmente o Antigo Testamento como Escritura
Sagrada (pois já reconheciam alguns textos neotestamentarios
como inspirados). Leitores gentios também se mostraram
con antes nos textos religiosos judaicos encontrados entre os rolos
gregos disponíveis.Muitos cristãos gentios, sem dúvida, adotaram
esses livros como con áveis, e o debate sobre o seu lugar nas igrejas
se intensi cou desde então.6
Por isso, pode-se dizer que, ainda nos tempos apostólicos, os
líderes das igrejas cristãs deixaram de usar exclusivamente o Antigo
Testamento como Escritura. Há fortes indícios de que os apóstolos
Paulo e Pedro reconheciam, já em seu tempo, certos livros do Novo
Testamento como canônicos.

[…] como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a
sabedoria que lhe foi dada, ao falar acerca destes assuntos, como, de fato,
costuma fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas
difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como
também deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles.

2Pedro 3:15,16
LIVROS A MAIS O A MENOS?

Edições católicas da Bíblia possuem uma lista de livros mais extensa


que as edições protestantes. Teólogos católicos denominam essa
lista de deuterocanônicos, isto é, livros que foram canonizados num
segundo momento pela Igreja, mas não na antiguidade judaica.
Costuma-se também argumentar que, conquanto não zessem
parte da Bíblia hebraica, esses livros seriam reconhecidos pelos
judeus de Alexandria.
Autores protestantes, por sua vez, discordam dessa assertiva e
preferem classi car esses livros como apócrifos ou apócrifa. Este
termo vem da língua grega e signi ca literalmente “aquilo que está
oculto”, “escondido” ou que é “difícil de entender” (Xenofonte,
Memorabilia 3.5,14). Seu uso na literatura antiga era, às vezes,
pejorativo e, às vezes, neutro. Podia se referir tanto a livros
supostamente sagrados, mas de origem duvidosa ou desconhecida,
como a livros esotéricos que só eram lidos em lugares secretos.
Contudo, nos séculos 4 e 5 da nossa era, autores cristãos
tornaram-se quase unânimes no uso pejorativo do termo para se
referir àqueles escritos que não deveriam fazer parte da Bíblia
Sagrada. A questão é saber que livros os antigos cristãos colocariam
na prateleira dos “apócrifos”.
São sete livros ao todo cuja canonicidade é disputada: Judite,
Tobias, Baruque, 1 e 2Macabeus, Sabedoria de Salomão e
Eclesiástico. Além disso, temos alguns acréscimos aos livros de
Ester e Daniel. Os protestantes, no entanto, embora não
reconheçam a inspiração profética dessa coleção, admitem o estudo
deles como meio de conhecer melhor o judaísmo dos tempos
antigos. Os católicos, é claro, por considerarem esse material como
escritura inspirada por Deus, evitam chamar-lhes de apócrifos,
preferindo referirem-se a eles como deuterocanônicos.
Essa questão não pode ser discutida sem a devida referência a
São Jerônimo, que, no quarto século, iniciou, a pedido do papa
Dâmaso, uma revisão das bíblias que culminou numa nova
tradução comumente chamada Vulgata latina. Ele acrescentou à sua
tradução os livros a mais que as bíblias católicas trazem até hoje e
que também apareciam, de modo diversi cado, na versão grega do
Antigo Testamento chamada Septuaginta.
Sua classi cação, no entanto, gera diferentes interpretações
entre os acadêmicos, pois, pelo menos numa passagem do Prologus
Galeatus, Jerônimo de nirá esses sete livros como apócrifos —
termo que continua negativo em todos os seus escritos. Noutras
partes, porém, o mesmo Jerônimo denomina-os como livros
eclesiásticos e de leitura proveitosa, usados até em liturgias da
igreja.
Seja como for, uma coisa é certa: Jerônimo não os de niu como
canônicos, isto é, não poderiam ser lidos na conta de escritura
autoritativa da Igreja, nem usados como fundamentação
doutrinária. O mesmo posicionamento incerto acerca desses livros
a mais perdurou nos séculos seguintes, sendo percebido em muitos
autores reconhecidos da Igreja. João Damasceno, papa Gregório
Magno, Walafrid, Nicolau de Lyra e Tostado foram alguns dos que
continuaram duvidando da canonicidade dos livros
deuterocanônicos.
Em 1540, o reformador Andreas Carltadt, munido do Prologus de
Jerônimo, a rmou dogmaticamente, em seu De Canonicis Scripturis
Libellus, que aqueles livros deveriam ser banidos das bíblias cristãs.
A Igreja, respirando o espírito da Contrarreforma que havia na
época, respondeu o cializando-os em seu cânon. Assim, no famoso
Concílio de Trento, realizado em 8 de abril de 1546, o cializou-se
que os textos deuterocanônicos (que os protestantes chamavam de
apócrifos) deveriam fazer parte das bíblias aprovadas pelo Papa.
A bem da verdade, a disputa entre católicos e protestantes é
apenas parte da história. Como dissemos anteriormente, diferentes
tradições cristãs possuem diferentes apócrifos ou
deuterocanônicos, como podemos ver nas tradições orientais.
Contudo, as diferenças mais conhecidas no Ocidente são aquelas
que marcam as bíblias publicadas por protestantes e aquelas
publicadas por editoras católicas.

A teologia cristã criou termos técnicos para se referir aos diferentes


livros da Bíblia e que são aplicados a partir da forma como eles entraram
ou foram excluídos do cânon. São eles:

Livros aceitos por todos — Homologoumena.


Livros rejeitados por todos — Pseudoepígrafos (ou Apócrifos).
Livros questionados por alguns — Antilegomena.
Livros aceitos por alguns — Deuterocanônicos (ou Apócrifos).

OQ E DI EM OS CAT LICOS?

Apócrifos são livros que não fazem parte do cânon inspirado por
Deus e não podem ser reputados como Bíblia Sagrada. Vários de
seus autores usam pseudônimos, isto é, a rmam ser uma
personagem importante do Antigo Testamento, como Abraão ou
Enoque, mas tais livros foram, de fato, compostos séculos depois da
época em que viveu o suposto autor. Nisso não há discordância
entre os segmentos católico e protestante. A divergência surge
quanto ao grupo de livros presentes nas edições católicas que os
protestantes, por negarem sua inspiração, denominam de livros
apócrifos, e os católicos de deuterocanônicos, isto é, canonizados
posteriormente.
Os deuterocanônicos são livros do Antigo Testamento
questionados pelos protestantes, mas legitimados pela Igreja
Católica e algumas igrejas orientais. São assim chamados por não
constarem na Bíblia Judaica Palestinense (de nida pelos judeus da
Palestina em 90 d.C.), mas na Bíblia Judaica Alexandrina (por
referência aos judeus que viviam nesta cidade do Egito). Os livros
que coincidem em ambas versões são chamados de protocanônicos.
Foi Lutero que os denominou de “apócrifos” no século 16,
principalmente por conterem ensinos defendidos pela Igreja, mas
negados pelos reformadores, como a intercessão dos santos, a
oração pelos mortos e a realidade do purgatório.

▶ Argumentos para inclusão

▷ Inclusão na Septuaginta
Esses livros foram incluídos na tradução grega do Antigo
Testamento como livros canônicos. Essa tradução foi largamente
usada pelos judeus que viviam em Alexandria e noutras
comunidades da diáspora. Os autores do Novo Testamento usaram
grandemente o texto da Septuaginta em seus escritos, o que mostra
que a aceitavam como um todo, incluindo os livros
deuterocanônicos que ela contém.

▷ Inclusão nos Manuscritos do Mar


Morto
Fragmentos desses textos são encontrados na Biblioteca do Mar
Morto, o que indica que eram respeitados por determinado
segmento do judaísmo.

▷ Uso no cristianismo primitivo


Antigos autores cristãos citavam passagens dos deuterocanônicos.
Dentre eles, temos Clemente de Alexandria, citando Tobias e
Eclesiástico, e Ireneu de Lion, citando Sabedoria de Salomão.

▷ Aceitação por antigos concílios


eclesiásticos
Muitos concílios, como os de Roma (382), Cartago (393) e Hipona
(397), aceitaram esses livros. Esses concílios são citados por
protestantes para sustentar o cânon do Novo Testamento, mas se
esquecem que eles também validaram os deuterocanônicos.

▷ O Concílio de Trento (1546)


Apenas sancionou o que já estava decidido em concílios anteriores
ao movimento de Reforma, como o de Florença (1442).

▶ A Igreja Ortodoxa aceita os apócrifos

Isso indica que estamos diante de uma crença cristã comum, e não
apenas de um dogma católico. As catacumbas de Roma, construídas
por cristãos primitivos, são pintadas com cenas descritas nos
deuterocanônicos, o que indica que eles tinham grande apreço por
esses livros. Importantes manuscritos bíblicos, como o Códex Álef
e B, intercalam os deuterocanônicos entre os livros do Antigo
Testamento, o que mostra que realmente faziam parte da Bíblia
Sagrada. Até ao século 19, versões protestantes da Bíblia
costumavam trazer os livros deuterocanônicos, o que indica que até
eles reconheciam sua canonicidade.

A versão grega do Antigo Testamento (Septuaginta), usada pelos judeus


alexandrinos, contém mais livros que as versões católica, ortodoxa ou
protestante. Os livros presentes na Septuaginta, conforme a ordem
original, são:

Gênesis
Êxodo
Levítico
Números
Deuteronômio
Josué
Juízes
Rute
1Samuel (1Reis)
2Samuel (2Reis)
1Reis (3Reis)
2Reis (4Reis)
1Crônicas (1Paralipômenos)
2Crônicas (2Paralipômenos)
1Esdras
2Esdras (Esdras e Neemias)
Ester
Judite
Tobias
1Macabeus
2Macabeus
3Macabeus
4Macabeus
Salmos
Odes
Provérbios
Eclesiastes
Cântico dos Cânticos

Sabedoria
Eclesiástico (Sirac)
Salmos de Salomão
Oseias
Amós
Miqueias
Joel
Obadias
Jonas
Naum
Habacuque
Sofonias
Ageu
Zacarias
Malaquias
Isaías
Jeremias
Lamentações
Baruque
Epístola de Jeremias
Ezequiel
Suzana (7)
Daniel
Bel e o Dragão.

Seria esse um antigo cânon judeu mais amplo, reconhecido por Jesus e
seus discípulos?

OQ E DI EM OS PROTESTANTES?

Para os teólogos de con ssão protestante, evangélicos e outras


rami cações não católicas, como mórmons e Testemunhas de
Jeová, existem duas categorias básicas de livros apócrifos: os
pseudoepígrafos, falsamente atribuídos a personalidades bíblicas
que não foram seus verdadeiros autores, e aqueles que a Igreja
Católica denomina deuterocanônicos, assim o cializados no
Concílio de Trento. Tais livros, ainda que válidos para uma
contextualização histórica do antigo judaísmo, não devem servir de
autoridade canônica para a Igreja ao lado de livros inspirados,
como dos profetas ou dos apóstolos de Cristo.

▶ Argumentos para a exclusão


É disputável se esses livros realmente faziam parte do cânon
original da Septuaginta — as mais antigas cópias que temos dela
foram feitas por copistas cristãos, de modo que não podemos dizer
se as cópias judaicas originais continham estes livros. Essas cópias
cristãs datam do quarto século em diante, e o mais importante é que
as três cópias mais extensas não estão de acordo quanto ao cânon
dos apócrifos (ou deuterocanônicos), pois trazem diferentes listas.
E nelas estão incluídos os salmos 151 a 155, Salmos de Salomão,
Oração de Manassés, 3 e 4Macabeus, Odes e Esdras grego, que as
versões católicas não reconhecem como livros inspirados. Filo, um
antigo autor judeu de Alexandria que usou extensivamente a LXX
(uma das maneiras de se referir à Septuaginta), não faz qualquer
menção aos livros deuterocanônicos incluídos nas bíblias católicas,
o que seria estranho, caso fosse unânime a sua inclusão nos
manuscritos gregos mais antigos.
Quanto aos manuscritos do Mar Morto, leve-se em conta que
muitos textos encontrados nas grutas de Qumran não são
canônicos; nenhuma lista canônica foi encontrada ali indicando
quais seriam os livros inspirados ou não inspirados. Assim, a
presença de qualquer texto dentre os achados do deserto da Judeia
pouco concorre para a con rmação de sua natureza escriturística.
Os mais antigos autores cristãos parecem ter rejeitado os
deuterocanônicos, mesmo que os citem vez ou outra. As eventuais
citações que fazem deles não prova que eram canônicos. Foi apenas
quando a Igreja Cristã iniciou seu rompimento com o judaísmo que
essa questão se tornou um ponto a ser discutido. A mais antiga lista
de livros cristãos do Antigo Testamento foi composta por Melito de
Sardes em 170 d.C., e não menciona nenhum desses textos
controversos.
Os concílios mencionados como endossando a inclusão de tais
livros não eram concílios universais do cristianismo, mas sínodos
locais, apenas de expressão regional — Hipona, Roma e Cartago não
tinham autoridade para propor um entendimento universal acerca
do assunto, e todos eles tinham sido in uenciados pelo mesmo
teólogo, Santo Agostinho, pelo que possivelmente ecoaram o
mesmo pensamento em razão de serem dirigidos pelo mesmo
mentor.
Até mesmo antigos autores católicos foram contrários à inclusão
de alguns ou de todos os livros da coleção dos deuterocanônicos.
Por exemplo: Jerônimo, papa Gregório Magno, o Venerável Bede,
Hugo de São Victor, Nicolau de Lyra, William de Ockham.
O Cardeal Caetano foi um dos mais importantes opositores de
Lutero, comissionado pela Igreja para refutar os ensinos do
protestantismo. Ele escreveu um comentário dedicado ao papa no
qual exprime sua opinião de que os apócrifos (ou deuterocanônicos)
não eram inspirados, muito menos canônicos num sentido stricto
senso, de modo que eles não foram incluídos em seu comentário do
Antigo Testamento.
O Novo Testamento não reconhece tais livros como inspirados
por Deus ― os autores jamais fazem menção direta de qualquer
desses livros introduzindo a fórmula “Está escrito” ou “Como
declarou o profeta X”. O máximo que se pode encontrar (mas não
para além de qualquer questionamento) seria uma hipotética
alusão indireta que demonstra apenas que o autor bíblico conhecia
tais livros, mas não que os considerasse Palavra de Deus. Ainda que
tal citação realmente exista, isso pouco contribui para a conclusão
de que se trata de livros inspirados, pois obras seculares também
são citadas no Novo Testamento, como Atos 17:28, em que Paulo cita
um trecho do Phaenomena escrito por Arato. Nem por isso
poderíamos argumentar que esse poeta grego seria inspirado por
Deus.
Mesmo os deuterocanônicos atestam que, no seu tempo, a
inspiração havia cessado — 1Macabeus 9:27 declara: “Então houve
grande tumulto em Israel, tal como nunca havia tido desde o tempo
em que os profetas cessaram de aparecer no meio do povo.”

A Glossa Ordinária, um comentário católico da Idade Média, trouxe a


seguinte declaração sobre os apócrifos (ou deuterocanônicos),
demonstrando que a aceitação deles não era um consenso entre os
teólogos da época:
Os livros canônicos são fruto do ditado do Espírito Santo. Não
sabemos, no entanto, em que tempo ou por quais autores os não
canônicos ou apócrifos foram produzidos. Desde, porém, que eles
sejam proveitosos e úteis e não contenham qualquer contradição com
os demais livros canônicos, é permitido à Igreja lê-los para sua
devoção e edificação. Sua autoridade, contudo, não é considerada
adequada naqueles assuntos que ainda são dúbios, nem servem para
confirmar a autoridade eclesiástica de um dogma, como o bem-
aventurado Jerônimo declara em seu prólogo ao livro de Judite e
também aos livros de Salomão. Por outro lado, os livros canônicos
possuem tal autoridade que tudo que está contido neles é para ser
considerado uma firme verdade e um assunto indiscutível.
6 Bíblia de Estudo Arqueológica. São Paulo: Editora Vida, 2013, p. 1973.
CAPÍTULO CINCO

ORGANIZAÇÃO
DOS LIVROS

A DIDÁTICA DOS TE TOS

As bíblias modernas são normalmente divididas em duas grandes


seções: O Antigo Testamento e o Novo Testamento. Estes, por sua
vez, se subdividem em vários blocos e livros. Não podemos
esquecer, contudo, que os títulos Antigo e Novo Testamento são
uma convenção cristã, se levarmos em consideração que a Bíblia se
refere ao conjunto dos livros como “Escritura” etc., mas nunca
como Antigo ou Novo Testamento, uma forte evidência da
hermenêutica de continuidade, e não de ruptura.
A Bíblia hebraica, que corresponde ao Antigo Testamento, é
dividida em três partes, que podem ser englobadas na palavra
TaNaK: Torá (Pentateuco), Neviim (Profetas) e Ketuvim (Escritos).
Estas partes englobam vários livros em cada uma delas. Já a Bíblia
cristã tem a mais os evangelhos, o livro de Atos, as epístolas, o livro
de Hebreus e o Apocalipse.
Jesus, certa vez, a rmou que aqueles dentre Israel que
rejeitassem a mensagem de Deus seriam responsabilizados “desde o
sangue de Abel até ao sangue de Zacarias, que foi morto entre o
altar e o santuário” (Lucas 11:51). Ora, alguns especialistas
entendem que aqui Jesus estava fazendo referência ao cânon do
Antigo Testamento, que já estaria fechado em seus dias. Abel,
representando o Gênesis, seria o primeiro livro da coleção, e
Zacarias, o último. A di culdade com essa ideia está em saber se
esse Zacarias mencionado por Cristo seria o lho de Baraquias
(Mateus 23:35; Zacarias 1:1; Esdras 5:1), que teria escrito o último
livro do cânon hebraico, ou Zacarias, lho de Joiada, mencionado
em 2Crônicas 24:20,21.
Seja como for, uma das mais antigas listas dos livros hebraicos
das Escrituras menciona 2Crônicas como o último livro do cânon.
Ali é dito:

Nossos rabinos disseram: a ordem dos profetas é esta: Josué, Juízes,


Samuel, Jeremias, Ezequiel, Isaías, os doze… A ordem dos Escritos é Rute,
o livro dos Salmos, Jó, Provérbios, Eclesiastes, Cantares, Lamentações,
Daniel, o rolo de Ester, Esdras e Crônicas. (Talmude Babilônico, tratado
Baba Bathra, 14b)

Não obstante, essa questão da canonização dos textos talvez


mereça um aprofundamento por parte dos acadêmicos. Tem-se a
impressão de que essa ordem que aparece no Talmude e em outras
fontes judaicas re ete a ideologia anticristã por parte do rabinismo
da época. Um exemplo disso foi o proposital deslocamento do livro
de Daniel da seção de profetas para a seção de Escritos. Devido ao
aspecto profético messiânico de Daniel, que apontava a chegada do
Messias nos dias do Segundo Templo, tornou-se incômodo o estudo
desse livro, uma vez que o Templo já não existia e, na compreensão
rabínica, o tão sonhado Messias não havia se manifestado entre os
judeus. Só para esclarecer: os judeus não reconhecem Jesus como o
prometido Messias.
Não devemos nos preocupar com a ordem dos livros,
considerando que Malaquias é o último autor do Antigo
Testamento nas edições modernas da Bíblia, pois, em versões
hebraicas, a ordem dos livros muda. O Códex de Leningrado
(datado de 1009 d.C.) e três das oito listas mais antigas do cânon
judaico trazem Crônicas como o primeiro, e não o último livro da
coleção de escritos (Encyclopaedia Judaica, vol. 4:829-830).
Ainda, segundo a tradição judaica, é dito que o espírito de
profecia cessou com a última parte da exortação de Malaquias
(tratado Sanhedrin 11ª). Isso em razão do fato de que nenhum livro
escriturístico deveria ser acrescentado à lista dos livros inspirados
de Israel.
Por volta do ano 90 d.C., o historiador judeu Flávio Josefo
também declarou que o cânon hebraico estava fechado e que,
“desde Artaxerxes, a sucessão de profetas chegou ao seu m”. Isso
ele escreveu em argumentação contra Ápio, demonstrando que, em
seu tempo, a coleção de livros inspirados já estava decidida.
Vejamos sua citação completa:

Pois não temos uma multidão inumerável de livros entre nós, discordando e
contradizendo um ao outro, [como os gregos têm], mas apenas 22 livros, que
contêm os registros de todos os tempos passados; que são justamente cridos
como divinos. Destes, cinco são os livros de Moisés, que compreendem as leis e
a história tradicional desde o nascimento do homem até a morte do
legislador. Este período só cai um curto tempo de três mil anos. Desde a morte
de Moisés até Artaxerxes, que sucedeu a Xerxes como rei da Pérsia, os profetas
posteriores a Moisés escreveram a história dos eventos de suas próprias
épocas em treze livros. Os restantes quatro livros contêm hinos a Deus e
preceitos para a conduta da vida humana.  Desde Artaxerxes até os nossos
dias a história completa foi escrita, mas não foi considerada digna de crédito
igual aos registros anteriores, por causa da falta de sucessão exata dos
profetas. Nós damos prova prática de nossa reverência de nossas próprias
Escrituras. Pois, embora essas longas eras já tenham passado, ninguém se
aventurou nem a adicionar, remover, nem alterar uma sílaba, e é um instinto
com cada judeu, desde o dia do seu nascimento, considerá-las como os
decretos de Deus, respeitá-las, e, se necessário, alegremente morrer por elas.

Contra Ápio, 1.38-41

Se colocássemos os livros da Bíblia numa estante de biblioteca,


eles estariam assim organizados, segundo a forma cristã:
Como se pode ver na ilustração a seguir, os cinco primeiros
livros foram escritos por Moisés e recebem o nome de Pentateuco.
Eles trazem o relato da criação do mundo até a primeira parte da
História do povo hebreu e seu período de peregrinação no deserto,
quando ainda não era uma nação propriamente dita. Isso vai desde
as origens da humanidade até por volta do século 14 a.C.
Depois do Pentateuco temos mais três livros que narram
episódios ocorridos no tempo em que Israel se assentava na Terra
Prometida e era governado por juízes e sacerdotes. Já a coleção
seguinte dá sequência à História, contando uma nova fase
administrativa em que Israel agora era governado por reis. Essa
fase foi interrompida pela tragédia do cativeiro da Babilônia, que
pôs m à monarquia de Israel. Ambas as coleções são classi cadas
como Livros Históricos e cobrem um período de aproximadamente
700 anos, que vai do século 14 ao 6 a.C.
Os três livros na sequência (Esdras, Neemias e Ester) narram
episódios ocorridos após o cativeiro Babilônico, quando o povo já
não tinha mais um rei e lutava para reconstruir sua identidade
nacional. Eles também fazem parte dos Livros Históricos, e podem
ser situados no século 5 a.C.
A próxima coleção poderia ser chamada de um parêntese na
cronologia dos fatos, pois traz uma coletânea de músicas, poesias,
dramas e ditos populares que narram a sabedoria do povo de Israel.
Tanto o é que os especialistas costumam chamar essa coleção de
Livros Poéticos ou Sabedoria. Um destaque especial é a história de
Jó, o homem que representa o sofrimento de todos os que se sentem
abandonados por Deus.
Em seguida, a História dá um recuo para apresentar um
conjunto especial de livros chamados Proféticos. Trata-se da
coleção de oráculos e episódios históricos envolvendo homens que
tiveram o dom de profecia e exortaram Israel e outros povos a se
voltar para Deus, especialmente nos tempos da monarquia e no
período pós-cativeiro. Note que eles estão divididos em dois
grupos.
Os primeiros quatro livros (Isaías, Jeremias, Lamentações e
Ezequiel) são — devido ao seu volume de conteúdo literário —
chamados Profetas Maiores, e os demais (que na Bíblia hebraica
aparecem como um só livro), Profetas Menores. O livro de Daniel,
que aqui aparece no grupo dos profetas menores, é um caso à parte.
Os cristãos o reconhecem como profeta, mas no meio judaico ele é
reconhecido apenas como um homem sábio, não um profeta —
embora, a bem da verdade, os sábios do Talmude fossem divididos
quanto a isso,7 e Jesus tenha chamado Daniel de profeta (Mateus
24:15).
Concluindo essa parte, temos então as coleções que formam o
Novo Testamento. Os quatro primeiros livros são os evangelhos,
que narram a vida e o ministério de Jesus Cristo. A seguir, temos,
isolado dos demais, o livro de Atos, que conta a história da Igreja
Cristã primitiva, com destaque para o ministério do apóstolo Paulo.
A longa coleção que se segue são as cartas ou epístolas cristãs.8 A
autoria das treze primeiras são atribuídas a Paulo e, por isso,
chamadas Epístolas Paulinas. As demais são conhecidas como
Epístolas Universais, e foram escritas por outros autores.
Um caso especial é Hebreus. Os autores ainda estão divididos
quanto à autoria dele, se pertence ou não à pena do apóstolo Paulo.
Há quem diga que ela nem pode ser considerada uma epístola, mas
que seria, antes, um sermão ou tratado teológico baseado nos
ensinamentos de Paulo. Seja como for, ainda que a autoria não seja
diretamente paulina, o conteúdo certamente é.
Finalmente, o último livro é o Apocalipse, cujo conteúdo traz
revelações dadas por Deus ao apóstolo João para mostrar os eventos
que ocorreriam no mundo e na História da Igreja desde os dias
apostólicos até a segunda vinda de Cristo e a restauração de todas as
coisas no paraíso restaurado por Deus.

CAPÍT LOS E VERSÍC LOS

O sistema de capítulos da Bíblia foi introduzido em 1214 d.C. pelo


arcebispo Estevan Langton, professor da Universidade de Paris. Já
a divisão em versículos ou versos se deu em 1528, quando o padre
dominicano Santos Pagnino publicou em Lion a primeira Bíblia
organizada em pequenas subdivisões. Mais tarde, porém, em 1551,
Roberto Stefano, um editor protestante, reelaborou o trabalho de
Pagnino. Nessa época já havia sido inventada a imprensa.
Há quem a rme que muitos versos foram divididos enquanto
Stefano estava hospedado em pensões ao longo da estrada ou
montado em seu cavalo. Por isso, em virtude dessa condição
incômoda, alguns versos caram mal divididos até hoje.
Se tomarmos por base a versão bíblica da King James, de
tradição protestante, descobriremos que a Bíblia tem 1.189 capítulos
e 31.102 versículos. Esses números vão depender de qual escola
textual (texto Crítico, Receptus ou Majoritário) se auferiu essa
informação. À guisa de comparação, a versão católica da editora
Ave Maria tem 1.334 capítulos e 35.774 versículos. Essa diferença se
deve ao fato de a Bíblia católica contar com os livros apócrifos (ou
deuterocanônicos), totalizando 73 livros, enquanto a protestante
conta com apenas 66 livros.
Embora existam pouquíssimas diferenças entre bíblias católicas
e protestantes quanto à divisão dos capítulos, sua essência é
praticamente a mesma. Um exemplo é o salmo do Pastor, que na
Bíblia protestante é o salmo 23, já nas católicas é o 22. Mas não há,
neste caso, perda de conteúdo, e o padrão de busca de um texto
continua o mesmo.
Tanto em tablets, smartphones ou na versão impressa, o capítulo
é a unidade maior dentro do livro, e os versículos, subdivisões
dentro do capítulo.

As referências bíblicas são muitas vezes representadas das


seguintes formas: João 3:16 ou João 3,16. O primeiro modo, usando
dois pontos (:), é mais comum nas literaturas evangélicas e
protestantes. Já o segundo, usando vírgula (,), é mais comum em
publicações católicas. O sentido de ambos é o mesmo: refere-se ao
Evangelho de João, capítulo 3, versículo 16. Antes tem-se o nome do
livro: Evangelho Segundo João. O primeiro número, que segue o
nome do livro, indica o capítulo: 3. O segundo número indica o
versículo: 16.
Para encontrar essa citação em sua Bíblia, é necessário abrir o
Evangelho Segundo João, virar as páginas até o capítulo 3,
geralmente em negrito e com fonte bem maior que as palavras, e
procurar nessa subdivisão o número 16, que corresponde ao
versículo. Ali você encontrará uma bela promessa: “Porque Deus
amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho Unigênito, para
que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”
(versão King James Atualizada).
Por vezes, o nome de um livro tem antes o número 1 ou 2 (em
algarismos romanos ou arábicos). Neste caso, o número faz parte do
nome do livro. É o caso de 1 e 2 Samuel, 1 e 2Reis, 1 e 2Crônicas, 1 e
2Coríntios, 1 e 2Tessalonicenses, 1 e 2Timóteo, 1 e 2Pedro, 1, 2 e
3João. Isso signi ca que cada um desses livros tem dois volumes ou
duas cartas para o mesmo destinatário (no caso de João, são três
cartas). Daí a colocação dos números antes do nome. 2Coríntios 4:1,
por exemplo, quer dizer que o texto mencionado se encontra na
segunda carta ou epístola de Paulo para os irmãos de Corinto, no
capítulo 4, versículo 1.
É comum também que as citações apareçam com o nome do livro
abreviado. Em geral, tanto católicos como protestantes e
evangélicos podem valer-se desta lista que se segue acrescentada
dos livros apócrifos ou deuterocanônicos:

ANTIGO TESTAMENTO

ABREVIA O DO LIVRO LIVRO BÍBLICO Q ANTIDADE DE CAPÍT LOS


Gn Gênesis 50
Ex Êxodo 40
Lv Levítico 27
Nm Números 36
Dt Deuteronômio 34
Js Josué 24
Jz Juízes 21
Rt Rute 4
1Sm 1Samuel 31
2Sm 2Samuel 24
1Rs 1Reis 22
2Rs 2Reis 25
1Cr 1Crônicas 29
2Cr 2Crônicas 36
Ed Esdras 10
Ne Neemias 13
Et Ester 10
Jó Jó 42
Sl Salmos 150
Pv Provérbios 31
Ec Eclesiastes 12
Ct Cantares ou Cânticos dos Cânticos 8
Is Isaías 66
Jr Jeremias 52
Lm Lamentações de Jeremias 5
Ez Ezequiel 48
Dn Daniel 12
Os Oseias 14
Jl Joel 3
Am Amós 9
Ob Obadias -
Jn Jonas 4
Mq Miqueias 7
Na Naum 3
Hc Habacuque 3
Sf Sofonias 3
Ag Ageu 2
Zc Zacarias 14
Ml Malaquias 4

NOVO TESTAMENTO
ABREVIA O DO LIVRO LIVRO BÍBLICO Q ANTIDADE DE CAPÍT LOS

Mt Mateus 28
Mc Marcos 16
Lc Lucas 24
Jo João 21
At Atos dos Apóstolos 28
Rm Romanos 16
1Co 1Coríntios 16
2Co 2Coríntios 13
Gl Gálatas 6
Ef Efésios 6
Fp Filipenses 4
Cl Colossenses 4
1Ts 1Tessalonicenses 5
2Ts 2Tessalonicenses 3
1Tm 1Timóteo 6
2Tm 2Timóteo 4
Tt Tito 3
Fm Filemom -
Hb Hebreus 13
Tg Tiago 5
1Pe 1Pedro 5
2Pe 2Pedro 3
1Jo 1João 3
2Jo 2João -
3Jo 3João -
Jd Judas -
Ap Apocalipse 22

Assim, quando citamos a Primeira Epístola de João, basta


escrever 1Jo. Em seguida vem o capítulo e o versículo, como nos
exemplos anteriores. Citações mais elaboradas podem valer-se de
outros sinais. O travessão, tanto para católicos como evangélicos e
protestantes, representa uma sequência ininterrupta de capítulos
ou versículos. Por exemplo: Ap 18-20 quer dizer Apocalipse,
capítulos 18, 19 e 20. O mesmo vale para versículos, de modo que 1Pe
2:4-6 (ou 1Pe 2:4-6) quer dizer Primeira Epístola (ou carta) de Pedro,
capítulo 2, versículos 4, 5 e 6.
A vírgula (ou o ponto, no caso das versões católicas) sempre
representa uma unidade isolada, pode ser um capítulo ou um
versículo. Por exemplo, a sugestão de leitura de Is 50, 54, 56 (ou Is
50.54.56) quer dizer a leitura do livro do profeta Isaías nos capítulos
50, 54 e 56. Os capítulos 51, 52, 53 e 55 não fazem parte da citação e,
portanto, não precisam ser lidos.
Em caso de versículos, o procedimento é o mesmo. Mateus
5:17,19,21 (Mateus 5,17.19.21) signi ca uma referência ao Evangelho
de Mateus capítulo 5, versículos 17, 19 e 21. Os demais versículos não
fazem parte da citação.
Alguns autores ainda optam por um modo moderno usando s ou
ss. Neste caso, Gn 1:5s quer dizer livro do Gênesis capítulo 1,
versículo 5 e 6 (s = seguinte). Se for ss, refere-se aos versículos
seguintes, sem delimitação. Gn 1:5ss (ss = seguintes), portanto, seria
Gênesis, capítulo 1, versículo 5 em diante.
Por m, existe ainda o recurso do ponto e vírgula (;). Assim
como a vírgula funciona para as versões evangélicas e o ponto para
as versões católicas, esse sinal demarca isolamentos maiores. Por
exemplo: Gênesis 1:24; 2:3; 3:5; Mateus 7:17; 8:1. Aqui temos uma
série de passagens bíblicas divididas por ponto e vírgula para não
confundir o leitor.
7 Veja Halachot Gedolot, capítulo 76; Seder Olam Rabbah, capítulo 20; comentário do
Rabino Shlomo Ytizchaki Rashi ao Megillah, ibid.

8 Epístola vem do grego antigo epistolê, e signi ca uma espécie de carta especial enviada a
um amigo ou a uma comunidade em particular, tratando de assuntos políticos, losó cos,
morais ou teológicos.
CAPÍTULO SEIS

A HISTÓRIA DA ESCRITA

A ESCRITA NA ANTIG IDADE

O cristianismo e o judaísmo, por causa de sua forte conexão com a


Bíblia Sagrada, são consideradoss as religiões do livro, ou seja, a
legitimidade histórica de suas crenças está intimamente ligada à
veracidade de uma Escritura Sagrada que permeia seus
ensinamentos. Sendo assim, uma busca religiosa por qualquer
ensinamento bíblico não pode prescindir do conhecimento acerca
das origens da escrita na História da humanidade.
Pode-se, de fato, a rmar que a escrita foi a maior invenção do
homem após a descoberta do fogo. Sem os antigos e atuais sistemas
de escrita, jamais teríamos evoluído como organismo social, pois
toda a comunicação e comércio que caracterizam as sociedades ao
longo do tempo dependem de alguma forma de escrita para serem
e cazes.
Pode parecer incrível, mas os historiadores acreditam que a
escrita foi inventada quatro vezes, quase simultaneamente. Por
volta de 4.000 a.C., China, Egito, Mesopotâmia e povos da América
Central começaram a desenvolver os primeiros sistemas para
registrar a comunicação. Nada de letras, sílabas ou palavras.
Apenas desenhos.
Naquela época, se alguém quisesse escrever “boi”,
provavelmente desenharia uma cabeça de boi em um tijolo de barro
ou em um pedaço de cerâmica. Por isso, esses sistemas foram
chamados pictóricos ou ideográ cos. Um exemplo muito
conhecido desse tipo de escrita é o hieróglifo egípcio. É claro,
porém, que os seres humanos já viviam em agrupamentos antes da
invenção da escrita e, nesta condição, aquelas antigas sociedades se
baseavam num sistema de tradições orais passadas de boca em
boca, de pai para lho.
Embora os habitantes dessas sociedades estivessem
acostumados a esse processo mais do que nós em nossos dias, é
claro que eles também pecavam no detalhamento dos relatos e
faltavam com a precisão em um ou outro ponto da mensagem
transmitida. Daí a imperiosa necessidade de tornar “físico” o
conceito oralmente expresso.
Muitos acreditam que alguns sinais feitos em casco de tartaruga
e encontrados em Jiahu, na província chinesa de Henan, seriam os
mais antigos traços de comunicação feitos pelo ser humano.
Contudo, sua interpretação ainda é motivo de disputa entre os
especialistas e não se tem claro se esses sinais representavam
qualquer valor sonoro. Sendo assim, ainda prevalece a posição mais
tradicional de que a escrita humana tenha se originado na antiga
Mesopotâmia, atual região da Síria e do Iraque.
▶ Sumérios

Foram os sumérios que desenvolveram a escrita e as primeiras


escolas de escribas. E o ensino começava bem cedo, ministrado aos
juvenis, mas não era um ensino geral para todos. Infelizmente,
apenas lhos de famílias ricas ou nobres tinham acesso à escola,
que poderia funcionar numa casa ou nas dependências de um
palácio ou templo. Um exemplo disso seria o sistema educacional
associado ao Templo de Ur Nammu, que cava no centro da cidade
natal de Abraão.
Naquela sociedade sumeriana, tornar-se um escriba era sinal de
status. O mais interessante é que, mesmo sendo um sistema
patriarcal, há evidências de que os sumérios ensinavam pelo menos
algumas meninas a ler e escrever, o que era um grande avanço para
a época.

Não era nada fácil aprender a ler e escrever nos dias de Abraão.
Inscrições da época descrevem o dia a dia na sala de aula e revelam que
os alunos recebiam castigos físicos, como golpes de vara nas costas, toda
vez que erravam uma lição ou falavam sem a permissão do professor.
Um simples atraso para a aula resultava numa surra em frente a todos os
colegas.
Antigos tabletes desenterrados no Curdistão mostram os exercícios que
os alunos faziam. Normalmente, consistiam em cópias na argila de
sentenças previamente escritas pelo professor, cuja leitura era exigida
posteriormente na frente dos colegas. O aluno, portanto, deveria copiar
nas costas do tablete a mesma coisa que estava na frente sem errar, caso
contrário, seria punido.
A princípio, a escrita era pictogrâmica e ideogrâmica onde os
sinais representavam coisas ou ideias. Mais tarde, os sinais
passaram a representar sons, primeiramente silábicos, algo como
lulu, que quer dizer homem, e lu-gal, que quer dizer rei, e assim por
diante. Por serem inicialmente feitas em tabuinhas de argila
cunhadas com uma pequena vara de junco, a escrita cou
conhecida pelo nome de cuneiforme, isto é, feita a partir de cunhas.
Os tabletes de argila, portanto, foram as primeiras “folhas de papel”
usadas na Antiguidade. É por isso, aliás, que os sumérios
chamavam as primeiras escolas de eduba, que quer dizer “casa das
tabuinhas”, isto é, dos tabletes de argila sobre o qual escreviam suas
lições.
Com o passar do tempo, os símbolos deixaram de representar
apenas objetos, como cavalos, bois ou carneiros, e começaram a
representar a linguagem humana. Atualmente, alguns arqueólogos
a rmam poder localizar o mais antigo registro dessa
transformação: uma tábua suméria de 3.000 a.C. encontrada na
cidade de Jemdet Nasr, no Iraque.
Nela, os pesquisadores encontraram o desenho de uma haste de
junco em posição horizontal numa lista de objetos do templo. O que
o desenho de uma haste de junco estaria fazendo numa relação de
objetos sagrados? Até que um dos responsáveis pela tradução
percebeu que o mesmo som que signi cava “junco” na língua dos
sumérios — gi — também signi cava “fornecer” ou “pagar”. O
responsável pela contabilidade do templo percebeu a semelhança
entre os sons das duas palavras e “pegou emprestado” o símbolo do
junco para criar outra palavra, em outro contexto.
E não pense que eles escreviam apenas coisas simples, ideias
soltas. Grandes obras literárias, poemas, tratados médicos,
matemáticos e astronômicos foram escritos pelos sumérios e depois
pelos babilônios, seus primeiros herdeiros literários.

▶ Egípcios

Enquanto esse sistema se desenvolvia na Mesopotâmia, quase que


paralelo aos sumérios, os egípcios também produziam sua forma de
escrita. Localizados às margens do Rio Nilo e cercados pelo deserto
do Saara, desenvolveram uma forma peculiar de anotar sua
História. Assim como na escrita sumeriana, a linguagem também
era uma mistura de sons silábicos e ideogramas que exigiam grande
destreza artística do escritor.
Por estar presente em grande parte de paredes de túmulos e
templos, essa forma de escrever cou conhecida como escrita
sagrada ou, como se diz em grego, hieroglí ca. Com o tempo,
porém, esse modo de escrever dos egípcios evoluiu para formas
mais simpli cadas, como o hierático, que era uma variante mais
cursiva que se podia pintar em papiros ou placas de barro e, ainda
mais tarde, com a in uência grega, o demótico, fase em que os
hieróglifos iniciais caram bastante estilizados, havendo mesmo a
inclusão de alguns sinais gregos na sua escrita.
Diferentemente dos sumérios e mesopotâmicos, que usavam
mais a argila e as pedras para escrever, entalhando literalmente
seus fonemas nos tabletes, os egípcios optaram pela invenção de um
tipo de papel que suprimia a falta de pedra e argila em seu
território. A nal, eles moravam em pleno deserto. Esse papel era
feito do papiro, uma planta muito comum que nasce às margens do
Rio Nilo, e os egípcios souberam como aproveitá-la. Rapidamente o
papiro, ou papel egípcio, alcançou outros povos e se tornou uma das
principais matérias-primas na produção de livros, cartas, tratados
jurídicos e obras literárias, inclusive do mundo greco-romano.

PROVIDÊNCIA DIVINA

O Deus revelado na Bíblia Sagrada não é, de modo algum, uma força


impessoal, como propõem os panteístas, nem um ser distante,
como apregoa o deísmo. Ele age na História de modo inter-
relacionado com a ação humana. Desse modo, a invenção da escrita
acabou tornando-se um instrumento usado por Deus para revelar
suas verdades.
Já nos primórdios da escrita humana, a ideia de que escritos
sagrados pudessem vir de Deus ou dos deuses rapidamente se
espalhou pelo mundo da época, formando a base da reverência que
temos até hoje por livros inspirados que estariam acima dos demais
por terem uma fonte divina.
Por volta do século 11 a.C., os fenícios, que viviam na cidade de
Biblos, atual Líbano, desenvolveram uma escrita mais ou menos
alfabética derivada provavelmente de outros conjuntos alfabéticos
de origem semita. Sua lista inicial contava com pelo menos oitenta
diferentes caracteres. Mas a quantidade de sinais ou letras foi aos
poucos diminuindo, até chegar a 22 letras, o que facilitou bastante o
domínio da escrita por outros povos. Foi desse alfabeto, diga-se de
passagem, que se originou o alfabeto grego e depois o latino que
usamos até hoje.
O número de letras variava de um lugar para outro. Os
habitantes de Ebla, por exemplo, usavam trinta sinais, e os
alfabetos que derivaram dos fenícios caram em torno de vinte e
poucas letras. Dentre os alfabetos que derivaram desse sistema
estão o grego, o hebraico e o aramaico, que foram os idiomas usados
na composição da Bíblia Sagrada.
Embora não tenhamos nenhuma indicação de que Abraão
tivesse escrito qualquer obra inspirada, sabe-se que, quando
peregrinou em direção à Terra Prometida, ele, como todos os
demais povos nômades vindos da Mesopotâmia, certamente usou a
escrita cuneiforme, embora também possa ter tido algum contato
com os hieroglí cos criados pelos egípcios.
Ao que tudo indica, coube a Moisés a tarefa não só de tirar o povo
hebreu do Egito, mas também de iniciar o processo de escrita dos
primeiros livros da Bíblia Sagrada. A ele são atribuídos o livro de
Jó, o Pentateuco e alguns salmos. Que idioma e que forma escrita
Moisés teria usado para preparar os primeiros livros, isso não
sabemos. Embora a tradição aponte que ele usara o hebraico — o
que não é uma ideia impossível —, não se descarta a possibilidade
de que ele tenha usado outra forma redacional ou até mesmo outro
dialeto distinto do hebraico bíblico que conhecemos hoje.
A língua, lembremos, é um organismo vivo que sofre
transformação semântica e se modi ca de geração para geração.
Quer um exemplo? Peça para um aluno do Ensino Médio brasileiro
que leia em voz alta e interprete as cartas de Pero Vaz de Caminha.
Ele certamente terá di culdades. Então imagine pegar um
israelense de nossos dias e colocá-lo para conversar meia hora com
Moisés. Eles certamente precisarão de um intérprete para entender
um ao outro ainda que estejam falando em hebraico.
Os idiomas também mudavam no passado. Paulo não
conversaria longamente com Moisés, compreendendo 100% de sua
fala. Lembre-se de que há 1,3 mil anos entre um e o outro! O texto
hebraico que possuímos hoje de Moisés seria, portanto, uma
atualização linguística daquilo que ele escreveu originalmente e
cuja forma não temos como alcançar. Essa observação, no entanto,
não anula o fato de que temos preservado o conteúdo original da
mensagem inspirada ou que Moisés possa, ainda que
hipoteticamente, ter escrito os livros já no idioma hebreu. A falta
de elementos arqueológicos não deve nos intimidar, pois grande
parte do tesouro antigo está perdida para sempre de modo que,
como diz um famoso ditado entre os arqueólogos, “ausência de
evidência não signi ca evidência da ausência”.

A ESCRITA E MOIS S

Até pouco tempo atrás, a rmava-se que a invenção do alfabeto


tinha ocorrido lá pelos séculos 11 ou 12 a.C., o que representaria
uma negação da autoria mosaica dos livros que levam seu nome.
A nal, Moisés teria vivido bem antes disso. Entretanto, escavações
arqueológicas em Ur, na antiga Caldeia, têm comprovado que, já no
tempo de Abraão, ali estava uma metrópole altamente civilizada.
Nas escolas de Ur, os meninos aprendiam leitura, escrita,
aritmética e geogra a. Isso sem contar, como já dizemos, as
inscrições alfabéticas descobertas no Sinai, em Biblos e em Ras
Shamra e que são anteriores ao tempo de Moisés.
É importante notar que pelo menos uma dessas escritas foi
encontrada na península do Sinai, no mesmo lugar onde Moisés
esteve quando recebeu a incumbência de escrever seus livros.
Êxodo 17:14: “Então disse o Senhor a Moisés: Escreve isto para
memorial num livro, e relata-o aos ouvidos de Josué.”
As evidências, portanto, indicam que Moisés provavelmente
usou alguma forma de escrita fonética para escrever o Pentateuco.
É difícil saber que tipo de letras estariam nessa forma original.
Tudo leva a crer que os fenícios inventaram um tipo especial de
alfabeto do qual derivaram os alfabetos grego, latino e hebraico,
cujas letras foram evoluindo até chegar ao formato que temos hoje.
A objeção apresentada por muitos críticos quanto à autoria da
escrita mosaica dos primeiros livros da Bíblia sugere que, pelos
indícios atuais, parece que o alfabeto fenício, do qual derivou o
alfabeto hebraico, dataria do século 11 a.C. Logo, a escrita hebraica
que conhecemos deve ser posterior e, por isso, muito distante dos
dias de Moisés.
Sobre isso, em primeiro lugar, é hipotética a ideia de que o
hebraico se originou do fenício, pois os dados disponíveis apenas
sugerem hipóteses, mas nenhuma certeza. Além disso, o alfabeto
hebraico pode até ser posterior a Moises, mas não a língua
hebraica, e essa pode ter se utilizado de outros sinais grá cos, como
os encontrados em Ugarite, na Síria, e que seriam, pelo menos,
duzentos anos mais antigos que o alfabeto fenício.
Que o hebraico poderia se utilizar de outros tipos de sinais para
reproduzir por escrito seu idioma ca claro pelo achado de uma
inscrição em Khirbet Qeiyafa, Israel, e datada do século 10 a.C. Sua
tradução ainda é motivo de disputa entre os especialistas, e há
quem pense que seria um idioma diferente do hebraico, mas tudo
leva a crer que esse era um tipo de escrita usual em Israel no
primeiro milênio antes de Cristo e que não derivava do fenício. Isso
não comprova, mas permite supor que, mesmo antes da elaboração
do alfabeto que conhecemos atualmente, tanto Moisés como outros
autores hebreus teriam plenas condições de escrever um livro
sagrado, mesmo que as evidências ainda sejam fragmentárias.
Atos 7:22 declara que Moisés era versado na língua egípcia, que,
conforme visto, era registrada em forma de complexos desenhos
hieroglí cos. O mais natural, neste contexto, seria Moisés escrever
seus livros nesse idioma, que era bem mais rico que a língua dos
escravos hebreus, e que muito provavelmente era um idioma
ágrafo, isto é, sem representação escrita.
Os hieróglifos, além de mais versáteis para escrever textos
sagrados, eram chamados pelos egípcios de mdju Netjer, isto é,
“palavras dos deuses”. Eles foram não apenas a primeira e mais rica
forma de escrever dos egípcios, mas também a de maior duração.
Moisés certamente sabia ler e escrever muito bem em forma de
hieróglifos. Porém, a providência divina trabalhou para que ele
rejeitasse essa língua, bem como a escrita dos sumérios, e usasse
alguma forma proto-sinaítica de redação, que era uma forma
escriturística mais vulgar (no sentido de simplicidade), rústica e
própria de nômades do deserto.

Se Moisés tivesse escrito a Bíblia na língua dos faraós ou dos


sumerianos, precisaríamos esperar até os séculos 18 e 19 para poder ler
o Antigo Testamento, pois foi somente nessa época que Georges
Grotefen decifrou os primeiros sinais cuneiformes e Jean-François
Champollion, os símbolos egípcios. A ida de Moisés para o deserto do
Sinai antes mesmo de libertar o povo o fez esquecer a língua de Faraó e
se familiarizar com outra forma mais funcional de escrita usada em Midiã,
isto é, a alfabética ou protoalfabética, cujos caracteres representam sons,
ao invés de complexos sinais e ideias.

LÍNG AS ORIGINAIS DA BÍBLIA

Como você sabe, a Bíblia não foi originalmente escrita em nosso


idioma. O que temos é uma tradução, e muitas vezes é complexo o
trabalho de traduzir. Primeiro porque alguns elementos que em
nosso idioma contam com apenas um vocábulo para representá-lo,
em outra língua pode contar com dois ou três. Por exemplo,
enquanto nos referimos à morada de Deus e ao ambiente estelar
pelo simples nome de céu, as pessoas de língua inglesa usam dois
diferentes termos, heaven e sky.
Além disso, há palavras que simplesmente não possuem um
equivalente noutra língua. É o caso de “saudade”, que, em inglês,
tem de ser traduzida por um verbo ou quase uma frase (I miss you)
porque não existe um substantivo que lhe seja equivalente.
Por m, há também o problema de que a língua é um organismo
vivo e as palavras sofrem transformação. Isso é chamado de
mutação ou transformação semântica. Veja este caso: quando você
entorna um líquido no chão, costuma dizer que o líquido derramou,
não é mesmo? Pois bem, no tempo de seus ancestrais, derramar era
cortar as ramas de uma parreira de uvas. De modo que, quando os
antigos diziam: “Vou derramar aquela parreira”, não estavam
dizendo que iam entorná-la em algum lugar.
É por essas e outras di culdades que o trabalho dos tradutores é
uma arte difícil e sempre sujeita a críticas (algumas injustas). Os
italianos costumavam dizer “traduttore, traditore” — o tradutor é
um traidor. Triste adágio para um trabalho tão importante.

▶ Expressões idiomáticas

Millôr Fernandes contou um episódio que ilustrava bem o


problema de não se entender satisfatoriamente as chamadas
expressões idiomáticas. Certa mãe, ao sair para o trabalho, deixa o
lho de quatro anos com o marido e diz: “Meu bem, vê se não tira os
olhos do Pedrinho.” No momento em que ela fala isso, é um
berreiro só. O pobre menino entendera que a ordem “Vê se não tira
os olhos do Pedrinho” signi cava que seu pai poderia arrancar-lhe
os olhos assim que a mãe saísse.
Segundo os especialistas, uma expressão idiomática ou
expressão popular é um conjunto de palavras que se caracteriza não
por ser possível identi car seu signi cado mediante o sentido
literal dos termos analisados individualmente. Em se tratando da
Bíblia Sagrada, Palavra de Deus em linguagem humana, é de se
esperar que o livro mais precioso de judeus e cristãos também
contenha expressões nem sempre captadas pelas traduções
modernas ou muitas vezes mal compreendidas por causa da
distância cultural entre nós e os autores que a produziram.
A boa notícia é que o trabalho conjunto da arqueologia,
papirologia, linguística comparada, entre outras áreas, tem
conseguido recuperar muito desse sentido original e enriquecido
nossa compreensão das Escrituras Sagradas, mesmo que
dependamos de traduções atuais para lê-la. Um exemplo pode ser
visto no estranho verso de Salmos 132:17, que fala dos chifres de
Davi. A maior parte das bíblias adaptou o texto, mas algumas
seguem o original hebraico que diz: “Eu farei orescer o chifre de
Davi.” Mas o que isso quer dizer?
Os chifres, nos tempos bíblicos, tinham um signi cado bem
distinto dos nossos dias. Eles podiam servir de instrumento
musical — a famosa trombeta de chifre chamada shofar —, podiam
se transformar em objeto de libação para conter o vinho, água ou
azeite sagrado, e também podiam simbolizar força, poder e
majestade. Por isso, a palavra keren, que nos idiomas hebraico e
ugarítico signi ca literalmente “chifre”, pode (dependendo do
contexto) signi car força, poder ou glória.
Aí ca fácil entender que os “chifres de Davi” signi cam a força
do rei, e não um par de chifres saindo de sua testa. Por outro lado,
Deus fazendo orescer os chifres do rei signi cava enaltecer o
poder dos seus lhos e seus súditos. É por isso, também, que na
literatura apocalíptica da Bíblia, reis poderosos são representados
por chifres, isto é, forças políticas que atuam na história humana. É
como se Deus transformasse expressões idiomáticas em imagens
reais, e isso ajuda muito a entender alguns símbolos apocalípticos
da Bíblia Sagrada.
Lembrando que a Bíblia foi escrita em hebraico, aramaico e
grego, seria interessante conhecer um pouco algumas
características desses três idiomas. Tal conhecimento ainda que
rudimentar poderá enriquecer sua compreensão do texto bíblico.
Logo, uma introdução às características desses idiomas será
bastante bené ca.

▶ Hebraico e aramaico
A maior parte da Bíblia foi escrita em hebraico, com poucos trechos
em aramaico. O aramaico era um grupo de línguas e dialetos
aparentado à mesma origem da língua hebraica. Ambas são,
portanto, muito parecidas. O aramaico era falado não apenas em
Israel, mas em muitos outros povos dos tempos bíblicos (2Reis
18:26). Na Bíblia, ele às vezes aparece com o nome de siríaco ou
caldeu (cf. Daniel 2:4).
Os poucos trechos do Antigo Testamento escritos em aramaico
são Esdras 4:8―6:18; 7:12-26 e Daniel 2:4―7:28. Todo o restante do
Antigo Testamento, com exceção de uma palavra ou outra, foi
escrito originalmente em hebraico (cf. Gênesis 31:47; Jeremias
10:11). O Novo Testamento foi todo escrito em grego, mas algumas
expressões de Jesus aparecem em aramaico (cf. Marcos 5:41; 7:34;
15:34), e sobre Paulo é dito que ele optou pelo aramaico para
proferir um discurso a uma multidão de judeus (Atos 21:40; 22:2). O
hebraico também aparece em certas passagens do Novo
Testamento, como João 5:2; 19:13,17,20; 20:16; Apocalipse 9:11; 16:16.
Linguisticamente, o povo assírio original (que viveu antes dos
dias de Abraão) falava a antiga língua assíria, que estava no ramo
oriental da família semítica. A antiga língua assíria foi perdida com
o tempo, quando as pessoas no Oriente Médio começaram a falar
aramaico como língua franca, isto por volta de 800 anos antes de
Cristo.
O árabe e o aramaico têm muito mais em comum, sendo as
línguas semíticas do centro-oeste. O aramaico tem um pouco mais
em comum com o hebraico do que com o árabe, mas há muitas
raízes, fonemas, regras gramaticais e conceitos compartilhados.
Embora ambos, o aramaico e o hebraico, possuam suas diferenças,
eles eram línguas cognatas. Ambas possuíam um alfabeto de 22
consoantes. Elas não tinham, originalmente, vogais. Estas foram
acrescentadas muito tempo depois. Assim, as raízes dos verbos
(geralmente formadas por três letras) eram deduzidas pelo
contexto. Por exemplo, o verbo “escrever” era formado pelas
consoantes k, t, b, que permaneciam invariáveis em sua exão. Mas
o sentido poderia ser katab (“ter escrito”), koteb (“escrevendo” —
gerúndio), katub (“está escrito”), katob (“escrever”) ou ketob
(“escreva” ou “escreve” — imperativo). O contexto, como dissemos,
de nirá o tempo verbal apropriado.
Em hebraico, o artigo de nido é colocado no início da palavra
(“há’Shem” [o nome]). Em aramaico, é colocado no nal (“Shem’ah”
[“ah” é o artigo de nido em aramaico]).
O pão: há’lekhem (hebraico) em aramaico vira Lekhm ‘ah’ e assim
por diante.
Havia também uma mudança consonantal entre palavras
compartilhadas tanto pelo hebraico como pelo aramaico. A
principal mudança era o “tav” em aramaico que substituía a letra
“shin” em algumas palavras cognatas hebraicas. Por exemplo: alho
em hebraico se escreve shum, em aramaico tum [ah]. O numeral três
em hebraico seria shalosh, em aramaico Tlat [ah]. Quando, após a
destruição do segundo templo, os judeus foram novamente
espalhados pelo mundo, eles sentiram que o hebraico estava se
tornando ainda mais esquecido por causa do seu uso cada vez mais
raro. Então, na Idade Média, copistas judeus, chamados de
massoretas, criaram um sistema de pontos e sinais abaixo das
consoantes hebraicas que funcionariam como vogais. Esse sistema
de vocalização do hebraico cou conhecido como texto
massorético, e as partes em aramaico também receberam os
mesmos sinais vocálicos.
Tanto o aramaico quanto o hebraico é escrito da direita para a
esquerda, e utilizam o mesmo alfabeto. Alguns acadêmicos pensam
que o hebraico seria mais antigo que o aramaico em
aproximadamente duzentos anos, embora ambas sejam línguas
semíticas. A base do hebraico seria algum dialeto canaanita falado,
sobretudo, nas cercanias da cidade de Salém (que mais tarde viraria
Jerusalém). Já o aramaico teria sua origem na Síria, mais
propriamente em Damasco, e seria mais tarde usado por povos
estrangeiros, como os assírios e persas na sua ocupação daquela
terra. Isso fez com que o aramaico se tornasse uma língua universal
por muitos anos até ser suplantada pelo grego no 4º século a.C.
O aramaico, além de ter a mesma forma de escrita que o
hebraico, possui similaridade com ele em suas exões verbais,
nominais e pronominais. Os verbos têm dois estados, o imperfeito
(indicando ação incompleta) e o perfeito (signi cando ação
completada). O aramaico emprega substantivos no singular, no
plural e no dual, que é uma categoria substantiva numeral, distinta
do singular e do plural, expressando a quantidade “dois” nos
substantivos contáveis. Em geral, cam no dual os nomes de coisas
que ocorrem aos pares, como  olhos,  mãos,  ombros  etc., mas não
somente estes: palavras como céus (shammai) e águas (maim)
sempre vêm escritas na forma dual.
Os substantivos também têm dois gêneros, o masculino e o
feminino. Quanto ao som, o hebraico difere das outras línguas
semíticas por demonstrar preferência pelo som vocálico a, e, de
outros modos, inclusive certas preferências consonantais, tais
como d para z, e t para sh.
De acordo com a New Strong’s Exaustive Concordance [Nova
concordância exaustiva de Strong] (1990), a Bíblia hebraica conta
com aproximadamente 8 mil diferentes palavras derivadas de 1,5
mil diferentes raízes. Embora isso não signi que que estas seriam
as únicas palavras do hebraico bíblico, é possível a rmar que se
trata de um idioma pobre em termos de vocabulário. Só para você
ter uma noção, o dicionário Aurélio On-line traz um catálogo de 435
mil palavras!
Contudo, é uma língua rica em termos de de nição de assuntos
teológicos. As descrições de Deus, do Paraíso e da História da
humanidade, na perspectiva da salvação, são bastante belas e
esclarecedoras. Sua simplicidade gramatical, neste sentido, vem
para facilitar a compreensão de sua mensagem.
O hebraico quase não possui adjetivos ou pronomes pessoais,
porém é rico em advérbios. Uma forma de dizer que alguém é
inteligente seria chama-lo(a) de “ lho(a) da inteligência”; alguém
bonito, “ lho da beleza”. Jesus mesmo utilizou esse recurso quando
apelidou dois de seus apóstolos de “ lhos do trovão” ou quando se
referiu aos que o acusavam como “ lhos do diabo” (i.e.
“diabólicos”).
Igualmente, o hebraico é um idioma que praticamente não
trabalha com conceitos abstratos. Palavras abstratas para nós,
como fé, verdade e misericórdia, para eles eram completamente
concretas. Fé (emunah) é agarrar-se a algo para se salvar, verdade
(emeth) é o elemento que está no princípio, no meio e no m do
argumento e misericórdia (chesed) é aquele que abraçamos ao peito.
Diferentemente do português, seus pronomes pessoais são ligados
às formas verbais como se fossem su xos ou pre xos e, com raras
exceções, não faz uso de palavras compostas.

▶ Grego

O grego foi a língua utilizada pelos autores do Novo Testamento


para transmitir a mensagem que Deus revelara a eles. Durante
muito tempo, alguns linguistas imaginavam que o Evangelho de
Mateus e provavelmente o de João haviam sido originalmente
escritos em hebraico e, então, traduzidos para o grego. Mas hoje
praticamente nenhum especialista adota essa teoria.
De igual modo, nos séculos 17 e 18, vários acadêmicos tentaram
provar que o tipo de grego usado no Novo Testamento seria uma
espécie de “grego bíblico” sem paralelo com outras formas do grego
utilizadas pelos lósofos, poetas e escritores de origem helênica. O
gramático A.T. Robertson (1919) a rma que, naquela época, o grego
do Novo Testamento chegou a ser considerado o “idioma do
Espírito Santo”, moldando uma língua conhecida para se tornar
única e nova. Uma maneira divina de formatar conceitos e
expressões já existentes com o m de dar-lhes um signi cado
próprio, em acordo com a revelação cristã.
Isso, em parte, é verdade. Algumas palavras gregas que
aparecem no Novo Testamento são conceituadas de um modo bem
diferente daquele usado originalmente no grego de Alexandria ou
Atenas. Também é verdade que o grego da LXX e o hebraico do
Antigo Testamento in uenciaram bastante o texto
neotestamentário. Uma prova disso é a presença de hebraísmos e
aramaísmos no texto do Novo Testamento. Ou seja, vocabulários e
expressões idiomáticas não gregas, mas hebraicas e aramaicas, que
se encontram no texto do Novo Testamento.
Substantivos comuns, como Mamon (Mateus 6:24; Lucas 16:9),
abba (Marcos 14:36) e corban (Mateus 7:11), aparecem algumas vezes
nos Evangelhos. O mesmo se pode dizer de nomes próprios, como
“Getsêmani” (Mateus 26:36; Marcos 14:32) e “Tabita” (Atos 9:36,40),
que são tanto hebraicos como aramaicos.
A palavra raboni (Marcos 10:51) é corretamente chamada de
“hebraica” em João 20:16 (KUTSCHER, 1977). Note que, neste
evangelho, o autor quis deixar claro que, embora escrevesse em
grego, esta não era a língua em que Jesus se comunicava com seus
discípulos. Ele chama Maria Madalena de Mariam (forma semita do
nome) e não Maria que era a forma grega e ela, por sua vez,
responde chamando-o de Rabbouni. Agora veja que interessante o
sentido do texto hebraico/aramaico que pode vir de três formas:

(a) Rab, ou mestre — o menor grau de honra.


(b) Rabino, meu mestre — um título de maior dignidade.
(c) Rabboni, meu grande mestre — o mais honorável de todos.

Do mesmo modo, palavras de nitivamente aramaicas podem


ser vistas em expressões como “talitha koum” (Marcos 5:41), “Eloi,
lema sabactani” (Marcos 15:34) e “maran’atha” (1Coríntios 16:22).
No que diz respeito a expressões idiomáticas do hebraico ou
aramaico usadas no texto grego do Novo Testamento, temos alguns
casos interessantes. Por questão de espaço e propósito deste
capítulo, vamos lidar com apenas um deles. Lucas 15:18-22 diz:

Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu
e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu lho; trata-me como
um dos teus empregados. Levantou-se, pois, e foi para seu pai. Estando ele
ainda longe, seu pai o viu, encheu-se de compaixão e, correndo, lançou-
se-lhe ao pescoço e o beijou. Disse-lhe o lho: Pai, pequei contra o céu e
diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu lho. Mas o pai disse aos
seus servos: Trazei depressa a melhor roupa, e vesti-lha, e ponde-lhe um
anel no dedo e alparcas nos pés.

Em seu desespero, o lho pródigo pensa consigo de ir ter com


seu pai. Sua expressão “pequei contra o céu e diante de ti” é
inteiramente hebraica. Não fazia sentido, na mentalidade grega,
alguém pecar contra o céu. Neste caso, “céu” seria um eufemismo
para “Deus”. “Encheu-se de compaixão” também é um hebraísmo,
considerando que a compaixão não seria algo abstrato, como era
para os gregos, mas um sentimento “concreto” capaz de preencher
o corpo de uma pessoa.
Do mesmo modo, diferentemente do que está na tradução em
português, não é dito no original que o pai ordenou colocarem um
anel no “dedo” do lho, mas sim “na sua mão”. Ora, era em
hebraico (e não no grego comum) que se dizia colocar um anel na
mão, ao invés de colocá-lo no dedo de uma pessoa (cf. Gênesis
41:42).
Em termos de conceitos ou rede nição de signi cados, Mateus
10:28, por exemplo, traz as seguintes palavras de Jesus acerca da
alma humana: “E não temais os que matam o corpo, e não podem
matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno a
alma e o corpo.” Aparentemente, Jesus estaria fazendo eco à ideia
de alma imortal, que não é partilhada no pensamento hebraico,
pois ele descreve uma situação pós-morte em que a alma é
condenada. Na visão do Antigo Testamento, a alma deixa de existir
quando o corpo desaparece. Não existe a ideia de uma alma
queimando no fogo do inferno — isso é uma criação dos gregos
inspirados em certos conceitos do mundo persa.
O teólogo protestante Hans Wol , que lecionou por muitos anos
na universidade de Mainz, escreveu um denso estudo sobre
Antropologia do Antigo Testamento,9 no qual esclarece a palavra
hebraica nefesh, normalmente traduzida por alma, designa a
“garganta”, necessária para alimentação e a respiração. Também
pode signi car o pescoço, a parte exterior da garganta. Mas, os dois
signi cados vão traduzir o ser humano como um todo e não partes
distintas uma das outras. Wol explica que nefesh pode ser
traduzido por “alma”, mas num entendimento diferente daquele
advindo do mundo grego.
Nefesh pode ser traduzido, também, por sentimentos sempre
ligados ao emocional. Com isso entende o signi cado por “vida”
(traduzido no Antigo Testamento), mas, vida no sentido concreto, o
ser humano se tornando um ser vivente. Trata-se do ser humano
inteiro como um ser à procura de sua sobrevivência. Assim,
conclui-se que nefesh e “alma” não são termos que possam ser
intercambiados na Bíblia. Para Wol , ainda existe uma di culdade
da tradução do termo nefesh para a loso a helênica.
É com esse pano de fundo que devemos entender o discurso de
Cristo. Lembremos, ele não estaria falando em grego, mas
certamente em hebraico ou aramaico. Assim, se olharmos
atentamente o texto, observamos que Jesus não está endossando o
pensamento grego, mas questionando-o ao apresentar um conceito
mais próximo do pensamento hebraico. Ele fala de uma alma que,
juntamente com o corpo, pode perecer. No pensamento grego, a
alma nunca perece, ela vive eternamente no paraíso dos campos
elísios ou no sofrimento do inferno, chamado aqui de “tártaro”.
Mateus captou bem o sentido que Jesus queria dar, considerando
que o Mestre estaria falando em aramaico ou hebraico. Mas ao
traduzir as palavras do Senhor para o grego, o evangelista
modi cou o sentido original da palavra “alma” no mundo helênico,
dando-lhe uma conotação mais em harmonia com a doutrina do
Antigo Testamento.
Apesar disso, não se pode dizer que o grego do Novo Testamento
seja inteiramente uma espécie de “grego bíblico”, como pensavam
muitos autores do passado. Hoje se sabe que o grego
neotestamentário era um dialeto do grego clássico conhecido como
koiné, isto é, o grego “comum”. Essa variação do grego surgiu
dentro dos exércitos de Alexandre, o Grande, à medida que seus
soldados entravam em contato com outras culturas, especialmente
do Egito e da Mesopotâmia
Em termos gerais, é possível dizer que as diferenças básicas
entre o koiné e outras formas da língua grega é que ele seria um
idioma mais prático que acadêmico, colocando mais ênfase na
claridade que na eloquência. Sua gramática era mais simpli cada,
com poucas exceções em comparação ao clássico e ao ático. A
construção de sentenças, as in exões e as desinências eram
simpli cadas de modo que o grego koiné pudesse se tornar uma
linguagem do povo, um idioma de vida, e não de livros complexos.
9 WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. Trad. Antônio Ste en. São
Paulo: Hagnos, 2007.
CAPÍTULO SETE

ESCREVENDO A
PALAVRA DE DEUS

O PROCESSO DE ESCREVER

Hoje, escrever um livro, e-mail ou uma mensagem é relativamente


fácil. Fazemos isso apenas com o uso de dedos no teclado do
computador, do tablet ou do celular. No passado, o mesmo processo
era bem mais complexo e exigia muito mais esforço humano.
A realidade do texto escrito em tela é uma facilidade muito
recente da tecnologia e podemos cair no erro de pensar que
escrever uma mensagem era tão simples antes como o é nos dias de
hoje. Mesmo que alguns considerem o contexto bíblico antes dos
teclados, ainda assim podem incorrer num erro de anacronismo,
isto é, tomar uma realidade presente e projetá-la erroneamente
para o passado.
Vejamos: o papel que conhecemos hoje é, em grande parte, feito
de celulose, que é uma matéria-prima extraída de vegetais.
Ecologicamente falando, a produção em massa de papel e seu
descarte excessivo na natureza não é o melhor negócio para a
ecologia. Para fazer, por exemplo, 1 tonelada de papel são
necessários, em média, o corte de 24 árvores. A qualidade do papel
determina o tipo de madeira a ser utilizada.
É claro que o programa de re orestamento e reciclagem de papel
usado ajuda a diminuir o impacto ambiental. Porém, não
solucionam de nitivamente o problema. Por isso, nosso desa o
talvez seja o excesso e não a falta de material para escrever. Bem
diferente do passado onde a simples tarefa de mandar uma carta
exigia um grande empreendimento pessoal.
Jerônimo, que viveu no quarto século de nossa era, enumera o
processo da produção de um texto: “Aquilo que digo, que dito, que
escrevo, que corrijo, que releio”.10 Note que havia coisas que eram
escritas e outras que eram ditadas. Também havia a correção, o que
implica a existência de rascunhos. Mas cuidado com anacronismos.
O papel era caro, não se tratava de escrever, embolar o papel e jogar
no lixo (embora alguns digam que os judeus massoretas faziam isso
se a cópia da Escritura não estivesse boa). O trabalho de escrever era
meticuloso e demorado a m de se evitar muitos erros, mas como
errar é e sempre foi um elemento humano, variantes ocorriam.
O próprio Jerônimo avaliava o que seu escriba havia produzido.
Ele fala de emendare e emendatio, com o signi cado de correção e
retratação. Ele fala de sinais críticos feitos por ele mesmo e
colocados no texto do escriba, fala de anotações marginais etc.
Antes de Jerônimo, a prática de usar secretários como escribas
já era corrente, especialmente em Roma. Primeiro, temos de ter em
conta que apenas um percentual insigni cante da população sabia
ler ou escrever. As poucas crianças que iam à escola aprendiam a
escrever em cacos de cerâmica, no contexto da Ásia, e em tabuletas
de cera, no contexto de Roma (na Europa). Plínio fala de crianças
que começavam a ser incentivadas à arte de escrever pelo fato de
desenharem na madeira.
O processo era o seguinte: passava-se cera na tabuleta de
madeira e o aluno escrevia sobre a cera. Quando errava ou queria
fazer outro texto raspava-se com um estilete e começava tudo de
novo. Mesmo adultos usavam tabuletas de cera portáteis para fazer
anotações do dia a dia.
Uma análise dos costumes redacionais dos tempos bíblicos nos
dá uma boa ideia de quanto custou para o povo de Deus, no passado,
a produção da Bíblia Sagrada. De acordo com Mateus 20:2 e João
12:5, um denário era o que se ganhava por um dia inteiro de
trabalho braçal no campo. Pois bem, tendo isso em conta, imagine
que uma simples folha de papiro poderia custar até quatro vezes
mais que isso, quatro dias de trabalho para se comprar uma única
folha de papel!
Some-se a isso o preço da tinta, que também era caro, das
canetas etc. De acordo com dados da época, 450 gramas de tinta
valiam 12 denários, um conjunto de dez canetas custava 4 denários,
e um recipiente de couro, 40 denários. Dá para se perceber que com
tais preços não era possível fazer rascunhos e começar de novo
embolando o papel e jogando no lixo.
A solução encontrada foi a contratação de escribas ou copistas
que pudessem fazer o trabalho de transcrever para um papiro ou
pergaminho o conteúdo desejado por um cliente. Esse trabalho era,
a princípio, feito por escravos que dispunham de cultura e podiam
realizar a transcrição para seus senhores. Com o passar do tempo,
porém, especialmente no período romano, o ato de escrever foi
pouco a pouco se pro ssionalizando e muitos passaram a cobrar
por esse serviço.
Existe, inclusive, um decreto de Diocleciano xando os preços
máximos que poderiam ser cobrados pelos copistas11. Estes seriam
os seguintes:

Para um trabalho de excelente qualidade, 25 denários por


cada 100 linhas copiadas.
Para um trabalho de qualidade inferior, 20 denários por
cada 100 linhas copiadas.
Para um escrivão que preparasse uma petição legal, 100
linhas não podiam custar mais que 10 denários.
Um secretário particular custaria 35 dracmas extras por dia.
O valor da dracma era mais ou menos equivalente ao do
denário romano nos dias de Cristo.12

Tudo isso, é claro, fora o valor dos materiais de escrita (caneta,


tinta, papel) e as taxas governamentais de direito.

POR Q E SAR SECRETÁRIOS?

Muitos não entendem por que nos tempos antigos um homem


letrado como Paulo, Cícero ou Sêneca usaria um copista para
escrever suas cartas. Por que não escreveriam eles mesmos com sua
própria letra?
Veja o tom irônico que Cícero respondeu a um opositor jurídico
quanto ao uso de secretários para escrever suas cartas:

Você pode supor que seria uma questão de preguiça eu não escrever com a
própria mão, e se minhas palavras seriam exatamente aquilo. Eu não
posso dizer mais nada. Ademais, eu também posso detectar Alexis em sua
carta. (Cartas a Ático, 16:15. 1)

Noutra feita, o mesmo Cícero justi ca o ganho de tempo quando


se usa um secretário (ele queria dizer que era um homem ocupado):

Você pode tomar a própria caligra a de meu secretário escrevente como


um sinal de como eu sou ocupado. Eu direi a você que não há um dia
sequer que eu não faça um discurso de defesa. Então, praticamente tudo o
que eu faço ou penso eu o faço enquanto caminho. (Carta a Quinto 3, 3, 1).

Em que pese o tom anedótico do testemunho de Cícero, eis


algumas outras razões de caráter pragmático:

A maioria da população não sabia escrever, e mesmo quem


soubesse, nem sempre tinha o material de escrita à mão
(papiro, caneta e tinta). Havia uma proposital di culdade de
se encontrar esse material para venda se você não fosse um
copista. Isso, é claro, protegeria o ofício dos secretários.
Economia de tempo (você poderia escrever enquanto come
ou caminha). Neste sentido, era válida a utilização de
taquígrafos. Às vezes, o estilete (segundo Jerônimo) era para
escrever na cera e a pena para escrever no papiro ou
pergaminho (veja 2Timóteo 4:13). O estilete era mais usado
pelo taquígrafo. Jerônimo dizia: “Lingua mea stillus scribae
velocis”. “A língua é minha, mas o estilete é do escriba veloz
(ou do taquígrafo).” (Patrologia Latina, 636)
O taquígrafo era excelente na hora de anotar aulas ou
discursos. Prudêncio descreve o trabalho de um taquígrafo
chamado Cassiano como sendo um homem “hábil em
representar todas as palavras com sinais rápidos e em
acompanhar com muita prontidão qualquer discurso graças
a pontos muito leves”. Perist. IX, 23 (Patrologia Latina, LX,
435, A).
Economia de trabalho — o que escrevia era o que levava a
carta (emissário).
Escrever era uma arte não dominada com destreza por todos
(caligra a, rapidez, saber ler era diferente de “saber”
escrever bem).
Estilo de produção da época (ia escrevendo à medida que
falava, para não perder o raciocínio).
Era costume usar um pro ssional chamado amanuensis (que
trabalha com a mão). O que trabalha sozinho, sem
secretário (ou taquígrafo) como testemunha acaba errando
muito mais, o taquígrafo não liga para os erros, pois os
corrigirá depois.
Em alguns casos, em que o próprio autor escrevia na
tabuleta de cera, seria ainda necessária a gura do
amanuensis para recopiar o texto da tabuleta para o papiro
ou pergaminho e outros para duplicá-lo caso quisesse fazer
mais de uma cópia.

Os tipos de ditados (vivae vocis)


Era sempre bom ter um escriba profissional à mão, pois ele era um
gravador da época, principalmente em casos de discursos. Havia os
seguintes tipos de ditados:
Ditado muito lento — Syllabatim (ipssima verba).
Ditado lento — Verbatim.
Ditado rápido — Taquigrafia (notas tironianas) — Ipssima vox.

Neste último caso, o copista tinha um trabalho de compositor que era


supervisionado ao final pelo autor/contratador. Mesmo assim, havia
problemas: “Não ditamos com a mesma delicadeza que escrevemos,
dizia Jerônimo, pois a linguagem só pode ser embelezada se a polirmos
com a nossa mão.” Aqui temos a junção de duas citações de Jerônimo:
Ep. a Rufino 74,6 (Patrologia Latina XXII, 685) e Ep. a Damasio 21,42
(Patrologia Latina XXII 394).

MATERIAIS DE ESCRITA

Além da tabuleta de cera, o escritor mantinha ao alcance da mão


um ou dois estojos contendo o estilete (stillus ou graphium) e a
caneta (calamus). A caneta podia ser feita de pena de aves, penas
metálicas (de bronze ou de prata) e talo de cana cortada e a ada. A
tinta era geralmente preta, embora nalguns casos possa ter
degradações de tom pela sua composição. Isidoro fala da fabricação
de tinta:

A tinta atramentum é a mais escura [atrum], e seus vários tipos servem


tanto para a pintura [artística] quanto para seu uso diário [como escrita].
Sua cor, no entanto, é arti cialmente conseguida a partir da fuligem
produzida pela fumaça que lança uma na resina sobre as telhas acesas e
se adere à parede do forno. (Etymologiarum, XIX, 17), 17).

Como papel tinha-se o papiro, fabricado no Egito, e o


pergaminho, seu concorrente, cuja invenção remonta a Eumenes
II, rei de Pérgamo (197-158 a.C.). Dizem que ele foi obrigado a usar
esse novo processo porque Ptolomeu IV, rei do Egito, temendo que
o vizinho zesse uma biblioteca tão boa quanto a de Alexandria,
proibiu a exportação do pergaminho para Pérgamo. Alguns
autores, no entanto, estão colocando em dúvida essa versão ou, pelo
menos, assumindo que Eumenes não inventou o pergaminho, mas
usou uma técnica ― a de escrever sobre pele de animais ― já
conhecida antes dele.
O papel de celulose (ou bras vegetais) que conhecemos, parece
ter sido inventado na China no segundo século d.C., depois foi
aperfeiçoado pelos árabes em Samarcanda (uma cidade do atual
Uzbequistão), no começo do século 8.
E não podemos deixar de falar dos óstracos, que eram pedaços de
cerâmica (de ânforas quebradas) reaproveitadas para pequenas
inscrições (recibos, bilhetes, cartas, amuletos, maldições). Existem
25 óstracos catalogados contendo partes de seis livros do NT. Eram
espécies de talismãs e sua forma rara indica que a igreja não tinha
essa prática de modo comum. Esses óstracos datam do quarto ao
décimo terceiro século d.C.

Q EM PODERIA PAGAR?

O imperador Diocleciano xou o salário de um professor de


taquigra a (aquele que treinava os copistas desde a juventude) em
75 denários por mês, e por aluno, o de um professor primário era de
50 denários, e os de geogra a e de línguas recebiam 200 denários.13
Diferente, porém, do que se possa imaginar, os copistas não
eram a parte mais cara do processo, veja a tabela de preços que
citamos no começo desse capítulo. Havia muitos deles que
cobravam valores bem menores que os estabelecidos no edito de
Diocleciano. No Manuscrito SB XX, encontrado no Egito e datado
do segundo século, é dito que o copista cobrou apenas 12 dracmas
para copiar 4 mil linhas dos versos de Aristófanes. Os preços,
portanto, variavam muito. Sem contar que muitos talvez nem
cobrassem. Faziam tudo por uma questão de ideal, como era o caso
dos copistas do líder judeu Bar Kochba, que certamente não
cobraram por seus préstimos à causa revolucionária que ele
apregoava.
Além disso, temos evidência de que os judeus, especialmente os
rabinos e estudiosos como Paulo, utilizavam largamente os escribas
para preservar o conteúdo de seus ensinamentos e cartas. No
tratado do Sanhedrin 17 B, era proibido a um judeu instruído morar
num lugar onde não houvesse um escriba para copiar-lhe os
ensinamentos.
Ainda no Talmude, o Rabino Joshua B. Levi mencionava o
costume dos homens do Sinédrio de jejuar por 24 dias orando para
que os soferim ou copistas não cassem ricos e, em virtude disso,
perdessem o interesse em escrever. Eles não podiam enriquecer
com grandes somas. Foi graças a essa disponibilização cultural que
Paulo, mesmo sem possuir grandes recursos, poderia ter um
copista à sua disposição.
O fato de ser homem letrado não o impediria de lançar mão
desse serviço. Cícero, Marco Antônio, Bruto, Marco Aurélio são
exemplos de cidadãos romanos letrados que usaram secretários, e
por isso suas cartas saíam, às vezes, com estilo e redação bem
diferente umas das outras, mas ninguém nega que eles eram os
autores últimos dos documentos. Isso certamente explica por que a
autoria paulina das várias cartas que levam seu nome não pode ser
negada com base no fato de algumas possuírem um estilo
redacional diferente de outras.

No tempo de Augusto Cesar, um centurião de baixa patente ganhava


3.650 denários por ano, 10 denários por dia. No segundo século, uma
família de seis pessoas precisava de 1.000 dracmas por ano para comer,
vestir e pagar aluguel em Roma. Esses dados demonstram que a
aquisição de um livro seria um artigo de luxo mesmo para aqueles que
não viviam em nível de extrema pobreza.
Para tentar controlar problemas de inflação no Império Romano,
Diocleciano determinou em 301 d.C. o tabelamento de preços, incluindo
o valor máximo que poderia ser cobrado por um serviço de copista. No
mesmo documento há uma tabela máxima de custo de um pergaminho
em branco. Infelizmente, a parte que falaria do preço do papiro está
faltando no documento.14

CARTAS SEC LARES

O costume da época do Novo Testamento, quando se queria enviar


uma correspondência, era contratar um secretário que copiaria em
tábuas de madeira revestidas de cera o que o remetente queria
dizer. Era sobre a camada de cera que o secretário ou copista
escrevia com uma espécie de estilete. Essas tábuas eram chamadas
em latim de tabula, tableta ou ceraculum e foi desse objeto que
nasceu a expressão “tabula rasa” que signi ca literalmente “tábua
raspada”, e tem o sentido moderno de “folha de papel em branco”.
Ali o copista imprimia marcas simbólicas como aquelas usadas
pelos taquígrafos que conseguiam escrever em tempo real a
mensagem que era dita. Eles funcionavam como um gravador de
voz da época, podendo copiar até mesmo uma aula ou discurso
enquanto eram proferidos diante do público. Foi assim que grandes
ensinos do passado foram preservados.
Há quem diga que provavelmente Jesus se bene ciou desse
sistema de registro uma vez que ele era um rabino e havia um grupo
de discípulos em redor dele. Foi talvez assim que alguns de seus
ditos foram preservados e usados como fonte posterior no
momento em que os evangelhos foram compostos. De fato, algumas
falas de Jesus tem um tom discursivo que evidenciam a
possibilidade de que alguns de seus ditos foram preservados já
desde sua origem.

No século 2 de nossa era, Papias de Hierápolis (que, segundo uma


antiga tradição, teria sido o secretário do apóstolo João, que escreveu o
evangelho sob seu ditado) afirma que Marcos teve acesso aos ditos de
Jesus por intermédio de Pedro. Ele não escreveu tudo cronologicamente
organizado, mas procurou expor ao máximo os feitos e ditos do Senhor.
Ele também afirma que Mateus reunira os ditos de Cristo em língua
hebraica (ou aramaica), que cada um depois interpretou segundo suas
capacidades. Ao que tudo indica, essa coletânea reunida por Mateus não
seria o “Evangelho de Mateus” que temos hoje, pois este foi
originalmente escrito em grego. O mais provável é que seriam alguns
discursos e ensinos do Senhor que foram anotados em tempo real por
algum copista, quem sabe o próprio apóstolo Mateus. Segundo Papias:
Marcos, tendo se tornado o intérprete de Pedro, escreveu
acuradamente tudo o que ele lembrava. Contudo, não foi na ordem
exata que Marcos relatou os ditos ou feitos de Cristo. Pois ele nem
ouviu o Senhor nem o acompanhou pessoalmente. Por outro lado,
porém, como eu disse, ele acompanhou Pedro que proveu as
instruções necessárias [para seus destinatários], mas não com a
intenção de oferecer uma regular narrativa dos ditos do Senhor. De
qualquer forma, deve ser dito que Marcos não cometeu erros ao
escrever as coisas como ele as lembrava […] com respeito a Mateus,
este ajuntou os oráculos [do Senhor] em língua hebraica, e cada um
os interpretou o melhor que pôde.
Fragmento VI-10
No caso de uma carta, esta poderia ser ditada palavra por
palavra ou recriada a partir de um conteúdo. Um líder religioso,
por exemplo, podia pedir ao copista que zesse uma carta ao
prefeito solicitando ao imperador suprimentos para o templo de
Minerva, em Roma. Neste caso, ele não ditou as palavras que o
copista deveria usar, mas determinou seu conteúdo que,
obviamente, era-lhe apresentado antes do envio para a conferência
de sua forma nal. Como tudo era, em princípio, escrito na cera,
havia condições hábeis de apagar o registro, raspando a camada de
cera e modi cando uma palavra ou até uma sentença inteira.
Não havia uma padronização exata do tamanho de cartas, isso
variava muito. Só para se ter uma ideia, as cartas de Cícero variam
de apenas 22 até 2530 palavras com média de 295 palavras por carta.
No caso de Sêneca, essa média pula para 995 palavras por
correspondência.15
Em ambos os casos, do ditado verbatim, isto é, palavra por
palavra, ou do conteúdo, aquele que encomendou o documento
torna-se seu autor e, após a conferência, envia ao destinatário. O
autor é aquele que encomendou a carta, nem sempre assinava
embaixo do texto, mas o autenticava com um selo (sinete). Outra
maneira de autenticar o documento era escrever o prefácio e/ou a
conclusão e supervisionar a qualidade da cópia ― caso desejasse
que o mesmo texto fosse enviado para diferentes destinatários.
Logo, nos antigos tempos, autor e escritor não eram sinônimos
perfeitos.
O ensaísta romano Valério Marcial (20-104 d.C.) menciona um
bom secretário copista que teve: “Sua mão é tão rápida quanto a
fala e antes que a língua pare sua mão já terminou”.

CARTAS APOST LICAS

A maior parte do Novo Testamento é composta por cartas (também


chamadas de epístolas) que foram enviadas às mais diferentes
pessoas e comunidades cristãs. No Novo Testamento, a forma
literária dominante é a carta ou epístola. Tecnicamente, carta é
uma forma de comunicação menos literária e mais pessoal, cuja
nalidade é manter o relacionamento entre o remetente e o
destinatário. Ela surge sempre de uma situação determinada e fala
para uma realidade especí ca. Uma epístola é mais artística na
forma e é projetada como um tratado autoexplicado para um
público bem extenso. Contudo, a distinção entre ambas pode ser de
forma obscura. Os escritos de Paulo parecem colocar-se entre as
duas formas. Assemelha-se a uma carta em Filemon e, em
Romanos, a uma epístola. Hoje em dia, as cartas possuem forma
literária particular (data, endereço, saudação, contexto, conclusão
e nome).
Paulo é o autor da maioria delas. Com base no contexto
apresentado dos tempos romanos quanto ao preparo e envio de
uma correspondência, imagine o grande investimento que tiveram
os primeiros cristãos para que pudéssemos ter hoje várias epístolas
na relação de livros inspirados da Bíblia Sagrada.
Existe um libelo contra os cristãos datado dos tempos do
imperador Décio, que ilustra as formas de produção de um
documento nos tempos antigos. Nele há dois tipos de letras
indicando dois redatores, e, entre ambas, a assinatura daquele que
solicitou o documento, Hemas. Seu nome é assinado com letras
garrafais para não haver dúvidas quanto à autoria, nem deixar
linhas órfãs no documento.
O libelo dos tempos de Décio ilustra duas passagens de Paulo, a
primeira seria Gálatas 6:11, que diz: “Vede com que grandes letras
vos escrevo de próprio punho”, e a outra é 1Coríntios 16:20,21:
“Todos os irmãos daqui vos saúdam! Cumprimentai-vos uns aos
outros com o costumeiro beijo santo! Eu, Paulo, escrevi esta
saudação de próprio punho. Se alguém não ama o Senhor, seja
amaldiçoado. Agora, pois, Maranatha!”
A evidência de que Paulo usava secretários para compor suas
cartas pode ser vista no nal da epístola aos Romanos, que diz: “Eu,
Tércio, que redigi esta carta, também vos saúdo no Senhor”
(Romanos 16:22).
Pedro também usou o mesmo sistema em sua primeira carta
apostólica que, de acordo com 1Pedro 5:12, foi escrita por Silvano,
também conhecido por Silas, que fora igualmente secretário de
Paulo de acordo com Atos 15:22,30-32.
Veja ainda a preocupação de Paulo exposta no nal da epístola
aos Tessalonicenses: “A saudação é da minha própria mão, de mim
mesmo, Paulo, este é o sinal [de autenticidade] em todas as
epístolas; assim escrevo” (2Tessalonicenses 3:17).
Além da assinatura, ou de um trecho escrito com a letra do autor
(poderia ser a introdução ou a conclusão), havia outros meios de
garantir a idoneidade da correspondência contra qualquer tipo de
fraude, um deles era fazer com que o responsável pela entrega da
carta fosse o mesmo que a redigiu sob a orientação do remetente. Os
que o conheciam como secretário imediato do autor validariam a
con ança no documento que ele trazia.
Outra forma de se evitar fraudes era o uso de selos de argila ou
lacres que fechavam o conteúdo impedindo sua abertura a menos
que fossem rompidos. O selo com sua marca de impressão na argila
trazia uma espécie de carimbo do proprietário que encomendou o
manuscrito. Isso facilitava saber se o destinatário de direito era o
primeiro a ler aquilo após ter sido selado, ou se alguém teria
violado o conteúdo.
10 Existe uma variante no texto em latim: “Hoc ipsum quod loquor, quod dicto, quod scribo
noutros manuscritos: “quod scribitur”, “está escrito”), quod emendo, quod relego”. Gal. III,
6, 10 in Patrologia Latina, XXVI, 433.

11 Bischo , Latin Palaeography: Antiquity and the Middle Ages [1990] 182

12 C.f. http://www.oxfordbiblicalstudies.com/article/opr/t94/e553 acesso em 3 de abril de


2020.

13 Arns, 65.

14 Rex Winsbury: The Roman Book. Books, Publishing and Performance in Classical Rome.
(Bristol Classical Press, London/Nova Iorque k, 2009), p. 19 e 20.

15 Joseph R. Dodson, David E. Briones, (ed.). Paul and Seneca in Dialogue. Ancient
Philosophy & Religion, 2. Leiden; Boston: Brill, 2017, p. 68.
CAPÍTULO OITO

A TRANSMISSÃO DO
TEXTO BÍBLICO

DE S INSPIRA E PRESERVA

De acordo com o próprio testemunho bíblico alusivo ao Antigo


Testamento, os manuscritos inspirados foram cuidadosamente
preservados desde sua origem. Eram os sacerdotes que cavam a
cargo dessa tarefa (Deuteronômio 17:18; 31:24-26). Isso não signi ca,
contudo, que não houve perda de algumas partes. O ponto em
destaque é que o que chegou até nós foi fruto de proteção divina e
grande empenho por parte das primeiras gerações, primeiramente
de judeus e depois de cristãos.
Houve períodos, por exemplo, em que os desvios espirituais do
povo tornaram a Palavra de Deus quase desconhecida do povo de
Israel. Deus, no entanto, preservou o conteúdo essencial dos textos
por meio de homens e mulheres sinceros, pois era importante que
sua mensagem sobrevivesse através dos tempos (2Reis 22:8;
2Crônicas 15:3).
Em tempos de reforma e renovação espiritual os textos eram
trazidos ao povo, copiados e, às vezes, compilados num novo
formato que preservava a essência do que fora originalmente dito,
sem alterações comprometedoras.
Depois do cativeiro babilônico, o texto bíblico continuou a ser
preservado pelos sacerdotes.
Por meio de Esdras e seus sucessores, sob a orientação do
Espírito Santo, todos os livros do Antigo Testamento foram
reunidos em um cânone, e seus textos foram purgados de erros e
preservados até os dias no ministério terreno do nosso Senhor.
Naquele tempo, o texto do Antigo Testamento estava tão
rmemente estabelecido que mesmo a rejeição judaica de Cristo
não pode perturbar o texto.
Jesus Cristo em pessoa validou esse trabalho de preservação ao
reconhecer o texto do Antigo Testamento de seu tempo como
Palavra de Deus e a rmar que nem um j ou til passaria dela até que
tudo se cumprisse (Mateus 4:4 e 5:18). Então vieram os apóstolos e
demais seguidores de Cristo que produziram o Novo Testamento e
contribuíram para a continuidade da transmissão textual das
Escrituras Sagradas.
O texto do Antigo Testamento comumente usado entre os judeus
durante o ministério terreno de Cristo era inteiramente con ável.
Jesus disse: “Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra
passem, nem um jota ou um til se omitirá da lei, sem que tudo seja
cumprido” (Mateus 5:18). “E é mais fácil passar o céu e a terra do
que cair um til da lei” (Lucas 16:17). A mesma providência divina
que preservou o Antigo Testamento preserva o Novo Testamento.
Implícito na “grande comissão”, que tem aplicação à Igreja de
Cristo de todos os tempos, está a promessa de que a igreja sempre
possuirá o registro infalível das palavras e obras de Jesus. Cristo
declarou: “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão
de passar” (Mateus 24:35; Marcos 13:31; Lucas 21:33).
É importante dizer que todos os manuscritos originais da Bíblia,
isto é, aqueles que saíram diretamente das mãos dos autores
inspirados, desapareceram. Esses textos originais são tecnicamente
chamados de autógrafos, porém, nenhum fragmento foi
preservado. O que temos hoje são cópias de cópias do original.
A m de estabelecer com base nas cópias como seria o texto
original, os especialistas utilizam-se de áreas técnicas como a
paleogra a, papirologia e a crítica textual, os quais têm realizado
um excelente trabalho de recuperação do texto bíblico e
con rmação de seu conteúdo.
A preservação da Bíblia através dos séculos pode ser descrita
como a mescla entre milagre, fé e coragem. Sua história envolveu o
sacrifício de muitos homens e mulheres, piedosos, mas não
ingênuos, pessoas que eram inteligentes demais para se arriscarem
por algo que não fosse verdadeiro. Vale lembrar que vários deles
faziam parte da elite cultural da época. Ao darem sua vida pela
Bíblia, testemunharam que realmente acreditavam na veracidade
desse livro e no direito universal de poderem examiná-lo.
Um exemplo seria John Wycli e (1324-1384), doutor em Teologia
pela Universidade de Oxford. Ele foi duramente perseguido pelo
governo por ter sido o primeiro homem a traduzir toda a Bíblia
para o inglês. Traduziu o Novo Testamento, em 1380; depois, o
Antigo Testamento, em 1382. Curiosamente, 44 anos depois de sua
morte, seu corpo foi desenterrado e queimado sob a acusação de ter
sido um herege por defender o livre acesso à Palavra de Deus.
A seguir, veio Jan Hus ou John Huss (1373-1415), reformador
tcheco e reitor na Universidade de Praga, na Boêmia (região da
República Tcheca). Ele pregou a Bíblia como autoridade máxima
para todos os homens, e por isso foi condenado à fogueira no dia 6
de julho de 1415. Conta-se que Huss morreu cantando um hino em
grego que dizia Kyrie eleison, “Senhor, tem misericórdia”.
William Tyndale (1484-1536) foi outro que jurou dar a Bíblia ao
povo. Graduado em 1515 na Universidade de Oxford, estudou grego
e hebraico e elaborou uma tradução popular da Bíblia que lhe
custou a própria vida. No dia 6 de outubro de 1536 foi estrangulado,
por ordem do rei, e logo em seguida foi queimado em público. Suas
últimas palavras antes de morrer foram: “Senhor, abre os olhos do
rei da Inglaterra.”
O ano de 1456 marcou na Europa o início de uma nova era para a
humanidade. Neste ano, Johannes Gutenberg inventou a imprensa
(na verdade, os tipos móveis) e, como não poderia deixar de ser, o
primeiro livro impresso foi justamente a Bíblia Sagrada. Esse ato
revolucionou o modo como os livros eram feitos e mudou as
estruturas do mundo ocidental. Gutenberg era um cristão devoto,
cujo principal intuito, segundo ele, era “multiplicar a Bíblia,
permitindo que todos pudessem lê-la”.
A história da preservação manuscrita do texto bíblico pode ser
dividida em etapas para facilitar a compreensão dessa trajetória
desde os tempos em que o texto foi produzido até os nossos dias. Em
suma, podemos apontar os seguintes períodos de desenvolvimento
histórico da crítica textual, com destaque para o Novo Testamento:
1) reduplicação (até 325); 2) padronização (325-1500); 3) cristalização
(1500-1648); e 4) crítica e revisão (1648 até o presente).

De acordo com o escritor Frederick Rudolph, no livro The American


College and University [A faculdade e a universidade americana], estima-
se que 87% das primeiras 119 faculdades fundadas nos Estados Unidos
foram criadas por cristãos com o fim de educar jovens cristãos na Palavra
de Deus e preparar missionários. Tanto é que mais de 25% dos 1855
primeiros formandos de Yale, Princeton, Harvard e Columbia tornaram-se
ministros do Evangelho. Esses dados nos mostram que a Bíblia e a
universidade são dois parceiros que podem andar de mãos dadas, sem
nenhum problema.

P BLICIDADE J DAICA

Conta-se uma antiga lenda de que Deus havia reunido no céu


representantes de todos os reinos a m de escolher um povo para si.
A todos o Altíssimo fazia uma única e certeira pergunta: “Se eu
escolher vocês para ser o meu povo, o que vocês fariam por mim?”
Os sumérios disseram que fariam uma grande torre em
homenagem a Deus. Os egípcios se propuseram a erguer pirâmides
colossais e os gregos a criar complexos sistemas losó cos para
descrever as qualidades divinas.
Cada povo apresentava sua proposta até que, por m, vieram os
hebreus. “E quanto a vocês?” Perguntou o Altíssimo a um grupo de
judeus que mal conseguia erguer o rosto de tamanha vergonha.
“Bem”, disseram eles, “não temos a engenharia dos
mesopotâmicos, nem a arquitetura dos egípcios, muito menos os
complicados raciocínios dos gregos. Mas somos um povo pastoril
acostumado com o campo e que ama contar histórias. Se o Senhor
nos escolher, diremos a todos quem o Senhor é.” Não deu noutra: o
Messias acabou nascendo judeu.
É claro que esta é apenas uma anedota e, como tal, pode ser
criticada por não corresponder exatamente à realidade histórica.
Porém, ela encerra uma importante característica dos judeus ―
eles são contadores de histórias, e por isso a Bíblia foi con ada a
eles, pois tratava-se da história mais bela do mundo, a história do
amor de Deus, e todos deveriam ouvir falar nela.
Mesmo antes do nascimento de Cristo, os líderes do povo se
preocupavam muito com a transmissão do conteúdo bíblico de
geração para geração. Quando, ao voltar da Babilônia, percebeu-se
que muitos judeus haviam perdido a uência que tinham na língua
hebraica, os anciãos prepararam comentários e paráfrases do texto
escriturístico em língua aramaica que pudessem ser lidos e
compreendidos pelo povo em geral. O importante era que ninguém
casse sem entender o Santo Livro.
Mais tarde, com a expansão da cultura grega pelo mundo, judeus
helenistas que viviam em Alexandria viram ali o desa o e a
oportunidade de compartilhar com povos não judeus os
ensinamentos da Santa Palavra. Sendo o grego a língua franca da
época, encontraram aí ocasião de traduzir o Antigo Testamento
para o idioma dos gregos e assim espalhar o judaísmo pelo mundo.

PERÍODO DE RED PLICA O (AT 325)


Após a morte de Alexandre, o Grande, em 323 d.C., a cidade de
Alexandria se tornou um grande centro de estudos e conhecimento
intelectual. Sua biblioteca era a maior do mundo antigo e sua
cultura rivalizava-se com a de Atenas.
Sendo assim, os intelectuais alexandrinos se dispuseram a
colecionar ali todos os livros produzidos no mundo inteiro, e seria
importante que eles estivessem escritos em grego para que todos os
letrados pudessem ler. O grego, lembramos, era a língua universal
nesse período. Foi neste contexto que se abriu a oportunidade para
que judeus moradores da cidade produzissem a versão grega das
Escrituras chamada Septuaginta (LXX). Ela foi produzida entre 280
e 150 a.C.
Ao que tudo indica, o fato de os cristãos usarem largamente a
LXX fez com que os judeus se empenhassem na elaboração de
outras traduções gregas do Antigo Testamento. Hoje conhecemos
pelo menos três delas que poderiam ser traduções diretas ou
reelaborações de outras traduções já existentes, que remontam a
este período, cujos responsáveis foram os seguintes:

Áquila de Sinope (ca. 130 d.C.) ― foi estudante do rabino


Áquiba e desenvolveu uma tradução bastante literal do texto
hebraico que muitas vezes se tornava ininteligível aos
falantes da língua grega. Acredita-se que essa versão de
Áquila foi muito usada nas sinagogas em lugar da LXX. Os
cristãos, contudo, não a apreciavam muito, embora
Jerônimo e Orígenes falassem muito bem dela.
Símaco, o ebionita (ca. 170 d.C.) ― este fez uma tradução
bastante el do Antigo Testamento, mas num grego
elegantíssimo. Apesar do título de “ebionita” dado por
Eusébio, acredita-se que, na verdade, ele seria um
samaritano convertido ao judaísmo.
Teodócio (ca. 180 d.C.) ― um prosélito convertido ao
judaísmo que conseguiu produzir uma versão apreciada
tanto por judeus como por cristãos. Há quem pense que ele
se empenhou numa revisão da LXX tomando por base o
texto hebraico.
De todas essas obras apenas fragmentos e citações
sobreviveram até os nossos dias. Por essa razão, muitos
acadêmicos apostam na existência de outras versões, das
quais nem tomamos conhecimento.

Ao mesmo tempo em que várias traduções eram feitas, os


estudiosos de Alexandria tentavam restaurar antigos textos de
poetas e pensadores gregos que corriam o risco de se perder. Assim
nasceu com eles o primeiro trabalho de crítica textual de que temos
notícia. Munidos de várias cópias, sua intenção era restaurar os
textos originais como saíram das mãos dos discípulos de Sócrates,
Platão e Aristóteles. A destruição da Biblioteca com seus 700 mil
volumes, ocorrida no século 7 d.C., trouxe um tremendo prejuízo
intelectual para a humanidade.
Com o passar dos anos, Alexandria também se tornou um reduto
de cristãos convertidos do judaísmo helenista, posição que se
conservou até a chegada dos conquistadores mulçumanos no século
7 d.C. Assim, é possível que Alexandria tenha se tornado também o
centro da atividade intelectual cristã, na tentativa de preservar o
texto bíblico antes de 325 d.C., embora não encontremos nenhuma
crítica textual do Novo Testamento durante esse tempo. O período
foi mais de reduplicação dos manuscritos do que de avaliação de
textos.
Enquanto isso, judeus que moravam na Galileia, de 70-100 d.C.,
efetuaram diligente trabalho textual no Antigo Testamento. De
igual modo, copistas cristãos, próximos ao ano 100 d.C., muito
provavelmente zeram cópias de manuscritos do Novo Testamento
que queriam que fossem preservados. Provavelmente, o texto
original (chamado de autógrafo) serviu como fonte dessa
duplicação.
Até o presente momento, nenhuma dessas cópias chegou até
nós, de modo que sua existência, embora provável, ainda é
hipotética. A qualidade de uma cópia, é claro, dependia da
competência e pro ssionalismo do escriba que a produzia. Um
trabalho dessa natureza não saía barato. A partir de 150 até 325 d.C.,
a chance de um copista cristão usar um texto original como padrão
diminuiu acentuadamente. Então, as cópias de autógrafos deram
lugar a cópias de outras cópias.
Mas não pense que era um período calmo para a Igreja. Além de
enfrentarem oposições esporádicas e mais localizadas, os cristãos
amargaram duas grandes perseguições durante o reinado de Décio
e Diocleciano. Possuir uma cópia da Bíblia ou do Novo Testamento
tornou-se um crime punido com a morte. Centenas de cópias foram
con scadas e destruídas pelos romanos de modo que, por pouco,
nenhum exemplar da Bíblia teria sobrevivido até os nossos dias.
Como consequência dessa condição hostil, alguns cristãos se
viram obrigados a copiar as Escrituras de modo apressado usando
quaisquer manuscritos que possuíam. Muitos deles eram copistas
amadores, pois os pro ssionais, além de cobrarem caro, não
queriam correr o risco de serem mortos por ordem imperial. Numa
situação como esta, cava mais fácil surgirem erros nos
manuscritos que eram copiados.
Enquanto isso, os cristãos de Alexandria, seguindo o exemplo de
outros copistas da cidade, iniciaram, entre 200 e 250 d.C., um
trabalho pioneiro de comparação textual entre os manuscritos. O
exemplo foi seguido em outras partes do império, de modo que se
criou um trabalho básico de crítica textual, quando, então, se deu a
perseguição sob o imperador Décio (249-251 d.C.).
Um destaque desse período foi a obra de Orígenes (185-284 d.C.)
em Alexandria. Ele escreveu cerca de cinquenta volumes da
chamada Hexapla que, devido à enorme quantidade de páginas,
jamais viria a ser publicada integralmente. A Hexapla (i.e., “sexto”)
foi uma edição do Antigo Testamento em seis diferentes versões
alinhadas lado a lado. Seu objetivo era estabelecer o conteúdo
bíblico do Antigo Testamento de um modo minimamente cientí co
(dentro do que podia se considerar ciência na época). Ela consistia
no texto hebraico do Antigo Testamento, da sua transliteração em
letras gregas e as quatro versões gregas que circulavam naquela
época: a de Áquila, a de Símaco, a Septuaginta e a tradução de
Teodócio.
Além da Hexapla, Orígenes escreveu vários comentários sobre o
Novo Testamento que zeram dele uma espécie de crítico textual.
Sua obra teve signi cativa in uência no texto do Antigo
Testamento e em diversos manuscritos importantes, como o Códice
Sinaítico. Mas hoje temos apenas fragmentos do que originalmente
contava com mais de 6 mil páginas.

PERÍODO DE NIFICA O TE T AL (325-


1500)
Com a suposta conversão do imperador Constantino para o
cristianismo, a Igreja entrou numa nova fase de conforto social,
desfrutando o m das perseguições. Tal situação in uenciou em
certa medida o processo de cópia dos manuscritos bíblicos.
Uma das primeiras atitudes do imperador romano foi solicitar
ao teólogo e historiador Eusébio de Cesareia que providenciasse a
cópia de 50 exemplares da Bíblia, possivelmente para compensar a
lacuna deixada pela perseguição de Diocleciano que destruiu
centenas de manuscritos bíblicos (Vita Constantini, IV, 36–37).
Inúmeros manuscritos foram destruídos durante as
perseguições e tiveram que ser substituídos. O resultado foi uma
ampla escassez de manuscritos do Novo Testamento que se tornou
ainda mais aguda quando cessou a perseguição. Foi quando a
cristandade pôde novamente se engajar livremente na atividade
missionária que houve um tremendo crescimento em ambos os
lados das igrejas existentes e no número de novas igrejas. Também
ocorreu uma súbita demanda de muitos volumes dos manuscritos
do Novo Testamento em todas as províncias do Império (Aland, O
Texto do Novo Testamento, p. 65).
Este foi um período de padronização textual no qual
especialmente o Novo Testamento começou a ser copiado por
escribas pro ssionais nanciados pelo império. O trabalho era feito
com cuidado e delidade a partir de manuscritos que sobreviveram
à destruição ordenada por Diocleciano.
O texto de uma região era copiado por escribas dessa região.
Assim, podemos perceber uma gradual integração dos textos,
resultante da comparação entre diferentes manuscritos e a efetiva
obtenção de um tipo textual que não tivesse tantas variantes. Os
textos locais foram, aos poucos, cedendo lugar a um texto único.
Quando Constantino transferiu a sede do império para a cidade
que levou seu próprio nome (Constantinopla), seria bem razoável
supor que tal cidade haveria de dominar o mundo de fala grega, e
que seus textos escriturísticos haveriam de tornar-se os textos
predominantes para a igreja. Foi o que ocorreu, sobretudo tendo
em mente o patrocínio do imperador, que mandou produzir cópias
cuidadosas do texto do Novo Testamento.
Em decorrência do precedente aberto por Constantino,
aumentou-se cada vez mais o número de manuscritos copiados de
modo mais pro ssional e cuidadoso. Todavia, revisões o ciais,
planejadas com o máximo cuidado, eram relativamente raras, de
modo que não procede a rmar que houve manipulação textual por
parte do império ou mesmo da cúpula da igreja. Prova disso reside
no fato de que grandes ensinos eclesiásticos da época jamais
tiveram apoio escriturístico para suas alegações, como a assunção
de Maria, a intercessão dos santos ou o celibato dos sacerdotes.
As revisões ou recensões textuais podem ser de nidas, pelo
menos genericamente, como a apreciação crítica de uma obra
literária ou de um texto. No caso dos manuscritos bíblicos é a
alteração consciente e sistemática de uma cópia em grego ou latim
seguindo princípios precisos e com um objetivo bem de nido ―
corrigir imperfeições. Pode-se, por exemplo, planejar a adaptação
de um texto grego existente para torná-lo mais semelhante ao
original hebraico, ou numa versão em que o estilo foi adaptado para
torná-lo mais moderado e adaptado às características linguísticas
de uma determinada época ou região.
Visto que assim se desenvolveu a padronização do texto, houve
pouca necessidade de classi car, avaliar e criticar os primeiros
manuscritos do Novo Testamento. O resultado foi que o texto
bíblico permaneceu relativamente intocado por todo o período.
Mais ou menos no m dessa época, tornou-se possível a total
padronização do texto, havendo ilimitado número de exemplares
mais ou menos idênticos, mediante a introdução de papel barato e
da imprensa. Os exemplares da Bíblia impressos em papel
tornaram-se mais abundantes depois do século 12. Por volta de 1454,
Johann Gutenberg desenvolveu o sistema de tipos móveis para a
imprensa, e assim abriu a porta para os esforços favoráveis a uma
crítica mais cuidadosa do texto, durante a era da Reforma
Protestante.

Em termos reais, o Novo Testamento é facilmente o escrito antigo


melhor atestado, em termos da enorme quantidade de documentos, de
espaço de tempo entre os eventos e os documentos, e da variedade de
documentos disponíveis para sustentá-lo ou contradizê-lo. Não há nada
nas evidências dos antigos manuscritos que comprometa tal
credibilidade e integridade de texto (RAVI ZACHARIAS, Can Man Live
Without God?, 1994. p. 162).
Uma página (folio) do Papiro 46, uma das mais extensas e antigas cópias do Novo Testamento.

O PERÍODO DAS IMPRESS ES (1500-1648)

No período da Reforma, após a invenção da imprensa, o texto


bíblico entrou num período de formatação grá ca, assumindo a
forma impressa em lugar da manuscrita. Envidaram-se esforços no
sentido de se publicarem textos impressos da Bíblia com a maior
precisão possível. Com frequência esses textos eram publicados em
vários idiomas ao mesmo tempo, incluindo edições bilíngues como
a “Poliglota complutense” (1514-17), a “Poliglota de Antuérpia”
(1569-72), a “Poliglota de Paris” (1629-45) e a “Poliglota de Londres”
(1657-69). Publicou-se também nesse período (ca. 1525) uma edição
modelo do Texto Massorético, sob a direção editorial de um certo
judeu chamado Jacob ben Chayyim, que se convertera ao
cristianismo. O texto se baseava em manuscritos que datavam do
século 14. Assim, surgiram cópias da bíblia hebraica, tanto em
forma manuscrita como impressa.
O cardeal Francisco Ximenes (1437-1517), da Espanha, intentou
lançar uma primeira edição impressa do Novo Testamento grego,
que haveria de sair do prelo em 1502. Conquanto fosse o primeiro
Novo Testamento impresso, não foi o primeiro a ser colocado no
mercado. O papa Leão X não emitiu o imprimatur senão em março
de 1520, o que causou um atraso no lançamento.
Neste ínterim, surgiu na Europa, em 1516, o chamado Textus
Receptus (ou Texto Recebido), uma conhecida versão grega do Novo
Testamento que, como o próprio nome diz, arvorava ter sido uma
dádiva de Deus aos homens. A denominação “Textus Receptus” tem
sua origem no prefácio da edição de 1633 (dos irmãos Bonnaventura
e Abraão Elzevir), que diz em latim: Textum ergo habes nunc ab
omnibus receptum, in quo nihil immutatum aut corruptum damus
(Tens, portanto, o texto agora recebido por todos, no qual nada
oferecemos de alterado ou corrupto).
O Textus Receptus trata, na verdade, de uma série de impressões,
em grego, do Novo Testamento, que serviu de base para diversas
traduções dos séculos 16 ao 19, como a Bíblia de Lutero, a Bíblia King
James, e para a maioria das traduções do Novo Testamento da
Reforma Protestante, inclusive a tradução portuguesa de João
Ferreira de Almeida.
A primeira compilação desse texto foi executada pelo lósofo e
humanista holandês Erasmo de Roterdã que, em 1514, já havia
combinado com o impressor Johann Froben, da Basileia, de fazer
um lançamento deste livro. Ele então viajou no ano seguinte, a m
de procurar manuscritos gregos que pudessem car em paralelo
com uma tradução latina feita por ele mesmo.
Embora os manuscritos que Erasmo encontrou precisassem de
revisão, isso não o impediu de prosseguir em seu trabalho. Em
tempo recorde, sua primeira edição foi publicada em março do 1516.
Mas a pressa resultou em numerosos erros na obra, tanto de
natureza tipográ ca como mecânica. Além disso, os textos nos
quais Erasmo se baseou não haviam passado por uma revisão
crítica, de modo que não eram muito con áveis. A própria
receptividade dada à edição de Erasmo do Novo Testamento em
grego teve natureza mista (METZGER, 1968).
Por causa disso, em apenas três anos após a primeira tiragem foi
necessário publicar uma nova edição. E, depois dela, várias outras
foram publicadas tanto pelo próprio Erasmo, como por Beza,
Estienne, entre outros. Deve-se ressaltar, no entanto, que, apesar de
todas as pesquisas e revisões dos textos gregos nas diversas edições
do Textus Receptus, entre a primeira edição de Erasmo, em 1516, e a
edição dos Elzevir, em 1633, é possível encontrar uma diferença de
menos de 300 palavras em 140.000 que compõem o Novo
Testamento, ou seja, apenas 0,002% do total.
Roberto Estéfano, impressor da corte real em Paris, publicou o
Novo Testamento grego em 1546, em 1549, em 1550 e em 1551. A
terceira edição (1550) foi a primeira edição que continha um aparato
crítico, ainda que fossem meros quinze manuscritos. Essa edição
baseou-se na quarta edição de Erasmo, e foi a base do Textus
Receptus. Sendo publicada, essa terceira edição se tornaria o
principal texto da Inglaterra. Em sua quarta edição, Estéfano
divulgou sua conversão ao protestantismo e implantou a divisão do
texto em versículos.

O PERÍODO DE CRÍTICA E DE REVIS O (1648


AT O PRESENTE)

No encerramento da era da Reforma, a Bíblia passou por um


período de críticas e revisões textuais, procurando ao máximo a
apresentação impressa do texto bíblico conforme saiu das mãos de
seus autores.
De 1648 a 1831, temos uma reunião e classi cação de manuscritos
bíblicos seguindo padrões acadêmicos de identi cação textual.
Brian Walton (1600-1661) editou a Poliglota de Londres, incluindo os
textos paralelos da edição de Estéfano, de 1550. Essa obra poliglota
continha o Novo Testamento em grego, latim, sírio, etíope, árabe e
persa (os evangelhos). Nas anotações apareceram os vários textos
paralelos então recentemente descobertos, como o Códice
Alexandrino (A) e um aparato crítico feito pelo arcebispo Usher.
Em 1675, John Fell (1625-1686) publicou uma edição anônima do
Novo Testamento grego em Oxford que trazia evidências, pela
primeira vez, das versões gótica e boaírica. Então, em 1707, John
Mill (1645-1707) reimprimiu o texto de Estéfano, de 1550, e
acrescentou cerca de 30 mil variantes tiradas de quase 100 outros
manuscritos. Essa obra foi uma contribuição monumental para os
estudiosos subsequentes, porque lhes proporcionou uma base
ampla de evidências textuais con áveis.
Uma importante contribuição veio do trabalho editorial de
Johann Jakob Griesbach (1745-1812). Ele classi cou os manuscritos
do Novo Testamento em três grupos (alexandrinos, ocidentais e
bizantinos), e lançou os alicerces de todo o trabalho subsequente do
Novo Testamento grego. Em sua obra, Griesbach estabeleceu 15
cânones de crítica textual. Em seguida ao lançamento da primeira
edição do seu Novo Testamento (1775-1777), outros estudiosos
publicaram comparações entre diferentes manuscritos que
aumentaram enormemente a disponibilidade de evidências
textuais oriundas dos Pais da Igreja, das primeiras versões e do
texto grego.
Dois estudiosos de Cambridge, Brooke Foss Westcott (1825-1901)
e Fenton John Anthony Hort (1828-1892), também se destacam por
suas contribuições ao estudo do texto do Novo Testamento. Juntos,
eles publicaram em 1881 e 1882 a obra The New Testament in the
Original Greek [O Novo Testamento no original grego], em dois
volumes.
O texto dessa obra cou à disposição de uma comissão de revisão
que produziu o English Revised New Testament [Novo Testamento
inglês revisado], em 1881. O emprego de seu texto na versão inglesa
revisada aumentou a aceitação de seu texto crítico. No entanto,
alguns estudiosos defensores do Textus Receptus de Erasmo não
pouparam esforços na argumentação contra o texto de Westcott e
Hort.
Uma famosa hipótese textual chamada “teoria genealógica” foi
apresentada por Westcott e Hort à comunidade acadêmica. Eles
propunham dividir os manuscritos bíblicos em quatro tipos:
siríacos, ocidentais, neutros e alexandrinos. O tipo siríaco de texto
inclui os textos siríacos propriamente ditos, os antioquinos e os
bizantinos, como A, E, F, G, H, s, v, z, e a maior parte dos
minúsculos. O tipo ocidental de texto para Westcott e para Hort
tinha raízes na igreja síria, mas havia sido levado mais longe, na
direção do Ocidente. De acordo com Westcott e Hort, houve um
ancestral comum (‫ )א‬na raiz do texto neutro e do alexandrino, que
teria sido primitivo e muito puro.
Hoje, as mais recentes comparações dos diferentes manuscritos
do Novo Testamento estão disponíveis nas obras de Eberhard
Nestlè, Novum Testamentum Graece e no The Greek New Testament,
da United Bible Societies, editada por K. Aland, entre outros. Em
geral, essas obras fazem uma classi cação minuciosa dos
manuscritos e questiona a autoridade do Textus Receptus.
O Institut für Neutestamenttlche Testforshung (INTF) em
Münster, Alemanha, responsável pela produção do texto crítico
Nestlè-Aland e do Novum Testamentum Graecum — Editio Critica
Maior, já tem mais de 5,8 mil manuscritos gregos catalogados, fora
os lecionários, traduções antigas e outros documentos
recentemente descobertos que faltam ser catalogados. Se
juntarmos todo material do Antigo e Novo Testamentos, incluindo
as cópias hebraicas, Manuscritos do Mar Morto, citações da
Patrística e antigas versões, podemos dizer que temos perto de 50
mil manuscritos que ajudam a testemunhar a con abilidade na
transmissão do texto.
A partir do m do século 19, com a publicação do texto de
manuscritos mais antigos do Novo Testamento, a maioria das
traduções bíblicas usa os chamados textos críticos, isto é,
estabelecidos por meio da crítica textual, não sem controvérsia
daqueles que ainda preferem o Textus Receptus. O Textus Receptus
guarda grande semelhança com o Texto Bizantino (ou Texto
Majoritário), por isso às vezes são tratados como se fossem o
mesmo texto.
O Novo Testamento grego, normalmente, traz uma folha com o
chamado Aparato Crítico, que constitui um conjunto de sinais
especí cos, indicando as mudanças que copistas, algumas vezes
intencionalmente, porém, muitas outras despercebidamente,
introduziram no texto que estavam copiando. É papel primordial
da Crítica Textual detectar estas variantes textuais, “puri cando” o
texto das omissões, mudanças ou acréscimos que por acaso tenham
aparecido.
CAPÍTULO NOVE

DO PERGAMINHO
À INTERNET

TRADI ES E MAN SCRITOS

Antes que a Bíblia fosse iniciada, os hebreus contavam com uma


tradição oral passada de pai para lho. Contudo, mesmo com o
advento da Revelação escrita dada aos profetas, a tradição oral
permaneceu em uso no judaísmo e isso perdurou até os tempos de
Cristo.
O problema estava em que a tradição oral não era uma fonte
inquestionável de verdades reveladas, pois ela estava mais sujeita à
distorção que o texto escrito. E distorções poderiam ocorrer mesmo
num povo acostumado a repassar verdades orais de geração em
geração. Ademais, com o m do cativeiro Babilônico, tradições
desnecessárias e até contraditórias ao texto bíblico permearam a
religião dos judeus por intermédio de grupos como os escribas e
fariseus.
Os rabinos citavam a tradição como autoridade para interpretar
a lei. Em contraste com isso, Jesus falou por sua autoridade como
legislador. A expressão “eu, porém, vos digo” foi várias vezes usada
pelo Mestre (cf. Mateus 5:21-44).
Certa feita, ele disse aos guias do judaísmo de seu tempo:

[…] Negligenciando o mandamento de Deus, guardais a tradição dos homens.


E disse-lhes ainda: Jeitosamente rejeitais o preceito de Deus para guardardes a
vossa própria tradição. Pois Moisés disse: Honra a teu pai e a tua mãe; e:
Quem maldisser a seu pai ou a sua mãe seja punido de morte. Vós, porém,
dizeis: Se um homem disser a seu pai ou a sua mãe: Aquilo que podereis
aproveitar de mim é Corbã, isto é, oferta para o Senhor, então, o dispensais de
fazer qualquer coisa em favor de seu pai ou de sua mãe, invalidando a palavra
de Deus pela vossa própria tradição, que vós mesmos transmitistes; e fazeis
muitas outras coisas semelhantes. (Marcos 7:8-13, cf. Mateus 15:1-9)

Assim, nos dias de Cristo, havia uma tensão entre a autoridade


da tradição oral e a Escritura revelada por Deus. A aristocracia
sacerdotal formada pelos saduceus controlava o acesso à biblioteca
do Templo e aos escritos sagrados. Eles eram, contudo, liberais em
muitos aspectos e sua autoridade era a mais ameaçada pela tradição
oral. Por outro lado, grupos como dos fariseus eram
majoritariamente compostos por classes mais simples do povo —
esses, sim, investiam na tradição oral como meio de dominarem e
determinarem o comportamento das massas.
Com o passar do tempo, a ideologia da tradição oral continuou
persistindo no judaísmo rabínico mesmo depois da destruição do
Templo e de Jerusalém no ano 70 d.C. pelas milícias romanas. Mas
seu comportamento era um tanto contraditório, pois eles diziam
reconhecer a autoridade da palavra Escrita de Deus. Contudo, a voz
de um rabino vivo tinha valor igual ou superior aos textos
proféticos do Antigo Testamento.
O cristianismo, coincidentemente, também emergiu das classes
sociais mais simples de Israel — justamente aquelas dominadas
pelos rabinos e fariseus. Seus seguidores, no entanto, foram por
alguma razão motivados a valorizar mais a Palavra escrita e, em
virtude disso, escreveram os textos que hoje chamamos de Novo
Testamento.
Sua produção literária, porém, contou com um fator novo: eles
rapidamente adotaram o Códice (ou Códex ) — uma forma de livro
diferente do rolo usado pelos judeus e que se assemelha muito aos
cadernos que usamos em nossos dias. Códices com folhas
retangulares costuradas ao meio começaram, então, a surgir no
primeiro século d.C. e se tornaram muito comuns em meados do
quarto século.
A vantagem do códice, além da facilidade de transporte, é que
ele poderia comportar muito mais escritos que o rolo de
pergaminho. Além disso, era mais fácil descobrir uma passagem
folheando o texto que o desenrolando até achar a citação desejada.
No ato de conter uma coleção de rolos num só caderno, o Códice
também de niu a organização e a ordem de um conjunto de livros
que mais tarde formariam o cânon. Assim, a Bíblia tornou-se aos
poucos o livro que hoje conhecemos e admiramos.
Um importante códice bíblico é o manuscrito denominado
Códex Sinaiticus, datado de meados do século 4 d.C. Ele foi
encontrado por Constantin Tischendorf, em 1844, no monastério
de Santa Catarina, aos pés do monte Sinai (daí o nome pelo qual
veio a ser conhecido). Tischendorf era um dedicado biblista e
pesquisador que vivia à caça de antigos manuscritos bíblicos. Este,
em especial, foi descoberto por acidente, quando um monge por
pouco não o lança ao fogo para aquecer a lareira do monastério.
Originalmente, o caderno tinha 1,4 mil páginas, das quais
restaram apenas 800 — a totalidade do Novo Testamento e a metade
do Antigo —, todas escritas em grego. O manuscrito hoje está na
Biblioteca Britânica (embora algumas seções estejam no Egito,
Rússia e Alemanha).
Outro importante documento datado da mesma época que o
Códex Sinaiticus é o Códex Vaticanus (ou 1209) — outro dos mais
antigos manuscritos existentes da Bíblia Grega (Antigo e Novo
Testamentos). Ele está guardado na Biblioteca do Vaticano desde,
pelo menos, o século 15, e cou conhecido por estudiosos ocidentais
por causa da correspondência entre Erasmo de Roterdã e os
prefeitos da Biblioteca do Vaticano. A erudição atual considera este
um dos melhores manuscritos bíblicos ao lado do Códex Sinaiticus.
O judaísmo, por sua vez, demorou muito para adotar os códices
para transcrever seus textos sagrados. Os mais antigos que temos
em hebraico datam do século 10 d.C. Mas ainda hoje o rolo de
pergaminho é preferível nas leituras litúrgicas usadas nas
sinagogas.
Entre as versões digitais, chama a atenção do pesquisador o fato
de que até manuscritos bíblicos, como os pertencentes à coleção do
Mar Morto, estão atualmente disponíveis na internet graças a um
projeto digital que se amplia para contemplar outros manuscritos
importantes relacionados à Bíblia Sagrada.
O leitor judeu da Torá geralmente aceita e usa versões digitais,
no entanto, ele estabelece uma hierarquia, a rmando que o livro
impresso será sempre superior à versão digital, a qual servirá tão
somente como uma ferramenta adicional à leitura do texto
impresso, não como um substituto. No caso do uso litúrgico, o livro
manuscrito em pergaminho copiado conforme os preceitos
rabínicos é elemento insubstituível.

O ROLO E O C DE

Um exame estatístico dos fragmentos de manuscritos bíblicos que


temos referentes ao Novo Testamento demonstra uma predileção
dos primeiros cristãos pelos chamados códices, ou seja, livros em
forma de cadernos que vieram em substituição aos rolos usados
tanto pelos judeus como pelos demais leitores greco-romanos.
A diferença básica entre os dois objetos, o rolo e o códice (ou
códex), estaria em seu formato e na praticidade de um em relação
ao outro. O rolo seria uma extensão feita de papiro ou pergaminho,
que permitia ao escriba fazer suas cópias ou anotações, enquanto o
códex era feito de folhas separadas e costuradas no dorso no
formato de um caderno.
O rolo também era costurado em uma extensão máxima de vinte
folhas unidas uma após a outra. Quem diz isso é Plínio, que viveu
no primeiro século d.C.16 Contudo, considerando que existem rolos
de papiro e pergaminho bem maiores que isso, tal informação pode
referir-se aos tipos mais comuns vendidos em branco para copistas
em geral, e não aos livros depois de produzidos.
O Evangelho de Lucas, por exemplo, requeriria um rolo três ou
quatro vezes maior que isso. Bruce Metzger, falecido especialista
em manuscritos bíblicos, argumentava a partir de “um acúmulo de
evidências artísticas, arqueológicas e literárias” que as
escrivaninhas chegaram tarde, não se tornando populares até o
oitavo ou o nono séculos.17 Realmente caria estranho escrever
num rolo em cima de uma mesa.

O modo de um escriba escrever um livro ou documento era bem


diferente do modo como escrevemos hoje, sentados sobre cadeiras e
apoiados em mesas ou escrivaninhas. Na Antiguidade, os escribas não
estavam acostumados a escrever sobre esse tipo de mobília. Quando
tinha de fazer uma anotação curta, de no máximo uma página, o escriba
a fazia em pé numa tabuinha de cera ou em uma folha de papiro ou
pergaminho. Ele geralmente ficava de pé e escrevia enquanto segurava o
material de escrita em sua mão livre. No caso de uma tarefa mais
extensa, como a cópia de um longo manuscrito, aí sim, ele se sentava,
ocasionalmente no chão, ou num banquinho ou banco, apoiando o rolo
sobre uma tabuleta que ficava apoiada em seus joelhos.
Às vezes, para não correr o risco de danificar o material, ele copiava as
folhas em separado e depois as costurava em um longo rolo manuscrito.
Porém, o mais comum era escrever em rolos pré-montados, ou seja, o
papiro ou pergaminho já era vendido em rolos preparados de fábrica
para receber as letras e a tinta do texto a ser anotado.
Na maioria das antigas culturas letradas, os rolos de
pergaminhos ou papiro eram o formato mais comum para a
produção de extensos documentos. Somente depois vieram os
textos em formato de cadernos ou códices, costurados e
encadernados. Aliás, é justamente por causa do formato mais
antigo dos rolos escriturísticos que até hoje várias línguas, como o
português, referem-se ao livro pelo nome de “volume”, que vem do
latim volumen, e quer dizer “aquilo que se enrola”.
Outros objetos de escrita como tabletes de argila, madeira ou
pedra também foram usados, mas com muitas desvantagens se
comparados aos primeiros. Deste modo, o que temos é uma
evolução dos meios de escrita desde o passado mais remoto até os
dias atuais.
A pergunta que se faz, no entanto, é por que os cristãos tiveram
uma preferência por este formato, o códice, e ao que tudo indica, o
escolheram como padrão para suas cópias da Bíblia Sagrada? Uma
provável resposta estaria no fato de que o códice era muito mais
fácil de ser transportado de lugar para lugar do que o rolo. A função
do primeiro, considerando o aspecto missional do cristianismo
(levar a mensagem de Jesus a todo mundo), era justamente ser
passado de mão em mão, de cidade em cidade. Diferente do
segundo que poderia car con nado a uma sinagoga ou biblioteca
enquanto durasse.
Além disso, o formato de caderno proporcionava uma facilidade
maior no momento de encontrar um texto. No caso do rolo, ele
deveria ser enrolado e desenrolado de um canto para o outro, a m
de encontrar uma passagem requerida. Já o segundo, bastava ser
folheado.
O uso do códice trouxe ainda uma vantagem adicional ao
cristianismo que foi a diferença entre sua Bíblia ― que agora
continha o Novo Testamento ― e a Bíblia hebraica, que só continha
o Antigo Testamento. Para os cristãos, a Palavra de Deus deveria ser
anunciada e não con nada dentro de uma sinagoga, embora os
judeus também fossem bastante missionários. Por isso não foi
difícil substituir um formato pelo outro.
Aliás, devido à preferência imediata dos cristãos pelos códices,
houve quem dissesse que foram estes os criadores deste novo
formato de livro. Isso, porém, não parece ser verdade. A forma
básica do códice foi inventada em Pergamon no século 1 a.C. A
rivalidade entre as bibliotecas de Pérgamo e Alexandria resultou na
suspensão das exportações de papiro do Egito. Em resposta, os
bibliotecários de Pérgamo desenvolveram o pergaminho feito de
pele de carneiro.
Por causa do alto custo para se produzir pergaminho ― muito
mais caro que o papiro ― tornou-se necessário aperfeiçoar o
sistema de rascunhos e, depois de ter o texto pronto, escrevê-lo nos
dois lados, o que seria impossível no formato de rolo.
Embora nos faltem mais detalhes dessa transição, o fato é que
gregos e romanos usavam com bastante frequência uma espécie de
caderno feito de tábuas reutilizáveis de madeira cobertas de cera
para rascunhos, anotações e outros escritos informais. Você já viu
detalhes sobre esse uso no Capítulo 7, no qual falamos do uso de
secretários por parte do apóstolo Paulo.
O primeiro uso romano registrado do códice para a produção de
obras literárias data do nal do primeiro século d.C., quando
Marcial experimentou o formato. Naquela época, o pergaminho era
ainda o meio dominante para obras literárias e assim permaneceria
até o quarto século de nossa era.
Nesse sentido, a história da disseminação do códice como
modelo de suporte de escrita está diretamente associada à difusão
do cristianismo. Os monges e padres da Igreja Cristã primitiva
empenhavam-se em conservar tanto as obras da cultura judaico-
cristã quanto da tradição clássica greco-romana, reproduzindo
cópias minuciosas em pergaminhos que eram costurados em
blocos, formando o códice. Este foi o principal veículo de difusão
escrita do cristianismo e de conservação da cultura clássica.
Uma evidência da preferência cristã pelo formato de códice pode
ser vista na comparação entre o achado de duas bibliotecas: a
primeira seria a da Vila dos Papiros, soterrada nos escombros da
cidade de Herculano desde o ano 79 d.C. A segunda seria a
biblioteca de Nag Hammadi, no Egito, sepultada desde cerca do ano
390 d.C., que continha livros escritos por sectários do cristianismo.
Na biblioteca de Herculano, todos os textos encontrados estavam
em rolos, enquanto na biblioteca de Nag Hamadi estavam em
códices.

PODEMOS CONFIAR NO TE TO?

Antes de se tornar comum a impressão com tipos móveis (a partir


do século 15 d.C.), os escritos originais da Bíblia, assim como suas
cópias, eram feitos à mão. Por isso, são chamados de manuscritos
(do latim: manu scriptus, “escritos à mão”). O manuscrito bíblico é,
portanto, uma cópia das Escrituras, inteira ou em parte, feita à
mão, distinta de uma cópia impressa. Os manuscritos bíblicos
foram preparados principalmente na forma de rolos e códices.
Com isso em mente, seria interessante conhecer como o texto
bíblico foi mantido e preservado até nós e como podemos saber seu
conteúdo, considerando que os originais se perderam talvez para
sempre. Lembre-se de que somente em 1455, com a invenção da
imprensa por Johannes Gutenberg, foi que as cópias manuscritas
deixaram de ser produzidas. Até então, todos os livros da
humanidade, inclusive a Bíblia Sagrada, deveriam ser copiados à
mão e isso, é claro, poderia gerar algum tipo de incompatibilidade
entre o texto original e as cópias disponíveis ao leitor.
Imagine, por exemplo, que um leitor estivesse ditando um texto
para um copista que estivesse cansado. Ele poderia dizer “Zeca
Roceiro” e o copista anotar “Zé Carroceiro”. Percebeu a diferença?
Considerando que a cópia feita poderia se tornar o texto-chave para
outra cópia posterior, o erro iria aos poucos se perpetuando nas
cópias seguintes. Imagine agora que centenas de copistas pudessem
cometer erros como este. O número de contradições ou variantes
textuais iria aumentar exponencialmente. Se tivéssemos os
originais do livro copiado, seria fácil resolver o problema. Bastaria
comparar o original com a cópia, veri car onde houve a
discrepância e corrigi-la. Mas se tudo que temos são cópias e mais
cópias, a tarefa se torna um pouco mais difícil de ser executada.
Logo, surge em meio a esta realidade a seguinte pergunta: como
podemos ter a certeza de que esses livros foram bem preservados se
não temos mais o seu original? Como nos certi car de que as cópias
foram dedignas e que os copistas não alteraram tragicamente o
conteúdo dado por Deus para o autor inspirado? Veja que se houve
um erro crasso, aparentemente caria difícil corrigi-lo se não
temos os originais para fazer uma comparação. Como então
trabalham os especialistas neste sentido?
Existe uma especialização muito importante para o estudo dessa
parte que é a chamada crítica textual. Teremos mais adiante uma
parte exclusivamente dedicada à essa disciplina. O que você verá
aqui, portanto, é apenas uma introdução com o m de familiarizá-
lo com o assunto. Mas, em suma, o que signi ca “crítica textual”?
Em primeiro lugar, é importante esclarecer que a palavra
“crítica” ou “criticismo”, usada neste contexto, não possui um
senso de negatividade ou de acusações contra a Palavra de Deus.
Tecnicamente, o criticismo bíblico seria uma referência simples ao
trabalho de acadêmicos que procuram se aproximar do texto
bíblico, avaliando criticamente seus aspectos literários cujo
objetivo é compreender melhor seu signi cado e descobrir seu
texto original.
A crítica textual é um ramo da lologia18 que tem a nalidade de
se aproximar, o máximo possível, da forma inicial de um texto
cujos manuscritos originais se perderam. Ela procura, portanto,
através de rigorosas e minuciosas técnicas, restituir o que seria sua
forma original, ou seja, aquela que saiu das mãos do autor
principal.
Ela também é chamada de baixa crítica ou crítica documental,
pois estuda igualmente a preservação ou alteração de antigos textos
ao longo dos anos. Tudo isso, repetimos, visando recuperar os
originais com base na documentação atual, ou seja, nas cópias
disponíveis. Já a Alta Crítica tem como objetivo não apenas a
recuperação do texto em si, mas também outros aspectos como
descobrir a autoria ou o contexto no qual ele foi produzido.
Pois bem, uma tremenda vantagem do texto bíblico é a
quantidade imensa de cópias que ele possui se comparado a outros
clássicos da Antiguidade. Só para você ter uma noção, temos apenas
dez cópias das Guerras gaulesas de Júlio César (58-50 a.C.), sendo
que a cópia mais antiga data de 1000 anos depois da obra original.
Vinte cópias da História romana de Tito Lívio (59 a.C. a 17 d.C.), com
800 anos depois de sua morte. Sete cópias das Histórias de Plínio, o
moço (61-113 d.C.), com mais de 750 anos depois dele, e apenas duas
cópias de Histórias e crônicas de Tácito (55-120 d.C.), também
datadas de séculos depois do original.
Agora, veja a diferença: somente o Novo Testamento grego
possui mais de 5,8 mil cópias feitas entre os séculos 2 e 16, sendo que
os fragmentos mais antigos foram copiados poucas décadas após a
morte do autor inspirado. Atualmente, alguns especialistas em
crítica textual já anunciam a existência de prováveis cópias de
Lucas e Marcos mais antigas que o Papiro 52, datado do ano 150 d.C.,
hoje disposto na Biblioteca de John Rylands.
Tais números tornam-se ainda mais espantosos se incluirmos as
quase 900 mil citações bíblicas feitas pelos Pais da Igreja, e as
versões antigas em latim, siríaco, copta e outras línguas
mediterrâneas que juntas somam entre 20 mil e 25 mil cópias
manuscritas do Novo Testamento. Isso signi ca que somente o
Novo Testamento tem 20 mil vezes mais manuscritos que a média
dos autores da Antiguidade Clássica. Foi por isso que Isaac Newton,
conforme o testemunho do Richard Watson, teria dito em seu
tempo: “Há mais marcas indeléveis de autenticidade na Bíblia que
em qualquer história profana.”19
16 História Natural 13, 77.

17 Bruce M. Metzger, “When Did Scribes Begin to Use Writing Desks?” in: Historical and
Literary Studies: Pagan, Jewish, and Christian, NTTS, ed. Bruce Metzger, vol. 8 (Grand
Rapids: Eerdmans, 1968), p. 123-34.

18 Filologia é o estudo rigoroso dos antigos documentos escritos e de sua transmissão, com
o m de recuperar, estabelecer, interpretar e editar esses textos na forma original como
saiu das mãos de seu autor primário.

19 Fato relatado pelo Dr. Robert Smith, falecido mestre do Trinity College, a seu aluno
Richard Watson, como algo que Newton teria expressado verbalmente ao escrever seu
Comentário sobre Daniel. Apology for the Bible. Londres: 1806, p. 57. Livro disponível em
PDF em https://archive.org/stream/twoapologiesonef00watsiala#page/56/mode/2up acesso
em 16/04/2020.
CAPÍTULO DEZ

CRÍTICA TEXTUAL DO
NOVO TESTAMENTO

Pelo que vimos até aqui, é fato que não possuímos mais os
autógrafos da Bíblia Sagrada, isto é, os textos originais, conforme
saíram da pena dos escritores inspirados. Mas isso não deve ser
motivo de perplexidade para a fé de ninguém. É claro que os
críticos tomaram esse fato para colocarem em dúvida a
con abilidade do texto que possuímos, contudo, precisamos levar
em conta algumas questões de ordem histórica.
Em primeiro lugar, leve-se em conta que material no qual se
escrevia não era tão resistente como gostaríamos, eles não
possuíam a diversidade de papéis que conhecemos hoje. O mais
comum deles, o papiro, era frágil, que logo se desgastava com a
leitura e o manuseio fazendo com que os textos fossem
obrigatoriamente recopiados.
A princípio, conforme você viu no capítulo 9, estas cópias eram
feitas em rolos de papiro e, mais tarde, em códices em formato de
cadernos. Nalguns momentos optou-se por escrever tudo junto de
forma contínua, como você também já estudou neste livro. Os
manuscritos gregos escritos todos com letras maiúsculas
receberam o nome de unciais, e os escritos somente com letras
minúsculas de códices minúsculos.
Havia ainda os chamados lecionários, uma coletânea de textos
bíblicos compilados num livreto que serviam para o uso litúrgico.
Depois começaram a aparecer mais cópias em pergaminho ou peles
de animais que a princípio eram evitados por serem muito mais
caros (os primeiros copistas cristãos tinham de trabalhar com
parcos recursos).
Some-se a tudo isso as repetidas perseguições que os cristãos
sofriam e que, certamente, causou destruição de muitos
exemplares que possuíam. Assim, é provável que os cristãos
primitivos tenham lido e relido os originais até que eles se
gastassem, desfazendo-se por completo e fossem, necessariamente,
substituídos por cópias feitas à mão. Foi, portanto, uma
circunstância natural que causou o desaparecimento dos originais,
e não uma espécie de negligência ou ação tendenciosa por parte da
igreja cristã primitiva.

CONFERINDO O TE TO

É justamente para se recuperar a forma mais próxima de um texto


antigo cujo original se perdeu no tempo que surge a crítica textual,
uma especialização que longe de ser hostil à Bíblia Sagrada (como
poderia sugerir o substantivo “crítica”) é uma ferramenta muito
importante para con rmar a boa preservação do texto.
Normalmente, os especialistas em crítica textual costumam
dividir os manuscritos bíblicos existentes em grupos de famílias.
Noutras palavras, pelo tipo, procedência e estilo é possível dizer se
um texto foi copiado na Europa, na Ásia ou no norte da África. A
nalidade dessa classi cação foi descobrir a possível origem de
algumas variantes e detectar quais seriam os manuscritos mais
antigos, pois estes teriam, teoricamente, maior semelhança com os
originais. Embora nem sempre o fato de ser mais antigo indique
que tal manuscrito seria melhor. Deste modo, são quatro as
principais famílias de manuscritos:

a) Bizantina, com sede em Antioquia.


b) Ocidental, com sede em Roma.
c) Alexandrina, com sede em Alexandria.
d) Cesareense, com sede em Cesareia.

Esse procedimento técnico e o incrível número de manuscritos


existentes facilitam bastante o trabalho dos críticos textuais em
busca da forma original das Escrituras Sagradas. Seu método
investigativo, semelhante ao de um detetive policial, consiste em
selecionar e comparar pacientemente as diversas versões, famílias
ou cópias existentes anotando os erros, as modi cações acidentais
ou involuntárias dos copistas que poderiam eventualmente
comprometer o conteúdo do texto bíblico.

DISCREP NCIAS?
Em anos recentes, Bart D. Ehrman, professor na Universidade de
Chapel Hill, tem posto em dúvida a con abilidade da transmissão
do Novo Testamento, a rmando que o número de discrepância dos
manuscritos seria de 400 mil. Este número, comparado às 135 mil
palavras do texto grego do Novo Testamento, faz o autor desa ar a
veracidade textual da Bíblia, dizendo que temos mais variantes
textuais (isto é, contradições entre os manuscritos) que o texto
propriamente dito.
Mas, espere um pouco! Chamar as variantes textuais de
contradições não é uma equiparação precisa entre dois termos. O
que Barth não menciona é que a maioria destas variantes são
elementos redacionais pequenos e sem nenhum comprometimento
com o conteúdo original. São erros de troca de letras, ordem de
palavras, a substituição de um nome próprio por um pronome
pessoal, coisas dessa natureza.
Atualmente, uma boa parte dos especialistas em crítica textual
do Novo Testamento admite que 95% a 99% do texto original podem
ser recuperados a partir da comparação entre os antigos textos.
Enquanto a já citada Ilíada de Homero tem 764 linhas de texto ainda
disputadas, o Novo Testamento ― a despeito do montante
tremendamente maior de cópias ― conta com apenas quarenta
linhas dúbias. Mesmo assim, nenhuma delas traz qualquer
comprometimento a uma doutrina ensinada pelo cristianismo.20
Essa comparação é importante por vários motivos, primeiro
porque a Ilíada é o segundo clássico grego mais bem atestado em
número de manuscritos, o que confere ao Novo Testamento o
primeiro lugar inconteste. Além disso, enquanto 5% da Ilíada são
textualmente dúbios, apenas 1% do Novo Testamento pode ser
assim classi cado. Contudo, é estranho que não haja em relação à
obra de Homero o mesmo ataque e descon ança que vemos em
relação ao Novo Testamento. Infelizmente, o que aparenta ser um
arrazoado acadêmico pode con gurar-se um preconceito contra a
Bíblia Sagrada.
Ainda sobre a Ilíada, acrescente-se o fato de que, quando esse
trabalho de colação textual, isto é, comparação de cópias com
cópias na tentativa de reconstruir o texto original, foi
primeiramente feito por Bolling nos anos 1940,21 conheciam-se
apenas 643 cópias manuscritas do texto homérico. Hoje, o número
de manuscritos catalogados é maior que isso. Mesmo assim, desde
aquele tempo até os trabalhos mais recentes, preserva-se entre os
especialistas em manuscritos gregos a ideia de que é praticamente
impossível reconstituir o texto original da Ilíada a partir de um
arquétipo e por um conjunto de nido de famílias de manuscritos.22
Isso é bem diferente dos resultados obtidos pelo mesmo trabalho
realizado em relação ao Novo Testamento. Tal comparação mostra
como a crítica textual da Bíblia tem chegado a resultados muito
mais animadores do que qualquer dos mais famosos clássicos da
humanidade.
Outro elemento menos técnico que poderíamos mencionar em
favor da transmissão dedigna do texto bíblico seriam as pequenas
incongruências históricas que o texto apresenta. São elementos
periféricos, contudo vale a pena exempli car alguns deles: João
20:1 diz que Maria Madalena (aparentemente sozinha) foi ao
sepulcro de Jesus; já Mateus 28:1 diz que Maria Madalena estava
acompanhada de outra mulher também chamada Maria; e Marcos
16:1-2 diz que eram Maria, mãe de Jesus, Maria Madalena e Salomé
as mulheres que foram para ungir o corpo de Cristo.
Outro exemplo seria o da cura de Bartimeu. Jesus curou dois ou
um cego em Jericó? À primeira vista, parece que existe uma
confusão entre as narrativas, pois os evangelistas Mateus e Marcos
citam a cura de dois cegos, e Lucas cita a cura de um cego. Outras
dúvidas existem no texto: a nal, a cura ocorreu quando Jesus
entrou ou saiu de Jericó? (cf. Mateus 20:29-34; Marcos 10:46-52 e
Lucas 18:35-43).
O ponto que nos interessa neste momento não é predicar sobre
tais incongruências, mas tomá-las como argumento a favor da
transmissão do texto sagrado. A nal, considerando que a acusação
de muitos céticos é de que o texto bíblico foi “editado” com o passar
do tempo distanciando-se cada vez mais do seu original, era de se
esperar que, assim sendo, essas discordâncias textuais fossem
“corrigidas” pelos copistas a m de fazer o texto soar menos
problemático aos leitores. Ou seja, tais diferenças entre os relatos
tenderiam a desaparecer com o tempo, pois a igreja medieval
censuraria as cópias discordantes fazendo um texto o cial ― o que
na verdade nunca existiu. Isto, porém, não aconteceu, de modo que
o texto foi preservado pelos copistas em sua essência como estava, a
despeito de qualquer embaraço redacional que pudesse conter.
Correções mínimas foram feitas pelos copistas, mas não a ponto de
descon gurar o texto tornando-o irreconhecível. Tais variantes são
facilmente reconhecíveis. Portanto, é possível ― desde o ponto de
vista da crítica textual ― tomar a versão bíblica e saber que temos
um texto 90% igual ao que saiu das mãos do autor inspirado e que
nenhuma das incongruências são determinantes para colocar em
dúvida a legitimidade do texto transmitido.
Um elemento pouco observado no que diz respeito ao processo
de cópias e que também merece ser comentado é o papel dos
monges copistas medievais. Já em meados do 3º século, graças à
in uência de homens como Orígenes, Antão e Pacômio, muitos
religiosos cristãos foram gradualmente se retirando dos grandes
centros e se organizando em grupos isolados no deserto que vieram
a se tornar os famosos mosteiros medievais. Sua vida ali, isolados
de tudo e de todos, consistia em orações, plantio (para sua própria
subsistência) e reprodução manuscrita de livros que iam desde os
clássicos gregos e latinos até à Bíblia Sagrada.
Considere-se que este era um período de muitas guerras,
principalmente com exércitos bárbaros que atacavam
constantemente o império romano. Tanto o é que a transmissão do
mundo clássico para a Idade Média se deu com a queda de Roma
ocidental em 476 d.C. Os mosteiros, contudo, eram geralmente
poupados pelos exércitos que atravessavam o deserto porque, além
de não possuírem riqueza e não oferecerem qualquer tipo de reação
a soldados armados, serviam de posto de paragem às milícias que se
utilizavam de sua água, sua comida e até de sua medicina uma vez
que muitos monges eram também enfermeiros. Com isso, muitas
cópias manuscritas foram preservadas naquela terra de ninguém,
sem interferência de Roma ou ameaça bárbara. Os monges viam-se
livres apenas para copiar, plantar e orar. Foi um trabalho
inerrante? Certamente que não, os copistas às vezes erravam. Mas
por que não pensar que a Providência Divina usou esse contexto
para preservar cópias bíblicas para a posteridade?

TIPOS DE ERROS
Havia muitas preocupações na Antiguidade quanto à cópia e
reprodução do manuscrito, pois o autor não teria nenhum controle
dos textos derivados de seu original. Em seu De viris illustribus [Dos
homens ilustres], Jerônimo traduziu uma nota originalmente de
autoria de Ireneu de Lion que dizia: “Tu que transcreverás este
livro, eu te conjuro, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo e de sua
vinda gloriosa, na qual haverá de julgar os vivos e os mortos:
confronta o que tiveres copiado, corrige-o com cuidado nos
exemplares que tiveres escrito. Transcreve também do mesmo
modo esta súplica e coloca-a em tua cópia.”23 Esse pano de fundo
nos ajuda a entender a advertência de Apocalipse 22:18-20.
Por outro lado, o copista também se alegrava de chegar ao nal
do livro e pedia perdão por algum equívoco. O manuscrito Pasisinus
Gr. 633 traz ao m este colofão: “Perdoem-me, por favor, se eu me
equivoquei no acento agudo ou grave, no apóstrofo, no espírito
fraco ou forte, e assim Deus salvará a todos vocês.” Um outro texto
diz: “Como os peregrinos se alegram ao ver a pátria, assim também
os escribas [ao verem] o nal de um livro.”24
Os erros podem ser de natureza consciente ou inconsciente.
Algumas vezes, o escriba sem perceber saltou uma palavra ou
“comeu” uma letra. Em outras situações, a mudança foi deliberada
para harmonizar um texto com o outro, para fazer uma adaptação
doutrinária, litúrgica ou ainda para “corrigir” o autor inspirado. Os
erros resultam em diferentes tipos de variantes textuais.
Muitos manuscritos eram escritos numa forma escrita contínua,
sem espaço entre as palavras, o que tornava relativamente fácil
confundir alguns termos. Veja essas frases em português, seguindo
o modelo de escrita contínua dos manuscritos gregos:
CONHECIUMHOMEMCHAMADOZECARROCEIRO.
Note que podemos ler: “ZECA ROCEIRO” ou “ZÉ
CARROCEIRO”.

Outro exemplo:

ENCONTREIMECOMAMADOCASTELOBRANCO.

Poderia signi car:


ENCONTREI-ME COM AMADO CASTELO BRANCO.
ou
ENCONTREI-ME COM AMA DO CASTELO BRANCO.
Foi justamente uma situação assim que causou determinada
textual na redação de Romanos 6:5. Em muitos manuscritos está a
conjunção ΑΛΛΑ, que se lê “mas”. Noutros, o copista confundiu a
repetição natural da letra lambda (ΛΛ) com a letra mên (Μ),
fazendo que o texto casse com “juntos” (ΑΜΑ) ao invés de “mas”.
Vejamos agora alguns exemplos de erros mais comuns:

Em 1Coríntios 5:8 Paulo diz que os cristãos deveriam tomar


parte em Cristo, o cordeiro pascal, e que não deveriam mais
comer o “fermento velho, o fermento da maldade e da
perversidade”. Ora, a última palavra, perversidade, em grego
é ponêras, que alguns copistas confundiram com porneias,
imoralidade sexual.
Apocalipse 22:14, em alguns manuscritos, traz: “Bem-
aventurados os que lavam suas vestes (makarioi hoi
plunontes tas stolas autôn)”, enquanto em outros temos:
“Bem-aventurados os que guardam os seus mandamentos
(makarioi hoi poiountes tas entolas auton)”. Como se vê, a
semelhança é grande e difícil decidir, neste caso, qual é a
leitura correta.
Também em Apocalipse 1:5 alguns manuscritos trazem
lousanti, “lavou-nos de nossos pecados”, enquanto outros
trazem lusanti, “livrou-nos de nossos pecados”.
Em João 17:15, o Códex Vaticanus cometeu uma omissão na
frase de Cristo “não peço que os tires do mundo, mas que os
guardes do mal”. Ele omitiu acidentalmente as palavras
“mundo… do”, de modo que a oração cou estranhamente:
“Não vos peço que os tires do mal”.

Códex Vaticanus contendo o texto citado de João 17:15

A imagem acima ilustra o texto grego completo. A parte


entre colchetes, na tradução abaixo do texto grego, foi a que
cou de fora. O exemplar que o escriba copiava tinha
provavelmente esse arranjo de linhas, então ele confundiu e
saltou uma linha inteira, resultando na redação que
acabamos de ver. No mesmo manuscrito temos ainda um
outro erro de ditogra a (cópia não intencional de uma frase,
palavra ou expressão); Ele está em Atos 19:34. No Códex
Vaticanus a frase “Grande é Artemis dos Efésios” aparece
duas vezes, enquanto nos outros manuscritos, apenas uma
vez.
Marcos 9:29 tem um acréscimo por questões de prática
litúrgica: a evidência textual aponta que no grego Jesus
apenas disse: “Esta casta só sai por meio de oração”, os
copistas acrescentaram “e jejum”, pois isso re etia seu estilo
de piedade devocional.

Algumas mudanças litúrgicas encontram-se principalmente nos


lecionários que eram antigos livrinhos pessoais ou públicos
contendo uma colecção de leituras recomendadas para o culto
cristão ou judaico de um determinado dia ou ocasião. Os erros que
aparecem nestes livrinhos são pequenas alterações feitas no início
de uma passagem ou um texto resumido em uma frase. Alguns
pensam que foi assim que surgiu a famosa doxologia nal do Pai
Nosso que não está nos melhores manuscritos (outros pensam que
foi por uma anotação marginal). Noutras palavras, a oração
original de Jesus termina com “… e não nos deixes cair em
tentação, mas livrai-nos do mal”. A parte que diz “porque teu é o
reino, o poder e a glória para sempre” quase certamente não foi dita
por Cristo.
Erros oriundos de tentativas de harmonização podem ser vistos
em textos como Lucas 11:2-4 e Mateus 6:9-13, ou em Atos 9:5,6, que
se alterou a m de car mais em acordo literal com Atos 26:14-15. Do
mesmo modo, algumas citações do Antigo Testamento foram
ampliadas em alguns documentos para se harmonizarem com
maior precisão à LXX (cf. Mateus 15:8 com Isaías 29:13, em que a
expressão “este povo” foi acrescentada). As mudanças históricas e
factuais às vezes eram introduzidas por escribas bem-
intencionados. João 19:14 foi alterado em alguns manuscritos, de
modo que neles se lê hora “terceira” em vez de “sexta”, e Marcos
8:31, em que “depois de três dias” foi alterado para “no terceiro dia”,
em alguns manuscritos. As mudanças sincréticas resultam da
combinação ou da mistura de duas ou mais variantes, de modo que
se cria um único texto, como provavelmente é o caso de Marcos 9:49
e Romanos 3:22.
Um caso curioso de erro por escrita contínua ocorreu no Códex
Bezae: “Examinais as escrituras porque julgais ter nelas a vida
eterna e são elas mesmas que pecam contra mim”. O copista leu
AIMARTYROYSAI (testemunham) e confundiu com
AMARTANOYSAI (pecam).

CASOS MAIS COMPLE OS25

▶ A terminação de Marcos

Marcos 16:9-20 (KJV) apresenta-nos o problema textual mais grave,


que nos deixa mais perplexos, dentre todos os outros. Esses
versículos estão ausentes em muitos dos mais antigos e melhores
manuscritos, como o ‫ א‬Álef, o B, o itk (Antiga Latina), a Siríaca
sinaítica, muitos manuscritos armênios e alguns etíopes. Muitos
dos antigos Pais da Igreja não demonstram ter conhecimento desse
problema, e Jerônimo admitia que essa passagem havia sido
omitida em quase todas as cópias gregas.
Dentre as cópias que contêm esses versículos, algumas também
trazem um asterisco ou óbelo, que era um sinal parecido com um
travessão que o copista usava para indicar que se trata de uma
provável adição ao texto e que não estaria no seu original.
Veja o nal de Marcos no Códex Vaticanus:
A decisão sobre qual desses nais é o preferível ainda é
controvertida entre os especialistas, por isso versões modernas da
Bíblia ainda a mantêm, embora muitas a tragam entre colchetes
indicando que não está presente nos melhores manuscritos gregos.

Final de Marcos no Códex Vaticanus

▶ A perícope da mulher adúltera

João 7:53—8:11 relata a história da mulher apanhada em adultério.


Está inserida entre parênteses em algumas versões, com uma nota
que diz que os manuscritos mais antigos omitem essa passagem. A
RSV coloca a passagem em questão entre parênteses, no nal do
Evangelho de João, com uma nota que diz que as antigas
autoridades a colocavam ali, ou depois de Lucas 21:38. Não existe
evidência de que essa passagem faça parte do Evangelho de João
porque: 1) não está nos manuscritos gregos mais antigos e
melhores; 2) nem Taciano, nem o texto da antiga siríaca dão sinais
de tê-la conhecido, estando ausente também nos melhores
manuscritos da siríaca peshita, nos da copta, em vários da gótica e
da Antiga Latina; 3) nenhum autor grego faz referência a essa
passagem senão no século 12; 4) seu estilo — e interrupção — não se
enquadram no contexto do quarto evangelho; 5) aparece
inicialmente no Códice Bezae em c. 550; 6) vários escribas colocam-
na em outros lugares (e.g., depois de João 7:36; 21:24; 7:44 ou Lucas
21:38); e 7) muitos manuscritos que incluem essa passagem indicam
haver dúvidas sobre sua integridade, marcando-a com um óbelo. O
resultado é que tal passagem pode ser preservada como se fora uma
história verdadeira, mas da perspectiva da crítica textual, deve ser
colocada como apêndice de João, com uma nota que diga que ela
não tem lugar determinado nos manuscritos mais antigos.

▶ A Comma Joanina

1João 5:7 está ausente em algumas versões e entre colchetes em


outras, mas sem explicações. Todavia, há uma explicação para essa
omissão, que representa uma historieta interessante sobre o
processo da crítica textual. Quase não existe apoio textual para a
redação apresentada aqui referente à Trindade, em nenhum
documento grego, ainda que haja apoio na Vulgata. Então, quando
Erasmo foi desa ado e lhe perguntaram por que ele não incluíra
essa passagem em seu Novo Testamento grego, em 1516 e em 1519, o
estudioso respondeu rapidamente que a incluiria na próxima
edição, desde que alguém mostrasse a ele pelo menos um
manuscrito antigo que lhe desse apoio. Descobriu-se um minúsculo
grego do século 16, o manuscrito de 1520, de um frei franciscano.
Erasmo cumpriu sua promessa e incluiu esse texto em sua edição de
1522. A KJV seguiu o texto grego de Erasmo e assim foi: com base
num único manuscrito tardio, insigni cante, desprezou-se todo o
peso e autoridade de todos os demais manuscritos gregos. Na
verdade, a inclusão desse versículo como sendo genuíno quebra
quase todos os cânones principais da crítica textual.

Há uma situação embaraçosa, porém verdadeira, de erro nos


manuscritos. Alguns cristãos de fala grega, ao lerem o nome de Deus
como escrito em hebraico, confundiam as letras hebraicas com letras
gregas, e ao invés de chamarem a Deus de Yahweh diziam Pipi. Quem
nos dá essa informação é Jerônimo, tradutor da Vulgata latina no século
4 e, de fato, existem indícios disso nos fragmentos que temos da Hexapla
de Orígenes. Já pensou?

EVANGELHOS AN NIMOS?

Uma das acusações comumente feitas pelos críticos quanto à


genuinidade bíblica diz respeito à sua autoria. Seriam os nomes que
temos nas nossas Bíblias os mesmos que, de fato, escreveram
aqueles livros que tradicionalmente lhe são atribuídos?
No caso especí co do Novo Testamento, o que dizem é que os
evangelhos são anônimos e circularam por décadas de modo
anônimo. Note que nenhum deles traz o nome do autor. Foi a
Igreja, mais tarde, que teria atribuído nomes famosos aos textos
para dar autoridade a eles.
Os críticos ainda dizem que aproximadamente 70% do Novo
Testamento não foram escritos por quem pensamos. Seis das 13
cartas atribuídas a Paulo não teriam sido escritas por ele (Efésios,
Colossenses, 2Tessalonicenses, 1 e 2Timóteo e Tito). Os Evangelhos
também não vieram da pena de Mateus, Marcos, Lucas e João, mas
de comunidades cristãs tardias fundadas sob a teologia desses
homens, e por isso atribuiu a seus nomes um documento que eles
mesmos nunca conheceram. O mesmo se dá com o Apocalipse de
João, que de modo algum teria sido escrito pelo apóstolo que se
reclinou sobre o peito de Cristo.
Nem todos os especialistas, é claro, defendem essa posição cética
em relação à autoria dos textos sagrados. Há muitos teólogos sérios
que estudam tecnicamente essa questão e a rmam, sem restrições,
sua con ança na identidade autoral do texto. Um exemplo é o
papirólogo alemão Dr. Carsten Peter Thiede por muitos anos
diretor do Institut Für Wissenschaftstheoretische
Grundlagenforschung (Instituto de Pesquisa Básica em Teoria da
Ciência) localizado em Paderborn, Alemanha, um dos mais sérios
centros de estudo em papirologia da Europa. Ele escreveu: “É
inconcebível que alguém tivesse ousado inventar candidatos tão
improváveis e tão pouco conhecidos como Marcos e Mateus (ou até
mesmo Lucas), se estes não tivessem sido realmente os nomes dos
autores — ou se, de alguma forma, não tivessem uma ligação direta
com aqueles escritos.”26
Devemos apenas lembrar que não havia naquele tempo os
critérios de copyright que conhecemos hoje em dia de modo que
seria um anacronismo utilizar-se de uma suspeita típica da
modernidade para se questionar uma autoria tão con rmada no
passado. Ireneu de Lion, por exemplo, a rmava já no segundo
século d.C. que

… o valor dos evangelhos é tão grande que recebe o testemunho até dos
próprios hereges… cada um pretendia apoiar suas teorias particulares em
um dos evangelhos. Por exemplo, a seita dos ebionitas tinha preferência
pelo evangelho de Mateus. O herege Marcião, pelo de Lucas. Já os
valentinianos se apegavam ao de João

Contra Heresias, 3,2,7

O que Ireneu está nos dizendo é que até mesmo os mais antigos
dissidentes do cristianismo aceitavam Mateus, Marcos, Lucas e
João como respectivos autores dos quatro evangelhos que levam os
seus nomes. Portanto, ca óbvio concluir com Domenico Grasso
que: “Ninguém conhece um autor diferente daquele conhecido
pelos outros. Se em alguma região viessem a saber que o autor de
determinado evangelho não era o mesmo a quem se atribuía sua
autoria em outro lugar, era coisa fácil de ser conhecida.”27 Sobre a
autoria paulina das cartas que levam seu nome, o argumento dos
críticos circula em grande parte no fato destas possuírem estilos
diferentes entre si que, para eles, seria indicativo de serem escritas
por autores diferentes. Contudo, você viu no capítulo 7 que o
costume de se utilizar diferentes secretários e diferentes tipos de
ditado explicaria com muita razoabilidade o motivo de haver
diferentes estilos num conjunto de cartas de um mesmo autor.
Quanto aos evangelhos, conforme já adiantamos, sua autoria é
massivamente con rmada pela mais longa tradição da igreja. Não
há nenhum autor antigo que colocasse em dúvida essa realidade. O
ceticismo pertence à crítica moderna. Escritores cristãos do
segundo século em diante são unânimes em con rmar as mesmas
autorias que temos hoje e nem mesmo autores dissidentes do
cristianismo ou inimigos da fé cristã colocavam em dúvida, por
exemplo, que o evangelho de Mateus fora realmente escrito pelo
apóstolo do Senhor.
O fato de não trazerem o nome de seus autores, como
comumente esperaríamos desde uma perspectiva moderna, não
deve causar espanto. Na Antiguidade, os livros em forma de rolos
não tinham capa e dorso como temos hoje em dia. Os códices, isto é,
os livros em forma de cadernos costurados, só vieram mais tarde.
Na maioria das vezes o autor não tinha seu nome dentro do rolo de
papiro ou pergaminho, mas no sillybos ou sittybos — uma etiqueta
em forma de couro ou papiro que cava colada na haste do rolo ou
aplicada em seu verso à vista do vendedor ou leitor.
Com o passar do tempo essa parte era a mais sensível e poderia
facilmente se soltar ou ser arrancada. Isso, contudo, não criaria
problema para um bibliotecário caso se tratasse de uma obra
perfeitamente conhecida de todos. Aí era só repor a etiqueta. Eram
pouquíssimas as obras anônimas ou de autoria duvidosa. Lembre-
se, eles não tinham mídias eletrônicas, logo, quem sabia ler
conhecia tão bem os autores como um a cionado por futebol
conhece os jogadores apenas pelo rosto.

▶ Aplicando o contexto aos nossos dias

Um estudante de literatura não precisa da capa de Os sertões para


saber que está lendo a grande obra de Euclides da Cunha. Caso uma
biblioteca pegue fogo e sobre apenas o miolo do livro, todos saberão
reconstruir o título e o autor daquela obra. Isso também ocorria
com os evangelhos, todos sabiam quem eram seus autores.
Num futuro distante, talvez que mais difícil para os leitores
saberem quem escreveu Os sertões. Neste caso, eles dependerão de
nosso testemunho e terão de acreditar em nossa palavra, pois hoje
sabemos, sem contestações, quem é o autor da referida obra, mas
no futuro essa informação poderá não ser tão óbvia assim. O
mesmo se dá em relação aos evangelhos canônicos que, diferente
dos apócrifos, tinham sua autoria muito bem estabelecida pela
comunidade que sabia serem os demais uma peça tardia e
pseudônima.
20 Metzger, B. “Chapters in the history of New Testament textual criticism” (Grand
Rapids, Wm. B. Eerdmans, 1963), 148.

21 Bolling, G. M. The Athetized Lines of the Iliad. (Linguistic Society of America: Baltimore,


1944).

22 Bird, Graeme D. “Multitextuality in the Homeric Iliad: The Witness of the Ptolemaic
Papyri” (Washington, D.C. : Center for Hellenic Studies; Cambridge, Mass.: Distributed by
Harvard University Press, 2010), p. 27-60.

23 Viris Illustribus, 35 (Patrologia Latina, XXIII, 649, B).

24 O’Callangan, 26 e 27.

25 Exemplos adaptados de: <http://introduobiblica.blogspot.com/2007/11/aula-13-recuperao-


do-texto-da-bblia.html>. Acesso em: 28/08/2019.

26 Thiede Carsten, Peter, e D’Acona, Matthew. Testemunha Ocular de Jesus [Coleção Be


Reshit]. Riode Janeiro, Ed. Imago, 1996, p. 36.

27 Domenico Grasso, S.J. The Gospels, Historical and True (Surrey: Faith Pamphlets), pp. 5-
8 (in The Problem of Christ, Alba House, New York, 1969)
CAPÍTULO ONCE

CRÍTICA TEXTUAL DO
ANTIGO TESTAMENTO

INVESTIGANDO OS DOC MENTOS

A principal fonte hebraica do Antigo Testamento são os


Manuscritos do Mar Morto e os textos copiados pelos massoretas da
Idade Média. Os massoretas eram copistas judeus que substituíram
os antigos escribas (sopherins) por volta do ano 500 até o ano 1000
d.C. Seu trabalho consistia em preservar, cuidar e copiar as
Escrituras Sagradas que hoje constituem o Antigo Testamento.
Embora grande parte dos manuscritos hebraicos medievais esteja
hoje na Europa, os massoretas centravam seu trabalho como
copistas nas cidades de Tiberíades e Jerusalém. O nome
“massoretas” vem do hebraico Masorah (ou Mesora), que quer dizer
“transmissão de uma ideia religiosa ou de qualquer tradição por
escrito”. Por isso, os manuscritos por eles produzidos são
corretamente chamados de texto massorético.
Esses copistas judeus também realizaram a grande tarefa de
vocalizar as palavras em hebraico que não tinham vogais
originalmente, e, por isso, ao tornar-se língua morta, necessitou
dessa indicação para poder ser lida. Além disso, eles foram
meticulosos na transmissão escrita do texto inspirado.
Eles também tentaram padronizar as divisões de parágrafos e
manter a reprodução adequada do texto para os futuros escribas,
compilando listas dos principais recursos ortográ cos e
linguísticos da Bíblia. Duas escolas principais (ou famílias) de
massoretas foram: Yaacov ben Naftali e Aaron ben Asher, que
preparou o texto hebraico ocidental, também chamado de texto
palestino, e Yaacov ben Naftali, responsável pelo texto oriental ou
babilônico.
Se compararmos as cópias feitas por cada uma dessas famílias,
perceberemos que ambas criaram dois tipos textuais ligeiramente
diferentes. A versão de ben Asher prevaleceu sobre a de bem Naftali
e acabou se tornando a base dos textos bíblicos modernos.
Apesar de seu valoroso esforço de preservar as Escrituras, não se
pode dizer que o trabalho dos massoretas esteja isento de
de ciências. Assim, outras versões do Antigo Testamento se
zeram importantes para suprir certas carências do texto
massorético. É o caso do Pentateuco Samaritano (os samaritanos
eram uma comunidade étnica e religiosa separada dos judeus que só
aceitavam o Pentateuco como Escritura Sagrada), dos Targuns, da
LXX e dos Manuscritos do Mar Morto.
De forma pioneira e embrionária, a primeira tentativa de
padronização de um texto a partir de diferentes manuscritos
hebraicos ocorreu no século 16, por obra de Jacob ben Hayyim ibn
Adonijah. Tendo muitos manuscritos, ele sistematizou seu material
e organizou a Masorah na segunda edição da Bíblia Hebraica em
Bomberg (Veneza, 1524–1525). Não obstante, o estudo crítico do
texto hebraico das Escrituras começou propriamente no m do
século 18. Benjamin Kennicott publicou em Oxford uma lista de
mais de 615 manuscritos hebraicos, massoréticos, advindos de
diferentes bibliotecas da Europa. Mais tarde, o perito italiano
Giambernardo de Rossi publicou em Parma as comparações de 731
manuscritos num pioneiro trabalho de colação textual. Textos
padrões das escrituras hebraicas foram também produzidos pelo
perito alemão Baer, e, mais posteriormente, por C.D. Ginsburg.
Rudolf Kittel, que era um famoso hebraísta, lançou em 1906 a
primeira edição da sua Bíblia Hebraica, fornecendo nela um estudo
textual por meio de notas de rodapé, que comparavam muitos
manuscritos hebraicos do texto massorético. Mas quando outros
mais antigos e superiores se tornaram disponíveis, Kittel
empreendeu a produção de uma terceira edição, inteiramente
nova, que após a sua morte foi completada por seus colegas.
Hoje, o cômputo de manuscritos hebraicos do Antigo
Testamento é muito maior do que do Novo, e este é outro caso
curioso da história da crítica textual bíblica. Lembremos que os
judeus, à semelhança dos cristãos dos primeiros tempos, foram
duramente perseguidos por movimentos antissemitas da Europa
(especialmente no tempo das cruzadas) e muitas sinagogas foram
incendiadas, tendo seus manuscritos destruídos. Mas havia
também outro tipo de destruição de textos motivada por uma razão
oposta à dessacralização — o respeito por um texto sagrado.
Normalmente, conforme o tratado judaico da Mishná Shabbat
16:1, uma vez que que uma cópia da Escritura não podia mais ser
usada (porque cou muito desgastada com o tempo), ela não
poderia ser descartada casualmente como se fosse lixo. Textos
contendo o nome sagrado de Deus deveriam ser enterrados ou, se o
enterro não fosse possível, colocados em uma Geniza (ou Genizah)
que era uma sala dentro da sinagoga própria para guardar
manuscritos velhos — uma espécie de cemitério de livros sagrados.
Se a Geniza casse cheia, os manuscritos deveriam ser retirados e
queimados numa cerimônia de respeito.
Um fato, contudo, preservou importantes textos judaicos, tanto
bíblicos quanto não bíblicos. Provavelmente desde o início do
século 11, os judeus de Fustat, uma das comunidades judaicas mais
importantes e ricas do Mediterrâneo, reverentemente colocaram
seus textos antigos na Geniza de sua sinagoga localizada no velho
Cairo. Notavelmente, no entanto, eles colocaram não apenas as
obras religiosas, como Escrituras hebraicas, livros de oração e
compêndios da lei judaica, mas também o que consideraríamos
como obras seculares e documentos do cotidiano: listas de
compras, contratos de casamento, ações de divórcio, páginas em
árabe de fábulas, obras da loso a su e xiita, livros médicos,
amuletos mágicos etc. Num momento inusitado, doaram esse
material para um cidadão inglês e tudo acabou sendo preservado
em Cambridge.
Foram mais de 260 mil manuscritos — o número exato varia de
fonte para fonte — e pelo menos 10 mil deles eram cópias hebraicas
do Antigo Testamento. Muitas, é claro, estavam fragmentadas e
podiam ser datadas a partir de 870 d.C. A maior parte da coleção
hoje está arquivada em segurança na universidade de Cambridge.
Some-se a essa lista os cerca de duzentos textos bíblicos
encontrados entre os manuscritos do Mar Morto, as versões da
LXX, as cópias do Pentateuco Samaritano, o papiro Nash, os
targuns e outros exemplares massoréticos (como o Códex de Alepo)
e você terá a lista total de manuscritos hebraicos disponíveis hoje
para o exaustivo estudo da crítica textual do Antigo Testamento.

OQ E AS C PIAS NOS DI EM

Em termos técnicos, um manuscrito da Bíblia hebraica é uma cópia


manuscrita de uma parte do texto da Bíblia Hebraica (Tanak) feita
especialmente em pergaminho — algumas poucas em papiro — e
escrita maiormente na língua hebraica com pequenas porções em
aramaico. Os manuscritos mais antigos foram escritos em forma de
rolos de pergaminho, porém os manuscritos medievais geralmente
eram escritos em forma de códice, formato que antes era mais
comum nas cópias feitas por escritores cristãos. Os últimos
manuscritos escritos após o século 9 d.C. geralmente se baseiam no
Texto Massorético que acima mencionamos.
Os manuscritos mais importantes estão associados à tradição
copista de ben Asher, que também mencionamos acima,
especialmente o famoso Códex Leningradensis copiado em 1009 d.C.
Ele é o manuscrito completo mais antigo da Bíblia Hebraica em
hebraico. Antes dele temos o Códex Aleppo de 925 d.C., mas com
muitas folhas faltando.
Manuscritos completos anteriores ao século 13 são muito raros.
A maioria deles sobreviveu em uma condição bastante
fragmentária, mas, mesmo assim, são válidos para o trabalho de
colação textual que, como dissemos, consiste na comparação
exaustiva entre as diferentes cópias do texto a m de encontrar a
sua possível forma original. A maior coleção organizada desses
manuscritos do Antigo Testamento hebraico está guardada na
Biblioteca Nacional Russa em São Petersburgo.
Embora tenhamos a rmado que o trabalho dos massoretas não
está isento de erros, ainda persiste a pergunta: teriam eles realizado
um bom trabalho de preservação do texto hebraico das Escrituras
Sagradas?
O exaustivo trabalho de Emanuel Tov, professor emérito da
Universidade Hebraica de Jerusalém, pode ajudar a responder a
essa pergunta. Sua obra intitulada Crítica Textual da Bíblia
Hebraica,28 intenta ser um guia exaustivo de crítica textual
procurando vincular a importância dos Manuscritos do Mar Morto
e da LXX ao texto base dos massoretas para o entendimento das
possíveis alterações que encontramos entre os diferentes
manuscritos.
Tov demonstra em seu livro as variantes encontradas entre os
manuscritos e tenta traçar o motivo por detrás de algumas delas.
Algumas foram acidentais, outras por razões teológicas, questões
de tradução verbatim ou ainda pseudo-variantes, isto é, alterações
que parecem reais, mas não o eram no contexto original do escriba.
Talvez a revelação de que houve alterações por motivos
teológicos possa assustar um leitor de con ssão mais conservadora.
É importante, por isso, esclarecer que o sentido aqui nada tem a ver
com qualquer ameaça aos ensinamentos centrais do judaísmo e do
cristianismo. Ou seja, nenhum ensino central desses seguimentos
depende ou se baseia numa “distorção” produzida por um escriba.
Um bom exemplo de alteração por motivos teológicos está no
livro de Jó, que é quatrocentas linhas mais curto na LXX do que no
texto Massorético, provavelmente por causa do processo de
tradução que procurou simpli car o texto do estilo poético oriental
para um público-alvo grego. No entanto, as palavras adicionais da
esposa de Jó (Jó 2:9a,9b,9c,9d, LXX) encontradas na LXX, mas
ausentes no Massorético, são um elemento que chama a atenção dos
exegetas.
Para os que leem a história a partir do Texto Massorético, a
esposa de Jó é muito lacônica em suas palavras. Ela economiza
argumentos e fala pouco, embora se dirija de forma incisiva a seu
marido. Já na LXX ela argumenta mais para provar sua tese.
Não sabemos ao certo se foram os tradutores da LXX que
acrescentaram palavras que não estavam no original — talvez para
agradar mais ao público grego — ou se foram os massoretas que as
omitiram por complicarem ainda mais o já desconcertante
conselho quanto a uma “eutanásia teológica”, isto é, quando ela diz
a seu marido “amaldiçoe a Deus e morra”. Contudo, seja qual for a
versão original do texto, nada nesta variante compromete a
teologia moderna.
Outros exemplos de divergência entre os textos massoréticos, a
LXX e os manuscritos do Mar Morto (que a seguir comentaremos)
podem ser vistos nos livros de Samuel e Jeremias. São geralmente
alterações na ordem dos capítulos ou questões banais, como por
exemplo, do tamanho de Golias que, enquanto no texto massorético
mediria algo em torno de 3,5 metros, na LXX e nos Manuscritos do
Mar Morto mediria 2,8 metros. Novamente, nenhum ensinamento
judaico-cristão se sente ameaçado por este tipo de incongruência.
Tov também observa que a maior parte das variantes textuais
ocorre onde há uma diferença de uma ou algumas letras hebraicas
entre a tradução e a palavra no texto massorético. Os nomes
pessoais fornecem uma visão especial sobre esse assunto, pois esses
nomes não dependem da técnica de tradução. No geral, pode-se ver
ainda que muitas diferenças se dão por letras que parecem
semelhantes no alfabeto hebraico: dalet e resh, yod e waw, bet e
mem, ele e het, e samek e mem. Tov também observa exemplos em
que letras ou sílabas com sons semelhantes criaram variantes
(guturais, palatais, dentais, labiais etc.)
Por questões acadêmicas, o autor preferiu evitar questões
teológicas ou de inspiração divina das Escrituras. Ele não é taxativo
em a rmar que esse era ou aquele seria o texto original, mas não
esconde a con ança de que o texto foi bem preservado e que as
alterações encontradas não comprometem seu entendimento. Pelo
contrário, a análise conjunta dos diferentes textos manuscritos só
aumenta a riqueza da avaliação critico-textual.
O máximo que se pode dizer, segundo as conclusões de Tov, é que
o texto sofreu algum processo editorial mesmo nos tempos antigos,
mas isso em nada atrapalha a con ança teológica que tenhamos em
seu conteúdo ou a certeza de que os copistas, especialmente os
massoretas, procuraram preservar a Bíblia Sagrada da melhor
maneira que podiam. E o zeram!

En-Gedi e a precisão dos massoretas


Um fato surpreendente sobre a transmissão da Bíblia é que novas
informações continuam surgindo, silenciando os céticos e reforçando a
confiança na transmissão do texto Bíblico. Uma dessas descobertas foi
feita em 1970, perto da área onde os pergaminhos do Mar Morto foram
encontrados. Um grupo de pergaminhos foi encontrado na região do En-
Gedi, no deserto de Israel. Infelizmente, os textos foram gravemente
danificados pelo fogo e era impossível lê-los usando a tecnologia da
época. A única coisa que se sabia é que esses textos haviam sido
copiados por volta do ano 300 d.C., 500 anos antes da mais antiga versão
do texto massorético que possuímos.
Recentemente, porém, técnicos do centro de computação de Brent Sales
tornaram o texto chamuscado finalmente legível, e o que se encontrou
foi um texto hebraico antigo que coincidia perfeitamente com o Texto
Massorético de Levítico 1:1-8.
Foi incrível perceber a semelhança. O texto de En-Gedi duplica até as
quebras de parágrafos exatas vistas mais tarde no hebraico medieval. A
única diferença entre os dois é que o hebraico antigo não possuía as
vogais que seriam ainda criadas pelos massoretas.

OS MAN SCRITOS DO MAR MORTO

Embora o Antigo Testamento, assim como o Novo, contasse com


uma enorme quantidade de manuscritos gregos e hebraicos em
favor de sua construção, havia um problema que parecia insolúvel
até à vista dos acadêmicos mais otimistas: excetuando um
fragmento do papiro Nash datado do primeiro século a.C., todas as
cópias hebraicas que possuíamos datavam do século 10 d.C. em
diante.
O papiro Nash que mencionamos aqui foi encontrado no Egito e
preservado em Cambridge, na Inglaterra. Ele deveria ser
originalmente parte de uma coleção de admoestações, escritas no
segundo ou primeiro século a.C. São quatro fragmentos de 24
linhas pertencentes a um texto pré-massorético dos Dez
Mandamentos e de alguns versículos de Deuteronômio, capítulos 5
e 6. Assim, pode-se dizer que, com exceção do fragmento de Nash,
havia um hiato de cerca de 1400 anos entre a última produção do
Antigo Testamento e a cópia hebraica mais antiga que tínhamos
dele. Se falarmos do início da produção bíblica, o distanciamento
sobe para 2400 anos!
Até que em 1947 um garoto beduíno encontrou por acidente
jarros que estavam guardados há quase 2 mil anos em algumas
grutas de Wadi Qumran, a noroeste do Mar Morto. Eram, ao todo,
cerca de 800 manuscritos produzidos por escribas judeus da seita
dos essênios, e pelo menos 200 desses manuscritos eram bíblicos.
Entre os arqueólogos que contribuíram para a identi cação e
publicação desses textos temos L.E. Sukenik, G. Lankester
Harding, Roland de Vaux, Ygael Yadin e William F. Albright.
Os manuscritos encontrados continham cópias (algumas bem
fragmentadas) de todos os livros do Antigo Testamento, com
exceção de Ester. Só para se ter uma noção, uma das cópias de Isaías
encontradas no local foi datada em 270 anos a.C. Ou seja, 1200 anos
mais velha que a cópia que tínhamos, produzida pelos massoretas.
O que se descobriu foi algo fantástico: as cópias ali encontradas
con rmavam em mais de 90% o texto hebraico massorético. As
discordâncias estão em questões periféricas, como troca de letras
ou acréscimo de uma ou outra palavra.
Se houvesse uma grande modi cação intencional no texto por
razões teológicas, políticas ou administrativas da cúpula da igreja,
essas mudanças apareceriam na comparação entres os textos. Por
exemplo, das 166 palavras presentes em Isaías 53, apenas 17 letras
estão diferentes da cópia encontrada no Mar Morto e nenhuma
delas oferece prejuízo ao conteúdo bíblico. Outras alterações ou
variantes textuais foram exempli cadas ao falarmos acima do
trabalho de Emanuel Tov, e como você viu, nenhuma trouxe
qualquer situação desconcertante para a crença na Bíblia Sagrada.
A Palavra de Deus demonstrou ter sido bem preservada pela
providência divina.

Manuscritos Bíblicos de Qumran


Os manuscritos de Qumran, também conhecidos como os Manuscritos
do Mar Morto, foram encontrados num total de onze cavernas (na
verdade, doze, mas uma, encontrada recentemente, estava sem textos
antigos). Até o momento, quase duzentos manuscritos bíblicos foram
identificados entre esse material, mais de cem somente da caverna 4.
Todo livro do cânon do Antigo Testamento está representado em
Qumran, exceto Ester. Os livros mais bem representados em número de
cópias são os seguintes: o maior número são cópias provenientes do
Pentateuco (15 manuscritos de Gênesis, 15 de Êxodo, 9 de Levítico, 6 de
Números, 25 de Deuteronômio). Dos Profetas maiores temos 18 cópias
de Isaías, 4 de Jeremias, 6 de Ezequiel, 8 de Daniel e 8 dos Profetas
Menores. Dos Salmos encontraram 27 cópias com uma ordem bem
diferente do texto massorético.
Embora o termo “Pergaminhos do Mar Morto” seja oficialmente aplicado
apenas ao corpus de manuscritos associado à biblioteca de Qumran,
outros sítios na região do Mar Morto produziram cópias que foram
encontradas e incorporadas à coleção. Os principais sítios são os de Wād̂
Murabbaʿât, Naḥal Ḥeber e Massada. Os manuscritos de Murabbaʿt e
Naḥal Ḥeber são particularmente interessantes, pois vêm do tempo da
Segunda Revolta Judaica sob Bar Cochba, (132–135 d.C.).
Portanto, sabemos que os massoretas judeus da Idade Média
foram meticulosos em seu trabalho de copiar as escrituras
hebraicas. Eles se esforçavam para garantir a con abilidade do
texto. Por isso, eles eram altamente treinados e minuciosamente
observados, copiando cada letra, parágrafo e frase para então
compará-los com o original. Um único erro exigiria a destruição
imediata do texto. Seus erros podiam se dar por reproduzirem uma
forma que já estava no manuscrito do qual copiavam e não por uma
mudança caprichosa. Eles deveriam levar a sério o conselho do
Rabino Samuel cujas palavras estão preservadas no Talmude: “Meu
lho, por ser este um trabalho celestial, não omita nem uma letra,
caso contrário, o mundo será destruído” (B. Sota 20 a). Hipérbole à
parte, este é um testemunho da seriedade daquele trabalho.
De fato, essa seriedade é hoje con rmada pela atividade
acadêmica. Em conjunto, a comparação textual entre o texto
Massorético, a LXX, os manuscritos do Mar Morto e outros
geralmente suporta a precisão com a qual o texto hebraico foi
copiado.
Ao mesmo tempo, os manuscritos de diferentes períodos nos
fornecem leituras anteriormente desconhecidas e que nos dão uma
maior compreensão das variantes que já tínhamos em outros textos
e versões. Graças a esse trabalho técnico, estamos em uma posição
melhor para explicar o relacionamento entre as várias cópias
manuscritas das Escrituras.
Antes das descobertas no deserto da Judeia, os trabalhos de
crítica textual do Antigo Testamento só poderiam ser feitos
indiretamente com o estado do texto, isto é, sugerindo uma forma
alternativa do texto hebraico que foi usado pelos tradutores das
mais diversas versões. As descobertas em Qumran forneceram
cópias reais com os quais o crítico de texto pode trabalhar. É justo
dizer que as descobertas de Qumran revolucionaram o campo da
crítica textual.
ALTA CRÍTICA

A Alta Crítica foi um movimento intelectual nascido na Europa do


século 18 e que ainda é apreciado por muito acadêmicos
especializados em Bíblia e Teologia. Ela não deve ser confundida
com a baixa crítica, ou crítica textual, que procura recuperar o
texto original das Escrituras. Seu objetivo, negando a priori
qualquer virtude sobrenatural em relação à Bíblia Sagrada, é usar
ferramentas hermenêuticas e heurísticas que permitam descobrir
quando, como, onde e por que cada livro bíblico foi produzido.
Os proponentes dessa linha não trabalham com a ideia de
revelação, inspiração e dom profético. Para eles, a Bíblia é apenas
um livro antigo como outro qualquer e nada mais. Sua proposta era
embalada no espírito racionalista que envolvia a Europa de seu
tempo. Johann Semler, por exemplo, teólogo alemão, dizia naquela
época que “o estudo neutro e racional da Bíblia deve desconsiderar
a inspiração divina e rejeitar o aspecto miraculoso. A Bíblia é um
livro como outro qualquer e como tal deve ser estudada. Palavra de
Deus e Escritura Sagrada são coisas distintas, e assim devemos
realizar nossa hermenêutica”.29 Sua conclusão se resume a
elementos bem complicados para os judeus e cristãos
conservadores em sua regra de fé.
Para eles, não foi Moisés quem escreveu o Pentateuco, na
verdade muitos deles até sugerem que nunca houve alguém
chamado Moisés. Os antigos judeus inventaram esse herói para dar
uma esperança ao povo. Ainda nesta linha de pensamento, os
primeiros textos hebraicos só seriam produzidos por volta do
século 10 a.C., e boa parte do que chamamos Antigo Testamento
seria composto durante e após o cativeiro babilônico.
Praticamente toda história referente aos primórdios do
judaísmo antes do cativeiro seria uma coleção de lendas, exageros e
mitos criados pelos escribas judeus por motivos políticos e
ideológicos, sem nenhum respaldo histórico. Ester e Daniel, por
exemplo, seriam heróis nacionalistas criados respectivamente nos
séculos 4 e 2 a.C. Ou seja, a passagem pelo Mar Vermelho, o
chamado de Abraão, o reino uni cado de Davi e Salomão seriam
apenas relatos fantasiosos. Nada disso aconteceu.
A Alta Crítica continua dizendo que os livros do Antigo
Testamento foram compilados muito lentamente ao longo de
vários séculos, a maioria deles para servirem de inspiração
ideológica ao povo durante a helenização do judaísmo e a guerra
dos Macabeus. Fora o cativeiro babilônico e o domínio dos persas,
não há quase nada de autêntico em sua narrativa.
Quanto ao Novo Testamento, eles dizem que os evangelhos
foram escritos ou reeditados várias vezes no nal do primeiro
século e início do segundo. Ou seja, são textos igualmente tardios
escritos por líderes das comunidades locais para legitimar seus
ensinos a partir de uma pretensa ligação do texto com alguma
gura relacionada a Jesus, quem sabe um discípulo próximo, como
Mateus ou João, por exemplo.
Um dos primeiros a pensar assim foi Jean Astruc, médico
particular de Luiz XV, rei da França. Baseado no texto do Gênesis,
ele percebeu que Deus às vezes era chamado em hebraico de
Yahweh, às vezes de Elohim. Assim, ele sugeriu, em 1750, que isso
talvez se devesse a narrativas paralelas, ou seja, diferentes autores,
em diferentes épocas, teriam escrito textos separados sobre a
criação que somente mais tarde foram compilados, formando o
livro do Gênesis.
A ideia seria mais ou menos assim: a partir de 950 a.C., escribas
que viviam em Judá resolveram escrever textos chamando Deus de
Javé, daí o documento Javista. Então, mais tarde, escribas da parte
norte de Israel, especialmente da região de Efraim, redigiram
outros documentos chamando Deus de Elohim; este seria o
documento Eloísta. Ainda depois disso, por volta do ano 600 a.C., os
levitas também resolveram escrever seu próprio texto que foi
chamado de deuteronomista e, nalmente, durante o cativeiro,
assim como após ele, os sacerdotes produziram um último texto
chamado sacerdotal.
Anos depois, alguém veio, tomou esses documentos, mudou,
adaptou e compilou os quatro, formando o que hoje chamamos de
Pentateuco, e foi assim que nasceu a chamada Alta Crítica ou
Hipótese Documentária. Mas essa proposta já se modi cou muito
desde suas origens, e até hoje não existe consenso absoluto entre
aqueles que a defendem.
Em que pese a aparente erudição desses conceitos e a
popularidade que ainda possuem em diversos centros de teologia, é
importante dizer que acadêmicos de peso têm abandonado o
criticismo bíblico devido às incongruências que ele possui tanto do
ponto de vista histórico, como losó co, hermenêutico e
metodológico.
A primeira coisa que se observa é a completa falta de evidência
da chamada hipótese documentária, aquela que a rma que a Bíblia
é resultado tardio de uma colcha de retalhos textuais. Milhares de
manuscritos antigos foram descobertos e nenhum deles oferece
qualquer prova de que o texto que possuímos hoje fosse
dramaticamente diferente daquele lido no passado. As diferenças
são apenas periféricas.
Além disso, nenhum testemunho do passado, bíblico ou não
bíblico, faz referência a essas supostas fases preliminares ou mesmo
que esta seria uma prática redacional comum na Antiguidade. Pelo
contrário, os textos antigos parecem tão sequenciais que
especialistas em literatura clássica praticamente já abandonaram o
Método Crítico Histórico ao analisarem obras gregas e romanas
como a Ilíada, de Homero, ou a Eneida, de Virgílio. Veja o que
escreveu a crítica literária Helen Gardner, especialista em
literatura clássica:

Nas análises de campo, percebemos que as teorias de composição autoral


de textos antigos, as supostas primitivas versões do texto, os diferentes
níveis textuais etc. são hipóteses que temos descartado. Aquele tipo de
análise crítico-literário é hoje um conceito ultrapassado. A tendência hoje
é assumir que estamos diante de um único autor, a menos que tenhamos
uma clara evidência externa que indique o contrário.

Viu que interessante? Teólogos liberais estão aplicando à Bíblia


um método de investigação textual que nos estudos clássicos já é
considerado ultrapassado, e Gardner escreveu isso nos anos 1950!
Mais recentemente, o professor John Van Seters,30 acadêmico
das universidades de Yale e Carolina do Norte, publicou um
trabalho em que questiona frontalmente a validade da Hipótese
Documentária. Ele conclui que a Hipótese Documentária nasceu no
século 18 por causa de um sério erro de anacronismo cometido
pelos eruditos da ocasião.

ACR SCIMOS EDITORIAIS


Mesmo os que possuem uma leitura mais conservadora da Bíblia
Sagrada poderão admitir a existência de um trabalho editorial em
seu conteúdo. A nal, ela não caiu pronta do céu com capítulos e
versículos como os temos atualmente. Mas isso é diferente do que
dizia a Alta Crítica, segundo a qual a Bíblia seria uma colcha de
retalhos autorais que foram sendo colecionados ao longo do tempo
e costurados por um editor nal na forma que hoje a conhecemos.
As anotações editoriais e os arranjos que nos referimos são
limitados. Eles poderiam ser, por exemplo, uma compilação de
antigos documentos que passavam a ter novo formato. O livro de
Provérbios é um caso emblemático. Escrito originalmente por
Salomão, ele recebeu esse trabalho editorial nos dias do rei
Ezequias (Provérbios 25:1).
Outro exemplo seria o livro de Daniel. Nos capítulos 7 e 8 toda a
visão do profeta aparece na primeira pessoa do singular — o que
indica um relato pessoal das visões escrito pelo próprio profeta.
Contudo, no começo do capítulo há uma anotação da data e uma
referência ao autor da visão dada em terceira pessoa que parece
indicar a presença de um editor nal que fez a compilação das
visões de Daniel (que possivelmente estavam separadas) e as
organizou por ordem cronológica.
Há ainda uma opinião defendida entre certos gramáticos das
antigas línguas semitas, segundo a qual essa alternância entre
primeira e terceira pessoa na narrativa seria um semitismo, isto é,
uma forma de expressão típica de antigas línguas semíticas. O
próprio Jesus usou essa “fórmula” quando dizia “o Filho do
Homem”, referindo-se a si mesmo. Isso, contudo, não anula a
hipótese do editor apresentada acima.
O mesmo princípio de trabalho editorial mínimo pode ser visto
em passagens como Gênesis 11:28, que diz: “Harã morreu na
presença de seu pai Terá, em sua terra natal, chamada de Ur dos
caldeus.” Ora, pela cronologia bíblica, isso teria ocorrido no
segundo milênio a.C. e fora escrito por Moisés em torno do século
15 a.C. Ocorre, no entanto, que não há registro da presença dos
caldeus no sudeste da Mesopotâmia antes do primeiro milênio a.C.,
e eles só começaram a governar cidades locais por volta do décimo
primeiro século a.C. Logo, “Ur dos Caldeus” só pode ser uma
anotação feita por alguém muito tempo depois de Moisés.
Mas não se trata de um engodo, e sim de uma anotação editorial
cujo objetivo é tornar o texto mais compreensível. Seria como se
um historiador moderno, ao descrever a descoberta do nosso país,
escrevesse: “Em 21 de abril de 1500, Pedro Alvares Cabral descobriu
o Brasil.” Contudo, não existia Brasil em 1500. Esse país e esse nome
só vieram a existir mais tarde. A referência, no entanto, seria um
ajuste acadêmico com o m de atualizar o texto perante o leitor,
facilitando sua compreensão. Seria como se o historiador dissesse:
“Em 21 de abril de 1500, Pedro Álvares Cabral descobriu as terras
que posteriormente seriam chamadas de Brasil.” O mesmo ocorreu
com o texto bíblico.
28 Tov, Emanuel. Critica Textual da Bíblia Hebraica, Niterói, RJ: BV Books, 2017.

29 Apud COSTA, Hermisten Maia Pereira da. Raízes da teologia contemporânea. São Paulo:
Cultura Cristã, 2004., p 304.

30 Editing Bible, 2006.


CAPÍTULO DOZE

COMPREENDENDO
AS ESCRITURAS

LEIT RAS S PERFICIAIS

Um grupo de pessoas estava reunido numa espécie de “pequeno


grupo” que um pastor distrital tinha acabado de inaugurar. Elas se
propuseram a estudar o livro de Daniel. Este fato aconteceu com
Ronald D. Worden, professor de Bíblia no Houston Graduate School
of Theology. Ele disse que o pastor iniciou conduzindo um estudo
sobre a festa de Belsazar. Então, ele pediu que cada um ali presente
comentasse sobre a história e seu signi cado. Um dos irmãos
sugeriu que a tônica do texto era a irreverência para com as coisas
de Deus, a saber, os vasos sagrados do Templo.
Outros prontamente retornaram a discussão para o que os vasos
signi cariam hoje. Ora, Paulo diz que nós somos os vasos de Deus
(vasos para honra ou para desonra, 2Timóteo 2:20-22), logo os vasos
sagrados do templo são pessoas. A diretora do departamento
infantil não tardou em dizer que as crianças eram os vasos mais
puros e mais negligenciados de hoje e que muitos pais, professores e
membros de igreja, como o rei babilônio, desonram esses pequenos
vasos através da negligência, do abuso infantil etc. Tudo muito
lindo, gerando muitos pontos de vista interessantes. O único
problema: fugiram por completo da história e do objetivo original
do livro.
Como o próprio professor Worden concluiu: talvez o senso
intuitivo das pessoas espirituais a levaram a uma aplicação até
válida da Palavra de Deus aos nossos dias, mas ao custo de fugir por
completo daquilo que o livro teria a nos dizer a partir de sua
perspectiva histórica real.
Certamente devemos nos perguntar o que o texto diz para nós e
que aplicação ele teria em nossos dias, mas essa pergunta será
muito mais satisfatoriamente respondida se incluir métodos
hermenêuticos de interpretação que tenham a ver, especialmente,
com o contexto histórico e literário no qual o livro foi produzido.
A nal, os próprios autores da Bíblia trabalharam suas narrativas
dentro de uma perspectiva histórica de compreensão da realidade.
Este, portanto, é o grande desa o hermenêutico de hoje: ensinar a
Bíblia sem negligenciar o contexto histórico e o objetivo pelo qual
foi escrita.
O papel do teólogo biblista, concernente aos fatos que
interpreta, deve ser “voltar lá”,31 quebrar o lapso temporal entre ele
e a testemunha e compreender o que está por detrás das palavras.
Vencer o lapso do tempo não signi ca desconsiderar os aspectos
históricos ou literários da narrativa nem se prender apenas a isso. É
dever do exegeta transpor o nível meramente histórico da
investigação para o nível da investigação teologica.32 A nal, o
escritor bíblico testemunha — graças à inspiração recebida — o
propósito de um Deus eterno que lida com um povo circundado por
uma realidade histórica. Noutras palavras, o profeta capta através
dos fatos e ocorrências que viu ou ouviu a revelação de um Deus
aparentemente oculto que age na história dos homens. Mas as
abordagens pós-modernas têm trazido considerável negligência a
esse exercício hermenêutico com visíveis prejuízos à fé doutrinária.
Veja esta interessante citação de Daniel B. Wallace:

Aqueles que estão no ministério precisam fechar a brecha existente entre


a Igreja e o mundo acadêmico. Nós temos que educar os crentes. Ao invés
de car tentando criar um preconceito (isolate) dos membros em relação à
crítica acadêmica, o que precisamos é imunizá-los (insulate) em relação a
ela. Eles precisam estar prontos para as barreiras, porque elas certamente
virão. A intencional tendência de baixar o padrão [intelectual] por amor
do preenchimento de alguns bancos vazios pode resultar numa perda da
afeição por Cristo.33

O ideal não é alienar a igreja das discussões acadêmicas ou


doutrinárias, mas prepará-la para enfrentá-las.

HIST RIA DA INTERPRETA O BÍBLICA

Como bem apontou G. Hasel, a “Igreja pós-Novo Testamento dos


primeiros séculos do cristianismo não desenvolveu nenhuma
teologia bíblica nem do Novo Testamento.”34 Trata-se, portanto, de
um conceito novo, próprio da modernidade e posterior ao século
18. Contudo, isso não signi ca que não havia uma hermenêutica ou
uma interpretação bíblica anterior a essa época. O que diferenciava
o exercício era o contexto particular de cada situação.
Os cristãos primitivos não se deparavam com as atuais questões
de crítica textual a respeito da Bíblia. Por muitos anos após a morte
e ressurreição de Cristo eles ainda participavam do culto sinagogal
com os judeus, interpretando as Escrituras nos mesmos moldes
judaicos, exceto no fato de que viam a Jesus de Nazaré como
legítimo cumpridor das profecias messiânicas. A Torá e os Profetas
eram então lidos na língua original hebraica, embora também
houvesse espaço para um largo uso da versão da LXX,
especialmente nos escritos de Paulo.
Nem todos, é claro, tinham acesso à língua hebraica
(especialmente os judeus da diáspora). Por isso, ao lado da LXX
havia também os Targuns, que eram paráfrases aramaicas (muitas
vezes seguidas de comentários) de longos ou curtos trechos da
bíblia hebraica.
Embora prevaleça uma compreensão de que Cristo e os
primeiros cristãos usaram mormente o texto grego da LXX em suas
citações do Antigo Testamento, alguns autores evidenciam a
possibilidade de que Cristo e seus discípulos tivessem privilegiado o
uso do texto hebraico (e não do grego) e feito paráfrases targúnicas
no momento de citá-lo em seus ensinamentos públicos. Isso de fato
é uma possibilidade, mas não uma certeza e lança luz sobre a
hermenêutica dos tempos do Novo Testamento.
O problema é que a versão targúnica re etia muito a
interpretação, chamada de Midrash, que rabinos judeus davam das
Escrituras, e isso acabou favorecendo as interpretações
excessivamente alegóricas das Escrituras como aquelas que seriam
encontradas posteriormente em Orígenes (c. 185-253 d.C.) e seus
seguidores, por volta do m do segundo e início terceiro séculos da
Era Cristã. Essa interpretação foi combatida por Luciano de
Antioquia, que fundou a Escola Antioquena de interpretação
literal, no quarto século.
Contudo, é importante notar que já em Ireneu de Lion
encontramos o primeiro sinal de que havia um trabalho crítico
textual do Novo Testamento, pelo menos por volta de 177 d.C.,
quando ele possivelmente escreveu sua obra Adversus Haereses
[Contra heresias]. Ali, ele preferiu uma determinada leitura do
Apocalipse em vez de outra. É que alguns manuscritos traziam o
número da Besta como sendo 616 e não 666. Sobre isso, Ireneu diz
preferir 666 que é o número que aparece “em todas as mais antigas e
aprovadas cópias […] além de ser atestado por aqueles que viram
João face a face”.
Igualmente, Jerônimo (345-420 d.C.) pesquisou em vários
manuscritos latinos a m de produzir o texto da Vulgata. Em seu
método ele simplesmente dava prioridade a um manuscritos mais
velho.35

ESCOLA ALE ANDRINA

Alexandria era a capital intelectual do Império Romano de cultura


grega. Lá havia uma escola com mais de 14 mil alunos. Grandes
nomes passaram pelos bancos acadêmicos da cidade. Foi em
Alexandria que Euclides desenvolveu sua geometria, Hiparco
explicou a todos os conceitos da trigonometria e Galeno
sistematizou sua medicina. Foi o ambiente alexandrino que
permitiu a Cláudio Ptolomeu desenvolver seu conceito de universo
geocêntrico em oposição a Aristarco que, na mesma escola,
defendeu posição contrária de que o Sol seria o centro de nosso
sistema planetário. Estes são apenas alguns dos muitos famosos que
foram à Alexandria aprimorar ou buscar conhecimento.
Na mesma cidade estava a maior biblioteca dos tempos antigos e
a mais antiga escola de crítica textual (o Museion e o Serapion) que
buscava recuperar o conteúdo de antigos manuscritos. A razão
disso estava em que, a partir do terceiro século a.C., os estudiosos
gregos dali tentaram restaurar os antigos textos dos poetas e
prosadores gregos. Foi nesse centro cultural que a versão da LXX
veio à luz, entre 280 a.C. e 150 a.C.
Ali também se enraizou uma curiosa escola de interpretação
helenística que atraiu gramáticos, retóricos e lósofos. Era o
método alegórico de interpretação utilizado sobretudo nas epopeias
e outras obras veneradas pelos gregos.
No período helenístico, a noção losó ca de “divino” passou a
ser equiparada pelos pensadores à ideia de um logos racional. Mas
como o fenômeno helenista era uma realidade bifurcada entre o
aristotelismo e a mitologia alexandrina, não havia meios de fugir
da forçosa convivência entre os dois. Ademais, os gramáticos e
editores de Alexandria estavam muito preocupados em preservar a
herança clássica e mitológica que agora fazia parte de sua própria
identidade cultural. Por isso buscavam a todo custo restaurar livros
cuja autenticidade era duvidosa e encontrar uma interpretação
literária que justi casse o esforço de preservar tal conteúdo. A
solução foi sistematizar uma interpretação alegórica dos mitos.
Foram principalmente os estoicos os responsáveis por essa nova
interpretação. Mas não se tratava de um exercício completamente
novo; ele já existia mesmo antes dos dias de Sócrates e Platão.36
Diógenes de Apolônia (425 a.C.), por exemplo, aplicava na Ilíada os
princípios da chamada interpretação pseudo-histórica e alegórica
concluindo que Homero intentava, com a gura de Zeus, falar na
verdade do “ar”. A nal, a realidade era melhor expressa através de
símbolos.
O que os estoicos e alexandrinos zeram, portanto, foi ampliar o
antigo método pseudo-histórico. Sua intenção agora era restaurar
os textos antigos e encontrar, atrás do sentido literal, um
signi cado real mais profundo e verdadeiro.
Seu método consistia em partir do sentido literal das palavras
( lologia), mas não car preso a ele. Era preciso ordenar
corretamente os sentidos do texto com a ajuda da etimologia. A
etimologia forneceria, na sua concepção, indicações sobre a direção
do signi cado oculto que ultrapassava o sentido literal. Por isso,
etimologia é uma palavra que vem do grego étymos (real,
verdadeiro) + logos (estudo, descrição, relato).37 Para os
alexandrinos, a origem natural das palavras foi modi cada
(mitologizada) para satisfazer os requerimentos de cada período da
História, assim como os mitos que também foram formados para
explicar antigos ritos que não eram mais compreensíveis ao povo.
Outra maneira de compreender isso seria entender o processo da
busca humana por signi cado. Ora, o signi cado ou sentido são as
ideias, ou seja, aquilo que queremos expressar (Sócrates e Platão).
Ocorre, no entanto, que os sentidos só são expressáveis através de
símbolos ou signos, isto é, palavras, gestos, lexemas. O ideal
epistemológico seria, portanto, compreender o sentido através do
signo. Em termos textuais, os gregos entendiam que “signo” seria o
alegórico e “sentido”, o literal.
É curioso, no entanto, observar que embora a prática de
interpretação alegórica já existisse por longos séculos, a própria
palavra grega allêgoria não foi utilizada senão no período romano.
No nal do primeiro século a.C., Plutarco se via às voltas com o
desa o de encontrar um novo termo que se adequasse ao exercício
hermenêutico de encontrar uma realidade mais profunda nos
textos clássicos.38
Até então, os conceitos centrais da proposta de interpretação
alegórica eram expressos através de termos como symbolon
(símbolo), hyponoia (sub-signi cado), aenigma (enigma) e uponoia,
este último usado preferencialmente pelos estoicos para se referir a
uma inescapável utilização de certas guras de retórica ou
comunicação indireta que diz uma coisa para levar o receptor a
entender outra. Em suma, uma forma não literal e não
transparente de se transmitir uma verdade.39
Ao que tudo indica, foi o Pseudo-Heráclito (século 1 d.C.), em sua
obra Allegoricae Homericae [Alegorias homéricas], que forjou a
palavra alegoria, ou, pelo menos, deu-lhe a mais antiga
conceituação que conhecemos.40 Ele a de niu como um elemento
retórico, que possibilita dizer algo e, ao mesmo tempo, aludir a algo
diverso.
No dizer de Jon Whitman, a alegoria foi, “em última instância, o
deslocamento de palavras para longe de seus objetos… [uma]
linguagem removida de seu contexto [original] para o presente”.41
Sua etimologia está no ajuntamento de dois vocábulos gregos: allos,
que quer dizer “outro”, e agoreuin, “discursar na praça, na ágora”.42
Literalmente, alegoria signi ca falar outras coisas diferentes das
que aparentam estar sendo ditas. Falar escondido, num “outro”
lugar não público, fora da ágora.
É importante esclarecer que existe uma nítida distinção entre a
alegoria usada na Bíblia e essa “interpretação alegórica” promovida
pelos gregos. Como veremos mais adiante, é possível encontrar nas
Escrituras especí cos recursos de alegoria, como as parábolas de
Jesus, ou os chamados “atos dos profetas”. Contudo, intentar a
compreensão “mais profunda” de um signi cado além daquele que
está claramente exposto no texto inspirado é forçar à narrativa
bíblica abordagens estranhas que podem ser próprias para a
metafísica platônica ou a ética dos estoicos, mas nunca para a
correta compreensão da Palavra de Deus.
Tal cuidado não foi, infelizmente, tomado pelos judeus de
Alexandria, que foram tremendamente in uenciados pelos
intelectuais gregos da ocasião. Tanto a loso a grega, em meio a
qual todos estavam inseridos, como o próprio método de
interpretação alegórica, nortearam sua maneira de ler e entender
as Escrituras. Mas eles também inovaram em sua aplicação do
método.

FILO DE ALE ANDRIA

Filo de Alexandria certamente é o principal representante do


judaísmo helenista deste contexto. Sendo ele mesmo um lósofo
judeu-helenista dos primórdios da loso a neoplatônica, sua obra
o fez entrar para a histórica como aquele que elaborou uma fusão
entre a loso a grega e a teologia mosaica, criando a loso a
mosaica.
Ele intentou uma interpretação do Antigo Testamento à luz das
categorias elaboradas pela loso a grega e pela alegoria. Foi autor
de numerosas obras losó cas e históricas, onde expôs a sua visão
platônica do judaísmo. Entre elas destaca-se o Comentário alegórico
do Pentateuco, uma série de tratados sobre episódios bíblicos.
Mas Filo não se limitou a dar à alegoria a explicação de um
sistema religioso, como zeram seus predecessores. Ele queria
adaptar as Escrituras à nova realidade helenística e torná-la mais
aceitável ao público gentio. Por isso, ele inovou ao usar a alegoria
num sentido apologético. Seu objetivo era, através do método
alegórico, defender a idoneidade das escrituras judaicas e facilitar
sua aceitação e assimilação pelos que não vinham de uma origem
judaica. Exemplos de seu método: os que zombavam do Logos
Divino expresso na LXX estavam representados nas Escrituras
como sendo os mesmos que zombaram da advertência de Deus ao
construírem a torre de Babel, sorriram em companhia da serpente
no Paraíso e zeram anedotas do sonho de José.43 Como você vê, ele
misturava histórias bíblicas distintas e buscava nelas simbologias
para qualquer elemento que fosse conveniente equiparar.
Sendo Filo contemporâneo de Jesus Cristo (25 a.C. — c. 50 d.C.),
não demorou para haver um contato dos cristãos com seus ensinos.
Seguidores do cristianismo convertidos de um judaísmo helenizado
certamente assimilaram algumas de suas ideias para o
desenvolvimento de uma nova teologia cristã. Não é sem razão que
Clemente de Alexandria (250 d.C.), imbuído do pensamento de Filo,
chegou a a rmar que, “como a lei formou os hebreus, a loso a
formou os gregos para Cristo. A Filoso a prepara o caminho para a
perfeição em Cristo”.44

ORÍGENES DE ALE ANDRIA

Em pouco tempo, o cristianismo alexandrino também teria um


representante à altura de Filo. Tratava-se de Orígenes, que também
fez amplo uso do método alegórico a m de estabelecer o texto
crítico do Antigo Testamento. Ele nasceu em Alexandria por volta
do ano 185 da Era Cristã. Tornou-se asceta e procurou criar um
lugar de honra para o cristianismo em meio ao ambiente
alexandrino.
Seguindo os passos de Filo, Orígenes desenvolveu uma
interpretação alegórica da Bíblia, dessa vez dentro de uma
perspectiva cristã. Fora esse detalhe, seu método nada tem de
original. Era o mesmo dos gramáticos de Alexandria que foram
seus mestres, produzindo, portanto, os mesmos resultados.
Mas nem tudo foi alegorização. Orígenes produziu um excelente
trabalho de crítica textual com sua imensa sinopse do Antigo
Testamento, a chamada Hexapla. Para produzi-la, ele dispôs seu
manuscrito em seis colunas. Na primeira, transcreveu o texto
hebraico, transliterado em letras gregas na segunda. A seguir,
vinham quatro diferentes versões gregas: a de Áquila,
extremamente literal; a de Símaco, muito mais elegante; a LXX; e,
nalmente, a de Teodócio, que é apenas uma revisão da LXX
harmonizada com a tradução de Áquila.
Sua vasta obra incluía uma gigantesca coleção de comentários
do Antigo e Novo Testamento, totalizando 257 volumes. Todos, é
claro, inspirados na exegese de métodos alexandrinos que
consistiam, como vimos, em descobrir o suposto signi cado oculto
e alegórico por detrás do texto bíblico. O Antigo Testamento servia
de alegoria para o Novo, por exemplo: os dois seios da mulher de
cantares seriam o Antigo e o Novo Testamentos; os três poços (de
Isaque, Jacó e José) seriam a Trindade, a água seria a graça, as
ovelhas dos patriarcas, o povo de Deus, e assim por diante.
Essa liberdade interpretativa se justi cava no fato de que, tanto
para Filo como para Orígenes, a alegoria seria a alma do texto e o
sentido literal, o seu corpo.45 Para ambos, o sentido literal das
Escrituras chegava a ser perigoso e tendia para o absurdo, a
impiedade e o legalismo.46
Alexandria tornou-se um centro de expansão do cristianismo
durante os primeiros séculos da Igreja, posição que conservou até a
chegada do islamismo, no século 7. Alguns supõem que essa cidade
seria o centro de atividade intelectual, na tentativa de restaurar o
texto da Bíblia antes de 325. Todavia, não houve basicamente
nenhuma crítica textual verdadeira do Novo Testamento durante
esses séculos. Foi, antes, um período de reduplicação de
manuscritos, e não de avaliação de textos. No entanto, em
contraposição a Alexandria, na Palestina, de 70-100 d.C., estudiosos
rabínicos efetuaram diligente trabalho textual no Antigo
Testamento.
POLIGLOTA COMPL TENSE E TE T S
RECEPT S

Depois da invenção da impressa, o primeiro Novo Testamento


impresso em grego foi a Bíblia Poliglota Complutense, planejada em
1502 pelo cardeal da Espanha, Francisco Ximenes de Cisneros (1437-
1517). O Novo Testamento foi terminado em 10 de janeiro de 1514, e o
Antigo em 1517. Traz o texto em hebraico, grego e latim (tradução
de Jerônimo) em colunas, mas o Pentateuco possuía um texto
aramaico (Targum Onkelos) e uma tradução latina no rodapé. O
quinto volume era o texto grego do Novo Testamento ladeado de
uma tradução para o latim. O sexto volume consistia em um
dicionário grego, aramaico e hebraico. Foi feita na universidade de
Alcalá (que os latinos chamavam de Universidade de Complutum,
daí o nome “complutense”). Das 600 cópias impressas, restam
atualmente 123, estando uma delas na Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro.
Embora a Poliglota Complutense fosse o primeiro Novo
Testamento grego impresso, não foi o primeiro publicado. O Novo
Testamento estava completo e impresso em 1514, porém não se deu
sua publicação enquanto trabalhava-se ainda no Velho Testamento
para que pudessem vir à luz como uma única obra. Por essa época,
notícia do projeto chegou até o conhecimento de Erasmo de
Roterdã, que produziu sua própria edição impressa do Novo
Testamento grego. Erasmo obteve do imperador Maximiliano e do
papa Leão X o privilégio de publicação exclusiva por quatro anos.
Esse texto tornou-se o Textus Receptus e suas edições posteriores
foram a base para o Novo Testamento da versão King James.
O Velho Testamento Complutense estava completo em 1517, mas
por força do privilégio obtido por Erasmo, a publicação da Poliglota
Complutense foi adiada até que o papa Leão X pudesse sancioná-la
em 1520. Acredita-se que sua distribuição foi reduzida até 1522. O
cardeal Cisneiros morreu em julho de 1517, cinco meses após o
término da obra, e não chegou a ver sua publicação.
A primeira edição de Erasmo em 1516 estava cheia de erros
tipográ cos que ele mesmo corrigiu nas edições seguintes (1519,
1522, 1527 e 1535). Mas o texto não foi aperfeiçoado com aparato
crítico.

NOVOS M TODOS

Desde a época de Orígenes até o período da Reforma, a


interpretação bíblica não sofreu alterações a não ser oscilar entre o
método literal e o alegórico que, aliás, foi o mais utilizado pelos Pais
da Igreja ocidental, e também por Agostinho e Jerônimo.
A Renascença, com toda sua inovação artística e intelectual, foi
que proporcionou o ambiente para essa nova empreitada crítica da
literatura bíblica, inspirada, como dissemos, nos antigos moldes
gregos de Alexandria. Traumatizados pelo atraso cultural trazido
pelo catolicismo da Idade Média, os intelectuais queriam aproveitar
os novos tempos incentivando um estudo mais abrangente das
culturas extraeclesiais com especial ênfase nos recursus ad fontes,
isto é, volta às fontes, que incluía o estudo do grego clássico, das
línguas semíticas e de antigos autores proibidos na Baixa Idade
Média. Foi então que o estudo da Bíblia passou a ser mais literário,
empregando ferramentas novas e técnicas seculares utilizadas em
outras fontes textuais da Antiguidade.
Assim, desde a época da Reforma Protestante, três métodos
principais de estudo bíblico têm sido seguidos pelos acadêmicos: o
gramático-histórico, o histórico-crítico e o estruturalista.47
Friedrich Schleiermacher (1768-1834), rejeitando a clássica
distinção entre hermenêutica secular e hermenêutica sagrada,
preferiu falar de uma hermenêutica geral, aplicável para toda a
literatura, incluindo as Escrituras. Em virtude disso, muitos
autores passaram a defender um estudo hermenêutico da Bíblia
apenas a partir de um ponto de vista crítico-histórico sem
nenhuma distinção de outros livros produzidos na Antiguidade. Tal
exercício, é claro, dilui o conceito de inspiração e revelação
assumidos pela doutrina cristã em relação à Bíblia Sagrada.
Assim, é possível encontrar hoje uma gama de signi cados para
a expressão “hermenêutica bíblica” que justi ca um
esclarecimento acerca de qual conceito estamos empregando. Para
uns, a hermenêutica bíblica (contrária à exegese) seria o abandono
completo ou parcial do sentido original do livro e do autor (objetivo
exclusivo da exegese) com vistas a descobrir qual é o seu real
signi cado para os dias de hoje. Para outros, porém, a
hermenêutica seria a teoria que normatiza a exegese.48
E ainda temos a chamada “nova hermenêutica”, que deve ser
distinta das concepções anteriores. Expressa especialmente na
teoria do Estruturalismo, esta é a vertente mais pós-moderna do
termo que nega a autonomia do texto acreditando que qualquer
interpretação só se dá a partir do leitor (e cada um tem uma
interpretação diferente).
Por muitos anos, desde o século 17 até as primeiras décadas do
século 20, predominou no mundo acadêmico o estudo da Bíblia
como literatura clássica, especialmente no método crítico-
histórico.49 Esse método desenvolveu-se mais pelo esforço do
teólogo holandês Hugo Grotius, do biblista francês Richard Simon e
do lósofo Holandês Baruch Spinoza, curiosamente um
protestante, um católico e um judeu. Mas o impulso maior desse
método dentro dos seminários aconteceu por ocasião da publicação
póstuma dos trabalhos de Reimarus (um teólogo deísta do século 18)
e, depois, por causa do Iluminismo e do movimento historicista
alemão do século 19.
Seu nascimento coincide com o chamado triunfo da razão
(racionalismo) e dos elementos que advieram dele. A Bíblia, nesse
contexto, começou a ser estudada como um simples objeto literário
da Antiguidade Clássica, passível de observação e compreensão
crítica à luz do que já se havia obtido em outras áreas do
conhecimento racional. Ideias teológicas anteriores como
inspiração, revelação e iluminação se dissolveram neste novo
ambiente. O objetivo da nova hermenêutica era a busca exclusiva
pelo signi cado histórico do texto.
Assim, de maneira natural, essa busca por signi cado histórico
chocava-se com visões doutrinárias mais antigas e a necessidade
epistemológica se fazia evidente. A tensão entre conhecimento
histórico e fé permeou profundamente as estruturas do método,
basta ver como exemplo disso as questões envolvendo a
historicidade bíblica e as distinções entre o Jesus histórico e o
Cristo da fé. Alguns, advogando a impossibilidade hermenêutica de
objetividade histórica, preferiram abandonar a busca pelo mais
antigo, entendendo já o texto como um subproduto mitológico de
uma realidade bem menos sensacional.
A análise oferecida pelo método histórico-crítico pretendia
analisar o material antigo do modo mais objetivo possível,
fornecendo estruturas cientí cas que permitissem coletar os fatos
passados e explicá-los de acordo com as possibilidades
metodológicas existentes. Tal premissa, no entanto, só faz sentido
se for aplicada a um texto e material histórico o mais próximo
possível do original pesquisado. Daí a necessidade da crítica
textual.
Foi com esse propósito em mente que teólogos liberais,
sobretudo da escola alemã, aplicaram ao estudo da Bíblia técnicas
de reconstrução textual típicas de outras obras literárias conforme
o entendimento que tinham do modo como uma unidade literária
seria hipoteticamente construída ao longo do tempo.
Estudos crítico-literários sobre o folclore alemão (especialmente
os irmãos Grimm) in uenciaram muito os teólogos na ocasião. Daí
o nome do método ser “histórico-crítico”. Compreendia-se que a
história era o elemento que direcionava a produção do texto desde
seus “estratos” iniciais até sua forma nal e sua especulativa
“pluralidade de autores”. O problema é que a maioria dos
folcloristas de hoje critica as conclusões de outros que foram
in uenciados pelo Romantismo do século 19. Atualmente, o
conceito de folclore mudou, bem como a ênfase da disciplina,
abandonando a busca pelo Urtext (texto original) e os costumes,
preferindo uma abordagem de orientação mais processual.
Ademais, a abordagem histórico-crítica — como seria de se
esperar — foi desde o início questionada por teólogos de linha mais
conservadora que compreendiam os perigos do criticismo à
compreensão tradicional da Bíblia como Palavra inspirada por
Deus.50 A bem da verdade, muitos exegetas usuários do método
histórico-crítico jamais reconheceram que estariam questionando
a inspiração da Bíblia como Palavra de Deus. Apenas diziam que,
sendo um registro antigo, esta deveria ser estudada como se
estudaria um texto clássico produzido há centenas de anos. Foram
os teólogos conservadores que assinalaram os problemas desta
abordagem para a compreensão divino-humana da Bíblia Sagrada
No método histórico-gramatical utilizado originalmente pela
Reforma, a exegese era desenvolvida dentro do contexto de Sola
Scriptura, cujo pressuposto inegociável era a consideração da
natureza divino-humana das Sagradas Escrituras, ou seja, sua
mensagem está em linguagem humana, mas foram inspiradas
diretamente por Deus.
Não se admira, portanto, que nos séculos que se seguiram desde
suas origens até hoje, os dois métodos (histórico-crítico e histórico-
gramatical) tenham estado em franca oposição quanto à
interpretação correta das Escrituras. Há de se admitir, contudo, que
houve uma predominância do método histórico-crítico nos
principais círculos acadêmicos da Europa e dos Estados Unidos.
31 G. E. Wright. “The Theological Study of the Bible” in The Interpreter’s One-Volume
Commentary on the Bible. Nashville, TN: Abingdon Press, 1971, p. 983.

32 G. Hasel. Old Testament Theology: Basic Issues in Current Debate. Grand Rapids, MI:
Eerdmans, 1974, p. 75.

33 Citado por R. Price. Searching for the Original Bible. Eugene, Oregon: Harvest
Publishers, 2007, p. 19.

34 G. F. Hasel, Teologia do Novo Testamento, 13.

35 Eldon J. Epp. “Issues in New Testament Textual Criticism: Moving from the
Nineteenth Century to the Twenty-First Century” in Rethinking New Testament Textual
Criticism, Ed. David A. Black. Grand Rapids, MI: Baker, 2002, p. 21.

36 J. Tate. “On the History of Allegorism”. Classical Quarterly 28 (1934): 105-114.

37 Buscar a origem da língua era descobrir a origem do mundo. Havia duas escolas de
pensamento sobre a origem da língua: a dos anomalistas (ou da língua natural), a que
pertencem, sobretudo, os lósofos estoicos e os gramáticos da escola de Pérgamo; e a dos
analogistas (ou da língua convencional), dos gramáticos de Alexandria, sobretudo
Dionísio de Trácia e Apolônio Díscolo. Os anomalistas insistiam na frequência das
exceções e na presença de diversos tipos de analogias dentro de uma mesma classe de
palavras. Estabeleceram que a língua não podia depender da convenção do homem; se
assim fosse, deveria ser mais regular, porque a lógica prevaleceria sobre a irregularidade.
Resulta que a língua nasce da natureza, revelada no uso. A resistência à criação de línguas
planejadas, que acontece ainda em tempos modernos, apresenta-se como um resíduo
recessivo do anomalismo estoico. Admitiam os estoicos uma relação entre o signi cado da
palavra e seu portador material, de cuja forma natural este signi cado derivava. Ainda
que o uso corrompesse a palavra natural, ela permanecia, podendo ser procurada. Em
consequência, estimularam os estoicos à ciência da etimologia para estudo dos étimos
(étymos = verdadeiro, real, étimo).

38 Rita Copeland e Peter T. Struck (Eds). The Cambridge Companion to Allegory. Cambrigde:
Cambridge University Press, 2010, p. 2.

39 G. P. Caprettini, “Alegoria” in Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da


Moeda, 1994, p. 31: 247-277; e Peter Struck, Birth of the Symbol: Ancient Readers at the Limits
of Their Texts. Princeton: Princeton University Press, 2004, p. 23.

40 Theodore L. Kassier. The truth disguised: allegorical structure and technique in Gracian’s
“Criticon”. Londres: Tamesis Books Limited, 1976, 8 nota 19; Ellen Birnbaum. “Allegorical
Interpretation”. In: David Aune, Torrey Seland e Jarl Henning Ulrichsen (Eds).
Neotestamentica et Plilonica: Studes in Honor of Perder Borgen. Leiden: Brill, 2002, p. 308 e
309.

41 Jon Whitman. Allegory: the Dynamics of an Ancient and Medieval Technique Cambridge:
Harvard University Press, 1987, p. 2.

42 Rebecca Saunders. “The Agony and the Allegory: The Concept of the Foreign, the
Language of Apartheid, and the Fiction of J. M. Coetzee”. Cultural Critique, 47, (Winter
2001):223-224.

43 De Mund. Op. i.38; de conf. Ling. i. 405; Leg. All. i. 128; de Jos. Ii. 59.

44 Stromata 1.5.28.3. Veja também: Eric Orson. Clement of Alexandria. Cambridge:


Cambridge University Press, 2008, p. 88-92; e Annewies Van Den Hoek. Clement of
Alexandria and his Use of Philo in the Stromateis. An Early Christian reshaping of a Jewish
model (Supplements to Vigiliae Christianae III), (Leiden: E.J.Brill, 1988), p. 159.

45 de Mgr. Abr. i. 450.

46 e.g. Leg. all. i. 44; de Conf. Ling. i. 425; de Sosnn. 634; de Spec. Leg. ii. 329; de Agric. i.
324 etc.

47 Hoje existem autores que seguem outras abordagens alternativas, como a abordagem
narrativa, a abordagem retórica etc. Mas estes três segmentos ainda são os clássicos e
modernos métodos que se mostram apenas como desdobramentos deles. Para uma visão
geral das modernas abordagens veja J. A. Fitzmeyer, Escritura, a alma da Teologia. São
Paulo: Loyola, 1997,

48 Walter C. Kaiser, Jr., Toward an Exegetical Theology. Grand Rapids: Baker, 1981, p. 47;
David Stacey, Interpreting the Bible. Nova Iorque : Seabury, 1977.

49 Veja E. Krentz, The Historical Critical Method. Filadél a, PA: Fortress Press, 1975. Sobre o
predomínio do método nos estudos do Novo Testamento veja: W. G. Kümmel, The New
Testament: the History of the Investigation of Its Problems. Nashville, TN: Abingdon Press,
1972..

50 Cf. J. A. Fitzmyer. Escritura, a alma da Teologia. São Paulo, SP: Loyola, 1997, p. 26 e 27.
CAPÍTULO TREZE

A BÍBLIA
HOJE

NOVAS ABORDAGENS P S-MODERNAS

A situação de predominância do método crítico-histórico só foi


modi cada a partir de meados dos anos 1960, quando houve uma
nova reação acadêmica fortemente contrária àquela abordagem
literária da Bíblia. Esta, contudo, não partiu de leigos nem de
teólogos conservadores, mas de autores, igualmente liberais,
oriundos da Escola Linguística e da Teoria da Literatura.51
Os novos proponentes hermenêuticos já não se interessam mais
pela evolução textual do relato ao longo dos anos. A
Redaktionsgeschichte [crítica redacional] e a Formgeschichte [crítica
da forma] não têm importância alguma nesta nova abordagem mais
estrutural e linguística. Procura-se agora trabalhar o texto, seus
parágrafos e suas frases conforme se apresentam num dado
momento, sem se preocupar com rascunhos, estratos ou formas
prévias. Em alguns casos, isso signi cou para a linguística uma
signi cativa diminuição dos estudos etimológicos e da gramática
histórica ― o que, de certa forma, é desastroso para os mais
conservadores que optam pelo método histórico-gramatical
Um livro-chave que marcou época nesta ruptura com o método
histórico-crítico foi O con ito das interpretações, de Paul Ricoeur,
que representou a tensão e a controvérsia hermenêutica marcada,
por um lado, por tradicionais exegetas da velha escola alemã e, por
outro, pelos novos intérpretes franceses que advogavam a
dessubstancialização do sujeito/autor pelo métodos estruturais
daquele que lê ou recebe a redação.
Em 1959 Helen Gardner já anunciava:

No campo das pesquisas, as teorias relativas a diferentes autores, versões


primitivas ou diferentes estratos [literários] têm sido paulatinamente
descartadas. O tipo de análise que antes creram ser o único dever do
criticismo literário está hoje acentuadamente fora de moda. A tendência
atual pende mais e mais a favor da existência de um único autor, a menos
que exista uma clara evidência externa contrária a isso.52

As causas da reação ao criticismo histórico estavam na falha do


método em produzir signi cados teológicos concretos. Eles
também falharam em responder empiricamente questões
relacionadas à autoria, data e objetivos das obras. Além disso, o
estudo da literatura (especialmente a literatura clássica) migrou da
historiogra a para a história social, usando métodos de
interpretação (sincrônicos e diacrônicos) que se aproximassem de
modelos linguísticos e do desenvolvimento do pensamento
hermenêutico contemporâneo.
Por método sincrônico e diacrônico entenda-se, conforme a
de nição de Ferdinand de Saussure, que “é sincrônico tudo quanto se
relacione com o aspecto estático da nossa ciência; é diacrônico tudo
que diz respeito às evoluções”.53 Isso aplicado ao texto,
especialmente ao texto bíblico, quer dizer que os que analisam a
Bíblia com o método diacrônico se aproximam mais do antigo método
crítico histórico, pois estudam o texto sagrado em seu suposto
processo de formação (exemplo: hipótese documentária, fonte Q,
Deutero-Isaías etc.). Já os que optam pelo método sincrônico não
necessariamente negam, mas evitam a busca pela chamada
“evolução do texto”, preferindo examiná-lo tal como se encontra
em nossos dias em seu formato nal.
É evidente que nem sempre há entre os exegetas atuais uma
dicotomia ou separação restrita entre as abordagens diacrônica e
sincrônica. Há quem entenda que ambas não são excludentes, mas
complementárias. No que diz respeito à proposta oferecida por uma
hermenêutica mais conservadora, não se pode excluir por completo
as noções de possível evolução de um texto bíblico. Mas,
reconhecendo o caráter especulativo das reconstruções oferecidas e
a dissolução do aspecto divino que existe na Biblia, é preferível
trabalhar com o texto em sua forma nal. O que não signi ca
também uma adoção irrestrita da abordagem diacrônica que
também pode partir de pressupostos incongruentes com a proposta
adventista.
De um modo geral, a leitura sincrônica pode apresentar análises
como estas:

▷ Análise retórica: busca compreender os discursos que


aparecem na Bíblia. Tais discursos são analisados segundo as
partes comuns de um discurso, conforme visto na retórica
clássica (exortação, narração, demonstração, refutação e
epílogo). O ponto falho desta análise está no fato de que a
maior parte da Bíblia não re ete necessariamente a forma
clássica (grega, romana e greco-romana) de um discurso. A
leitura excessivamente helenística do texto bíblico pode
torná-lo disassociado de seu verdadeiro contexto hebraico-
oriental.

▷ Análise narrativa: estuda unicamente os textos narrativos da


Bíblia, que são a maioria. Na narração buscam-se o(s)
protagonista(s), o(s) antagonista(s), os demais participantes,
a ação descrita, as circunstâncias da ocorrência (tempo,
ordem dos fatos etc.). Em se tratando de um texto bíblico que
traz a História da Redenção, não se pode esquecer que existe
um elemento histórico-divino por detrás das ações humanas
ali testemunhadas.

▷ Análise semiótica: parte de dois pressupostos. Primeiro: a


interpretação de um texto depende do estabelecimento das
várias relações existentes dentro do próprio texto. Segundo:
as relações fundamentais de qualquer texto são as de
oposição ou de equivalência, isto é, dos termos antitéticos
(morte/vida, luz/trevas) ou sinônimos (santuário/templo,
desejar/amar).

Todas essas abordagens podem ter um lugar na compreensão do


texto bíblico, desde que não excluam elementos da análise
histórico-gramatical e que respeitem, acima de tudo, o espírito do
texto inspirado, a autoria divina dele e o sentido histórico-teológico
que ele possui.
A construção da nova abordagem hermenêutica se dá ao mesmo
tempo em que estudiosos da sociologia pretendem oferecer maior
obtividade cientí ca e matematização dos trabalhos acadêmicos de
caráter social — é o caso da proposta de Lévi-Strauss a partir da
matemática de grupos. Essas discussões permeiam as novas leituras
e a chamada “textura” cultural utilizada para interpretar obras
fundamentais. Longe de ser unívoco, esse novo contexto
hermenêutico não se reduz a nomenclaturas ou liações a
determinadas loso as e escolas de pensamento. Antes, ele subjaz
— na maioria das vezes inconscientemente — na própria essência
do pensamento ocidental contemporâneo. Por isso, não é estranho
que as mesmas assertivas sejam encontradas (ainda que em
palavras diferentes) em distintas obras mesmo anteriores à década
de 1960, como de Heiddeger, Walter Benjamin, Gadamer,
Habermas, entre outros.
Pluralístico como a própria pós-modernidade que o produziu,
este “novo criticismo literário” — questionador do tradicional
“criticismo” usado pelo método histórico-crítico — é diversamente
denominado por vários nomes e caracterizado por múltiplas
abordagens. Fala-se da “nova crítica literária”, da crítica narrativa,
da crítica retórica, da crítica canônica, da interpretação
sociológica, da interpretação antropológica, da interpretação
psicológica, da crítica feminista, da crítica estruturalista etc. Cada
uma, é claro, tem um diferente grau de predomínio e muitas,
conforme a própria condição efêmera das loso as atuais, já
tiveram o seu ocaso anunciado pelos especialistas. Para efeito de
introdução, vamos denominá-las de maneira conjunta como
“abordagens pós-modernas das Escrituras”.
De modo geral, reconheceu-se nestas novas abordagens que a
Bíblia não é apenas a história de uma construção literária. Seja qual
for a sua origem, ela é, hoje, um conjunto semiótico uni cado e
como tal deveria ser analisada. A ênfase comum que se dava a
imaginárias fases de elaboração textual ou sobre o conteúdo de
supostos documentos hoje perdidos fez com que os exegetas
negligenciassem o principal elemento de análise que temos
atualmente, a saber, o texto pronto na forma como o possuímos.
Por isso, a nova abordagem literária da Bíblia procura tratar o texto
bíblico como entidade autônoma.
Olhando assim, à primeira vista, tais colocações parecem
coadunar com a abordagem tradicional vista no método histórico-
gramatical, principalmente por serem um ataque às propostas do
método histórico-crítico. Contudo, não podemos cair no dicto
simpliciter (ou falácia do acidente) de uma falácia por divisão, isto é,
quando se toma a parte pelo todo. O fato de as propostas pós-
modernas a rmarem coisas semelhantes ao método histórico-
gramatical não torna uma o decalque da outra, nem as faz
necessariamente condizentes em seus pressupostos e resultados
hermenêuticos.
Um exemplo pode ser visto na maneira como a nova
hermenêutica enfoca o antigo conceito de Geschichte tão essencial
no método histórico-crítico. Mas o que seria Geschichte? Entendido
como história (mas não necessariamente histórico) tanto na
Redaktionsgeschichte (história da redação) como em Formgeschichte
(história da forma), esse termo passa a discutir, na ênfase das novas
hermenêuticas, não a suposta gênese histórica dos textos ou a
historicidade de seus relatos, mas, antes, a centralidade do autor
visto aqui como receptor da tradição mais antiga. Por isso vemos
em novos comentários uma sobrevalorização do lugar vivencial ou
Sitz im Leben do redator nal.
O enfoque está no ponto de vista do redator nal, da situação na
qual se efetuou a unidade do texto em relação aos elementos que ele
mesmo recebeu. Daí pula-se para a segunda etapa, que seria a
compreensão atual do receptor moderno que, por causa de sua
autonomia cognitiva somada à relação de causa e efeito
(Aristóteles), pode ter uma compreensão igualmente legítima, mas
desassociada e independente do Sitz im Lebem do autor original.
Essas abordagens brotam da perspectiva denominada Reader
Response Criticism ou crítica da resposta do leitor. Trata-se de uma
teoria literária pós-moderna focada nas audiências ou experiências
pessoais dos leitores de qualquer obra literária. Essa teoria ganhou
recente destaque entre os acadêmicos por causa de sua ideologia
contrária às teorias anteriores focadas primariamente na forma ou
conteúdo do texto.

A MORTE DO A TOR

Embora o leitor/receptor sempre tenha tido um papel relevante no


processo de comunicação literária, foi só no século 20 que surgiram
as teorias que podemos designar, genericamente, por teorias de
recepção, ou seja, teorias cujo principal objeto de interesse é a
resposta do público às obras literárias. São duas as principais
tendências teóricas orientadas para o leitor: as teorias de resposta
americanas e a estética da recepção alemã.
Em 1968, Roland Barthes escreveu um famoso ensaio intitulado
“A morte do autor”, no qual já dizia embrionariamente que “o leitor
é o espaço onde todas as palavras do texto são inscritas sem que
nenhuma se perca, [e que] a unidade do texto reside não na sua
origem, mas no seu destino”. Ele ainda dizia metaforicamente que o
“nascimento do leitor” custaria a “morte do autor”.
Barthes não queria com sua ideia dar ao leitor a palavra nal
sobre o signi cado do texto. Ele apenas defendia a ideia de que o
recebimento atual de quem lê é a única preservação genuína que
temos de uma obra literária. Contudo, suas ideias muito
contribuíram para a compreensão posterior de que o sentido do
texto não está mais no autor que o produziu, pois não temos acesso
objetivo à sua mente, mas no leitor que o interpreta.
Considerando a invalidação que estas abordagens trouxeram
sobre o método histórico-crítico, muitos cristãos conservadores
tomaram inadvertidamente seus pressupostos como princípios de
uma ortodoxia hermenêutica e acabaram, mesmo sem querer,
minando a credibilidade da Bíblia Sagrada.
Um exemplo disso é a chamada estética da recepção. Na
Alemanha, essa teoria recebeu o nome de Rezeptionästhetik
[estética da recepção], e no mundo anglo-americano, Reader
Response Criticism [crítica à resposta do leitor]. Por causa da
di culdade de tradução literal em português, autores brasileiros
geralmente se referem a ela pelo seu título inglês ou alemão.
Embora se registem diferentes pontos de vista nos proponentes
desta escola literária, os críticos parecem concordar, em síntese,
que a interpretação nal do texto reside na importância do leitor
não apenas como um tradutor-intérprete do sentido do texto, mas
como um interpretador criativo que pode agir sobre esse sentido
modi cando-o. Em suma: pouco importa o que Paulo tenha
realmente dito ou intentado dizer ― isso está quase totalmente fora
de nosso alcance ―, o que importa é como o leitor moderno o
entende a partir de sua própria visão de mundo.
Alguns, porém, como Gadamer, defendem uma crítica centrada
não somente no leitor moderno, mas no público histórico, ou nos
públicos, de uma obra, no sentido em que o crítico deve estudar a
relação entre a recepção que ela teve no passado e a que tem no
presente. A sua perspectiva é, portanto, claramente histórica, já
que sustenta que a forma como uma obra literária, no momento
histórico da sua apresentação, satisfaz, ultrapassa, desilude ou
refuta as expectativas do público. Contudo, mesmo essa abordagem
mais ampla mantém seu foco não na intenção autoral, mas
naqueles que receberam sua mensagem.
Embora haja pontos interessantes nestas abordagens, as
implicações da teoria da Rezeptionästhetik para o ensino e
entendimento da Bíblia Sagrada são deveras perigosas se tomadas
em sentido extremo. Em primeiro lugar, está o fato de que se
relativiza a noção de verdade fazendo com que esta não exista senão
no nível pessoal do indivíduo. Já não existem fatos bíblicos, mas
apenas interpretações.
Em segundo lugar, há o problema crucial de considerar a Bíblia
um livro losó co, mitológico, mas não uma redação objetiva de
fatos que realmente ocorreram na História da humanidade.
Especialmente para os cristãos, qualquer abordagem que negue a
historicidade de Cristo e sua ressurreição dentre os mortos liquida
todos os valores morais, religiosos ou doutrinários do cristianismo.
Por m, em terceiro lugar, neste tipo de abordagem fere-se à
orientação das escrituras bíblicas como Palavra de Deus. Os
proponentes da Rezeptionästhetik geralmente abordam os textos
bíblicos indevidamente. Muitos desses críticos não conseguem ver
que a Bíblia não deveria ser classi cada como literatura secular.
Interessante é notar que mesmo fora do ambiente bíblico houve
autores que criticaram fortemente essa abordagem literária (que
também foi aplicada à poesia secular). Considerados como o grande
manifesto da nova crítica americana contra o leitor, os ensaios de
W.K. Wimsatt “The Intentional Fallacy” e “The A ective Fallacy”
(escrito com a colaboração de M. Beardsley e publicado em 1954)
denunciaram o estudo das causas, efeitos ou resultados da poesia
como sendo a maior falácia da crítica literária.

E A NOVA CRÍTICA LITERÁRIA?

A Nova crítica literária remonta a uma retomada do alegorismo


alexandrino proposto por Edmund Husserl (1859-1938) e sua
abordagem fenomenológica. Rompendo com o historicismo e com
o empirismo, ele propôs uma nova versão de idealismo que era a
observação dos próprios processos mentais. Para ele, a linguagem
existe em um sentido “idealístico”, e a única certeza absoluta é o
conhecimento de nossa própria consciência, somado aos processos
mentais de nossa interação com a realidade.
Aplicando isso aos textos produzidos, ele dizia que o ideal era
“deixar as coisas aparecerem como elas eram” e evitar a todo custo
colocar nossos próprios pressupostos na leitura que fazemos
(princípio do reducionismo fenomenológico). O foco hermenêutico
de Husserl era a experiência imediata, pois “tudo o que não é
imanente à consciência precisa ser descartado”.
A fenomenologia de Husserl, portanto, foi um método losó co
de interpretação da realidade (inclusive literária) segundo o qual
tudo em redor deve ser entendido como fenômeno puro. Logo, a
consciência é apenas um intencional ato da própria consciência. O
sujeito que pensa, interpreta, observa é inseparável do objeto
pensado, interpretado, observado. A arte de interpretar é uma
revelação do ser e sua prática é o fenômeno pelo qual vem o
conhecimento real do mundo em redor.54
Numa tentativa de ir além da abordagem essencialista de
Husserl, Martin Heidegger, seu discípulo, apresentou uma teoria
hermenêutica existencialista no seu livro O ser e o tempo. É
importante dizer que a palavra “ser” (Dasein em alemão) tem um
sentido especial nesta abordagem. Num sentido imediato, ela
signi caria “estar lá” ou “estar no mundo”, mas Heidegger
argumentou que “o que é distintivo acerca da existência humana é
este ‘dom de ser’: nossas consciências não só projetam as coisas do
mundo como se sujeitam a este mesmo mundo através da própria
natureza de existir no mundo”.55
Heidegger rejeitou a noção de conhecimento histórico objetivo
optando por lançar-se no mundo da linguagem. Sua novidade em
relação a Husserl é que para ele jamais poderemos nos livrar de
nossos pressupostos existenciais a m de lograr um conhecimento
objetivo da realidade, por isso é impossível encontrar em um texto
um signi cado único que seja a expressão exata da realidade. O ser,
portanto, encontra-se em um círculo hermenêutico no qual o
conhecimento prévio será sempre uma leitura centrípeta do
processo de interpretação textual.
Baseado nestes insights, Hans-George Gadamer, um ex-aluno de
Heidegger e Bultmann, apresentou o que muitos consideram a
primeira sistematização que correlacionava coerentemente a
linguística e a teoria hermenêutica.56 Seguindo ainda teóricos
linguísticos como Saussure, ele ainda argumentaria que “é apenas
através da linguagem que nós temos um mundo”.57 Portanto, a m
de entender um texto nós precisamos realizar uma fusão entre o
horizonte de nosso próprio mundo e o mundo do texto com o qual
estamos interagindo. Isso cria uma dialética interpretativa e dá ao
texto um novo signi cado. A leitura não se limita a recriar em
nossa mente as condições contextuais do autor que estamos lendo.
Neste ponto é possível veri car o progresso, a dinâmica e a
transição do modelo de interpretação onde o autor possuía a
autoridade nal e única, para o leitor, entendido como o árbitro
de nidor da mensagem de qualquer texto. Como essa é a agenda
interpretativa, sobretudo na América Latina, vemos que o Reader
Response Criticism projeta os outros modelos como: hermenêutica
black, hermenêutica feminista, hermenêutica ecológica,
hermenêutica da libertação, hermenêutica pós-colonialista,
hermenêutica queer etc. Muitos dizem que estas são as formas mais
aceitáveis de interpretação do texto bíblico. Leitores mais atentos,
contudo, percebem os perigos hermenêuticos de se impor
ideologias externas ao texto bíblico fazendo-o dizer o que jamais
fora intentado por nenhum de seus autores.
Fora do ambiente teológico vieram então guras-chave, como
Monroe Curtis Beardsley (1915-1985) e seu companheiro de
pesquisas William K. Wimsatt Jr. (1907-1975). Ambos ensinavam
literatura e poesia em Yale e juntos escreveram o famoso artigo
“Intentional Fallacy”,58 que se tornou um divisor de águas no mundo
da teoria literária. Eles anunciavam taxativamente a morte da
intenção autoral. Em sua argumentação, uma vez que o processo
psicológico do autor estaria inacessível ao intérprete, não havia
necessidade alguma de se importar com ele. O que interessa é o
leitor moderno que se situa diante da poesia, e não o poeta e o
contexto em que a escreveu.
Em pouco tempo, especialistas em hermenêutica bíblica
começaram a se interessar por essa nova abordagem. Uma das
primeiras e principais publicações voltadas a aplicar esses
conceitos à Bíblia foi possivelmente a obra de Hans W. Frei
intitulada The Eclipse of Biblical Narrative: a Study in Eighteenth and
Nineteeth Century Hermeneutics, publicada em 1974. Nela, Frei
argumenta que os teólogos liberais com sua hermenêutica se
mostraram cada vez menos interessados em saber o que o texto diz,
para se aventurar no que possivelmente aconteceu e, portanto,
estaria por trás da produção daquele texto.
O resultado disto é que se tornou um desa o conviver com
tantas “críticas” propostas, pois cada acadêmico imaginava um
contexto diferente (Sitz im Leben) para a origem e desenvolvimento
do texto. O autor continua dizendo que até mesmo os acadêmicos
mais conservadores caíram no mesmo problema ao apresentarem
suas propostas históricas sobre o que realmente aconteceu no
passado.
Frei não intencionava desmerecer as questões históricas, mas
não as considerou o mais importante. Para ele, o ideal
hermenêutico deveria ser o próprio texto em si. A nal,
argumentou ele, antes do surgimento do método histórico-crítico
os cristãos liam a Bíblia acreditando que Deus se encontraria com
eles através do texto e hoje não deveria ser diferente. A igreja
deveria buscar Deus no texto e não perder tempo com recriações
imaginárias acerca dele.59

ESTR T RALISMO E DESCONSTR CIONISMO

Esta abordagem centralizada no texto e popularizada por Frei foi


uma das primeiras, mas não a única proposta desta nova
hermenêutica pós-moderna. Duas outras propostas seguiram
paralelas: o estruturalismo e o desconstrucionismo.
O estruturalismo surgiu primeiramente na França, por volta dos
anos 1960, como fruto da mesma virada linguística proposta por
Beardsley, Wimsatt Jr e que esteve nas bases da Nova crítica
literária. Não se pode esquecer, é claro, da linguística estrutural
moderna fundada por Saussure ― disciplina que gerou o
estruturalismo propriamente dito ― e o formalismo russo, que
questionava de maneira contundente aquela abordagem literária
de formação positivista com excessivos pressupostos sociais e
ideológicos, reveladora de um arti cial esforço teorizador imbuído
de um impressionismo fácil, privilégio de formadores
ideológicos.60
Ambos, estruturalismo e formalismo russo, se uniram numa
mesma teoria que procurava de nir as funções da linguagem,
sendo mais relevante a distinção entre a função referencial e a
poética. A primeira faz uso da linguagem denotativa, e a outra da
conotativa. Qual é a diferença? A linguagem denotativa está
diretamente ligada à signi cação, ou seja, ao seu sentido real, o
sentido do verbete de dicionário. Já a linguagem conotativa
trabalha com guras de linguagem, com uma extensão do sentido
literal. Veja os exemplos:

. Colhi uma or do jardim. (denotativo)


. Sua lha é mesmo uma or! (conotativo)

O reconhecimento e diferenciação entre ambas as linguagens


contribuiu para uma teoria literária cuja organização e
estruturação se diferenciam da linguagem cotidiana. Assim, textos
devem ser lidos e estudados levando-se em conta seus princípios
especí cos. O mais importante não é o signi cado, mas o
signi cante. A busca é pela gramaticalidade textual que revela a
estrutura humana de compreensão da realidade.61
O desconstrucionismo é um desdobramento do estruturalismo,
mas munido de um radical ceticismo em relação ao signi cado
único de um texto.62 Seus proponentes estão convencidos de que o
texto é instável, incoerente e sua interpretação é inevitavelmente
plural e contraditória. Assim, o leitor ca com duas opções:
abandonar por completo qualquer tentativa de interpretação ou
encontrar um signi cado pessoal que utue entre o texto, ele
(enquanto leitor) e as interpretações pluralísticas que o cercam.
Como disse Vanhoozer: “A Desconstrução não é um método de
interpretação, mas antes, um método de não interpretação, pois
denuncia as leituras como as funções de várias forças
ideológicas.”63
O desconstrucionismo baseia-se especialmente em Foucault, um
intelectual brilhante, mas que não escondia sua vida dissoluta e
emocionalmente mal resolvida. Ele morreu em 1984, e seu principal
legado para a construção do pensamento pós-moderno foi a
sistematização do discurso (seja ele qual for) como sendo uma
tentativa de alguns para exercer sua in uência sobre outros. Assim,
se queremos entender algo sem nos deixar levar pela in uência do
outro, devemos desconstruir os discursos que escutamos.
A seguir veio Jacques Derrida, considerado por muitos o
verdadeiro fundador ou sistematizador da proposta
desconstrutivista. Suas teses sobre a indeterminação natural do
sentido de um texto renderam-lhe um título doutoral honorí co
pela Universidade de Cambridge, em 1992. Para Derrida, não existe
em termos reais algo que possamos descobrir como “uma intenção
autoral” ou “um propósito pelo qual a obra tenha sido escrita”. As
palavras uma vez lidas por outra pessoa em outra geração, já não
signi cam mais aquilo que o autor um dia pretendeu que
signi cassem. Cabe ao leitor dar um signi cado pessoal para o
texto independentemente da interpretação original ou daquela
sugerida pelos métodos hermenêuticos tradicionais.
O desconstrucionismo de Derrida coincide com a formulação do
conceito de “pós-estruturalismo”, de modo que hoje um está
intimamente associado ao outro. Contudo, o pre xo “pós” não deve
ser interpretado como uma contraposição ao estruturalismo. Pelo
contrário, seus proponentes levam às últimas consequências as
propostas hermenêuticas surgidas no estruturalismo. A diferença é
que o anterior era centralizado no texto, e este, no leitor do texto. O
movimento pós-estruturalista e a proposta desconstrucionista
estão intimamente ligados ao pós-modernismo, mas isso não
signi ca que ambos sejam similares em tudo.64
As implicações destas propostas para a interpretação bíblica são
sérias e merecem re exão. Nesta visão, a Palavra de Deus passa a ter
múltiplos signi cados, todos circunstancialmente válidos, não
sendo possível determinar qual é a verdadeira intenção do autor.
Nas propostas pós-modernas, o signi cado original do texto é
indeterminável e, por isso mesmo, relativo àqueles que o leem ou
tomam conhecimento de seu conteúdo. Para muitos, o
estruturalismo e o desconstrutivismo pós-estruturalista
representam muito mais do que um método hermenêutico. Eles
perfazem uma corrente losó ca e, como tal, se aplicam a diversas
disciplinas e propostas cognitivas que usam a linguagem textual
como principal ferramenta de comunicação. A teologia é uma
delas.65

O TRAS ABORDAGENS E TENDÊNCIAS AT AIS

▶ Criticismo retórico

Este é um movimento inspirado na expressão usada por James


Muilenburg num discurso pronunciado em 1968 quando era
presidente da Society of Biblical Literature.
Vários acadêmicos (tanto liberais quanto conservadores) têm se
liado ao movimento. Nomes como Robert Alter, James Kugel,
Meir Stenberg, Adele Berlin, Richard Patterson e Tremper
Longman são alguns dos que engrossam a leira do criticismo
retórico. Mas em que consiste essa abordagem? Trata-se de um
estudo do texto bíblico que visa determinar os padrões estruturais
que o autor usou a m de comunicar sua mensagem.66 Estes
padrões incluem paralelismos, quiasmos, desenvolvimento
temático, palavras-gancho etc.
É um exercício com muitos elementos positivos, embora alguns
o objetem por usar ferramentas convencionais do criticismo
literário. Uma de suas vantagens é tentar descobrir os parâmetros
de compreensão dos remetentes originais a m de entender por que
o autor muitas vezes escreve numa sequência ou concatenação de
ideias estranha à nossa argumentação ocidental. Mas existe o
problema do arti cialismo onde, por exemplo, quiasmos forçados
são encontrados no texto, demonstrando ser mais estruturas
imaginadas pelo exegeta moderno que intenção original do autor
inspirado.

▶ Análise do discurso

Esta abordagem pode ser considerada uma subdivisão da semiótica


e um desdobramento do criticismo retórico. Sua distinção está em
enfatizar o aspecto linguístico de uma construção literária como
uma forma de compreender a escolha que o autor fez dos modos de
comunicar sua mensagem à sua audiência em potencial.
No caso do Novo Testamento, a análise do discurso pode ser útil
na atenção que dá aos fatores textuais, como lugar, pessoas,
tempos, diálogos etc. que ajudam a elucidar o porquê daquela
mensagem. Em outras palavras, por que o apóstolo João escolheu
abrir o evangelho com um testemunho de João Batista acerca de
Jesus Cristo? Por que ele apresentou os diálogos de Jesus com a
samaritana e com Nicodemos, mas não fez nenhuma menção a
qualquer conversa entre Jesus e José, o carpinteiro? Os detalhes de
um diálogo como o de Jesus e Pedro no nal do mesmo evangelho
elucidam muita coisa acerca dos propósitos de produção dessa obra
literária. Os diálogos e discursos públicos são elementos especiais
nesta abordagem que busca, além dos elementos gramaticais e
sintáticos, os resultados da combinação desses elementos numa
trama maior dentro do escopo literário daquele autor.
Talvez o principal perigo desse método seja permitir à mente do
leitor moderno uma gama de imaginações que ultrapassem
qualquer intenção ou possibilidade de intenção ao autor inspirado.
O uso desta técnica, portanto, deve ser feito com muita cautela.67

▶ Criticismo narrativo

Este é um ramo ou uma forma especializada do criticismo retórico


que lida especi camente com as características de textos
narrativos, a saber, sua estrutura narrativa, sua composição, seus
temas e motivos etc. A princípio, o método pode ser confundido
com o histórico-crítico, mas este se distingue por tratar o texto
como uma unidade literária única, e não como retalhos de
composição.
Sua inspiração é a narratologia, que pode ser entendida como a
teoria e o estudo da narrativa (incluindo sua estrutura) e os modos
como ela afeta nossa percepção da mensagem transmitida.68 É claro
que a narrativa é apenas um dos muitos gêneros literários da Bíblia,
e, por isso mesmo, é importante conceituá-la para não ser
confundida. O risco, porém, é sobrevalorizá-la a outros gêneros
literários ou aplicar erroneamente suas ferramentas a gêneros não
narrativos.
Outro risco é o do anacronismo, aplicando ao estilo do autor
elementos próprios de narrativas modernas e que jamais seriam
intentados pelo autor sagrado. Como acentua Osborne, “a
interpretação narrativa tem dois aspectos: o poético, que estuda a
dimensão artística ou o modo como o texto foi construído pelo
autor; e o signi cado que recria a mensagem que o autor está
comunicando. O ‘como’ (poético) conduz ao ‘que’ (signi cado).69

▶ Criticismo redacional

Uma vez que as origens desse método estão fortemente ligadas ao


criticismo liberal, muitos autores ainda nutrem sérias reservas ao
seu uso e e cácia. Ao ouvirem seu nome é quase inevitável a
associação com as antigas fórmulas alemãs do Redaktionsgeschichte,
Kompositionsgeschichte ou Redaktionstheologie. A nal, esse método
foi fortemente utilizado por acadêmicos do Novo Testamento com o
objetivo de negar a historicidade dos evangelhos e dos principais
elementos confessionais sobre a divindade de Jesus de Nazaré.
Contudo, o termo “redacional” neste contexto refere-se apenas
ao processo de edição feito pelo próprio autor bíblico ou a certos
acréscimos e compilações maiores feitas, possivelmente, por algum
editor. Exemplos de edição aceitos nesta abordagem: atualizações
simples como as de Gênesis 11:31;70 Êxodo 1:11; Deuteronômio 34;
anotações titulares como Daniel 10:1; a reunião de duas ou três fases
proféticas de Isaías num único livro etc.
O criticismo redacional, portanto, é o estudo das escolhas
editoriais feita pelos autores bíblicos a partir de todo o conjunto de
informações que tinham à sua disposição. Isso inclui detalhes como
a ordem evangélica dos acontecimentos, a ênfase num aspecto e
não em outro etc. Estudos recentes de comparação entre os
sinóticos têm sido enriquecidos por esse tipo de ferramenta
exegética.71 Novamente, porém, é importante alertar contra o
perigo da especulação sobre reconstruções editoriais que estão
além do nosso alcance hermenêutico. O melhor, neste caso, é
trabalhar com o texto como produto nal.72

▶ Criticismo cultural

Este movimento busca analisar a in uência da Bíblia sobre a


tradição ocidental (antiga e moderna) e, ao mesmo tempo, como a
cultura sociopolítica de uma região e uma época especí cas
interfere na interpretação bíblica por parte dos crentes. Alguns
entendem que a prática atual do criticismo cultural poderia ser
chamada de criticismo ideológico.73
Leituras feministas, resquícios da teologia da libertação, leituras
afrocêntricas e outras pós-colonialistas são desdobramentos do
criticismo cultural.
O grande problema com este método é que ele submete o
signi cado do texto bíblico às realidades culturais, ou seja, a Bíblia
é o produto de ideologias sociais, e não de uma revelação direta de
Deus. Ademais, sua ênfase no diálogo inter-religioso como ponto de
partida para a exegese torna inútil a busca por qualquer
interpretação de nitiva das Escrituras. A nal, o texto nada mais é
do que um conjunto de dimensões ideológicas se rea rmando num
contexto profético/escriturístico.74

▶ Intertextualidade
O estudo da intertextualidade é relativamente recente no campo da
hermenêutica bíblica. Por um tempo foi, como o criticismo
redacional, uma ferramenta de uso quase exclusivo da crítica
literária, mas hoje tem sido usada tanto por acadêmicos liberais
como por conservadores. Como é uma abordagem que brota entre
os teóricos da crítica literária, com pressupostos diferentes da
abordagem bíblica, é preciso considerar sua origem e os possíveis
riscos, demonstrando claramente as diferenças da
intertextualidade bíblica com a intertextualidade do campo da
teoria literária.
Em linhas gerais, a intertextualidade é uma abordagem que
sugere ao leitor a realidade de que todos os autores (modernos ou
antigos) escreveram seus textos desde a perspectiva de textos
anteriores, orais ou escritos.75 Essa relação intertextual, é
importante dizer, não precisa ser uma citação ipsis litteris nem
mesmo uma relação ipso facto, ou seja, a correlação entre dois
textos anularia ipso facto a possibilidade de outras correlações. A
intertextualidade, portanto, se ocupa da veri cação dos
intertextos, que são os textos que compõem esse diálogo, na busca
de uma melhor compreensão do sentido do texto nal que estamos
analisando.
Mas atenção: existem duas abordagens dentro da
intertextualidade que precisam ser diferenciadas — a sincrônica e a
diacrônica. Ambas têm em comum o reconhecimento da ampla
interdependência entre os escritos escriturísticos. Mas as
semelhanças terminam nesse aspecto. De forma diametralmente
oposta ao método diacrônico, a abordagem sincrônica considera o
texto em sua forma canônica ou nal. O objetivo não é veri car
como ou quando o escrito foi concluído, e sim seu papel dentro da
unidade escriturística. Como esse intertexto ajuda na compreensão
da mensagem intencionada pelo produtor? Por que o autor
recorreu a esse intertexto? Qual é o sentido desse intertexto no
contexto original?
Já a forma diacrônica, herdeira não modi cada do método
histórico-crítico, procura reconstruir a formação do texto ao longo
do tempo, exercício considerado desnecessário dentro da
abordagem sincrônica.
O grande mérito da intertextualidade é o reconhecimento de que
o autor não escreveu num vácuo nem dependeu de qualquer
inspiração verbal para reproduzir o conteúdo que lhe foi
especialmente revelado. Ele interagiu com o universo em que vivia.
Essa relação intertextual certamente ocorreu de um modo
“pluralístico”: na forma temática, estilística, contraditória,
corretiva, con rmativa, parafraseada, implícita, explícita ou até
tipológica (no caso da aplicação neotestamentária de textos do
Antigo Testamento).76 Não se trata, porém, de dependência
literária ou de redução do fenômeno escriturístico a fruto literário
da cultura do profeta. É revelação de Deus, matizada num tempo e
cultura especí cos sem a perda da originalidade de inspiração
divina.
51 Veja John B. Gabel. “The New Biblical Criticism and ‘The Literary Guide to the Bible’”.
Modern Language Studies 20:1 (Winter, 1990): 24-37; E. Charpentier, Une initiation à
l’analyse structurale. Paris: Editions Du Cerf, 1976, p. 5-27; B. Van Iersel. “O exegeta e a
linguística” in Concilium: teologia fundamental. os deslocamentos atuais e o futuro da
teologia. Petrópolis, v.135, n. 5, 1978.

52 Helen Gardner. The Business of Criticism. Oxford: Oxford University Press, 1959, p. 97.

53 Ferdinand de Saussure. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2002, p. 96.

54 Terry Eagleton. Literary Theory: a An Introduction. Minneapolis: University of


Minnesota Press, 1983, p. 54; e Jaques Derrida. Speech and Phenomena: and Other Essays on
Husserl’s Theory of Signs Evanston, Il: Northwestern University Press, 1979, p. 55-64.

55 Apud R. Selden e P. Widdowson, A. Eds. Reader’s Guide to Contemporary Literary Theory.


4. ed. Londres: Harvester, 1997. p. 52.

56 Brice R. Wachterhauser. Hermeneutics and Modern Philosophy. Nova Iorque: Nova


Iorque University Press, 1991, p. 31.

57 Idem.

58 Wimsatt, William e Monroe C. Beardsley. “The Intentional Fallacy” in The Verbal Icon:
Studies in the Meaning of Poetry. Lexington: University of Kentucky, 1954, 3-18. Este artigo
está reproduzido no livro de Nigel Warburton, Ed., Philosophy Basic Readings. Nova
Iorque: Routledge, 2004, p. 480-492.

59 Veja mais sobre esta abordagem no trabalho de Northrop Frye, The Great Code: the Bible
and Literature. Nova Iorque : Harcourt Brace, 1982.

60 C. Reis, Técnicas de análise textual. Lisboa: Almedina, 1992, p. 54.

61 Embora, a bem da verdade, um dos grandes impasses dos teóricos literários é a


de nição uniforme de “estrutura”. V. M. Aguiar e Silva, Teoria da literatura. Coimbra:
Livraria Almedina, 1973 8ª. Ed., 23.

62 Fernando Canale, “Desconstrución y Teología: Una propuesta Metodológica” in


DavarLogos 1.1 (2002): p. 3-26.

63 Kevin J. Vanhoozer. “The Reader in the New Testament Interpretation” in Hearing the
New Testament [Ed. Joel B. Green]. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1995, p. 313-314.

64 M. Peters. Pós-estruturalismo e loso a da diferença. Belo Horizonte, MG: Ed. Autêntica,


2000, p. 43.
65 Embora aplicados ao Antigo Testamento, veja exemplos desta abordagem em J. Cheryl
Exum e David J. A. Clines (eds.), The New Literary Criticism and the Hebrew Bible JSOTSup,
143. She eld: JSOT Press, 1993.

66 Não confunda com o estruturalismo que abordamos acima.

67 E. Porter e J. T. Reed (eds), Discourse Analysis and the New Testament: Approaches and
Result. She eld: She eld Academic Press, 1999; D. A. Carson [ed] Discourse Analysis and
Other Topics in Biblical Greek. She eld: JSOT Press, 1995.

68 Gerald Prince. “Narratology”, in Johns Hopkins Guide to Literary Theory and Criticism
(ed.) Michael Groden e Martin Kreiswirth. Baltimore, MD: Johns Hopkins University
Press, 1994, p. 524.

69 Grant R. Osborne. The Hermeneutical Spiral. Downers Grove: InterVarsity Press, 1991, p.
154

70 A cidade de Ur é conhecida e muito antiga, mas o termo “Caldeia” é problemático. Os


caldeus só surgem nos textos assírios no século 9 a.C. Além disso, referir-se a “Ur dos
caldeus” pressupõe a ascensão ao poder dos caldeus, ou seja babilônicos, que só ocorre no
nal do século 7 a.C. No início do segundo milênio, talvez se dissesse “Ur dos sumérios”. 

71 Johannes C. De Klerk. “Situating Biblical Narrative Studies in Literary Theory and


Literary Approaches” Religion & Theology 4/3 (1997) in
http://www.unisa.ac.za/default.asp?Cmd=ViewContent&ContentID=7379&P_ForPrint=1.

72 Sobre a cautela com que se deve empregar esta ferramenta crítico-narrativa veja D. A.
Carson, “Redaction Criticism: On the Legitimacy and Illegitimacy of a Literary Tool” in
Scripture and Truth D. A. Carson e John Woodbridge [Eds] Grand Rapids, MI: Zondervan,
1983, p. 119-142.

73 Richard N. Soulen e R. Kendall Soulen, Handbook of Biblical Criticism, 3th ed. revised
and expanded. Atlanta, Ga, John Knox, 1981, p. 23.

74 Para um posicionamento dos fatores positivos e negativos do criticismo cultural para


uma hermenêutica conservadora das Escrituras veja: Gerald A. Klingbeil. “Cultural
Criticism and Biblical Hermeneutics: De nition, Origins, Bene ts, and Challenges”.
Bulletin for Biblical Research 15 (2005): 261-77.

75 Como disse H. R. Elam: “Texts are fragments without closure or resolution. No text is
self-su cient; each text is fraught with explicit or invisible quotation marks that dispel
the illusion of its autonomy and refer endlessly to other texts…”. “Intertextuality” in The
New Princeton Handbook of Poetic Terms Princeton, NJ: Princeton University Press, 1994, p.
141-143.
76 Maria Flávia de Figueiredo Pereira Bollela. “A intertextualidade no texto bíblico”.
Coleção Mestrado em Linguística. Vol. 2 (2007). Disponível em:
<http://publicacoes.unifran.br/index.php/colecaoMestradoEmLinguistica/search/titles>.
CAPÍTULO QUATORZE

CONHECIMENTO
QUE LIBERTA

LER PARA COMPREENDER

É muito comum vermos em automóveis, folhetos, ou até mesmo em


igrejas, uma frase motivacional que diz: “Leia a Bíblia!” As
intenções de marketing desejadas pelos criadores do slogan
certamente devem ter sido as melhores. Contudo, um uso
inadvertido do conselho pode resultar em um sério estrago
espiritual. Nas linhas seguintes você entenderá o porquê.
Ler é um exercício muito importante, aliás, a leitura deveria ser
um hábito diário independentemente de idade ou pro ssão que
cada um ocupa. Poucas práticas possuem tantos benefícios para o
corpo e para a mente quanto pegar um bom livro, esquecer o
mundo ao redor e devorá-lo numa leitura meditativa. Dizem os
especialistas em comportamento humano que o hábito de ler
provoca muitos resultados positivos, como melhoria da saúde,
potencialização da criatividade, exercício da re exão e clareza na
arte de comunicar o que se pensa. Se é assim no campo secular,
imagine no campo espiritual!
Para aqueles que têm a Bíblia Sagrada como fonte de fé e ensino,
o dever da leitura deveria ser quase uma doutrina ao lado de outros
imperativos, como a oração, a caridade e a evangelização. É claro
que muitos que se convertem ao cristianismo não tiveram a
oportunidade de aprender a ler e escrever, o que, de modo algum
lhes exclui do corpo de Cristo, tanto é assim que existem muitos
éis de poucas letras que arrancam lágrimas de um acadêmico ao
testemunharem de forma simples como foram transformados pela
palavra de Deus.
Essa realidade, no entanto, não ofusca uma trágica realidade dos
dias atuais: o analfabetismo funcional. O que é isso? É aquele
fenômeno largamente presente na sociedade atual na qual as
pessoas, ainda que tecnicamente alfabetizadas, não conseguem
compreender corretamente aquilo que leem, mesmo que seja um
texto simples.
Essa situação chega a ser paradoxal se considerarmos que nunca
na História da humanidade as pessoas leram tanto e foram tão
expostas à informação cotidiana. Só para que você tenha uma ideia
do que isso signi ca, uma edição de um jornal como o New York
Times contém atualmente mais informação do que uma pessoa
comum poderia receber durante toda a vida na Inglaterra do século
17.
Os percentuais de alfabetização dos tempos antigos também
eram muito baixos. O número dos que sabiam ler no Egito,
Mesopotâmia e corredor siro-palestino variava de cidade para
cidade. Os autores mais otimistas pensam que, dependendo do
lugar ― uma capital, por exemplo ―, poderia chegar a 7%, mas em
média era menos de 1% da população geral.77
A partir do período helenístico e greco-romano, que abarca a
época em que foi produzido o Novo Testamento, as taxas de
alfabetização aumentaram consideravelmente. Acredita-se que a
alfabetização nos tempos greco-romanos na Grécia e na Itália
girava em torno de 10% a 15% da população, dependendo da região e
da língua (grega ou latina). Entre certos grupos, como as tropas de
cavalaria no século 2 d.C., as taxas de alfabetização podem ser
calculadas em pelo menos 34%.78 A grande quantidade de
documentos encontrados em Oxirrinco, no Egito, ajuda-nos a
apoiar a ideia de que a alfabetização era alta no Oriente Médio
naquele período, porque as descobertas atestam vários gêneros
textuais entre uma variedade de classi cações socioeconômicas.
Mesmo assim, fora desse recorte geográ co, o percentual de
cidadãos que sabiam ler e escrever continuava baixíssimo.

ISRAEL, MA E CE O?

Um dos grandes debates da atualidade consiste em determinar


que percentagem de israelitas dos tempos bíblicos seria capaz de ler
e escrever com uência. O primeiro desa o é trabalhar com
fragmentos de evidência, uma vez que muitos documentos se
perderam ou foram deliberadamente destruídos.
Outro problema é de nir o que se quer dizer por “alfabetizado” e
que grau de capacitação literária seria necessário para considerar
uma pessoa “educada”. De qualquer modo, há quatro
posicionamentos entre os acadêmicos:

. Os israelitas tinham ranking de alfabetização inferior a outros


povos e só começaram sua atividade de escrita tardiamente
após os séculos 9 a.C. ou 8 a.C.
. Os israelitas tinham o mesmo ranking das nações vizinhas que
seria menos de 1% da população alfabetizada.
. Os israelitas, por serem o “Povo do Livro” (título dado
tardiamente pelo Alcorão), teriam dado maior ênfase à
alfabetização de crianças que as nações vizinhas.
. Os israelitas teriam uma ênfase literária diferente de outros
povos, pois eram treinados para memorizar as Escrituras
através da audição, e não da leitura direta de suas páginas.

Qualquer estimativa, acadêmica ou não, das antigas taxas de


alfabetização judaica é um tanto hipotética ou talvez especulativa.
É di cil ter uma posição para além de qualquer questionamento.
Há autores, por exemplo, que estimam a percentagem de judeus
alfabetizados como sendo menor que a do Império Romano, que
utuaria entre 10% a 15% da população, incluindo mulheres.79 Meir
Bar Ilan, por exemplo, estima em no máximo 3%.80
A questão naturalmente depende do que se entende por
“alfabetização”. Se “a alfabetização é determinada como a
capacidade de ler documentos, cartas e textos literários ‘simples’
em pelo menos um idioma e escrever mais de uma assinatura”,
então esse percentual poderia ser maior. Uma certeza absoluta, no
entanto, é di cil de ser concebida.
O que se pode dizer com base no testemunho bíblico é que havia
um interesse na base da formação do povo de Israel, para que seus
lhos conhecessem o conteúdo da chamada Sagrada Escritura. E
provavelmente esse interesse pela Torá tornava a instrução
bastante difundida, senão pela leitura direta, pelo menos por
exercícios de memorização que fariam o judeu, desde a mais tenra
idade, ter contato com o conteúdo da Palavra de Deus e aprendê-la
de cor, citanto trechos inteiros se preciso fosse.
Sendo assim, pelo menos os líderes das sinagogas deveriam
saber ler e apresentar os rudimentos da alfabetização para os mais
novos. A nal, a instrução elementar na Lei era necessariamente
combinada com instrução de leitura. Um conhecimento da leitura
deve, portanto, ser assumido em toda parte, onde existisse um
conhecimento um pouco mais completo da Lei. Por isso,
encontramos, mesmo nos tempos pré-cristãos, livros da Lei na
posse de judeus comuns que não pertenciam à elite do povo. É o
caso da biblioteca encontrada nas grutas do Mar Morto.
Os Manuscritos do Mar Morto compreendem uma das maiores
coleções de documentos encontrados no território de Israel. Vários
documentos escritos em hebraico, aramaico e grego sobrevieram de
vários locais perto do Mar Morto e datam do período greco-
romano. Talvez o mais importante desses documentos para uma
discussão sobre alfabetização sejam aqueles que foram encontrados
em outros locais além de Qumran, o local próximo ao qual a
maioria dos pergaminhos foi encontrada. Eles demonstram uma
variedade de pessoas que se dedicaram à escrita em vários idiomas.
No Novo Testamento, Paulo, que era um homem instruído, mas
não necessariamente um “escriba”, enviava cartas aos membros das
igrejas que provavelmente também não eram “escribas”. Ele
mesmo não redigiu todas as cartas, mas usou secretários (Romanos
16:22), embora tomasse o cuidado de assiná-las com sua própria
caligra a (Romanos 16:21). Isso não indica, contudo, que não
soubesse ler ou escrever. Além disso, Jesus é um exemplo a ser
tomado, pois mesmo sendo um carpinteiro, era capaz de ler e
escrever como vemos em passagens nos livros de Lucas 4:16 e João
8:6-8. Note que a controvérsia com os judeus não surgiu em torno
da capacidade que Jesus tinha de ler, mas de suas credenciais para
interpretar as Escrituras diante do povo (João 7:15).

Uma antiga tradição


Hoje não é difícil ver um judeu religioso usando tiras de couro no braço e
na testa durante o momento de oração. Essa tira é conectada a uma
caixinha preta chamada Tefilin ou filactério, que contém uma porção das
Escrituras a qual devem memorizar e obedecer. De igual modo, famílias
judaicas tradicionais costumam colocar um pequeno amuleto no
batente das portas chamado Mezuzá, cujo objetivo não é trazer sorte
nem espantar o azar, mas manter viva a aliança feita com Deus no
passado. Ambos os elementos (Tefilin e Mezuzá) encontram sua origem
na Escritura Sagrada, que diz:
Ponde, pois, estas minhas palavras no vosso coração e na vossa alma,
e atai-as por sinal na vossa mão, para que estejam por frontais entre
os vossos olhos. E ensinai-as a vossos filhos, falando delas assentado
em tua casa, e andando pelo caminho, e deitando-te, e levantando-te;
E escreve-as nos umbrais de tua casa, e nas tuas portas; Para que se
multipliquem os vossos dias e os dias de vossos filhos na terra que o
Senhor jurou a vossos pais dar-lhes, como os dias dos céus sobre a
terra.
Deuteronômio 11:18-21
INFORMA O VERS S CONHECIMENTO

Hoje, o índice de pessoas alfabetizadas é realmente bem maior,


mesmo nas cidades menos desenvolvidas. Não obstante, a
sociedade moderna lida com dois problemas que não faziam parte
das antigas gerações: excesso de informação e o que de nimos
como analfabetismo funcional.
Todos os anos são produzidos 1,5 bilhão de gigabytes em
informação impressa, lmes ou arquivos magnéticos, o que daria
uma média de 250 megabytes de informação para cada habitante do
planeta. Isso sem contar os mais de 3 bilhões de páginas disponíveis
na internet.
Chega a ser irônico que numa sociedade tão repleta de
informações isso se torne uma angústia mundial. As pessoas hoje
parecem estar sofrendo porque não conseguem assimilar tudo o
que é produzido para aplacar exatamente aquela sede humana por
mais e mais conhecimento. Aliás, de acordo com o capítulo 3 do
Gênesis, foi justamente essa sede, em conjunto com a vontade de
ser “igual a Deus”, que levou Eva a comer da árvore do
conhecimento do bem e do mal.
Por outro lado, em conjunto com a exacerbação de dados que
recebemos, uma grande parte da população (50% só no Brasil)
prefere não ler livros porque, embora sejam capazes de reconhecer
as letras, números e palavras, não se sentem capazes de discernir
apropriadamente o conteúdo do que leram.81
Aplicando isso à realidade cristã que tem a Bíblia como livro por
excelência e norma de comportamento para o seguidor de Jesus
Cristo, compreende-se que uma grande parte dos cristãos está em
risco de ler, mas não compreender exatamente o que está escrito na
Palavra de Deus. Por isso, é imperativo dizer que, mais do que
apenas ler a Bíblia, o cristão tem o dever de estudá-la e, a partir do
estudo, praticar seus ensinamentos.
A prova maior de que a quantidade enorme de bíblias
disponíveis não é compatível com o conhecimento daqueles que a
possuem pode ser visto nos desconcertantes números que as
pesquisas apresentam. Falando da realidade dos Estados Unidos,
país que no passado mandou o maior número de missionários para
o mundo afora, o Instituto Barna de pesquisa e outras fontes
apresentaram os seguintes dados:82 a Bíblia traduzida em inglês
continua a ser o livro mais popular do mundo. Todos os anos, cerca
de 25 milhões de Bíblias são vendidas nos Estados Unidos,83
faturando para as editoras bíblicas mais de meio bilhão de dólares
por ano.84 Nove em cada dez lares americanos têm uma Bíblia, sem
contar os aplicativos eletrônicos que certamente demonstram
haver mais versões da Bíblia que número de habitantes nos Estados
Unidos.85
Não obstante, embora a maioria das pessoas possuam uma ou
mais bíblias, pouco mais de 37% dos americanos leem o livro
sagrado uma vez por semana ou mais. Mais de um quarto, ou 26%,
nunca leu a Bíblia mesmo vivendo na América do Norte.
Embora 81% em média dissesse conhecer a Bíblia Sagrada,
apenas 59% desse montante a rmou lê-la ocasionalmente. Ainda no
grupo que dizia conhecer o Santo Livro, apenas 37% conseguiram
dizer o nome dos quatro evangelhos, somente 42% dos adultos
conseguiram dizer o que eram os Dez Mandamentos; apenas 43%
foram capazes de nomear os cinco primeiros livros da Bíblia. A
metade desconhecia que João Batista não fazia parte dos 12
apóstolos; e 58% não souberam responder quem pregou o Sermão
do Monte.
Quatro em cada dez adultos (38%) acreditam que toda a Bíblia foi
escrita várias décadas após a morte e ressurreição de Jesus. Embora
isso pareça ser verdade para o Novo Testamento, todo o Antigo
Testamento foi escrito centenas de anos antes do nascimento de
Jesus Cristo.
Quase dois em cada três adultos (62%) sabem que o livro de Isaías
está no Antigo Testamento, e uma em cada dez pessoas (11%)
acredita estar no Novo Testamento. Um em cada quatro (27%) não
sabe.
Doze por cento dos adultos acreditam que o nome da esposa de
Noé era Joana d’Arc. A Bíblia não fornece o nome dela. O equívoco
pode ter se dado pela correção inglesa entre arca (arc) e o
sobrenome de Joana “D’Arc”.
Uma em cada seis pessoas (16%) acredita que um dos livros do
Novo Testamento é o Livro de Tomé, escrito pelo apóstolo de Jesus.
Outro terço da população não tem certeza se existe ou não tal livro
no Novo Testamento.
Metade dos adultos (49%) acredita que a Bíblia ensina que o
dinheiro é a raiz de todos os males quando na verdade o que se diz é
que “o amor ao dinheiro é a raiz de todo mal” (1Timóteo 6:10, grifo
nosso). Um terço (37%) discorda que essa a rmação estaria na
Bíblia e 14% não soube opinar.
A maioria dos adultos (56%) está convencida de que a Bíblia
proclama que a tarefa mais importante da vida é cuidar da família,
e três quartos dos entrevistados (75%) acreditam que a Bíblia
contém a expressão “Deus ajuda a quem cedo madruga”.
Enquanto isso, no Brasil…
No Brasil, dos que leem, apenas 42% dizem ler ocasionalmente a Bíblia,
o que significa que temos, na melhor das hipóteses, 101 milhões de
brasileiros que simplesmente não leem ou nunca leram a Bíblia Sagrada.
Esses dados são da 4ª edição da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”,
desenvolvida pelo Instituto Pró-Livro em conjunto com o IBOPE e
publicada em 2016.
Vale notar que no Brasil a Bíblia é lida por praticamente todas as
categorias de adultos, mesmo pelos que se declaram agnósticos ou
ateus, mas são pelo menos três vezes mais lidas entre protestantes
(9,8%) e evangélicos em geral (12,26%) do que entre católicos (2,82%) e
kardecistas (2,54%). Contudo, mesmo sendo o campeão no ranking dos
clássicos, apenas 5% dos entrevistados apontaram a Bíblia como o livro
mais marcante de sua vida.

COMO JES S LIA AS ESCRIT RAS?

Como Jesus lia as Escrituras de seu tempo? Em primeiro lugar, ele


interpretou o Antigo Testamento como uma fonte histórica literal.
Ele assim entendia a criação de Adão e Eva (Mateus 13:35; 25:34;
Marcos 10:6); Noé e o dilúvio universal (Mateus 24:38-39; Lucas
17:26-27); Jonas e o Grande Peixe (Mateus 12:39-41); Sodoma e
Gomorra (Mateus 10:15); e, nalmente, o relato de Ló e sua esposa se
tornando uma estátua de sal (Lucas 17:28-29).
Ademais, Jesus enaltecia a divina inspiração das Escrituras
(Mateus 22:43), sua permanência até o m (Mateus 7:17-18), sua
historicidade (Mateus 12:40; 24:37), e ainda sua posição como
autoridade nal (Mateus 4:4,7,10).
Mas, e qual seria a relação entre Jesus, enquanto intérprete
bíblico, e os métodos e metodologias usados em seu tempo? Até que
ponto Jesus concordou ou distanciou-se das formas como seus
contemporâneos judeus interpretavam o Antigo Testamento? Bem,
essas são perguntas profundas que merecem ser discutidas.
Resolver a questão como intentou Robert Lightner, a rmando que
Jesus usou o método histórico-gramatical e “ponto nal”, seria um
anacronismo sem nenhum sentido.86
Infelizmente são poucas as informações contemporâneas.
Contudo, temos boas pistas para levantar um quadro da
originalidade, continuidade e in uências da metodologia de Jesus
em relação ao judaísmo de seu tempo. Nossas principais fontes
(além, é claro, do Novo Testamento) são: os materiais da isolada
seita de Qumran, os escritos de Filo, as fontes rabínicas (que apesar
de majoritariamente posteriores ao tempo de Jesus podem espelhar
tradições anteriores) e, nalmente, a pseudoepigra a que, apesar
do caráter heterodoxo, sinaliza rumos tomados pelo judaísmo do 1º
século. Todas essas fontes, é claro, devem ser analisadas e
comparadas com muita cautela para se evitar anacronismos e
paralelos arti ciais. A única coisa mais conclusiva que pode ser dita
é que nos tempos de Jesus já existia uma variedade de metodologias
interpretativas dependendo do grupo a que se pertencia.
De modo resumido podemos dizer que, em termos de exegese,
Jesus seguiu modelos já existentes em seu tempo. Como qualquer
religioso judeu de seus dias, ele dividia as Escrituras em três
coleções: a Lei, os profetas e os Salmos (Lucas 24:44). Em algumas
vezes, a divisão aparece em duas coleções: a lei e os profetas (Mateus
5:17; João 1:45), em outras, apenas uma única coleção é mencionada
para abarcar a todos. Ao citar o salmo 82:6, por exemplo, Jesus se
refere à passagem como “a lei” (João 10:34). Essa forma plural e ao
mesmo tempo única de se referir à coleção de livros do Antigo
Testamento era comum também na literatura judaica
contemporânea, como no caso de Qumran.
Jesus, como os judeus de seu tempo, também tinha uma visão
messiânica de Daniel 7:13,14 e Zacarias 9:9,10 — interpretação que
encontramos igualmente em Qumran. De igual modo, ele ainda
apontava para o elemento escatológico destas passagens.87 Certa
feita, ele concordou parcialmente com a interpretação farisaica ao
responder um desa o lógico dos saduceus que não acreditavam na
ressurreição (Mateus 22:30). Em outra assumiu uma postura ética
sobre o casamento e divórcio também defendida posteriormente
pela escola rabínica de Shammai em contraste com a escola de
Hillel (Lucas 16:18).
Certa vez, um gentio chegou a Shammai com uma estranha
requisição: “Enquanto eu co em pé numa só perna, resuma-me a
lei e os profetas.” Shammai o mandou embora dizendo ser aquilo
algo impossível e que ele não deveria perder tempo com isso. Então,
esse gentio foi a Hillel com o mesmo pedido. Em vez de ser
mandado embora recebeu a seguinte resposta: “O que você detesta
que façam com você, não faça a seu semelhante — esta é a lei
inteira, o resto é comentário —, agora vá e estude.”88 Há um
paralelo claro entre Hillel e Jesus no episódio de Mateus 7:12,
embora Jesus mude radicalmente a ordem negativa e, portanto,
passiva, por uma determinação ativa.
Exemplos como estes mostram que Jesus às vezes concordava, às
vezes discordava, às vezes superava as interpretações de seu tempo.
Nos pontos básicos ele parecia concordar com os métodos
exegéticos mais conservadores de seu tempo, especialmente os de
cunho histórico que rejeitavam o alegorismo de Filo. Mas também
criticava o preterismo hermenêutico que não atualizada o sentido
do texto. Jesus, portanto, tinha um método próprio e original, mas
não inteiramente “inovador”, pois ele concordava com uma
tradição que lhe antecedia, embora não casse sempre preso a ela.
Veja, por exemplo, sua apresentação de Isaías na sinagoga de
Nazaré. O texto que originalmente era nacionalista, torna-se nos
lábios de Jesus em uma promessa que abarca os gentios.89
Jesus também usou tipologias como em Mateus 12:38-40 (Lucas
11:29-30) ao comparar o sinal pedido por sua geração ao “sinal de
Jonas” e os três dias no ventre do peixe com os três dias de
permanência de seu corpo no sepulcro. Mas note que a tipologia
nunca negava o caráter literal e histórico do evento invocado.
O uso da interpretação do tipo Pesher é igualmente encontradiça
nos ensinos de Jesus. Pesher, apenas para lembrar, seria aquele tipo
interpretativo que busca descobrir um signi cado escatológico ou
messiânico no texto. O intérprete parte do pressuposto de que as
escrituras hebraicas continham referências escatológicas que
permaneceriam ocultas até o grande Eschaton e que o primeiro
século d.C. (época de Jesus e destes intérpretes) era o grande tempo
de se descortinarem essas profecias. Muitos pesharim de niam
dois níveis de interpretação do texto, um super cial e outro mais
profundo. O super cial, para os iniciantes, e o profundo, para os
amadurecidos e mestres.
Por isso, não é anormal que se encontrem novas conexões entre
o texto antigo e este novo signi cado escatológico daqueles dias. Em
Qumran há vários exemplos que contribuem para entender por que
certas “profecias messiânicas” mencionadas por Jesus ou pelos
evangelistas parecem tão distantes de seu contexto original. O que
parece ser uma descontextualização arti cial do texto
veterotestamentário era uma hermenêutica judaica comum no
período do segundo templo. Para não cair numa pluralidade sem
m de interpretações livres, a validade do Pesher dependia da
autoridade do intérprete.
Temos assim, por exemplo, a interpretação que Jesus faz de
Salmos 118:22-23 (Marcos 12:10-11; Mateus 21:42-44; Lucas 20:17-18).
Ele liga sua rejeição como Messias à rejeição da pedra de esquina.
Note que o salmo 118 é originalmente um salmo de entronização do
rei davídico que mostra a preferência de Deus em contraste com a
preferência do povo (Salmos 118:22-23). O mesmo salmo era
interpretado de modo messiânico no Midrash do salmo 118:22 (uma
interpretação que Jesus e seus ouvintes possivelmente conheciam).
E quanto ao texto utilizado por Jesus? Ele seguia a LXX ou o
texto hebraico? São perguntas difíceis de responder de modo
rápido e que tem suscitado certo debate entre os especialistas. Se
nos basearmos no testemunho dos evangelhos, é possível dizer que
Jesus não se prendeu a um único texto escrituristico.90 Algumas
vezes, nós o vemos citando o texto de memória, outras o adaptando
ou até o parafraseando.
Em determinadas passagens ele tem como pano de fundo o texto
hebraico protomassorético, que certamente estaria por detrás da
LXX. Na maioria, porém, ele parece seguir a LXX e, em algumas
citações, uma paráfrase aramaica. Exemplos: em Jeremias 6:16
temos a expressão “achareis descanso para as vossas almas”, que
Jesus também menciona em Mateus 11:29. Ora, o termo “descanso”
(em grego anapausin) re ete melhor o hebraico nirgw’ (descanso), e
não a versão da LXX que verte o texto como “achareis puri cação
(hagnismon) para vossas almas”. Na parábola do semeador (Marcos
4:26-29) Jesus estaria possivelmente aludindo ao texto de Joel 3:13.
Note que Marcos usa a expressão “therismos” para falar da colheita,
e não o termo “trygetos” (vindima) que aparece na LXX. Ora,
therismos está mais ligado ao hebraico gsyr que à tradução opcional
da LXX.
Marcos 13:8 traz a advertência de Jesus de que no futuro se
levantaria “nação contra nação, reino contra reino”. Novamente
uma alusão mais correlata ao texto hebraico de Isaías 19:2 que traz
em parte: “cidade contra cidade, reino contra reino”. Já o texto da
LXX traduz a passagem como “cidade contra cidade, reino contra
reino, província contra província”.
Na instituição da ceia pascal, Jesus fala de seu sangue
“derramado (ekchynnomenon) em benefício de muitos” (Marcos
14:24). Uma alusão clara a Isaías 53:12 que diz em hebraico “[ele]
derramou sua alma na morte”. A LXX, em contraste, traz “sua alma
foi dada sobre (paredothe) a morte”.
Mas há, como dissemos, muitos paralelos (a maioria deles) com a
LXX. Exemplos: a citação de Isaías 29:13 em Marcos 7:6,7, a citação
do Salmo 8:2 em Mateus 21:16; a citação de Isaías 35:5,6; 26:19 e 61:1
em Mateus 11:5 (Lucas 7:22) etc.
Não se pode, contudo, a rmar taxativamente que Jesus lia a
versão da LXX e dependia primordialmente dela. A nal, graças aos
textos dos Manuscritos do Mar Morto, sabe-se que havia outras
alusões hebraicas por trás das versões gregas. Aliás, Jesus citava às
vezes uma porção da Bíblia em concordância com uma versão grega
e discordância de outra. Outras vezes, ele se valia de uma paráfrase
aramaica, como é o caso de Isaías 6:9-10 em Marcos 4:12: o nal “e
haja perdão para eles” não está nem no texto hebraico nem na LXX,
mas no Targum de Isaías.
Mateus 26:52 parece re etir mais o Targum de Isaías 50:11 do que
o texto grego ou hebraico. O Targum acrescenta o elemento da
espada não encontradiço nos outros textos: “Eis todos vós que
acendeis um fogo, que forjais uma espada! Ide, perecerás no fogo
que acendestes e sobre a espada que forjastes.”
Vejamos mais um exemplo curioso de interpretação textual. Na
parábola dos lavradores maus que trabalhavam numa vinha
(Marcos 12:1-12.) temos como pano de fundo Isaías 5:1-7. Mas a
parábola de Isaías é contra “a casa de Israel” e os “homens de Judá”,
isto é, a nação como um todo (Isaías 5:7). Já a parábola de Jesus se
refere especialmente aos “principais sacerdotes, escribas e anciãos”
(Marcos 11:27). Note que a parábola de Jesus não é contra o povo
(homens de Judá), mas contra os líderes (Marcos 12:12). Novamente
temos uma semelhança com a tradição aramaica.
No Targum de Isaías 5 os elementos “torre” e “lagar” (v. 2) são
substituídos por “santuário” e “altar” ― instituições que seriam em
breve destruídas. Jesus parece seguir nesta direção. Na sua
parábola, o problema não estaria com a vinha (Israel), mas com os
trabalhadores (especialmente os sacerdotes e os que lidavam com o
templo). O documento 4Q500, que data do primeiro século a.C.,
também alude à parábola de Isaías sobre a vinha e a aplica ao
templo.
Esses exemplos mostram o uso múltiplo de Jesus dos textos e
versões que tinha disponíveis em seu contexto e, ao mesmo tempo,
seu comprometimento com a sacralidade das escrituras hebraicas.
77 William V. Harris. Ancient Literacy. Cambridge: Harvard University Press, 1991. Greg
Woolf, “Ancient literacy?”. Disponível em:
<https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/j.2041-5370.2015.12010.x>. Acesso em:
19/04/2019; Ray, in Bowman, Alan K and Greg Woolf. Literacy and Power in the Ancient
World. Cambridge University Press, 1994, p. 64-65.

78 William V. Harris, Ancient Literacy, p. 254.

79 Catherine Hezser. Jewish Literacy in Roman Palestine. Tübingen: Mohr Siebeck, 2001, p.
496.

80 Meir Bar-Ilan. “Literacy among the Jews in antiquity”, Hebrew Studies, 44, 1 (2003): 217-
222.

81 PEREZ, Luana Castro Alves. “Analfabetismo funcional”. Brasil Escola. Disponível em:
<https://brasilescola.uol.com.br/gramatica/analfabetismo-funcional.htm>. Acesso em:
19/04/2019.

82 117U.S. Religious Knowledge Survey. (2010). Disponível em: http://www.pewforum.org/


U-S-Religious-Knowledge-Survey.aspx; <https://www.barna.com/research/state-of-the-bible-
2019/; http://www.bibleteachingnotes.com/templates/System/details.asp?fetch=7872>.
Acessos em: 22/04/2019.

83 Guthrie, G. Read the Bible for Life: your Guide to Understanding and Living God’s Word.
Nashville, TN: B&H, 2011, p. 4.

84 Crosby, Cindy. “Not Your Mother’s Bible”. Publisher’s Weekly, 27 Oct. 2006.

85 CF <https://www.barna.com/research/state-of-the-bible-2018-seven-top- ndings/>.
Acesso em: 22/04/2019.

86 Robert P, Lightner. The Savior and the Scriptures. Grand Rapids: Baker Book House,
1966, p. 30..

87 R. T. France. Jesus and the Old Testament. Vancouver: Regent College Publishing, 1998, p.
83ss.

88 Babylonian Talmud, “Shabbat”, 31a.

89 Sobre este assunto e comparando a citação de Jesus com o texto veterotestamentário,


veja M. Prior “The Liberation Theology of the Lucan Jesus” in
<http://www.christusrex.org/www1/ofm/sbf/Books/LA49/49079MP.pdf>. As conclusões do
articulista são questionáveis, mas sua análise da citação de Jesus da profecia de Isaías é
interessante como ilustração.
90 Sobre esse assunto veja A. Evans. “The Scriptures of Jesus and His Earliest Followers” in L.
M. McDonald and J. A. Sanders (eds). The Canon Debate. Peabody MA: Hendrickson, 2002,
p. 191-194.
CAPÍTULO QUINZE

COMO LER E ENTENDER


A BÍBLIA?

COMO EST DAR A BÍBLIA

É fato conhecido que através da leitura entramos em outro mundo.


Pode ser um livro, um artigo, uma revista, uma página da internet
etc. O meio que usamos para ler não importa, o conteúdo sempre
nos levará a algum lugar novo. As palavras de um texto, você sabe,
nada mais são que um conjunto de símbolos (no caso “letras”) que
podemos chamar de signos e códigos, isto é, elementos que devem
ser interpretados por nós. Em outras palavras, decifrados.
Aí nasce o problema: você sabe que nem toda leitura que
fazemos é apreendida em sua totalidade, ou seja, às vezes muita
coisa de um texto ca de fora sem que consigamos processar,
interpretar ou decifrar. É muito comum a experiência de estar
lendo algo e se dar conta de que não entendeu nada. O que
aconteceu neste caso é que não houve uma leitura atenta, apenas
um “passar de olhos”.
É a mais pura verdade que devemos ler a Bíblia todos os dias. Um
religioso anônimo declarou: “Ler a Bíblia todos os dias é como
tomar banho, se você não zer isso, a sujeira prevalece.”
Contudo, ler a Bíblia não é o mesmo que estudá-la. A diferença
entre ler e estudar está, basicamente, no que você aprende quando
faz uma coisa ou outra. Isso porque apenas ler a Bíblia ou um livro
qualquer não é garantia de que você realmente compreendeu o que
está escrito ali.
Há muitos cristãos que desenvolvem o que poderia ser chamado
de aprendizado passivo, ou seja, o que sabem da Bíblia é apenas
aquilo que faz parte de sua cultura religiosa que ele trouxe dos
sermões que ouviu na igreja ou das histórias que ouviu em família.
É um tipo de aprendizado que não requer muito esforço, mas que se
mostra ine caz na hora de defender ou justi car sua crença nos
momentos em que é colocada à prova.
É claro que também aprendemos com uma leitura simples e
relaxada, mas o estudo quando bem feito permitirá que você
aprenda de verdade o conteúdo que estiver lendo. A leitura, neste
caso, deve ser um processo de interpretação que lhe permite entrar
em outro mundo, o mundo do autor bíblico, que será somado ao seu
mundo depois de lido. Entendeu o processo?
É muito comum ouvir irmãos dizerem: “Eu entendi, mas não sei
explicar” ou “Eu sei, mas não sei repetir”. Quando se ouve isso, têm-
se a sensação de que tudo é apenas uma questão de linguística, ou
seja, falta à pessoa habilidade para expressar seu pensamento, mas
que ele está claro em sua mente arrumadinho ponto por ponto.
Mas, na realidade, pode não ser bem assim. Tal di culdade de
repetir o que supostamente aprendeu pode revelar uma ilusão do
conhecimento, a pessoa acha que sabe, mas no fundo não sabe.
A prova maior disso é que se pedirmos a essa mesma pessoa para
expressar uma opinião sobre conhecimento trivial ou para repetir o
capítulo da novela ou seriado que passou ontem, ele ou ela saberá
reproduzir com maestria o conteúdo adquirido e a inaptidão para
falar miraculosamente desaparece. A pessoa fala do futebol, da
novela, do lme e da vida alheia como se fosse um PhD em assuntos
inúteis e pueris.
O problema, portanto, não é a incapacidade de aprender e
reproduzir o conteúdo, mas que tipo de conteúdo estamos
aprendendo e de que forma estamos estudando, ou melhor, “lendo”
a palavra de Deus.

OM TODO

O desa o de estudar e compreender bem um livro escrito há


milhares de anos coloca o indivíduo diante de algo crucial que é a
questão do método. Em outras palavras, que instrumentos estamos
usando para compreender a palavra revelada de Deus? Este é um
aspecto muito negligenciado no estudo da Bíblia Sagrada mesmo no
mundo acadêmico da teologia.
Há muitos acadêmicos que não parecem conscientes do método
no qual acreditam, muito menos do método por trás de alguns
autores que consultam quando estão empenhados em sua pesquisa
bíblica. Outros, mesmo supostamente cônscios de seus próprios
métodos, expuseram aquilo que criam, mas negligenciaram a
descrição de como ou por que criam daquele modo. Assim, não nos
estranha o fato de que mesmo os tratados teológicos de fôlego
produzidos no passado quase omitiram a descrição do método
teológico usado por seu autor.
As razões para essa negligência do método talvez estejam no fato
de que não há regras estabelecidas sobre “como” e “por que”
escrever uma introdução sobre o método e a metodologia
teológica.91 Segundo, porque o problema do método parece mais
ligado à ciência moderna na qual o conhecimento da realidade se vê
obrigado a passar por critérios experimentais e observacionais para
ser válido no meio acadêmico. Deus e sua Palavra, no entanto, não
são passivos de experimentação cientí ca.
A essência destas ciências [modernas] é o método, ou seja, o
caminho planejado, re etido, contínuo e criticamente seguro que
conduz a uma meta do entendimento totalmente determinada. O
método é a arte da seleção e da abstração de acordo com certas
condições que o próprio sujeito estabeleceu de antemão para
resolver uma problemática determinada.92
Note-se, porém, que essa consciência moderna não pode ser
automaticamente importada para a Teologia, pois não se trata de
comprovar laboratorialmente a existência de Deus ou de certas
verdades reveladas na Bíblia, mas de aceitar pela fé coisas que estão
além da veri cação. De igual modo, é pertinente a crítica de Canale
àquela conceituação reducionista de método identi cado apenas
como uma expressão do experimentalismo. O processo de
observação, hipótese, experimento, anotações e avaliação da
hipótese é apenas uma (e não a única) aplicação concreta do
método.93
Por outro lado, a teologia como apreensão mental das realidades
reveladas por Deus em sua Palavra tende a ser também um saber
experimental da pessoa de Deus. Recebemos em nosso intelecto a
revelação, e, como disse Paulo, a “iluminação do conhecimento da
glória de Deus na face de Cristo” (2Coríntios 4:6). Tal situação
demanda a sistematização de um método por parte daquele que
pretende conhecer essa revelação. Não se esquecendo, porém, que a
teologia, enquanto ciência (ainda que alguns evitem reconhecê-la
assim), tem como base seus próprios princípios, pois trata-se, como
foi dito, de conhecer uma revelação pessoal de Deus na História.94
Sendo assim, o conceito de método tem de ser mais amplo se
queremos abarcar o processo mental do conhecimento teológico. E
lembrando que esse conhecimento de Deus (prioritariamente
revelacional) é, num segundo momento, racional (pois com a
mente conhecemos a revelação), nada mais justo que seguir
critérios que evitem a especulação, a heresia e o fanatismo na
interpretação daquilo que Deus revelou.
Mesmo porque, para fazer teologia e para fazer uma exegese
bíblica, deve-se levar a cabo um processo no qual o método forneça
os parâmetros que permitem que a mensagem chegue a todas as
pessoas de um modo claro e preciso, el ao conteúdo bíblico.
Como advertiu Pinnock, “o método, em certo sentido, deve vir
antes, senão em relação à doutrina, pelo menos em relação à
teorização dela”.95 O método é o elemento que dá um toque
cientí co ao saber teológico. O risco, é claro, se dá no exagero que
pode fabricar uma teologia racionalista (teodiceia) circunscrevendo
o saber teológico a um clube de intelectuais iluminados,
especializados em Deus, que nada têm a aprender com as
experiências teológicas do chamado público leigo, a saber, aqueles
que não gozam de treinamento acadêmico neste ramo do
conhecimento religioso.
No passado, a necessidade de explicitar o método também não
era por demais impositiva devido ao fato de haver quatro ou cinco
principais caminhos a seguir, facilmente identi cáveis. A lectio
divina dos pais apostólicos, a preparatio evangelica dos pais gregos
(que desembocou no neoplatonismo de Agostinho e no
neoaristotelismo de Aquino), a Sola Scriptura de Lutero, e o método
histórico-crítico dos exegetas alemães. Hoje, porém, o pluralismo
de métodos e abordagens é tão grande que necessita explicar que
caminho estamos percorrendo a m de testar nossos conceitos.
Esse foi o principal motivo pelo qual, de acordo com a tese
doutoral de Brooks sobre o assunto do método teológico na pós-
modernidade, o método teológico cristão não tem de nição única,
e parece não se encaixar em nenhuma categoria.96
Sem pretender simpli car demasiadamente a problemática,
seria interessante ter em mente pelo menos a de nição de Erickson
que, embora desastrosamente quali que a teologia como “ciência
de Deus”, acerta na identi cação do método com o processo como
se “faz teologia”97 — lembrando, é claro, que teologia é tanto
ciência como arte, logo, não se pode pensar num sistema por
demais rígido, muito menos solto ao bel-prazer de cada
pensamento. É importante que o exegeta esteja cônscio de que
método teológico está seguindo.

A METODOLOGIA
Em muitos círculos acadêmicos, incluindo a teologia, as palavras
“método” e “metodologia” tornaram-se sinônimas. Há autores, de
fato, que as usam indistintamente. Contudo, por questões de
clareza, seria interessante seguir a corrente que sugere uma
distinção entre os dois termos.
Embora essa sugestão também não seja uniforme, poderíamos
seguir a seguinte de nição apresentada por Sandra Harding:
método é uma técnica para reunir coerentemente as evidências.
São ferramentas da heurística. Já a metodologia seria a teoria e a
análise de como essas ferramentas deverão ser usadas.98
Em outras palavras, o método é um procedimento técnico, um
modo de se fazer algo envolvendo práticas concretas. Já a
metodologia é o pressuposto racional ou teórico por trás do
método. Esses pressupostos é que conduzirão os modos de se
realizar a pesquisa.
É claro que, em virtude disso, haverá métodos e metodologias
que são incompatíveis por questões de pressuposto. A teologia
revela valores doutrinários a priori que acabam constituindo um
saber irredutível, onde uma nova luz nunca deve desmerecer ou
negar a luz anterior. É um saber progressivo, mas não
necessariamente “evolutivo”. Verdades presentes neste caso não
são sinônimos perfeitos de “verdades provisórias” em termos de
ciência moderna. Exemplo: diz a Bíblia que todo aquele que se
aproxima de Deus deve fazê-lo crendo que ele existe. Qualquer
método que negue esse pressuposto é inadequado a um exegeta
teísta que parta do princípio da existência autorreveladora de Deus.
A metodologia é o avaliador da legitimidade ou não do caminho
(método) a ser escolhido para estudar a Bíblia e, uma vez escolhido,
da maneira como se conduzirá esse exercício. En m, a escolha do
meio e do modo de se conduzir a hermenêutica.
Aliás, a denúncia de metodologias erradas no estudo da Bíblia
não é nada nova. Desde os tempos apostólicos já havia, da parte de
Pedro, o alerta contra os que deturpavam as cartas de Paulo e as
demais Escrituras (2Pedro 3:16). Preocupações com a crítica textual
já são apresentadas em Apocalipse 22:18, onde João determina que
ninguém acrescente nada à profecia, caso contrário colheria as
pragas descritas naquele livro. Timóteo é recomendado por Paulo a
continuar sendo alguém que “maneja bem a Palavra da verdade”. E
o próprio Paulo assegura seus leitores de sua própria metodologia
ao dizer que não estaria entre os que adulteram as Escrituras
(2Coríntios 4:2).

HERMENÊ TICA, O Q E ISSO?

A palavra hermenêutica vem diretamente do grego e signi ca


tomar uma coisa obscura e “torná-la compreensível”, ou levar o
indivíduo à compreensão da mensagem. Por isso, o termo deriva do
nome de Hermes, deus da mitologia grega, que era justamente o
mensageiro dos deuses. Era a quem os gregos atribuíam a origem da
linguagem e da escrita, de modo que ele cou conhecido como o
patrono da comunicação e do entendimento humano. Na prática,
porém, a hermenêutica nem sempre torna as coisas mais claras.
Veja o caso do Direito. Os advogados amam a palavra
hermenêutica. Em termos jurídicos ela é entendida como a
interpretação que o sujeito faz do “espírito da lei”, isto é, de suas
nalidades quando foi criada. Somente depois desse exercício é que
o princípio legal estabelecido na letra pode ser aplicado a uma
situação presente, buscando o máximo de equidade e justiça. Por
isso, a hermenêutica cou entendida no âmbito do Direito como
um conjunto de métodos de interpretação consagrados.
Considerando, no entanto, que nem a mais precisa das ciências
possui opinião unânime de todos os especialistas, criou-se a partir
do parecer de Ruy Barbosa a ideia de que não existe crime de
hermenêutica. Ou seja, um juiz que erra em sua sentença por ter
interpretado a letra da lei diferente de outro não pode ser
condenado ainda que tenha cometido um equívoco de
interpretação.
Em termos teológicos, a hermenêutica tem sido frequentemente
de nida como “a ciência da interpretação textual da Bíblia”,99 ao
que Bernard Ramm acrescenta: “[também é] a ciência e a arte da
interpretação bíblica.”100 Acontece que ultimamente tem havido
uma sensível mudança de foco na de nição clássica de
hermenêutica. Sua atenção anteriormente se concentrava no texto
original e na intenção do autor inspirado, para depois disso sugerir
uma aplicação para os nossos dias. Atualmente, como vimos, tem
havido uma redução de interesse pelo contexto original do texto
para concentrar esforços no contexto atual do leitor.101
No auge das discussões entre a crítica do Iluminismo alemão e a
ortodoxia protestante, Friedrich Schleiermacher (1768-1834)
rejeitou a clássica distinção entre hermenêutica secular e
hermenêutica sagrada. Ele defendia o exercício de uma
hermenêutica geral aplicável para toda a literatura, incluindo as
Escrituras.
Inspirados nesta proposta hermenêutica de Schleiermacher,
muitos autores passaram a defender um estudo hermenêutico da
Bíblia apenas a partir de um ponto de vista histórico-crítico, sem
nenhuma distinção de outros livros produzidos na Antiguidade. Tal
exercício, é claro, diluía o conceito de inspiração e revelação
assumidos pela doutrina cristã em relação à Bíblia Sagrada.
Atualmente, é possível encontrar uma gama de signi cados para
a expressão “hermenêutica bíblica”. Não é por menos que Bernhard
W. Anderson preferiu dizer que hermenêutica hoje “são [no plural]
os modos de interpretação [da Bíblia]”, ao que James A. Sanders
completa: “São as lentes interpretativas” onde cada um lê de um
modo diferente do outro.102
Em virtude disso, faz-se necessário um esclarecimento acerca de
qual conceito estamos empregando. Para uns, a hermenêutica
bíblica (contrária à exegese) seria o abandono completo ou parcial
do sentido original do livro e do autor (objetivo exclusivo da
exegese) com vistas a descobrir qual é o seu real signi cado para os
dias de hoje. Para outros, porém, a hermenêutica seria a teoria que
normatiza a exegese.103
E não podemos nos esquecer das várias propostas da já
mencionada “nova hermenêutica”; especialmente aquelas que
negam a autonomia do texto, acreditando que qualquer
interpretação se dá a partir do leitor (e cada um tem uma
interpretação diferente).
Para nós, a hermenêutica bíblica (diferentemente da
hermenêutica secular) será a ciência da interpretação que, a partir
do conteúdo escriturístico, busca: 1) entender qual é a intenção
original do autor inspirado (seu contexto, seus ouvintes, seus
leitores); 2) descobrir pela iluminação o que Deus intentava dizer
(para eles e para nós) através daquelas palavras humanas escritas há
tanto tempo; e 3) comunicar de maneira clara e sensível as verdades
bíblicas para o contexto em que vivemos.104

AF N O DA E EGESE

O termo exegese é uma palavra-chave nesta discussão. Mas ela


também pode ter múltiplos signi cados, dependendo de quem a
utiliza e de quando é empregada. Tal situação demanda que o
estudante tenha muito claro em sua mente o que entende por
exegese e se o seu pensamento coincide com o pensamento do
intérprete bíblico que está consultando.
Parte da ambiguidade do termo se deve à acirrada distinção que
se faz entre ele e os termos “interpretação” e “hermenêutica”.105
Pior ainda quando a investigação se traduz numa “eisegese” que,
como de nem Patzia e Petrotta,106 seria a tentativa errônea de
“introduzir” em vez de “extrair” um signi cado autêntico do texto.
Por isso, autores como Ebeling e Evans preferem assumir que
hermenêutica, exegese e interpretação são sinônimos que podem
perfeitamente ser usados de modo intercambiável.107
De modo geral, tanto a exegese como a hermenêutica e a
interpretação bíblica fazem parte da heurística que é a tentativa
intelectual de se encontrar o signi cado de algo através da análise,
re exão, investigação. É claro que, para os que se aproximam da
Bíblia com o pressuposto de estarem investigando a Palavra de
Deus, a iluminação deve estar presente no topo da lista, mesmo que
para outros ela esteja fora dos mecanismos convencionais da
heurística, que é o nome que se dá ao método ou processo criado
com o objetivo de encontrar soluções para um problema.
Estudar a Bíblia, portanto, envolve um procedimento
simpli cador, embora não simplista, que, em face de questões
difíceis que o texto apresenta, envolve a busca por uma solução que
pode não ser a mais fácil, nem a ideal, mas será a que mais se
aproxima de encontrar respostas viáveis às perguntas da fé, ainda
que não sejam as mais satisfatórias.
Esse procedimento requer tempo, disposição para o aprendizado
e compromisso com as verdades de Deus. Ele pode ser tanto uma
técnica deliberada de solução de problemas, como uma operação
automática fruto de uma união espiritual entre o estudante da
Bíblia e o Espírito Santo, ambiente que só existe numa relação
íntima com Deus e com outros irmãos de fé.
A nal de contas, ao mesmo tempo em que a Bíblia apela para
uma decisão pessoal do indivíduo para com Deus, também
demanda uma interpretação em conjunto. Ou seja, Deus não
incentiva ninguém a ser um cristão avulso. A Igreja, corpo místico
de Cristo, é o lugar onde a interpretação conjunta da Palavra de
Deus terá maior resultado efetivo.

PASSOS PARA A INTERPRETA O DA BÍBLIA

Os passos a seguir têm um caráter sugestivo e não dogmático. Não


se trata de uma receita de bolo, mas sugerem uma leitura
proveitosa da Palavra de Deus.
▶ Pressuposições

Conhecer os pressupostos teológicos de um biblista é essencial para


avaliar e compreender sua interpretação do texto. Uma listagem
mais conservadora de entendimento da Bíblia partiria dos
seguintes pressupostos:

. A Bíblia, com seus 66 livros, mais do que “conter”, identi ca-se


como a legítima Palavra de Deus em linguagem humana.
. O Novo Testamento é a sequência natural do Antigo e nenhum
dos dois pode ser corretamente compreendido a não ser que
ambos lancem luz um sobre o outro.
. Deus é o verdadeiro autor do Novo Testamento. Ele se valeu de
instrumentos humanos sem, contudo, negar as características
pessoais de cada autor. Trata-se, portanto, de uma obra
“inspirada”, e não ditada ou copiada de um original divino.
. Sendo indivíduos com características pessoais, os autores
humanos do Novo Testamento imprimiram em seu texto as
peculiaridades de sua personalidade, o que permite visões
particulares de uma mesma verdade que não implicam em
contradição ou perda de unidade. É somente dentro desse
escopo que se aceita falar de teologia paulina, joanina etc.
. Os Evangelhos não constituem uma biogra a de Jesus (no
sentido moderno da expressão), mas são um kerygma, isto é,
uma proclamação que pressupõe uma história real contrária à
criação de um mito ou de uma lenda particular. São a
proclamação de algo que realmente aconteceu na história e que
fora con rmado por muitas testemunhas.
. Por mais importante que ela seja, a interpretação não constitui
o totum do trabalho exegético. Do contrário cairíamos no
racionalismo teológico. O estudioso das Escrituras precisa
trabalhar sob a iluminação do Espírito Santo, que traz vida ao
texto impresso e o atualiza numa correta aplicação para os dias
de hoje. Em termos simples e objetivos, podemos falar de três
estágios nesse processo de interpretação: observação (o que diz
o texto), interpretação (o que o texto quer dizer) e aplicação (o
que o texto quer dizer para nós).108
. O texto deve primeiramente ser analisado dentro do matiz
histórico em que surgiu. Quem foi seu autor, os propósitos com
os quais foi produzido, a quem se dirigia etc. Somente a partir
dessa clari cação se pode exercitar uma aplicação dos mesmos
princípios ao nosso tempo completamente distanciado do
tempo bíblico. A aplicação moderna dos princípios antigos
demonstra a vida da Palavra desde que não se criem rupturas
arti ciais que obriguem o texto a dizer algo que,
originalmente, estaria completamente fora de seus propósitos
imediatos ou não.
. Como princípio geral, a Bíblia interpreta a Bíblia. Contudo,
ciências auxiliares como a arqueologia, papirologia, lologia,
entre outros, podem lançar valiosa luz sobre o contexto em que
determinado texto foi produzido. Mas aqui é preciso atentar
para a subjetividade interpretativa que varia de pesquisador
para pesquisador. Por exemplo, a arqueologia mostra curiosas
similaridades entre alguns episódios bíblicos e lendas pagãs
sumerianas. Contudo, não compete à arqueologia exercer juízo
de valores quanto ao porquê dessa similaridade, ela apenas
evidencia sua existência. Um pesquisador voltado aos
pressupostos do criticismo histórico entenderá que o autor
bíblico plagiou estas lendas anteriores, ao passo que outro
pesquisador de orientação histórico-gramatical poderá
compreender que as semelhanças não signi cam necessária
interdependência, mas fontes históricas comuns. Em outras
palavras, tanto a Bíblia como o Gilgamesh podem estar se
referindo à mesma história do dilúvio, preservada de maneira
diferente em cada um dos compêndios e não que um tenha
plagiado o outro. Isto, por outro lado, não impede também que
Moisés possa ter lançado mão de uma ou outra informação
contida em material prévio, evitando, porém, os conceitos
pagãos da fonte que consultara.

▶ Como interpretar o texto

Lembrando que estamos diante de um exercício acadêmico, mas,


antes de tudo, espiritual (1Coríntios 2:14), é natural que recorramos
a Deus em oração antes mesmo de abrir a Sagrada Escritura. Bíblia,
lembremos, não é um livro para ser meramente lido. Antes é um
livro para ser estudado com diligente oração e desejo de se conhecer
os planos de Deus e se submeter a eles. Fora desse padrão de
pesquisa, por mais perfeitamente técnico que seja o trabalho do
exegeta, sua hermenêutica não produzirá os frutos desejáveis que
deveria. Por outro lado, a interação entre oração, sincera submissão
e estudo exaustivo do texto resultará em elementos de bênção tanto
para o indivíduo (o exegeta) como para a comunidade de fé (a
Igreja).
▷ 1. Escolha do texto
A escolha de um texto pode surgir de vários ambientes ou situações:

De uma conhecida passagem de difícil interpretação ou que,


aparentemente, está em contradição com outro dado da fé.
Por exemplo: Lucas 16:16-18 diz que “a lei e os profetas
duraram até João” ― uma passagem que parece, a princípio,
invalidar outras que demarcam a validade da Lei nos dias do
Novo Testamento.
De uma leitura casual (um ano bíblico ou estudo da lição)
onde um texto chama a atenção por sua peculiaridade ou
di culdade histórico-conceitual. Por exemplo: o que quis
Jesus dizer com a expressão “é mais fácil passar um camelo
pelo fundo de uma agulha que um rico entrar no reino dos
céus”? Seria esta uma expressão apenas espiritual ou social?
Da preparação de um sermão ou estudo bíblico. Qual é o
signi cado real da parábola do Rico e Lázaro? Qual é o
sentido da parábola do bom samaritano para os nossos dias?

▷ 2. Leia o texto nos originais ou no


maior número de versões que puder
Não se limite a ler apenas um ou dois versos, procure ler todo o
capítulo no qual a passagem está inserida, embora a atenção
evidentemente deva estar direcionada para aquela porção textual
propriamente dita. Leituras, releituras, memorização e meditação
na passagem serão importantes tarefas nesta etapa preliminar.
Os que trabalham com línguas bíblicas (hebraico, aramaico e
grego), deveriam ainda fazer uma tradução pessoal do texto que
querem analisar. Esse é um esforço muito importante e
recompensador. A seguir, podemos comparar nossa tradução com
outras já existentes. Assim conheceremos as várias compreensões
possíveis do mesmo original e veri caremos a existência ou não de
possíveis impasses.
Caso não tenhamos domínio su ciente das línguas originais,
podemos recorrer a textos interlineares ou nos limitarmos à
comparação entre traduções disponíveis. De modo limitado, essa
alternativa também ajudará a perceber as di culdades do texto
original. Mas na escolha de traduções, cuidado com os textos que
são paráfrases (Bíblia Viva) ou textos que foram traduzidos não a
partir dos originais, mas de outras versões modernas,
especialmente em inglês (é o caso da Nova Versão Internacional).
Geralmente, há três tipos de tradução: a) formal ou literal; (b)
funcional ou dinâmica; e (c) a paráfrase. A primeira (formal)
procura respeitar a forma linguística do original. Ela renuncia à
compreensão imediata para preservar o pensamento original
(incluindo as expressões idiomáticas). Esse tipo de tradução
aparece também nas versões interlineares. A segunda (dinâmica)
visa diminuir as di culdades que o leitor moderno tem ao se
deparar com um texto tão antigo e geogra camente tão distante de
nós. Já a paráfrase reescreve o texto em linguagem moderna,
aplicando muitos conceitos e ideias do próprio tradutor. Veja
alguns exemplos:

Gênesis 29:14
Hebraico: “Você é meu osso e minha carne.”
Nova Versão Internacional (NVI): “Você é sangue do meu sangue.”
Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH): “Sim, de fato você
é da minha própria carne e sangue.”
A mensagem: “Verdadeiramente és tu o meu osso e a minha
carne.”

1Samuel 25:22
Hebraico: “[…] se eu deixar permanecer ao menos um que urine
no muro […].”
NVI: “[…] caso eu deixe vivo um só do sexo masculino […].”
NTLH: “[…] se eu não matar até o último daqueles homens […].”

João 9:24
Grego: “Dá glória a Deus.”
NVI: “Para a glória de Deus, diga a verdade.”
NTLH: “Jure por Deus que você vai dizer a verdade.”
A mensagem: “Dá glória a Deus.”

Este é um passo sério que não pode ser negligenciado, pois uma
diferença de tradução pode gerar grande diferença de
interpretação.

▷ 3. Determine a delimitação da
perícope (contexto literário
imediato)
“Texto fora de contexto gera pretexto”, portanto, uma das
qualidades da boa exegese é a correta delimitação do texto. Isto é,
estabelecer os limites para cima e para baixo, onde ele começa e
onde termina. Pode ser uma tentativa de encontrar os parágrafos
ou subtítulos originais ou como estariam se o autor escrevesse num
estilo moderno.
O texto hebraico geralmente tem marcadores textuais diferentes
do texto grego. Estes marcadores podem ser vistos em manuais
técnicos como O manual da Bíblia hebraica, de Emanuel Tov, e
Metodologia da Exegese Bíblica, de Cassio Murilo Dias. De forma
mais simpli cada, os passos a seguir ajudam a orientar o leitor.

▶ Critérios para a delimitação do texto:


. Cuidado para não ser traído pela moderna divisão em capítulos
e títulos, pois ela é, em muitos momentos, defeituosa. Por
exemplo: João 10:1-18 tem como título “Jesus, o bom pastor”,
mas esse título ignora o verso 7, no qual ele diz ser a porta das
ovelhas. Igualmente os vv. 19-21 não deveriam vir à parte, pois
pertencem ao contexto do capítulo 9.
. Tempo e local: estes são elementos muito importantes,
principalmente se estivermos trabalhando textos históricos,
como é o caso dos evangelhos. O tempo pode indicar o início, a
continuação, a conclusão ou a repetição de um episódio. O local
é o espaço físico onde se processa a situação (exemplos: Marcos
16:1; Lucas 1:5).
. Argumento: há algumas partículas que podem indicar
mudança de assunto ou de argumentação. Por exemplo: “por
esta razão”, “ nalmente”, “a propósito de” (1Coríntios 12:1;
2Timóteo 4:6). Note que, às vezes, não haverá mudança de
argumentação, mas de perspectiva. Paulo, por exemplo, gosta
de usar a chamada diatribe (criação de uma discussão ctícia),
veja R. 7:13; 11:1). Veja também Lucas 1:26 e depois o verso 39.
. Anúncio de tema: alguns textos trazem, às vezes, a antecipação
de assuntos que tratarão a seguir. Exemplo: Hebreus 2:17,18
anuncia o próximo tema, Jesus Cristo como sumo sacerdote el
e misericordioso, que será tratado em 3:1―5:10.
. Estrutura: perceba a organização física da unidade, se ela tem
algum tipo de estrutura de nida (isso pode indicar inclusive
subestruturas). É o caso do Quiasmo109 (Mateus 7:6), o
paralelismo (Mateus 7:7), a retórica que usa recursos como
metáfora (João 15:1; 10:9; Mateus 5:13), sinédoque ([toma a
parte pelo todo ou vice-versa], 1Coríntios 11:26; Atos 24:5),
ironia (2Coríntios 11:5; 12:11, comp. com 11:13), tipologia
(Mateus 12:40; João 3:14).
. Composição: veja se há leitmotiv110 ou palavra-chave
costurando o texto. Aqui, a palavra-chave pode vir por
repetição ou por sinônimos. Ex: circuncisão, judeu, Lei em
Romanos.
. Fórmulas especí cas: expressões que indicam o estilo da
argumentação ou do texto. Ex: execração (“ai”),
humor/charada (“qual dentre vós”).

De uma forma mais simpli cada, seriam estas as fórmulas


literárias encontradas no Novo Testamento:
Nos evangelhos e nos Atos: ditos proféticos — onde Jesus
condensa a doutrina da salvação ou história da redenção (Lucas
12:32; Mateus 8:11-12). Ditos sapienciais — sentenças tipo provérbios
(Marcos 6:4; Lucas 6:45; 11:28; Mateus 5). Ditos jurídicos (Mateus 7:5;
10:10-12). Parábolas. Eu enfático, muitas vezes acompanhado do
verbo vir/ir, que expressa a consciência que Jesus tinha de sua
missão e de sua divindade (Mateus 10:35; Lucas 12:49); discursos
retóricos; discursos de despedida.
Nas cartas: hinos de origem cristã (Filipenses 2:6-11; Colossenses
1:15-20; 1Pedro 2:22-24); con ssões de fé (1Coríntios 15:35; 1Pedro 1:8-
21). Listas de vícios e virtudes, lista de deveres (1Timóteo 3:1-13;
Romanos 1:29-31; 1Coríntios 5:10-11).
Apocalipse: septenários, oráculos, midrash, cenas bélicas,
elementos históricos apresentados em linguagem surrealista para
decodi car outros elementos ao longo da história e da profecia.
Há estruturas maiores e menores e estruturas dentro de
estruturas (i.e., subdivisões estruturais). Seria interessante
descobrir um esboço maior, mas devemos tomar o cuidado de não
forçar o texto como muitos fazem (há autores que propõem que a
Bíblia inteira está em forma quiástica).
Exemplo de estrutura maior (mas que ainda não é o contexto
amplo):
Lucas 15

. Introdução: Jesus numa casa em festa com pecadores. 15:1


. O murmúrio dos escribas e fariseus à porta. 15:2
. Cena 1 — Parábola da ovelha perdida fora do aprisco. 15:3-7
. Cena 2 — Parábola da moeda perdida dentro de casa. 15:8-10
. Cena 3 — Parábola dos dois lhos perdidos (dentro e fora). 15:11-
21
. Conclusão re exiva: O pai em festa com o pecador. 15:22-24
. O murmúrio do lho mais velho à porta. 15:25-32

Uma vez feita a delimitação, procure ver o que aquela unidade


está dizendo. Qual é sua principal tese? Se for histórica, o que ela
está contando a nal? Assim, em relação ao contexto imediato,
procure ver como essa passagem participa das temáticas expressas
nos capítulos que a antecedem e nos que seguem seu fechamento.
As passagens anteriores afetam a compreensão do texto? Sem elas,
que impressões errôneas poderíamos ter?

▷ 4. Determine o contexto literário


amplo
Veri que qual é a contribuição, função ou papel daquela perícope
dentro do livro no qual está inserida. Para isso, abre-se um
parêntese para um importante estudo acerca do autor, data,
intenção etc. Esses elementos serão importantes. No caso dos
sinóticos, veri que também se a passagem não tem paralelo em
outro evangelho. Veri que também as relações daquela porção com
a Bíblia como um todo. É uma situação isolada? Há eco no restante
das Escrituras que permitam reconstruir uma base bíblica para
aquele assunto? Por exemplo, o rebatismo em Atos 19:1-7. Mas
atenção, veja se um autor bíblico não está usando a mesma temática
com um propósito diferente. É o caso da Nova Jerusalém descrita
em Isaías 65:17-25 e a de Apocalipse 21—22.

▷ 5. Determine o contexto histórico


Parte desse procedimento já foi feito ao se buscar a autoria do livro,
data, propósito etc. Contudo, aqui se vai a um ponto mais especí co
para esclarecimento de contextos e elucidação ou con rmação de
expressões que aparecem no texto bíblico. Veja o caso do “Deus
desconhecido” de Atenas anunciado por Paulo e a loso a de
Epimênides.
Esta parte, portanto, deveria incluir a contextualização histórica
do texto. Procure descobrir as características religiosas, culturais,
políticas e sociais da época. Mas atenção: cuidado com algumas
reconstruções hipotéticas que acabam sendo especulativas, e
cuidado também com os exercícios hermenêuticos que fazem da
Bíblia um mero produto do meio.

▷ 6. Análise gramatical
Com o contexto histórico bem de nido, podemos voltar ao texto e
fazer uma análise gramatical dele. Aqui daremos atenção às frases e
à sintaxe, bem como às palavras e à semântica. Alguns lembretes do
gênio da língua grega como aparece na Bíblia (koiné), serão úteis:

a. A sintaxe refere-se à relação entre as palavras dentro de uma


sentença. Mas atenção: não possuímos hoje uma completa
gramática normativa do grego antigo que aborde todos os casos
e de fato normatize universalmente a língua na Antiguidade.
As que temos foram sistematizadas pela observação do
comportamento mais comum dos vocábulos dentro dos textos
antigos. Mesmo assim, devemos estar prontos para exceções
que podem ser mais comuns do que esperaríamos.
b. Perceba que há hebraísmos que in uenciam a forma grega de
escrever dos autores do Novo Testamento. Veja, por exemplo,
Paulo em Colossenses 1:5-6. A expressão exageradamente
genitiva, isto é indicando com ênfase uma situação de posse,
origem: “na palavra da verdade do evangelho daquele vindo até
vós”, este é um claro hebraísmo que usa o genitivo como
adjetivo. O mesmo se dá com o dito de Jesus em João 2:21 “Jesus
estava se referindo ao templo do seu corpo”, em grego clássico
seria “ao templo, isto é, ao seu corpo”.
c. Identi que o tipo de sentença e o lugar de cada palavra na
oração. Lembre-se de que é o verbo e/ou a partícula condicional
que identi cam a sentença em grego. Pode ser uma sentença
transitiva (o verbo é o objeto), intransitiva (o verbo tem um
objeto), passiva (o sujeito recebe a ação do verbo), condicional,
interrogativa etc.
d. Identi que claramente (1) sujeito, (2) verbo, (3) objeto direto ou
indireto, se houver. Separe todas as conjunções e particípios da
frase, isso ajuda a esclarecer seu sentido original.
e. Separe em duas linhas os elementos subordinativos e os
elementos ao qual eles se referem, por exemplo: Gálatas 2:2b.
f. “[eu] lhes expus o evangelho (sujeito e verbo).
g. que prego (objeto, qualidade do evangelho).
h. entre os gentios (objeto alcance da pregação).
i. Na análise das palavras, cuidado com o método estruturalista e
com a alegorização do texto. Nós falamos de tipologia bíblica,
nunca alegoria bíblica.
j. Atenção para alguns erros cometidos na análise de palavras:

Falácia etimológica ― muitos pensam que a raiz da palavra


sempre determinará seu signi cado. Mas não é bem assim,
veja que a palavra trabalho vem do latim tripaliu, que era,
nada mais, nada menos que um instrumento de tortura
formado por três paus que serviam para estripar os
torturados. Embora para muitos o trabalho seja mesmo uma
tortura, esse é um bom exemplo, de não se rmar
demasiadamente em raízes etimológicas. Em 1Coríntios 4:1,
Paulo descreve a si mesmo e outros líderes de “servos” de
Cristo (hyperêtas). Ora, alguns pensam que esta palavra
grega viria de “eressô”, que quer dizer “remar”, conforme
encontramos em Homero no oitavo século a.C. Mas aqui o
sentido é “servo” e não “remadores de Cristo”. Outra
situação é com a palavra “monogenês” vertida (por causas
etimológicas) para “unigênito”, quando deveria ser “único
da espécie”, pois é assim que a palavra aparece na LXX,
Salmos 22:20 (yâhid), que a LXX traduz por “minha única
alma”.
Anacronismo semântico — esquecendo-se que as palavras
podem sofrer  alterações de signi cado em cada contexto,
alguns arbitrariamente tomam um signi cado posterior
para elucidar um signi cado anterior ou vice-versa, o que
causa má compreensão do termo. Devemos nos lembrar que
a Bíblia levou 1.600 anos para ser escrita, e muita coisa
acontece a um idioma durante esse tempo! O mesmo se dá
com palavras que hoje têm sentido diferente. Salvação hoje
é sinônimo quase exclusivo de justi cação na mentalidade
popular, mas no Novo Testamento pode signi car, em
alguns momentos, justi cação, em outros, santi cação,
ainda outros, glori cação ou todos os elementos
conjugados.
Paralelomania verbal — é a crença de que a presença de um
termo em vários contextos automaticamente indica um
paralelismo de ideias, um empréstimo de ideias ou uma
dependência literária. Por exemplo: Filo e Heráclito falavam
do logos, mas isso não signi ca que João tenha a mesma
ideia de logos ao empregar o termo no prólogo de seu
evangelho.

▷ 7. Determine como o texto foi


interpretado ao longo dos anos
Este é um exercício negligenciado em muitos manuais, mas que tem
tremenda importância hermenêutica. Em alguns casos (como em
teses), ele vem na seção de revisão de literatura e pode ser dividido
em período patrístico, medieval, moderno e contemporâneo. Sua
própria interpretação deve ser comparada com aquela
encontradiça ao longo dos anos.

▷ 8. Sistematize suas conclusões e


estabeleça a teologia do texto
Qual é o signi cado daquela passagem dentro do todo relevado na
Palavra de Deus? Por exemplo, qual é a contribuição do sermão da
montanha para a temática da justi cação pela fé? Em que sentido o
texto con rma, corrige ou esclarece nossos pressupostos losó cos
acerca da salvação? Finalmente, aplique o texto à realidade da
Igreja. Procure ver o que a essência daquela passagem teria a dizer
para o nosso contexto. Quando Jesus disse: “Se teu inimigo te
obrigar a andar uma milha, ande duas”, usou recursos do
imaginário da época (as leis romanas sobre os judeus conquistados)
para apresentar uma verdade. Que verdade é esta? Como se aplica a
nós? Se a encarnação ocorresse em nossos dias, que imagem de
nosso cotidiano equivaleria a essa declaração feita pelo Mestre? O
que devíamos pregar a partir deste determinado texto? Que lições
podemos tirar dele?

Termos técnicos usados pelos teólogos em sua tentativa de


compreensão do texto
Com exceção do segundo e do último, todos os termos são de domínio
da teologia liberal que não estuda a Bíblia como a legítima palavra de
Deus, mas sim como um livro da Antiguidade de produção inteiramente
humana.

Alta crítica refere-se ao estudo do autor original, do tempo, das


circunstâncias em que o documento foi produzido, sua
historicidade, sua entrada para o cânon etc.
Baixa crítica ou crítica textual refere-se ao estudo dos
manuscritos bíblicos com o fim de determinar sua transmissão, a
reconstrução de seu original, sua linguagem (gramática, questões
de vocabulário etc.). Aqui temos ainda as críticas externa (analisa
famílias de manuscritos) e interna (as variantes de um
manuscrito).
Crítica das fontes (Quellenkritik): procura encontrar supostas
fontes que estejam por trás de documentos mais extensos (Ex.:
Walhausen e a teoria JPDE, o problema sinótico do NT e o
documento Q).
Crítica da forma (Formgeschichte ou Formkritik): busca a tradição
oral transmitida e que se encontra por trás do texto bíblico.
Disseca a Bíblia em porções menores de supostas diferentes
tradições, procurando encontrar qual seria sua forma original.
Seu interesse é classificar unidades textuais menores por tipos ou
gêneros literários (Gattungen), como hinos, lendas, provérbios,
oráculos. Isso serve para associá-los e interpretá-los mediante
seu “contexto de vida” (Sitz im Leben).
Crítica da redação (Redaktionsgeschichte): estuda como
provavelmente teria sido o trabalho editorial dos livros que
compõem a Bíblia. Olha cada livro como uma unidade teológica
procurando ver qual o objetivo do(s) autor(es), sua tese principal,
seus destinatários. Olha a Bíblia como um todo, de modo oposto
à crítica das formas que se preocupa com partes menores.
Crítica da tradição (Traditionsgeschichte ou Traditionskritik):
estuda a história da tradição por trás do texto ou a história da
transmissão de uma tradição. Como ela se desenvolveu e a que
ponto.
Crítica textual: é a tarefa de se recuperar o conteúdo de um
antigo texto literário (hoje inexistente) no modo mais próximo
possível de sua forma originária, a saber, aquela pretendida pelo
autor.
91 Essa observação vem de Nils-Olov Nilsson. The Swedish Pentecostal movement 1913-2000:
the tension between radical congregationalism, restorationism, and denominationalism.
Columbia Evangelical Seminary, 2001, disponível em:
<http://www.nilsandchris.com/method.htm>.

92 W. Kasper. Unidad y pluralidad en teología. Los métodos dogmáticos. Salamanca:


Sigueme, 1969, p. 15-16.

93 Fernando Canale. “Interdisciplinary Method in Christian Theology? In Search of a


Working Proposal” in Neue Zeitschrift Für Systematische Theologie Und Religionsphilosophie
43 (2001/3): 369.

94 Stanley Grenz. Revisioning Evangelical Theology. Downers Grove, IL.: InterVarsity Press,
1993, p. 31..

95 Clark Pinnock e Delwin Brown. Theological Cross re, an Evangelical Liberal Dialogue.
Grand Rapids, MI.: Zondervan Publishing House, 1990, p. 37..

96 Page M. Brooks. A comparison of Reactions to Postmodernity and its In uence on


Theological Method in the Works of Alister McGrath and Seyyed Hossein Nasr (tese doutoral
defendida no New Orleans Baptist Theological Seminary 2008), p. 82.

97 Millard Erickson. Christian Theology. Grand Rapids, MI: Baker, 1998, p. 70.

98 Sandra Harding é uma lósofa feminista, mas sua de nição pode ser aplicada
indistintamente em outras abordagens cognitivas. Sandra Harding. “Introduction” in
Feminism and Methodology, [ed. Sandra Harding] Bloomington: Indiana University Press,
1987, p. 2, 6-8..

99 Elliott E. Johnson. Expository Hermeneutics: an Introduction. Grand Rapids, Mi:


Zondervan Publishing House, 1990, p. 8.

100 Bernard Ramm. Protestant Biblical Interpretation. Grand Rapids, Mi: Baker Book
House, 1970, p. 1.

101 Anthony C. Thiselton. The Two Horizons. New Testament Hermeneutics and
Philosophical Description with Special Reference to Heidegger, Bultmann, Gadamer, and
Wittgenstein. Grand Rapids, MI: Eerdmans/Exeter Paternoster, 1980, p. 11.

102 APUD. “A Bible Hermeneutics De nition how Bible Interpretations, or Hermeneutics


of the Bible, A ect the Way we Read the Scriptures”. Disponível em:
<http://www.biblicalarchaeology.org/daily/biblical-topics/bible-interpretation/a-bible-
hermeneutics-de nition/>.
103 Walter C. Kaiser Jr. Toward an Exegetical Theology. Grand Rapids: Baker, 1981, p. 47;
David Stacey. Interpreting the Bible. Nova Iorque : Seabury, 1977.

104 Cf. Richard M. Davidson. “Biblical Interpretation” in Raoul Dederen (Ed.) Handbook of
Seventh-day Adventist Theology. Hargestown, MD: Review and Herald, 2000, p. 60.

105 Veja uma tentativa de distinção em: Stanley E. Porter. Handbook to Exegesis of the New
Testament. Leiden: Brill, 1997, p. 5-8.

106 Arthr G. Patzia e Anthony J. Petrott. Dictionary of Biblical Studies. Downers Grove, Il:
InterVarsity Press, 2002, p. 40.

107 G. Ebeling. Word and Faith. Londres: SCM Press, 1963, p. 321; C. F. Evans. Is “Holy
Scripture” Christian? Londres: SCM Press, 1971, p. 31.

108 Gordon D. Fee e Douglas Stuart. São Paulo: Vida Nova, 1986, p. 281-282.

109 John W. Welch (ed.). Chiasmus in Antiquity: Structures, Analyses, Exegesis. Hildesheim:
Gerstenberg Verlag, 1981; idem, “Criteria for Identifying the Presence of Chiasmus.”
Journal of Book of Mormon Studies 4:2 (1995): 1-14.

110 Leitmotiv é uma palavra alemã para indicar uma imagem, qualidade, ação ou objeto
que ocorre em toda a narrativa, poema ou oráculo, é o que costura o tema. Também se
refere a um tema que se repete em diferentes textos de um mesmo autor. Esta palavra é
muito usada num sentido mais losó co que técnico. Palavra-chave cabe melhor ao nosso
intento.
CAPÍTULO DEZESSEIS

QUE TRADUÇÃO
DEVO USAR?

TRAD TORES O TRAIDORES?

É interessante como as teorias da conspiração tomam conta de


páginas e mais páginas da Internet. A religião e a Bíblia não estão
imunes a ataques de pessoas, muitas vezes sem treinamento
acadêmico ou frustradas por terem perdido um emprego, que
lançam toda dúvida possível para desacreditar o trabalho dos
tradutores bíblicos. É claro que imprecisões existem e correções
precisam ser feitas. Deus, no entanto, preservou aquilo que o seu
Espírito inspirou aos homens escreverem e as traduções são uma
forma legítima de divulgar a mensagem de Deus.
É uma pena que nem todos valorizam o árduo trabalho de um
tradutor, principalmente considerando as di culdades que
passaram para transmitir o conteúdo bíblico a um povo de língua
estrangeira. Existe um ditado vindo por vias tortas desde o italiano
até nossos dias que a rma: “Traduttore, traditore”, isto é, o tradutor
é um traidor.
Ainda que haja realmente tradutores desonestos (nenhuma
pro ssão está isenta de incompetentes), nada estaria mais longe da
verdade do que dizer que os tradutores são traidores da versão
original. Tal acusação refere-se à prática dos dragomanos, que
eram os intérpretes do governo Otomano, desde o século 17 até a
revolução grega de 1821. Eles não eram necessariamente
enganadores na arte da tradução, mas reconheciam que havia
termos impossíveis de se traduzir para outro idioma.
A expressão que os italianos e europeus usavam não era tanto no
aspecto ético, mas na di culdade do ofício, pois, por mais que o
tradutor seja competente e honesto, estará sujeito às limitações no
processo de tradução. Havia também o elemento da diplomacia que
obrigava os tradutores, muitas vezes, a usar eufemismos ou mudar
ligeiramente o que os monarcas diziam, principalmente quando a
declaração poderia resultar num con ito militar.
Sabedores que os líderes otomanos, além de não falarem
nenhuma língua europeia, eram em grande parte cruéis,
caprichosos e de linguajar obsceno, os dragomanos desenvolveram
a astúcia de amenizar as traduções que levavam dos sultões para os
monarcas, e vice-versa. Assim, foram evitadas muitas guerras e
execuções, porém, ao custo de não traduzirem a mensagem
exatamente como foi dita.
Um caso curioso foi aquele que evitou um incidente diplomático
entre o sultão e a rainha da Inglaterra:111
[…] quando o sultão Murad II concedeu permissão para os mercadores
ingleses fazerem comércio nas terras otomanas, a carta original em turco
dizia que a rainha Elizabeth “demonstrou sua subserviência e devoção e
declarou sua servidão e afeto” ao sultão. Para a comunicação posterior com a
corte inglesa, a carta foi traduzida pelo grande dragomano para o italiano,
que ainda era a língua original do império otomano. Em italiano, no entanto,
a carta não diz o mesmo: expressa a fórmula turca elaborada de forma
econômica como sincera amicizia. […] Ele (o dragomano) sabe que seu mestre
nunca considerará a rainha da Inglaterra como uma monarca de igual poder;
e, como diplomata experiente, ele também sabe que Elizabeth I possivelmente
não aceitaria a expressão de “servidão” ao sultão, mesmo em um oreio
convencional.

Devemos muito ao trabalho dos tradutores. A tarefa de


reconstrução do texto bíblico e de acompanhamento de sua
transmissão ao longo dos séculos é enriquecido pelas antigas
versões que sobreviveram até nossos dias.

ANTIGO TESTAMENTO

Talvez a mais antiga tradução feita do Antigo Testamento foi, na


verdade, uma paráfrase explicativa que os judeus normalmente
chamaram de Targum. Suas origens remontam aos tempos em que
Judá foi atacada pelos babilônios e seu povo levado em cativeiro.
Nesta mesma época, em que Nabucodonosor levou os habitantes
de Jerusalém e Judá para morarem às margens do rio Tigre e
Eufrates, a linguagem da vida cotidiana na Assíria e na Babilónia
havia deixado de ser aquela que conhecemos pelas inscrições
cuneiformes para tornar-se o aramaico, adotado como língua
diplomática e comercial em todo o território. Era a língua franca da
época.
Morando por décadas ali, os judeus também assimilaram esse
idioma e seus lhos nascidos na Babilônia passaram a ter o
aramaico, e não mais o hebraico, como língua materna. Eles até
tentavam manter em casa conversações em hebraico, mas a pressão
externa era maior e em pouco tempo os mais jovens já não falavam
mais o idioma de seus pais. Perdeu-se quase toda a uência da
língua falada pelos hebreus antes do cativeiro.
Uma prova disso é que após o cativeiro, quando Esdras e os
levitas leem em voz alta a lei de Moisés para o povo, foi necessário o
trabalho de interpretação para que pudessem entender o conteúdo.
A maioria dos que voltaram do exílio já não entendiam o hebraico,
uma vez que o seu idioma era agora o aramaico. Por isso, quando as
Escrituras eram lidas em hebraico, um grupo de homens dedicados
fazia a interpretação para o aramaico, de tal maneira que os éis
pudessem compreendê-las e aplicá-las à sua vida. Desse modo, as
pessoas do povo se regozijaram “porque entenderam as palavras
que lhes zeram saber” (Neemias 8:8,12)
O culto sabático parece ter sido o único momento para preservar
o idioma hebraico. No dia a dia, seja no comércio ou nas
conversações comuns, as pessoas se expressavam em aramaico.
Nem o povo que permenceu em Judá sem ir para o cativeiro cou
isento da in uência aramaica em seu idioma. Estrangeiros que já
haviam adotado o aramaico pressionavam a região para morar nela
e ali estabelecer-se na lacuna deixada pelos que foram levados ao
exílio. Comerciantes, construtores e políticos viam ali a
oportunidade de fazer prosperar seus negócios.
Embora não seja registrado, não é inverossímil que
Nabucodonosor, seguindo o exemplo dos assírios, tenha enviado
para a Judeia colonos vindos de outras partes de seu império. A
linguagem comum a todos esses, além de seu dialeto nativo, era o
aramaico, o que reforçava o uso da língua naquela região. O
hebraico cou cada vez mais esquecido.
Paralelo a isso, há quem pense que foi nesse contexto que
tiveram início as primeiras sinagogas judaicas ou, pelo menos, a
inauguração de casas de ensino que pudessem xar a lei na mente
dos mais jovens. Longe do templo, agora destruído, não tinham
outro lugar apropriado para oferecer sacrifícios e cultos ao seu
Deus. Sua alternativa de adoração passou a se resumir ao estudo da
Lei, ao cântico dos salmos e às orações em comunidade. Esse
estudo, ponto áureo da adoração, precisava ser num idioma
compreensível. Sendo assim, criaram-se as paráfrases e explicações
do Antigo Testamento a que deram o nome de Targuns.
Em síntese, os targuns eram explicações das escrituras hebraicas
em aramaico para o benefício daqueles judeus que tinham parcial
ou completamente deixado de compreender a língua sagrada de
seus pais.
Assim, os Targuns Aramaicos tornaram-se as primeiras
traduções “o ciais” do Antigo Testamento, ou da Bíblia hebraica,
para o aramaico, pelos judeus, e, por isso, foram aprovados para
uso no judaísmo. Alguns adquiriram status de autoridade. Os
Targuns Aramaicos não são uma única tradução da Bíblia hebraica.
Antes, consistiram de várias traduções ou paráfrases individuais de
livros ou grupos de livros, que surgiram ao longo do tempo, de
acordo com a necessidade.
A SEPT AGINTA

A Septuaginta (às vezes abreviada como LXX) é o nome comumente


dado no Ocidente a uma antiga tradução das Escrituras judaicas
para o grego koiné. Elas foram traduzidas em etapas desde o terceiro
até o segundo século a.C. em Alexandria, no Egito.
O que levou os judeus a traduzirem seu livro sagrado para outra
língua em vez de manter o original hebraico? Dois fatores podem
ter concorrido para isso. O primeiro seria o fato de que muitos
judeus que moravam fora de Israel começaram a perder a uência
da língua hebraica, adotando o grego como idioma corrente.
Estima-se, por exemplo, que perto de 1 milhão de judeus viviam em
Alexandria durante o terceiro século a.C. Esse elevado número de
judeus alexandrinos estava por gerações afastados da cultura
hebraica de seus pais. Logo, eles estariam mais familiarizados com
o grego e não podiam compreender o texto hebraico original.
Em segundo lugar, a helenização do Ocidente trouxe uma nova
oportunidade criada pela fundação da Biblioteca de Alexandria,
que reunia livros do mundo inteiro. Ter entre o acervo uma ou mais
cópias em grego das Escrituras hebraicas poderia facilitar que
estrangeiros de mente helenizada tivessem acesso às crenças do
judaísmo.
Em relação a isso, uma antiga lenda apareceu na Carta de
Aristeas, escrita no segundo século a.C. Segundo ela, o nome
Septuaginta se deveu ao fato de que 70 ou 72 sábios judeus haviam
sido comissionados por Ptolomeu Filadelfo para traduzir de uma só
vez todo o texto do
Antigo Testamento.
Embora muitos duvidem da historicidade deste fato, existe um
consenso de que a versão da LXX in uenciou bastante o judaísmo
intertestamentário. Os antigos escritores judeus, Filo de
Alexandria e Josefo (ambos associados com o judaísmo helenístico
do primeiro século), a rmavam que os tradutores da LXX foram
inspirados por Deus. Embora essa a rmação seja passiva de
questionamento, pode-se dizer que, assim como o judaísmo, as
origens do cristianismo foram bem in uenciadas por essa versão
grega das Escrituras. Hoje é sabido que muitas citações do Novo
Testamento vêm diretamente da LXX. Muitos seguidores do
cristianismo não falavam hebraico, e dependiam dessa tradução
para estudar os fundamentos bíblicos do movimento de Jesus. Até
hoje muitas traduções modernas da Bíblia se valem tanto do texto
hebraico como quanto dessa antiga e preciosa versão.
A LXX contém os 39 livros do Antigo Testamento, comumente
aceitos por protestantes e católicos, acrescidos de certos livros não
reconhecidos como inspirados na versão hebraica original. São
eles: Judite, Tobias, Baruque, Sirácida (ou Eclesiástico), Sabedoria
de Salomão, 1 e 2Macabeus, 1 e 2Esdras, além de acréscimos aos
livros de Ester, Daniel e a prece de Manassés.

O TRAS VERS ES DO ANTIGO TESTAMENTO

Baseados nas paráfrases aramaicas do Antigo Testamento, mas


principalmente no texto hebraico, judeus, ou mais provavelmente
cristãos da Síria, zeram em diferentes épocas uma versão
chamada Siríaco Peshita. Foi um trabalho feito no começo do
cristianismo, e já em meados do segundo século d.C. era o texto
padrão dos cristãos sírios. Posteriormente, houve uma revisão com
base na LXX. A versão da Peshitta do Antigo Testamento era uma
tradução independente, baseada na maior parte em um texto
similar ao que seria preparado pelos judeus massoretas da Idade
Média.
Traduzida pelo bispo de Tela, em 617 d.C., a Hexapla siríaca
baseia-se na LXX e na quinta coluna da Hexapla de Orígenes. Esse
manuscrito foi bastante estudado no exame da LXX, em virtude de
ter preservado as notas críticas do original grego de Orígenes.
Existem ainda cinco versões do Antigo Testamento traduzidas
em língua copta ou copto, que seria o idioma falado no Egito em
continuação orgânica à antiga língua dos faraós. A versão saídica
ou tebaica foi preparada no século 2 d.C., no sul do Egito, com base
na LXX. No século 4 d.C., no norte do Egito, foi preparada a versão
boárica ou menfítica. Com poucos fragmentos, conhece-se também
as versões fayúmica e akhmímica.
Finalmente, o Antigo Testamento foi ainda trazido em versões
menores para o gótico, o etíope e o armênio, a partir do século 4
d.C.

NOVO TESTAMENTO

Diatessaron — por volta de 160 d.C. foi traduzida do grego para o


siríaco. Trata-se de uma harmonia dos evangelhos de autoria de
Taciano.
Gótica — esta versão já estava em uso por volta de 330-20 anos
antes de o Vaticanus e o Sinaítico serem copiados. A tradução foi
feita por Ul las, provavelmente no ano 250 d.C. É extremamente
literal, a ponto de usar a ordem das palavras em grego, mesmo
contra a lógica do idioma gótico.
Siríaco antigo — traz esse nome para não ser confundida com a
versão Peshitta posterior, que era a versão popular em siríaco. Essa
versão existe nos manuscritos sinaítico e curetoniano.
Peshitta — é uma tradução para o siríaco, do m do século 4 d.C.
Seu cânon é composto por apenas 22 livros, não trazendo 2Pedro,
3João, Judas e Apocalipse.
Copta — são conhecidas cinco versões do Novo Testamento em
copta ou egípcio. A versão saídica é a mais antiga e apareceu no sul
do Egito no século 2 d.C. Do norte do Egito veio a versão boárica e
tornou-se a versão dominante, pois é representada por um número
maior de manuscritos. As outras versões são a fayúmica, a
akhmímica e a do Egito Médio.
Armênia — é do m do século 5 d.C. e tem sua base numa fonte
cujo texto tinha similaridade com os manuscritos gregos Theta, 565
e 700. Afasta-se muito dos melhores manuscritos gregos,
aproximando-se do Textus Receptus. Há 1.244 cópias dessa versão.
Geórgia — seu manuscrito mais antigo é o Adysh, de 897 d.C. É
possível que essa tradução tenha sua origem do texto armênio. Era
a Bíblia da Geórgia.
Versões secundárias — destacamos a etíope, a eslavônica, a
árabe e a persa.

VERS ES MODERNAS
Mesmo antes da Reforma Protestante houve muitas traduções da
Bíblia para as diversas línguas faladas. Em 1382, com John Wycli e,
teve início a Bíblia inglesa, com base na Vulgata Latina, por isso ela
inclui também os livros apócrifos. Em 1280 e 1400, surgiram
porções da Bíblia em português.
Para obter-se uma obra, para que não fosse volumosa, então
mais cara, os tradutores procuravam produzir o texto com
economia de palavras, perdendo em muito o signi cado das línguas
originais. Isso foi corrigido em tempo e começaram a surgir
traduções mais éis ao texto original, sem preocupação com
economia de palavras. Dessas novas traduções, destacam-se a
Ampli ed New Testament; The New Testament, de Charles B.
Williams, e The New Testament, an Expanded Translation, de
Kenneth S. Wuest.
Merece destaque neste contexto a Bíblia de Lutero que foi uma
tradução alemã das Escrituras feita por ele e impressa pela primeira
vez em 1534. Essa tradução é considerada como sendo em grande
parte responsável pela evolução moderna da língua alemã.
Outras traduções tornaram-se importantes: A Bíblia de Tyndale,
traduzida em 1525 diretamente do hebraico e do grego. A Versão do
Rei Tiago (King James Version), baseada na Bíblia de Tyndale sob a
encomenda do Rei Tiago, surgiu em 1611 e popularizou-se entre os
países de língua inglesa. The American Standard Revised Bible,
lançada por ingleses e americanos em 1901, sendo uma espécie de
revisão da versão do Rei Tiago. A partir de 1804, com a British and
Foreign Bible Society, surgiram as modernas Sociedades Bíblicas
que muito vêm contribuindo para a divulgação da Bíblia.
PRIMEIRAS VERS ES EM PORT G ÊS

▶ Traduções parciais

D. Diniz (1279-1325), rei de Portugal, traduziu da Vulgata os


primeiros vinte capítulos do livro de Gênesis. O rei D. João I (1385-
1433) ordenou que houvesse uma tradução para o português.
Alguns padres católicos, a partir da Vulgata, traduziram os
evangelhos, Atos e as epístolas de Paulo. O próprio rei traduziu o
livro de Salmos.
Com esses livros prontos, publicaram a obra. Mais tarde foram
preparadas mais traduções de outras porções bíblicas: os
evangelhos, que a infanta Dona Filipa, neta do rei D. João I,
traduziu do francês; o evangelho de Mateus e porções dos outros
evangelhos, da Vulgata, pelo frei Bernardo de Alcobaça; os
evangelhos e as epístolas, pelo jurista Gonçalo Garcia de Santa
Maria; uma harmonia dos evangelhos, por Valentim Fernandes, em
1495; em 1505, por ordem da rainha Leonora, foram publicados o
livro de Atos e as epístolas gerais.
Outras traduções realizadas em Portugal foram: os quatro
evangelhos, traduzidos pelo padre jesuíta Luiz Brandão; e, no início
do século 19, os evangelhos de Mateus e Marcos, pelo padre Antônio
Ribeiro dos Santos. Salienta-se que a di culdade em se traduzir
para os diversos idiomas era a oposição da Igreja Católica Romana
que, ao longo dos séculos, fez implacável perseguição a estas obras,
amaldiçoando quem conservasse traduções da Bíblia em “idioma
vulgar”, como diziam. Por isso, também de muitas traduções
escaparam somente uns dois exemplares.

▶ Traduções completas

▷ Tradução por João Ferreira de


Almeida
Por conhecer o hebraico e o grego, usou os manuscritos dessas
línguas para sua tradução. Quanto iniciou o empreendimento, ele
era pastor protestante. Almeida utilizou-se do Textus Receptus, que
representa os manuscritos do grupo bizantino, possivelmente o
mais fraco entre os manuscritos gregos. Primeiramente, traduziu e
editou o Novo Testamento publicado em 1681 em Amsterdã,
Holanda.
Essa tradução apresentava muitos erros. Almeida mesmo fez
uma lista de dois mil erros. Muitos desses erros foram feitos pela
comissão holandesa, que procurou harmonizar a tradução de
Almeida com a versão holandesa de 1637. A di culdade de Almeida
é que não havia papiro algum e os unciais (manuscritos em letras
maiúsculas) eram poucos. Esta é a razão por que teve que lançar
mão de fontes inferiores.
Ele utilizou-se da edição de Elzevir do Textus Receptus, de 1633.
As edições mais modernas muito progrediram na tradução. Com
base nesta tradução, foram lançadas a Revista e Atualizada, a edição
Revista e Atualizada e a Versão Revisada de acordo com os melhores
textos em hebraico e grego, a versão que apresentamos neste livro,
como a mais indicada para estudos.

▷ Tradução de Antônio Pereira de


Figueiredo
Teve como base a Vulgata Latina. Em 1896, ele fez sua primeira
tradução em colunas paralelas da Vulgata e de sua tradução para o
português. Essa tradução foi usada pela igreja de Roma. Por ter sido
utilizada a Vulgata como base, tem a desvantagem de não
representar o melhor texto do Novo Testamento que conhecemos
pelos manuscritos unciais mais antigos e pelos papiros.

▷ A Bíblia de Rahmeyer
Manuscrito do comerciante hamburguês Pedro Rahmeyer, que
residiu em Lisboa, e traduziu em meados do século 18. Esse
manuscrito está na Biblioteca do Senado de Hamburgo, Alemanha.

▷ Comparando versões
Muitos estudantes da Bíblia cam perplexos com o desa o de
selecionar a melhor versão, especialmente quando se deparam com
a variedade de versões a sua disposição. Em qualquer livraria cristã
é possível encontrar muitas traduções diferentes da Bíblia à
disposição para venda.112
Como a maioria não possui a habilidade de ler em hebraico,
aramaico ou grego, a solução, no caso, é depender da linguagem de
acadêmicos que traduziram a Palavra de Deus nos idiomas
modernos. Isso, porém, é um privilégio se considerarmos que
temos à nossa disposição maior acesso à Palavra de Deus do que os
cristãos nos séculos passados.
Contudo, se a tradução da Bíblia é somente uma questão de
conversão de línguas antigas para o português, por que há tantas
versões diferentes? A resposta para isso é que, diferentemente das
línguas modernas, o antigo hebraico, o aramaico e o grego são
fundamentalmente diferentes do modo de se expressar em nossos
dias. Como resultado, a tradução da Bíblia é muito mais do que
simplesmente converter palavras de sua língua original para a
nosso idioma.
Por exemplo, a tradução literal de palavra por palavra do grego
para o português de João 3:16 ca da seguinte forma: “Assim pois
amou Deus o mundo, que o Filho único deu, para que todo o que crê
em ele não pereça, mas tenha vida eterna.”
Como pode-se notar, uma simples tradução de “palavra por
palavra” não faz sentido para a maioria dos leitores. A m de
alcançar uma tradução funcional, a estrutura gramatical precisa de
mudanças signi cativas.

▶ Tipos de traduções

Existem, grosso modo, três categorias principais de traduções da


Bíblia:
. Traduções literais: essas traduções retêm muito da forma e
estrutura da língua original e oferecem uma tradução de
palavra por palavra ao maior grau possível. Algumas traduções
desta categoria incluem João Ferreira de Almeida, João
Ferreira de Almeida Revista e Corrigida (RC), João Ferreira de
Almeida Revista e Atualizada (RA), Almeida Corrigida e
Revisada Fiel, Almeida Revista Imprensa Bíblica.
. Equivalência dinâmica: essas traduções possuem uma
abordagem de “pensamento por pensamento” que transmitem
o signi cado essencial do original escrito pelo autor. Conceitos
e metáforas menos conhecidos para leitores da era moderna
são frequentemente reescritos. Algumas traduções nessa
categoria incluem a Nova Versão Internacional (NVI) e a Bíblia
de Jerusalém.
. Paráfrase livre: paráfrases possuem grande liberdade com o
texto bíblico e procuram transmitir o signi cado expresso
usando frases contemporâneas e metáforas. As paráfrases
bíblicas mais conhecidas são Tradução na Linguagem de Hoje,
Nova Tradução na Linguagem de Hoje, Bíblia Viva e A Mensagem.

Dentro de cada uma dessas categorias, há variações


importantes. Por exemplo, a NVI é geralmente mais literal do que
outras traduções dinâmicas equivalentes, ao passo que a Bíblia A
Mensagem desvia-se mais do texto original do que a Bíblia Viva ou a
Tradução na Linguagem de Hoje. No entanto, essas categorias são
uma maneira útil de fazer com que o leitor leigo diferencie a
in nidade de traduções disponíveis da Palavra de Deus.
Para ilustrar as abordagens de diferentes traduções, quando
traduzido estritamente palavra por palavra, temos um exemplo de
como o texto surge em traduções representativas de cada uma das
três categorias:

1. Essencialmente literal:

“Atire o seu pão sobre as águas, e depois de muitos dias você tornará a
encontrá-lo.”
(Nova Versão Internacional)

“Lança o teu pão sobre as águas, porque depois de muitos dias o acharás.”
(João Ferreira de Almeida Corrigida Fiel)

1. Equivalência dinâmica:

“Empregue o seu dinheiro em bons negócios e com o tempo você terá o


seu lucro.”
(Nova Tradução na Linguagem de Hoje)

“A generosidade tem recompensa. Jogue seu pão sobre a água, porque dias
depois você o encontrará.”

(Versão Católica com Cabeçalhos)

“Distribua com generosidade o teu pão como se o atirasse sobre águas e


depois de algum tempo o receberás de volta.”
(King James atualizada, 1999)

1. Paráfrase livre:

“Seja generoso, porque o que você der a outros acabará voltando para
você.”
(Bíblia Viva)
“Dá generosamente, porque os teus dons reverterão, mais tarde, a teu
favor.”
(Bíblia Gateway)

As traduções essencialmente literais são as mais próximas ao


texto original; o texto em grego é analisado e basicamente reescrito
em uma gramática aceitável na língua para a qual está sendo
traduzido. Note, porém, que o signi cado básico é sempre
preservado apesar de algumas palavras-chave serem adicionadas ou
apagadas. O importante é olhar com calma o texto e comparar
versão com versão, o que, aliás, é hoje relativamente simples, pois
esse trabalho pode ser feito a partir de um aplicativo de celular dos
muitos que existem por aí. Há versões e tipos de aplicativos bíblicos
para todos os gostos, alguns até gratuitos. É baixar e começar a
usar.
Uma advertência, no entanto, deve ser feita, como você viu, há
muitas diferenças entre as várias traduções. Dizer simplesmente
que tanto faz usar uma Bíblia como outra não condiz com a
realidade de quem quer estudar a fundo a Palavra de Deus. Para um
estudo exegético, talvez deveria ser priorizada aquela tradução
mais literal. Para uma leitura pública talvez uma versão dinâmica
suavize a passagem por evitar termos antigos e não muito usuais.
Considerando que toda a Escritura é inspirada por Deus
(2Timóteo 3:16), devemos procurar ler traduções que re itam as
palavras escritas originalmente em hebraico, aramaico ou grego o
máximo possível e bons comentários bíblicos serão de grande ajuda
neste momento. Como obtê-los? Uma dica seria pedir sugestões
para algum teólogo de sua con ança, existem, inclusive, sites na
internet com bons comentários que estão em domínio público. Para
os que leem em inglês, o leque de opções será ainda maior.
A atenção para o estudo da Palavra de Deus não deve ser algo
negligenciado. O próprio Jesus disse: “[…] de modo nenhum
passará da lei um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido”
(Mateus 5:18). Devemos ser cuidadosos ao examinar a Palavra de
Deus.
Outra razão que merece nossa atenção é que frequentemente,
em casos onde há mais de um signi cado para um texto bíblico, o
leitor que escolheu uma tradução de equivalência dinâmica ou de
paráfrase livre recebe apenas a interpretação do tradutor, e isso
pode ser doutrinariamente e espiritualmente perigoso. Veja um
exemplo de Marcos 9:24:

“E logo o pai do menino, clamando, com lágrimas, disse: ‘Eu


creio, Senhor! Ajuda a minha incredulidade’.” (Almeida
Corrigida e Revisada Fiel)
“Imediatamente o pai do menino, clamando, [com lágrimas]
disse: ‘Creio! Ajuda a minha incredulidade’.” (Almeida
Revista Imprensa Bíblica)

Ambas as traduções são essencialmente literais e preservam a


fala confusa do pai. Quando diz: “Creio! Ajuda a minha
incredulidade”, será que ele quis dizer que precisava da ajuda de
Jesus para vencer sua incredulidade ou estava a rmando que
acreditava nele e gostaria de ter mais fé? Não sabemos ao certo, mas
é algo que deve ser considerado ao lermos o texto. Contudo, note
como as traduções de equivalência dinâmica e de paráfrase livre
apresentam esse verso:

“Imediatamente o pai do menino exclamou: ‘Creio, ajuda-


me a vencer a minha incredulidade’!” (Nova Versão
Internacional)
“Então o pai gritou: — Eu tenho fé! Ajude-me a ter mais fé
ainda!” (Nova Tradução na Linguagem de Hoje)
“O pai imediatamente respondeu: ‘Eu tenho fé; oh, ajude-
me a ter mais’!” (A Bíblia Viva).

A linguagem que cada uma das traduções oferece é tão diferente


porque elas apresentam uma variação de interpretações do que o
pai disse. Quando o tradutor realiza o árduo trabalho de interpretar
passagens desa adoras, leitores cristãos acabam sendo privados da
oportunidade de pensar por si mesmos. A realidade é que os
cristãos deveriam estar preparados para lidar com passagens
bíblicas difíceis, uma vez que este é um importante passo para o
crescimento espiritual. A ajuda de bons comentários bíblicos e o
estudo em conjunto com outros irmãos de fé é essencial no
momento de decidir por uma ou outra leitura, considerando que
não existe tradução perfeita nem trabalho que esteja isento de
melhorias.
As paráfrases são mais adequadas para os momentos de
meditação pessoal, sem muito rigor doutrinário. Todas, porém, em
conjunto devem ser lidas e comparadas num estudo mais profundo,
especialmente se este visar uma fundamentação doutrinária com
base na Bíblia Sagrada.
111 David Bellos, Is That a Fish in Your Ear?: Translation and the Meaning of Everything.
London, Penguin Books, 2011, capítulo 11, versão kindle.

112 Adaptado com autorização da Adventist Review, 2010.


CAPÍTULO DEZESETE

UMA COLETÂNEA
DE HISTÓRIAS

É muito interessante observar que a Bíblia é, antes de tudo, um


livro de histórias e também um livro histórico. Ou seja, não se trata
de uma coleção de lendas como as mitologias gregas ou as fábulas de
Esopo e La Fontaine. Os episódios descritos são reais e tiveram seu
lugar na História.
Em vez de inspirar os profetas a escreverem um tratado
losó co sobre a divindade, a Providência preferiu dar aos homens
um livro que narra a história de Deus em meio à História da
humanidade. Por isso, não seria errado chamar a Bíblia de “uma
história de Deus”, embora, é claro, sendo um ser eterno, o Altíssimo
não possa ser con nado aos limites de uma biogra a.
Existem cinco vantagens básicas em descrever Deus através de
uma história de suas ações:

Todos geralmente gostam de histórias. Adultos, crianças,


iletrados ou eruditos, todos têm facilidade para reproduzir
pelo menos a essência de seu conteúdo. Assim ca mais
fácil, às gerações que se seguem, transmitir o conteúdo da
revelação divina.
Histórias dão um fundamento racional e evidenciável para a
mensagem que se pretende transmitir. Ou seja, se a história
que a Bíblia apresenta for verdadeira, ela será veri cável e a
Teologia que se assenta nessa história também o será. Logo,
é possível veri car sua legitimidade. Mesmo, é claro, que
jamais possamos provar ou explicar com critérios humanos
eventos como a ressurreição de Cristo dentre os mortos.
Histórias reais costumam deixar traços em todas as culturas
que testemunharam seu acontecimento. Logo, pressupondo
que as bases históricas da Bíblia (a criação, a queda humana,
o dilúvio etc.) sejam eventos de repercussão universal, é de
se esperar que outras culturas fora da Bíblia também façam
menção deles e isso permite que mesmo povos que não
tiveram contato direto com a revelação escriturística
possam ter algum acesso, por mínimo que seja, às verdades
ali apresentadas.
Quando uma história é boa, as pessoas tendem
naturalmente a transmiti-la para outros. É como uma boa
piada que mesmo quem não é muito engraçado arrisca-se a
repeti-la na esperança de que outros riam também.
Finalmente, recontar uma história passada traz consigo a
vantagem de repetir emocionalmente o evento como se ele
estivesse mais uma vez acontecendo diante dos nossos
olhos. Isso ajuda na preservação do fato e da mensagem que
ele contém.
GEOGRAFIA DOS EVENTOS BÍBLICOS

No mapa abaixo temos a abrangência geográ ca dos eventos


mencionados na Bíblia, indicando a localidade onde eles tiveram
lugar. Como você pode ver, embora Deus tenha escolhido os judeus
para revelar sua Palavra profética, a revelação não cou restrita aos
limites de Israel.

▶ Livros da Bíblia e a localizade dos


eventos
1 Israel (Gênesis 12—38; Josué; Juízes; Rute; 1 e 2Samuel; 1 e 2Reis; 1 e 2Crônicas; Salmos; Provérbios;
Eclesiastes; Cantares; Mateus; Marcos; Lucas; João; Atos)
2 Judá (Esdras; Neemias 3—13; Isaías, Jeremias; Lamentações; Joel; Miqueias; Habacuque; Sofonias; Ageu;
Zacarias; Malaquias)
3 Egito (Gênesis 39—50; Êxodo 1—13)
4 Edom (Obadias)
5 Moabe (Deuteronômio e Jó [?])
6 Síria (Atos 11—13)
7 Mesopotâmia (Gênesis 12)
8 Caldeia (Gênesis 1—11)
9 Assíria (Jonas; Naum)
10 Pérsia (Neemias 1—3; Ester)
11 Monte Sinai (Êxodo 14—40; Números)
12 Capadócia (1 e 2Pedro)
13 Galácia (Atos 13—15; Gálatas; 1 e 2Pedro)
14 Ásia Menor (Atos 18—21; Efésios; Colossenses; 1 e 2Timóteo; Filemon; 1, 2 e 3João [?])
15 Bitínia e Ponto (1 e 2Pedro; Tiago [?])
16 Macedônia (Filipenses; 1 e 2Tessalonicenses)
17 Grécia (1 e 2Coríntios; Judas [?])
18 Acaia (Atos 15—18)
19 Creta (Tito)
20 Patmos (Apocalipse)
21 Itália (Atos; Romanos 21—28; Hebreus [?])
22 Babilônia (Daniel; Ezequiel)

LIVRO POR LIVRO

A Bíblia demorou muitos anos para atingir a forma e o conteúdo


que hoje conhecemos. Ela começou a ser escrita no século 15 a.C. e
terminou no nal do primeiro século d.C. Logo, foram mais de
1.400 anos de produção efetuada por cerca de quarenta diferentes
autores.
O Antigo Testamento foi escrito na região de Israel, na Babilônia
(onde o povo judeu cou exilado), no Egito e na Pérsia. Já o Novo
Testamento foi escrito em Israel, Síria, Ásia Menor, Roma (Itália) e
partes da moderna Grécia e Turquia (que faziam parte do antigo
Império Romano).
A maior parte dos livros do Antigo Testamento foi escrita em
hebraico, com algumas poucas seções em aramaico e o Novo
Testamento foi todo escrito em grego koiné — uma versão popular
do grego clássico falado na antiga Grécia.
O Novo Testamento foi organizado mais tarde e dividido
geralmente em quatro partes: Evangelhos, Atos, Epístolas (paulinas
e gerais) e Apocalipse. Listas como a do Cânon Muratoriano dão
evidência de que esta ordem já existia, embora de maneira ainda
embrionária, bem antes dos dias de Constantino.
Uma vez apresentada a organização da Bíblia em livros e a lógica
por trás desta listagem, seria interessante conhecer um pouco de
cada livro, sua origem, seus propósitos, possível data e autoria e o
signi cado de seus títulos. Algumas autorias e datas serão
hipotéticas, pois se baseiam na tradição judaica. Outras já são mais
seguras de serem classi cadas. Igualmente, as datas são
aproximadas e remontam a quando o livro começou a ser redigido.
Alguns, no entanto, demoraram décadas para assumir a forma que
estão hoje. É o caso de Isaías e Daniel, que começaram a ser escritos
quando os respectivos profetas ainda eram jovens e terminaram
quando já eram avançados em idade.

ANTIGO TESTAMENTO

▶ Pentateuco ou Torá

Torá, como já foi dito, signi ca Lei, e refere-se, normalmente, aos


cinco primeiros livros escritos por Moisés. Pentateuco é o nome
grego da mesma coleção e quer dizer “cinco rolos” ou “cinco livros”.
▶ Livros históricos

Contam a história da formação do povo de Israel não mais como


nômades, mas como um povo assentado em seu próprio território.
Descrevem as fases de conquista da Terra Prometida, a fase dos
juízes, a monarquia unida e dividida, a derrota do reino do Norte
(Israel) para a Assíria e o reino do Sul (Judá) para a Babilônia.
Finalmente, o retorno após o cativeiro para a reconstrução do
templo e da cidade de Jerusalém.

▶ Livros poéticos

Uma coleção de ditos, conselhos, poemas e admoestações que


expressam o suprassumo da sabedoria de Israel dos tempos antigos,
bem como sua coleção de hinos religiosos utilizados tanto na
liturgia como no resgate de sua história nacional.

▶ Livros proféticos

Uma coleção de oráculos proféticos emitidos por diferentes


homens que viveram entre o oitavo e o quarto séculos a.C.

▶ Profetas maiores
Os profetas maiores são a coletânea de profecias mais extensas.
Assim, o termo “maior” refere-se ao tamanho ou ao tempo em que
tais profetas permaneceram profetizando.

▶ Profetas menores

São os doze últimos livros do Antigo Testamento, assim conhecidos


por seu pequeno volume literário.

▶ Livros apócrifos ou
deuterocanônicos

Tobias 200 a.C.

Judite 150 a.C.

1Macabeus 100 a.C.

2Macabeus 100 a.C.

Eclesiástico 200 a.C.

Sabedoria 100 a.C.

Baruque 200 a.C.

NOVO TESTAMENTO
▶ Evangelhos

Os Evangelhos são ainda divididos em duas partes: primeiro vêm os


chamados “Evangelhos sinóticos”, isto é, evangelhos oriundos de
uma só ótica. Depois, em separado, vem o Evangelho de João que
segue um estilo e fontes próprios.

▶ Atos

Este é o único livro do gênero no Novo Testamento. Ele conta a


história original do início da Igreja Cristã com ênfase no trabalho
de Paulo.

▶ Cartas de Paulo

A coleção de cartas ou epístolas chamadas paulinas compreende um


total de treze correspondências que Paulo teria enviado às igrejas
por ele fundadas na Ásia Menor. A ordem que se encontram no
Novo Testamento não correspondem à data em que foram escritas.
Elas foram organizadas não cronologicamente, mas de acordo com
sua extensão.
Teólogos liberais têm colocado em dúvida a autoria paulina de
várias cartas atribuídas ao apóstolo. Com base nesta compreensão,
eles dividem assim essa parte do Novo Testamento:
Cartas protopaulinas: são as cartas que seguramente teriam
sido escritas por Paulo. São elas: Romanos, 1 e 2Coríntios,
Gálatas, Filipenses, 1Tessalonicenses e Filemon.
Cartas deutero-paulinas: são aquelas cuja autoria não é
segura ou é negada por certo número de teólogos. A saber:
Efésios, Colossenses e 2Tessalonicenses.
Cartas trito-paulinas: epístolas que, segundo alguns
comentaristas, di cilmente seriam do apóstolo Paulo, pois
usam uma linguagem diversa e tratam de problemas que
existiam nas comunidades no nal do primeiro século.
Hebreus ainda é um caso à parte. Alguns exegetas chegam a
dizer de maneira bem-humorada que a epístola de Paulo aos
hebreus não é epístola, não é de Paulo e não é aos hebreus.
Contudo, ainda que assim seja, seu conteúdo e sua teologia
são profundamente paulinos pelo que podemos, sem
cometer um grande equívoco, situá-la entre o chamado
corpus paulinum.

Outro aspecto interessante é o de que as cartas não foram


escritas do próprio punho do apóstolo. Ele as ditava (cf. Romanos
16:22) e, às vezes, as assinava (cf. Gálatas 6:11). Talvez a carta a
Filemon tenha sido a única escrita com sua própria mão.
Adotamos a apresentação mais conservadora que aceita como
autênticas as cartas tradicionalmente atribuídas a Paulo ―
acrescida da carta aos hebreus. As datas são igualmente hipotéticas.
Sendo assim, esta é a divisão que propomos:

Cartas maiores: Romanos, 1 e 2Coríntios, Gálatas e 1 e


2Tessalonicenses.
Cartas da prisão (escritas quando Paulo estava preso em
Roma): Efésios, Filipenses, Colossenses e Filemon.
Cartas pastorais: 1 e 2Timóteo e Tito.
Epístolas universais — Trata-se de cartas inspiradas, mas
que não foram escritas por Paulo. Elas são chamadas de
universais, gerais ou católicas113 porque são dirigidas às
comunidades cristãs como um todo. Cada uma foi nomeada
de acordo com o seu autor.
Apocalipse — Este é outro escrito de característica única na
coleção de textos do Novo Testamento. Ele segue as
características de um tipo de literatura chamada
apocalíptica, relativamente comum entre os judeus,
sobretudo para a comunidade dos essênios. É uma forma
distinta de fazer profecias.

RES MO LIVRO POR LIVRO

▶ Gênesis

▷ Título e conteúdo
Em grego signi ca “origem”, pois ali está narrada a origem da
Terra, da humanidade e do povo hebreu. Os judeus o chamavam de
“Bereshith”, que quer dizer “no princípio”.
O livro também destaca, em meio às narrativas, a queda do
gênero humano, o primeiro homicídio, as principais genealogias
(ou gerações) que convergem para a formação do povo hebreu, o
dilúvio, a confusão de línguas na construção da torre de Babel e,
nalmente, as histórias patriarcais, nalizando com a migração de
Jacó e seus lhos para o Egito.

▷ Autor
As tradições judaica e cristã apontam Moisés como autor de toda
a série dos cinco primeiros livros até Deuteronômio. Sendo assim,
ele teria se valido, além da revelação divina, de tradições orais e/ou
escritas de fatos que ocorreram séculos antes de seu nascimento. Há
autores, no entanto, que supõem que o Gênesis seja um catálogo de
narrativas passadas oralmente de pai para lho e catalogadas
durante a monarquia de Israel.

▷ Data
O Gênesis cobre desde as origens do mundo até os dias de José
que, dependendo da cronologia adotada, vivera por volta de 1800 ou
1600 a.C.

▷ Localização
As histórias cobrem uma boa parte do Oriente Médio, incluindo
o que hoje seria o Iraque, a Síria, a Turquia, Israel e o Egito.
▷ Características literárias
Reconhecido como o primeiro livro da lei de Moisés, o Gênesis,
na verdade, traz poucos mandamentos divinos (2:16-27; 9:6-7). Com
exceção de poucas passagens escritas em estilo poético (3:14-19) e
extensas genealogias (cap. 5), a prosa é o estilo dominante em todos
os capítulos. Os capítulos 1—11 contêm a história das origens da
humanidade, e os capítulos 12—50, as origens do povo hebreu desde
Abraão até Jacó e seus lhos.

▷ Esboço114
Criação (1:1—2:3).
História de Adão e Eva (2:4—5:32).
História de Noé (6:1—11:32).
História de Abraão (12:1—25:18).
História de Isaque (25:19—28:9).
História de Jacó (28:10—36:43).
História de José (37:1—50:26).

▶ Êxodo

▷ Título e conteúdo
O título do livro vem da junção de duas palavras gregas. A
preposição ek quer dizer “movimento de saída”, e hodós, que quer
dizer “caminho”. Êxodo, portanto, signi ca caminho de saída e se
refere à saída do povo hebreu do Egito. Na Bíblia hebraica recebe o
título de Shemôt, isto é, “nomes”, de acordo com o hábito judaico de
intitular os livros a partir das suas palavras iniciais que em
hebraico seriam “We’elleh shemôt” (“E estes são os nomes”, 1:1).
Numa série de fortes intervenções miraculosas, Deus julga o
opressor e liberta o povo de Israel da escravidão, concedendo-lhes
leis e mandamentos que deveriam regê-los como indivíduos e como
nação.

▷ Autor
As tradições judaica e cristã apontam Moisés como autor. O
próprio livro indica que Deus ordenou que Moisés escrevesse
aquelas instruções que seriam os termos de um acordo entre Deus e
o seu povo (Êxodo 34:27). Jesus também se referiu ao Êxodo como
“os escritos de Moisés” (Marcos 12:26).

▷ Data
O Êxodo tem duas datas propostas pelos especialistas. Há os que
o estabelecem em torno de 1450 a.C., nos tempos de Tutmoses III e
Amenhotep II, e os que o estabelecem 200 anos mais tarde, nos
tempos de Ramsés II. A datação mais antiga é baseada em cálculos
bíblicos, como 1Reis 6:1, que cita a construção do templo (edi cado
por volta de 960 a.C.) ocorrida 480 anos depois do Êxodo. Já a
datação mais recente (ca. 1200 a.C.) baseia-se em Êxodo 1:11 que,
para muitos, seria uma referência a Ramsés II, que governou o
Egito de 1279 a.C. a 1212 a.C.
▷ Localização
Egito.

▷ Características literárias
Apesar de ser o segundo livro da lei de Moisés, ele tem mais
partes históricas que legislativas. Também escrito
majoritariamente em prosa, o texto possui um longo trecho poético
que seria a canção de Moisés no capítulo 15. Provavelmente, um dos
mais antigos hinos litúrgicos do povo de Israel.

▷ Esboço
Israel escravizado no Egito (1:1-22).
Deus escolhe Moisés (2:1—4:31).
Deus manda Moisés para o faraó (5:1—7:13).
As Dez Pragas (7:14—11:10).
A Páscoa (12:1-30).
O Êxodo do Egito (12:31—13:16).
Cruzando o Mar Vermelho (13:17—15:21).
Queixa no deserto (15: 22—18:27).
Os Dez Mandamentos e a Divulgação da Lei (19:1—24:18).
As instruções do Tabernáculo (25:1—31:18).
Quebrando a Lei (32:1—34:35).
Construção do Tabernáculo (35:1—40:38).
▶ Levítico

▷ Título e conteúdo
O livro leva esse nome por ter sido primariamente escrito para a
tribo de Levi. Só para lembrar, os sacerdotes que trabalhavam no
santuário eram todos membros dessa tribo e, por isso,
reconhecidos como levitas. Aqui, portanto, estão as leis
cerimoniais que deveriam reger as ações litúrgicas do santuário e,
posteriormente, do Templo judeu. Na Bíblia hebraica esse livro é
chamado de Vaiicrá = “e ele chamou”.

▷ Autor
As tradições judaica e cristã apontam Moisés como o autor. Mas
isso não invalida a possibilidade de que parte do conteúdo seja
anterior a Moisés e tenha sido transmitida oralmente. A prova
disso é que sacrifícios já existiam nos dias de Abel, Noé, Abraão,
Isaque e Jacó, de modo que eles deveriam ter prescrições dadas por
Deus sobre como realizá-los.

▷ Data
Alguns acadêmicos o colocam por volta de 1400 a.C. Outros, 200
anos mais tarde. Veja o comentário sobre a data do Êxodo.
▷ Localização
Em algum lugar aos pés do Monte Sinai, tradicionalmente
localizado na península egípcia que leva o mesmo nome.

▷ Características literárias
Trata-se de uma espécie de manual com regras sacerdotais. As
leis levíticas geralmente são iniciadas de dois modos: (1)
imperativos legais positivos e negativos — “Vocês deverão fazer isso
[…]” ou “Vocês não poderão fazer isso […]”; e (2) leis casuísticas: “Se
um homem […]”. Trata-se, portanto, de um código de leis muito
bem sistematizado à altura de grandes tratados antigos, como o
código de Hamurabi ou as Leis de Eshunma.

▷ Esboço
Instruções para ofertas (1—7).
Instruções para os sacerdotes de Deus (8—10).
Instruções para o povo de Deus (11—15).
Instruções para o altar e o Dia da Expiação (16).
Santidade prática (17—22).
Sábados, Estações, Festivais e Festas (23—25).
Condições para receber a bênção de Deus (26—27).

▶ Números
▷ Título e conteúdo
O nome curioso desse livro foi dado por causa dos dois
recenseamentos do povo de Israel mencionados nos capítulos 1—4 e
26. Os judeus o chamavam de Bemidbar, “no deserto...” Midbar pode
ser deserto, pastagem, como também discurso, fala = “e falou”. A
história deveria ser do retorno do povo hebreu para a Terra
Prometida, mas, em vez disso, mostra sua marca até à fronteira e a
espera. Por causa das transgressões, era necessário que toda aquela
geração morresse sem alcançar Canaã, apenas seus descendentes
entrariam ali.

▷ Autor
O livro não identi ca diretamente o autor, contudo a tradição
judaica e cristã, de longa data, o aponta como sendo Moisés. Alguns
teólogos modernos, no entanto, têm negado a autoria mosaica,
preferindo dizer que os livros de Gênesis a Deuteronômio viriam de
uma compilação de várias fontes reunidas especialmente nos
tempos da monarquia e do exílio babilônico. Embora seja possível
que haja algum trabalho editorial posterior, isso não elimina a
probabilidade maior de que Moisés seja o responsável pela maior
parte do material que formou os livros do Pentateuco.

▷ Data
Em ca. de 1450 a.C., ou 200 anos depois. Veja mais detalhes na
introdução de Êxodo.
▷ Localização
A história começa no entorno do Sinai, atual Egito, e termina no
território de Moabe, atual Jordânia.

▷ Características literárias
Parte da narrativa segue cronologicamente o enredo de Êxodo e
Levítico. Possui leis e registros históricos da peregrinação do povo
pelo deserto. Uma peculiaridade, porém, é o episódio envolvendo
um profeta não hebreu e seu oráculo acerca do povo de Israel
(capítulos 23—24). O oráculo está escrito em paralelismo poético
como outras profecias posteriores encontradas nos livros de Isaías e
Jeremias. O estilo de escrita hebraica é o mesmo encontrado nos
demais livros do Pentateuco.

▷ Esboço
Israel se prepara para a viagem à Terra Prometida (1:1—
10:10).
O povo se queixa, Miriã e Aarão se opõem a Moisés, e o povo
se recusa a entrar em Canaã por causa dos relatos dos
espiões in éis (10:11—14:45).
Durante 40 anos, as pessoas vagam pelo deserto até que a
geração sem fé seja consumida (15:1—21:35).
À medida que as pessoas se aproximam novamente da Terra
Prometida, um rei tenta contratar Balaão, feiticeiro e
profeta local, para colocar uma maldição sobre Israel (22:1—
26:1).
Moisés levanta outro recenseamento do povo, para
organizar um exército, e ordena Josué para sucedê-lo (26:1—
30:16).
Os israelitas se vingam dos midianitas e acampam nas
planícies de Moabe (31:1―36:13).

▶ Deuteronômio

▷ Título e conteúdo
O título vem de duas palavras gregas, deuterós, que quer dizer
“segundo”, + nomós, que quer dizer “lei”. Literalmente, “segunda
lei” ou “repetição da lei”, porque várias leis que aparecem no livro
de Êxodo são repetidas.

▷ Autor
O próprio livro refere-se a Moisés como seu autor (1:5;
31:9,22,24). Além disso, outras partes da Bíblia se referem a ele
como obra de Moisés (1Reis 2:3; 8:53; 2Reis 14:6; 18:12). Tanto Jesus
como Paulo igualmente reconheceram Moisés como autor dessa
parte das Escrituras (Marcos 10:3-5; João 5:46,47; Romanos 10:19).
Alguns especialistas, contudo, acreditam que se trate de uma obra
tardia compilada nos tempos de Josias por volta de 600 a.C. e
fraudulentamente atribuída aos tempos de Moisés.
Embora seja verdade que Moisés não poderia ter escrito a última
parte do livro que trata de sua própria morte, não há razões
plausíveis para se crer que o documento não seja autêntico e, em
sua maior parte, de autoria mosaica.

▷ Data
Em cerca de 1450 a.C., ou 200 anos mais tarde. Veja comentário
sobre o Êxodo.

▷ Localização
A leste do Rio Jordão, no que hoje seria a Jordânia, e Canaã, que
hoje seria o Estado de Israel.

▷ Características literárias
Diferentemente dos demais livros do Pentateuco, o
Deuteronômio mistura um estilo de sermão com narrativas, apelos
de arrependimento e repetição das leis de Deus. Juntos, eles
formam uma renovação da aliança feita entre Deus e seu povo, para
que os descendentes mais jovens possam entrar na terra que os
adultos não alcançarão. Finalmente, a chamada Canção de Moisés
(cap. 32) e sua bênção nal sobre Israel (cap. 33) fecham com chave
de ouro a narrativa antes do capítulo de apêndice que descreve a
morte de Moisés.
▷ Esboço
Moisés faz seu primeiro discurso sobre a história de Israel
(1:6—4:43).
Moisés faz seu segundo discurso sobre os requisitos básicos
da Lei (4:44—11:32).
Moisés continua seu segundo discurso sobre requisitos
detalhados da Lei (12:1—26:19).
Moisés faz seu terceiro discurso relativo às bênçãos e
maldições (27:1—28:68).
Moisés continua seu terceiro discurso com advertências e
incentivo (29:1—30:20).
A missão de Josué e as palavras nais de Moisés (31:1—
34:12).

▶ Josué

▷ Título e conteúdo
O livro leva o nome de seu protagonista, o comandante Josué,
que substituíra Moisés na liderança do povo. A despeito de seu
desempenho militar, não é a Josué que o livro atribui as conquistas
do povo hebreu, mas à intervenção divina. Canaã era uma Terra
Prometida por Deus, logo, não poderia ser mero fruto da conquista
humana.

▷ Autor
Desconhecido. Contudo, por causa de seu papel de destaque nos
relatos da conquista, a tradição tem apontado Josué como sendo o
autor do livro.

▷ Data
A conquista de Canaã pode ter se dado por volta de 1400 a.C. ou
1200 a.C. Para mais detalhes, veja a introdução do livro de Êxodo.

▷ Localização
A história começa a leste do rio Jordão, onde hoje é a Jordânia.
Então, os hebreus atravessam o rio para o lado oeste, chegando a
Canaã e dominando o território.

▷ Características literárias
O estilo literário do livro é a narrativa histórica. Seu autor se
prende bastante a uma espécie de relatório das conquistas militares
e conseguinte assentamento do povo na terra de Canaã. Os diálogos
e discursos de Josué são vivos. Talvez por isso, na Bíblia hebraica, o
livro é considerado o primeiro dos quatro antigos profetas ou
profetas narrativos (os demais são Juízes, Samuel e Reis).

▷ Esboço
Atribuição de Josué (1:1—5:5).
Raabe ajuda os espias (2:1-24).
O povo atravessa o rio Jordão (3:1—4:24).
Circuncisão e visita de um anjo (5:1-15).
Batalha de Jericó (6:1-27).
O pecado de Acã traz a morte (7:1-26).
A batalha contra a cidade de Ai (8:1-35).
A estratégia de Gibeão (9:1-27).
Derrotando os reis do Sul (10:1-43).
Capturando o Norte, uma Lista de Reis (11:1—12:24).
Divisão da Terra (13:1-33).
A terra ocidental do Jordão (14:1—19:51).
Mais distribuição de terras (20:1—21:45).
Louvor a Deus (22:1-34).
Josué admoesta o povo a permanecer el (23:1-16).
Aliança em Siquém, a morte de Josué (24:1-33).

▶ Juízes

▷ Título e conteúdo
O título traduz o hebraico Shoftim, que também pode ser
traduzido por “líderes” ou “libertadores”. Liderar e libertar foram
as principais tarefas desses heróis, enviados por Deus, cujos atos
são contados na narrativa. No período de sua atuação, os hebreus
ainda eram uma nação em desenvolvimento, semiautônomos, num
intervalo entre as batalhas de Josué e a uni cação monárquica das
tribos promovida por Davi. Não havia governo central, mas apenas
uma confederação de doze tribos unidas pela aliança com Javé e
constantemente ameaçadas por ataques inimigos, especialmente
dos listeus. Os ataques eram consequência da quebra da aliança
com Deus.

▷ Autor
Desconhecido. A tradição judaica diz que Samuel escreveu ou
compilou os relatos que deram origem ao livro. De fato, a repetida
expressão “naqueles dias, não havia rei em Israel” (17:6; 18:1; 19:1;
21:25) faz supor uma redação ocorrida no tempo da monarquia. Não
obstante, há quem entenda que o livro re ete uma perspectiva
posterior à conquista das tribos do norte pela Assíria em 722 a.C.
(18:30), o que levaria a composição do livro para depois dos dias de
Samuel. Seja como for, a história começa com a morte de Josué,
após a divisão da terra, e o início do reinado de Saul em 1050 a.C.

▷ Data
O livro traz a ação de 15 líderes que reinaram consecutivamente
(mas com alguma sobreposição) entre, aproximadamente, 1400 e
1000 a.C. (a data das conquistas de Josué ainda são ponto de debate
entre os acadêmicos).

▷ Localização
A maior parte do livro ocorreu nos territórios hoje formados por
Israel e Jordânia.

▷ Características literárias
Trata-se de uma narrativa histórica, composta em hebraico,
com um longo prólogo e um longo epílogo. A maior parte é em
prosa, mas também existe espaço para a poesia. A canção de Débora
(cap. 5), por exemplo, é da mais antiga forma de poesia hebraica.

▷ Esboço
Falha na conquista de Canaã (1:1—3:6).
Otniel (3:7-11).
Eúde e Sangar (3:12-31).
Débora e Baraque (4:1—5:31).
Gideão, Abimeleque, Tola e Jair (6:1—10:5).
Jefté, Ibsã, Elom, Abdom (10:6—12:15).
Sansão (13:1—16:31).
A idolatria de Mica e a tribo de Dã (17:1—18:31).
Iniquidade moral, guerra civil e suas consequências (19:1—
21:25).

▶ Rute

▷ Título e conteúdo
O título vem da protagonista da história, que é Rute. Trata-se da
história de uma jovem moabita que cara viúva de um hebreu. Fiel
à sua idosa sogra, Rute parte de sua terra e encontra amor e
proteção junto a um rico israelita chamado Boaz, que não tinha
esposa e faz todos os arranjos legais para se casar com ela.

▷ Autor
Desconhecido. A tradição judaica diz que Samuel escreveu ou
compilou os relatos que deram origem ao livro. De fato, a repetida
expressão “naqueles dias, não havia rei em Israel” (17:6; 18:1; 19:1;
21:25) faz supor uma redação ocorrida no tempo da monarquia. Não
obstante, há quem entenda que o livro re ete uma perspectiva
posterior à conquista das tribos do norte pela Assíria em 722 a.C.
(18:30), o que levaria a composição do livro para depois dos dias de
Samuel. Seja como for, a história começa com a morte de Josué,
após a divisão da terra, e o início do reinado de Saul em 1050 a.C.

▷ Data
Rute viveu provavelmente por volta de 1100 a.C. A dedução desta
data se dá pelo fato de ela ter sido a bisavó de Davi e de este ter se
tornado rei por volta do ano 1000 a.C.

▷ Localização
A história se passa entre Moabe, que hoje ca na Jordânia, e
Belém, que atualmente é parte do território palestino.

▷ Características literárias
Rute é colocada na Bíblia hebraica entre os livros chamados
“escritos” (Ketuvim), que seriam a outra seção ao lado da lei e dos
profetas. Embora seja uma narrativa contando uma história de
delidade e amor, o livro também tem um papel litúrgico para os
judeus. Nos Manuscritos do Mar Morto, o livro de Rute foi
identi cado como shavuoth ou “semanas”. Ele pertencia, portanto,
aos ritos de comemoração do Pentecostes que ocorria do m da
colheita de cevada e o início da colheita de trigo.

▷ Esboço
Rute retorna de Moabe a Judá com a sogra, Noemi (1:1-22).
Rute colhe grão no campo de Boaz. A lei exigiu que os
proprietários deixassem alguns grãos para os pobres e as
viúvas (2:1-23).
Seguindo os costumes judaicos, Boaz se elege para se casar
com Rute (3:1-18).
Boaz se casa com Rute. Juntos, eles cuidam de Noemi e têm
lhos (4:1-28).

▶ 1 e 2Samuel
▷ Título e conteúdo
O título é dado em referência ao profeta cuja história inicia o
livro. São dois livros, conhecidos como 1 e 2Samuel, e estão na seção
histórica da tradução grega do Antigo Testamento chamada
Septuaginta, e assim continua nas primeiras bíblias cristãs
traduzidas para o latim.
Ambos os livros gravitam em torno da história de três
personagens: Samuel, Saul e Davi. Cada um tem em sua biogra a
desdobramentos que afetam toda a história do povo de Israel.
O primeiro livro começa com a história de Ana e sua bela oração
de súplica a Deus para que pudesse ter o privilégio de ser mãe. Em
seguida, vem o nascimento de Samuel, seu lho, o mesmo que dá
nome aos livros. Então, a história prossegue relatando como
algumas tribos hebreias eram oprimidas pelos listeus, os milagres
envolvendo a arca da aliança, o começo da monarquia entre os
hebreus até chegar, no nal do segundo livro, ao episódio em que
Davi compra um terreno para a futura construção do templo e a
promessa de Deus de que a descendência do rei durará para sempre.

▷ Autor
A tradição judaica, desde longa data, aponta Samuel como o
principal redator da obra, que teve textos adicionados
posteriormente pelos profetas Gade e Natã. Mas teólogos que
seguem na linha da alta crítica a rmam que este livro pertence à
tradição deuteronomista composta entre 630 a.C. e 540 a.C., a
partir da compilação de textos independentes escritos em
diferentes períodos da história de Israel.
▷ Data
A narrativa de ambos os livros cobre, aproximadamente, de 1050
até 960 a.C., isto é, do nascimento de Samuel à morte de Davi.

▷ Localização
A narrativa começa em Siló, território israelita que na época
servia de “capital” ou “ponto de encontro” das tribos de Israel
durante as festas religiosas antes que houvesse monarquia, e se
estende para o chamado reino uni cado de Davi, que compreendia
grande parte do atual Estado de Israel, Líbano, Síria e Jordânia.

▷ Características literárias
O gênero é claramente histórico, o que demonstra um grande
avanço cultural por parte dos antigos israelitas, pois todos os mais
desenvolvidos povos da Antiguidade (como os egípcios, sumérios,
hititas e babilônios) cultivavam acentuadamente o hábito de
escrever registros reais de sua monarquia. Esse fato, por si só, já
demonstra o quanto o relato histórico era cultivado e estimado pelo
antigo povo de Israel.
Em termos de estilo, a diferença entre a historiogra a bíblica e a
literatura do Antigo Oriente Médio é que a maior parte dela é
compilada a partir de documentos triunfalistas, estelas
comemorativas de soberanos relatando em destaque suas vitórias e
extraordinárias façanhas. Já o texto bíblico é conciso em narrar as
vitórias dos reis, sempre atribuídas a Deus e nunca à genialidade do
monarca. Além disso, apresenta, sem restrições, os fracassos
trazidos por líderes de caráter duvidoso. E nem os sinceros homens
de Deus, como Davi, têm suas faltas ocultadas pelo redator. Pelo
contrário, ele as apresenta, bem como o genuíno arrependimento
do rei para que todos saibam que até os escolhidos de Deus falham e
têm a chance de pedir perdão. Esse mesmo gênero e estilo valem
para os livros de Reis e Crônicas.
Rigorosamente falando, os primeiros livros de Moisés,
incluindo o Gênesis, deveriam também ser considerados como
históricos. Contudo, para facilitar o entendimento, são
classi cados como Lei por causa de sua estreita relação com a leis
mosaicas.

▷ Esboço
1Samuel
I. Renovação sob Samuel (1:1—7:17)
Nascimento e infância de Samuel (1:1—2:36)

Nascimento e dedicação de Samuel (1:1—2:11).


Crescimento de Samuel e a corrupção dos lhos de Eli (2:12-
36).

Começo do ministério profético de Samuel 3:1—4:1

Seu chamado por Deus (3:1-9).


Sua palavra para Eli (3:10-18).
Seu ministério a todo Israel (3:19—4:1).

O ministério de Samuel como juiz (4:2—7:17)


A captura da arca pelos listeus (4:2-11).
A morte de Eli (4:12-22).
Recuperação da arca por Israel (5:1—7:1).
Samuel exorta ao arrependimento (7:2-6).
Derrota dos listeus (8:1—15:35).

II. O reinado de Saul (8:1—15:35)

Estabelecimento de Israel por um rei (8:1—12:25).


A exigência de Israel por um rei (8:1-22).
Saul é escolhido e ungido rei (9:1—12:25).
As guerras de Saul (13:1—14:52).
Saul é rejeitado por Deus (15:1-35).

III. Declínio de Saul e ascensão de Davi (16:1—31:13)

A crescente proeminência de Davi (16:1—17:58).


Sua unção por Samuel (16:1-13).
Sua música diante de Saul (16:14-23).
O con ito de Davi com os listeus e os amelequitas (29:1—
30:31).
A morte de Saul (31:1-13).

2Samuel
I. Os triunfos de Davi (1:1—10:19)

Os triunfos políticos de Davi (1:1—5:25).


O reino de Davi em Hebrom (1:1—4:12).
O reino de Davi em Jerusalém (5:1-25).

Os triunfos espirituais de Davi (6:1—7:29)


Mudando a arca (6:1-23).
Aliança de Deus com Davi (7:1-29).

Os triunfos militares de Davi (8:1—10:19)

Triunfos sobre os seus inimigos (8:1-12).


O governo justo de Davi (8:13—9:13).
Triunfos sobre Ámom e Síria (10:1-19).

II. As transgressões de Davi (11:1-27)

O pecado do adultério (11:1-5).


O pecado do assassinato (11:6-27).
Lealdade de Urias a Davi (11:6-13).
Ordem de Davi para assassinar Urias (11:14-25).
Casamento de Davi com Bate-Seba (11:26-27).

III. Os problemas de Davi (12:1—13:36)

Problemas na casa de Davi (12:1—13:36).


Profecia de Natã (12:1-14).
Morte do lho de Davi (12:15-25).
Lealdade de Joabe a Davi (12:26-31).
Incesto na casa de Davi (13:1-20).
Absalão mata Amom (13:21-36).

IV. Problemas no reino de Davi (13:37—24:25)

Rebelião de Absalão (13:37—17:29).


Joabe mata Absalão (18:1-33).
Restauração de Davi como rei (19:1—20:26).
Comentários sobre o reino de Davi (21:1—24:25).

▶ 1 e 2Reis

▷ Título e conteúdo
Como o próprio nome diz, refere-se à história dos reis de Israel,
tanto na época do reino uni cado, após a morte de Davi e início do
reinado de Salomão, como após a divisão entre reino do Norte, com
a capital em Samaria, e reino do Sul, com a capital em Jerusalém.
Em algumas versões da Bíblia, os livros de 1 e 2Samuel são
denominados 1 e 2Reis, seguidos por estes dois livros, que são, por
esta forma, denominados 3 e 4Reis. Ou também, em poucos casos, 1
e 2Reis (para aqueles que chamamos de 1 e 2Samuel), e Reis Hebreus
para os que chamamos de 1 e 2Reis.

▷ Autor
Desconhecido.

▷ Data
O relato cobre do início do reinado de Salomão (ca. 970 a.C.),
seguido pelos reinados de reis de Judá e Israel desde o começo da
monarquia dividida (ca. 930 a.C.) até a queda do reino de Israel nas
mãos dos assírios, em 722 a.C. 2Reis relata a história dos reinos dos
reis sobreviventes do sul de Judá até o seu colapso nas mãos dos
babilônios, ocorrido em 587 a.C.

▷ Localização
A história compreende grande parte do território atual do
Estado de Israel, Líbano, Síria, Jordânia e Iraque.

▷ Características literárias
O gênero permanece histórico, como os livros de Samuel. Não
obstante, os feitos de cada monarca hebreu não são apresentados
sob a ótica de realizações políticas, mas sob critérios teológicos, ou
seja, sua delidade ou não à aliança do povo com Deus. A maioria
dos reis do reino do Norte são consequentemente vistos sob um
prisma negativo, uma vez que não reconhecem a legitimidade
exclusiva do culto divino no templo em Jerusalém.
Entre uma e outra ação governamental, Deus sempre envia
profetas, ora para confortar ora para advertir e revelar os Seus
desígnios tanto para a vida do monarca como para o destino do
povo de Judá e Israel. Por isso, os três maiores temas que costuram
toda a trama são as promessas de Deus, a apostasia do povo e as
consequências advindas do arrependimento ou da impenitência.

▷ Esboço
1Reis
A sucessão davídica (1:1—2:46).
Salomão em toda a sua glória (3:1—11:43).
O cisma político e a divisão do reino (12:1—13:34).
Os dois reinos até Elias (14:1—16:34).
O ciclo de Elias (17:1).

2 Reis

O ciclo de Elias (1:1-18).


O ciclo de Eliseu (2:1—13:25).
Os dois reinos para a queda de Samaria (14:1—17:41).
Os últimos anos do reino de Judá (18:1—25:30).

▶ 1 e 2Crônicas

▷ Título e conteúdo
Os livros de Crônicas eram conhecidos como “livro dos
acontecimentos cotidianos”. Tratava-se de um único livro. O nome
refere-se à forma como os fatos históricos são apresentados nestes
dois livros, a saber em uma ordem sucessiva, mas não globalizante.
Nas bíblias hebraicas eles são chamados de Dibrê Hayyāmîm, que
quer dizer “em relação aos dias”, e concluem a terceira parte da
Tanak, que são os Escritos ou Ketubim. O primeiro livro começa
com as genealogias desde Adão até os descendentes de Isaque, Israel
(Jacó) e Edom (Esaú) e, em seguida, narra os principais eventos do
reinado de Davi. Já o segundo livro cobre o mesmo período de
2Reis, mas com ênfase em Judá, o reino do Sul, e seus governantes.
▷ Autor
Considerando que o livro termina com a conquista dos persas
sobre a Babilônia, em 538 a.C., muitos pensam que sua composição
teria sido após essa data, mas não se descarta o uso de material
prévio na compilação nal do livro. A tradição judaica aponta
Esdras como o responsável não apenas pela compilação dos livros
de Crônicas, mas também pelo livro de Esdras, que leva o seu nome,
e Neemias.

▷ Data
Embora a genealogia inicial parta de Adão e cubra os nove
primeiros capítulos de 1Crônicas, ambos os livros se concentram
mais no período da monarquia dividida de Israel, que vai desde 930
a.C. à chegada dos persas em 538 a.C. para derrotar a Babilônia e
permitir aos judeus cativos o retorno para sua terra. É, em síntese,
o mesmo espaço de tempo de Samuel e Reis. Distingue-se deles,
porém, pela extensão da matéria, pois, de um lado, restringe-se ao
reino de Judá e, de outro, acrescenta muitas informações acerca da
verdadeira adoração a Deus no Templo em Jerusalém.

▷ Localização
A história compreende grande parte do território atual do
Estado de Israel, Líbano, Síria e Jordânia, Irã e Iraque.
▷ Características literárias
O estilo de redação focado no templo em Jerusalém e suas
relações com o restante da história, fez alguns pensarem que o
gênero era cronista (daí o título usado até hoje), pois cobriria
detalhes não apresentados em Samuel e Reis. Outros autores, no
entanto, julgaram que os livros de Crônicas seriam um comentário
teológico das narrativas históricas escritas anteriormente. Talvez a
sugestão mais simples seja a mais viável, ou seja, que se trata de
uma fonte alternativa da história dos reis hebreus.

▷ Esboço
Registro das genealogias dos patriarcas e dos lhos de Jacó e
Esaú até ao rei Saul (1—9).
Um resumo do reinado de Davi (10—22).
A ascensão de Salomão ao trono substituindo Davi (23—29).
Um resumo do reinado de Salomão (1—9).
O reinado de Roboão e a divisão do reino do Norte e reino do
Sul (10—35).
O cativeiro babilônico e a chegada dos persas que permitem
aos judeus retornar para casa e reconstruir o templo
destruído pelos babilônios (36).

▶ Esdras e Neemias

▷ Título e conteúdo
No texto hebraico e na versão dos LXX, Esdras e Neemias
constituem um só livro, com o título comum de Esdras. Mas já no
tempo de Orígenes (início do século 3) eram divididos em dois. Na
Vulgata Latina são intitulados 1 e 2Esdras. Desde épocas longínquas,
porém, chamam-se habitualmente Esdras e Neemias, nomes
tomados dos principais personagens de cada um deles.
Sua principal temática é o retorno dos judeus do cativeiro
babilônico e a reconstrução do templo e dos muros da cidade de
Jerusalém.
Existem em algumas bíblias gregas e latinas um livro adicional
ora chamado 1Esdras ora 3Esdras. Trata-se de um livro curto,
composto de nove capítulos, e que apresenta versão diferente
daquela dos dois últimos capítulos das Crônicas, de todo o Esdras
(com a transposição da ordem de alguns capítulos) e de Neemias
8:1-12. Também apresenta uma disputa literária entre três sátrapas
da corte de Dario, o terceiro dos quais, Zorobabel, tendo saído
vencedor, obteve do rei a autorização para voltar à terra de Judá
com seus compatriotas judeus. Por ser um relato não canônico, isto
é, não inspirado, todo o livro foi colocado entre os apócrifos pela
tradição judaico-cristã.

▷ Autor
Tradicionalmente, Esdras é apontado como o autor desses dois
livros. Contudo, considerando que Neemias tem vários trechos
escritos em primeira pessoa, alguns acreditam que Esdras tenha
compilado parte do material que teria sido redigido pelo próprio
Neemias e preservado nesta forma nal que conhecemos.
▷ Data
Os eventos giram em torno do quinto século a.C., quando os
persas, sob o comando de Artaxerxes, autorizam os judeus a
voltarem para sua pátria e reconstruírem o templo e a capital
Jerusalém, que haviam sido destruídos pelos babilônios em 587 a.C.

▷ Localização
A história se situa entre o Irã, partes da atual Jordânia e
Jerusalém.

▷ Características literárias
Ambos os livros têm uma mescla de relatório cronista (a
reconstrução de Jerusalém passo a passo) com o acréscimo de
cartas e decretos o ciais, muitos escritos em aramaico, que era a
língua diplomática ainda em uso no período persa.
A importância da menção destes documentos o ciais está no
fato de que eles são o instrumento humano ― guiado por Deus ―
que permitiu as ações de Esdras e Neemias. Outros documentos
secundários também representam um elemento importante que faz
parar e recomeçar o trabalho de reconstrução dos muros e do
templo de Jerusalém.

▷ Esboço
Esdras

Narrativa do regresso dos judeus de Babilônia e Zorobabel


sob a restauração da adoração no Templo reconstruído (1—
6).
Segundo grupo de exilados que retornam com Esdras e as
reformas religiosas (7—10).

Neemias

Neemias retorna a Jerusalém (1—2).


Construção em meio à oposição de povos vizinhos (3:1—7:4).
Genealogia dos primeiros exilados que retornaram (7:5-73).
Aliança e reavivamento (8:1—10:39).
Os judeus em Jerusalém e a genealogia do povo (11:1—12:26).
Dedicação dos muros (12:27-47).
Reformas nais (13:1-31).

▶ Ester

▷ Título e conteúdo
O livro leva o nome de sua protagonista, Ester. É a história de
uma jovem judia chamada Hadassa bat Avihail, que se tornou
esposa de Assuero, rei da Pérsia, e por isso cou conhecida pelo
nome de Ester. Sua coragem e delidade salvaram o povo judeu da
destruição e deram origem à Festa do Purim, celebrada anualmente
por judeus do mundo inteiro para relembrar outro momento de
libertação divina do povo no passado. Curiosamente, é o único livro
da Bíblia que cita nominalmente a Índia ao descrever os limites do
governo da Pérsia (1:1 e 8:9).

▷ Autor
Duas redações nos chegaram deste livro: a hebraica e a grega da
LXX. A diferença entre ambas está essencialmente na quantidade
de textos, pois a versão grega contém seis seções adicionais que,
tomadas em conjunto, igualam a dois terços do livro hebraico.
A autoria dessas redações é desconhecida, contudo, levando-se
em conta a precisão com a qual o autor descreve os costumes persas,
o palácio do rei em Susa con rmado por escavações arqueológicas,
e a ausência de anacronismos nos fazem supor que se trate de
algum judeu morador da Pérsia no mesmo tempo em que o episódio
ocorreu. Talvez o próprio Mardoqueu ou Mordecai, parente de
Ester, mencionado nominalmente na trama.

▷ Data
Pela própria indicação interna do livro, associada à Antiguidade
da celebração do Purim, acredita-se que a história de Ester se
passou em algum momento do quinto século a.C.

▷ Localização
Pérsia, atual Irã.
▷ Características literárias
No que tange ao gênero literário, existe uma grande diferença
entre as duas redações, hebraica e grega, que tem suas raízes
profundas nos costumes estilísticos das respectivas literaturas.
Jerônimo já havia observado essa diferença ao preparar sua
tradução latina.
O texto hebraico, que tem maior aceitação entre judeus e
protestantes, é uma narrativa, em forma de novela, porém com
matizes de historicidade muito fortes que abordam a vida judaica
num período de dominação estrangeira sobre aqueles que viviam
fora de seu domicílio de origem.
O texto grego, mais longo, é aceito por católicos e ortodoxos. Ele
busca dar maior religiosidade ao escrito, talvez por causa das
resistências que sofria para entrar no cânon. Nele estão as orações
de Mardoqueu e Ester, além de um sonho de Mardoqueu, no qual
previa tudo o que iria acontecer, e mais os decretos promulgados
pelo rei Assuero (tanto o da morte dos judeus como o da morte dos
que intentavam contra eles). Contém também os detalhes do
encontro de Ester com o rei e um último sonho profético de
Mardoqueu.
Um dos aspectos estilísticos empregado frequentemente pelo
autor de Ester é o uso abundante de símbolos ― um indivíduo ou
objeto que aparece em lugar de outro que não ele próprio. No livro
de Ester, as personalidades são ― elas próprias ― os mais fortes
símbolos, com a rainha representando o perturbado povo de Deus
― naquela época e da atualidade, que, ao mesmo tempo em que
toma decisões momentosas, aguarda o providencial plano divino
de libertá-lo.
▷ Esboço
Uma nova rainha é escolhida (1:1—2:18).
A vida do rei é salva (2:19-23).
Complô contra os judeus (3:1—4:17).
Mardoqueu é exaltado (5:1—6:14).
Hamã é enforcado (7:1-10).
Os judeus são salvos (8:1—9:17).
A Festa de Purim é estabelecida (9:18—10:3).

▶ Jó

▷ Título e conteúdo
A história de Jó é uma das mais conhecidas da Bíblia, e está
registrada no livro do Antigo Testamento que traz seu nome. Trata
da saga de um homem el a Deus que teve de descobrir em meio aos
mais terríveis sofrimentos como con ar em Deus e manter sua
integridade. Por trás dessa história está a grande pergunta da
teodiceia: se Deus é bom, por que sofrem aqueles que lhes são éis?

▷ Autor
A mais antiga tradição judaico-cristã aponta Moisés como o
autor desse livro que haveria de ser o primeiro texto escrito da
Bíblia Sagrada. Há acadêmicos, no entanto, que atribuem a autoria
de Jó a um dos antigos sábios, cujos escritos podem ser vistos em
Provérbios ou Eclesiastes. Talvez o próprio Salomão seria um deles.

▷ Data
Se considerarmos Moisés o autor do livro, este teria sido
composto em algum lugar em Midiã por volta do século 15 a.C. A
história, porém, deve ter acontecido bem antes disso. Elementos
internos do texto dão a entender que Jó teria existido no período
patriarcal ou até mesmo antes dele.

▷ Localização
Não se tem uma certeza de onde cava a terra de Uz, cidade de
Jó. Contudo, alguns autores entendem que seria aproximadamente
na área da moderna Jordânia a sudoeste e sul de Israel. A dedução
disso se dá por causa de um texto de Lamentações 4:21, que diz:
“Regozija-te e alegra-te, ó lha de Edom, que habitas na terra de Uz”
(grifos nossos). Ora, Edom é a atual Jordânia.
Contudo, um texto encontrado entre os Manuscritos do Mar
Morto, o chamado Manuscrito da Guerra, fala de Uz como estando
além do rio Eufrates, talvez em algum lugar da Síria. Há também
comentaristas que sugerem sua localização na Arábia ou no
Uzbequistão. Deve-se levar em conta que a Bíblia também traz o
nome Uz como nome próprio de pessoas e que no livro de Jó limita-
se a dizer que a Terra de Uz cava no Oriente, sem mais detalhes a
esse respeito.
▷ Características literárias
O livro de Jó possui duas seções, uma em prosa (cf. Jó 1—2; 42:7-
17) e outra em poesia (cf. Jó 3:2—42:6). A seção em prosa emoldura a
poesia dividindo-a em duas subseções: um prólogo (Jó 1—2) e um
epílogo (Jó 42:7-17). É um livro cheio de trocadilhos, expressões
idiomáticas acentuadas e descrito como um drama épico. Apesar de
a porção principal da composição ser de natureza poética e ter a
forma de um debate, o arcabouço em forma de prosa revela a
natureza histórica do drama. Neste sentido, a narrativa provê a
base para a discussão inteira acerca da providência divina versus o
sofrimento humano.

▷ Esboço
I. Introdução (1:1—2:13)

Jó é consagrado e rico (1:1-5).


Satanás desa a o caráter de Jó (1:6-12).
Satanás destrói as propriedades e os lhos de Jó (1:13-22).
Satanás ataca a saúde de Jó (2:1-8).
Reação da esposa de Jó (2:9,10).
A visita dos amigos de Jó (2:11-13).

II. Diálogo entre Jó e os seus três amigos (3:1—26:1)

Clamor de desespero de Jó (3:1-26).


Primeiro diálogo (4:1—14:22).
Segundo diálogo (15:1—21:34).
Terceiro diálogo (22:1—26:14).

III. Discurso nal de Jó aos seus amigos (27:1—31:40)

IV. Eliú desa a Jó (32:1—37:24).


V. Deus responde de um remoinho (38:1—41:34).
VI. A resposta de Jó (42:1-6).
VII. Parte histórica nal (42:7-17).

▶ Salmos

▷ Título e conteúdo
O livro de Salmos era o livro de cânticos do povo de Israel no
passado. Composto por diversos autores, ao longo de vários
séculos, serviam tanto à liturgia quanto às festas e demais
atividades religiosas e civis da comunidade. Muitos salmos não têm
seu autor identi cado, mas provavelmente eram cânticos
conhecidos por muitas pessoas e transmitidos de geração em
geração.

▷ Autor
Muitos associam o livro de salmos a Davi, o salmista. De fato,
menos da metade (73) dos 150 salmos é atribuída a ele; doze deles
são atribuídos a Asafe. Os lhos de Coré são associados a onze
salmos, dois são atribuídos a Salomão, um a Moisés, um a Etã
(Salmos 89)115 e um a Hermã, o resto é anônimo.
Asafe foi o chefe do coral que tocava címbalos diante da arca do
Senhor (1Crônicas 16:4-7; Salmos 50; 73; 83). Os lhos de Coré são
descendentes do levita que se rebelou no deserto e foi tragado pela
terra (Números 16:1-34; 26:10,11). De acordo com 2Crônicas 20:19,
alguns dos lhos de Coré permaneceram éis a Deus.

▷ Data
Sobre a datação dos salmos, a maioria deles é do período
monárquico, exílico e pós-exílico. Contudo, alguns podem ser
datados da época do assentamento dos hebreus em Canaã. É o caso
do salmo 90 (tradicionalmente atribuído a Moisés) e dos salmos 29 e
68, por imitarem o estilo poético cananita encontrado em Ugarite.
Alguns autores creem que, no início, os membros do coral do
templo eram recrutados de famílias cananitas que se ajuntaram à
comunidade israelita nos dias de Davi, conforme vemos no
primeiro livro dos Reis (veja 1Reis 4:31), a nal Hermã, Etã e Coré
não são típicos nomes israelitas. Contudo, o salmo 150 fala de
instrumentos usados pelos levitas no Templo, provavelmente estes
não poderiam cantar no templo em companhia ou acompanhados
por uma orquestra com músicos não judeus.

▷ Localização
É difícil precisar uma localidade para o livro dos Salmos. Alguns
parecem ter sido compostos na Babilônia, mas a maioria parece
pertencer ao território de Israel, especialmente Jerusalém. O salmo
atribuído a Moisés teria sido escrito durante a peregrinação de
Israel pelo deserto.

▷ Características literárias
Embora os salmos sejam, a rigor, poesias hebraicas, eles podem
ser subdivididos em categorias. A maior divisão de categorias dos
salmos seria:

. LOUVOR
. Ascensão ou PEREGRINAÇÃO
. LAMENTO

▷ Louvor
Tĕhillāh (plural Tehillim — canções de louvor; não confunda
com Tevila — a porção da lei na testa): louvor descritivo;
adoração a Deus por sua majestade (salmos de entronização
a Deus como rei do Universo: 47; 93; 96), grandiosidade etc.
Louvor a Deus por sua divindade.
Tôdāh: agradecimento narrativo adoração a Deus por uma
experiência de salvação pessoal ou coletiva ligada a um
evento especí co. Louvor a Deus por sua salvação.

▷ Peregrinação ou ascensão
Quem os caracterizou foi Klaus Seybold. São os salmos 120 a 134,
os quais o povo cantava quando estava voltando para Jerusalém
após o exílio da Babilônia e, posteriormente, nas festas anuais
quando iam para elas. Pierre Au ret acrescenta a esse grupo os
salmos 135-138, o que, para mim, faz sentido. Ele vê outro grupo (15
—24) como um grupo adicional em forma quiástica com o salmo 19
no centro, porém sua visão não é consensual entre os estudiosos.
Westermann vê o saltério original como composto do salmo 1 ao
119, e os demais acrescentados após o cativeiro, porém não dá para
ser dogmático quanto a isso. O problema para os especialistas são as
cópias de salmos encontradas na caverna 11 de Qumran, que
apresentam, como vimos, uma ordem diferente.

▷ Lamento
Busca por justiça.
Busca por refúgio.
Busca por livramento (da miséria, da doença, dos pecados —
conceito de perdão).

Observação: Existem várias questões quanto aos salmos de


lamento emitidos por indivíduos. Quem é o indivíduo (o “eu”) que
escreveu o salmo? Quem é o inimigo?, Qual é a sua necessidade?.

▷ Esboço
O livro parece arranjado em cinco distintivas divisões:
. 1—41, salmos de Davi a YHWH: há uma predominância do
nome de Sagrado como designação signi cativa de Deus (o
nome YHWH é usado 279 vezes, e Elohim, 45 vezes). Doxologia,
41:13: “Bendito seja o Senhor Deus de Israel, de eternidade a
eternidade. Amém e Amém.”
. 42—72, salmos eloísticos: Elohim aparece 262 vezes aqui.
Doxologia, 72:18-20: “Bendito seja o Senhor Deus de Israel […]
amém e amém.”
. 73—89, enfatizam tanto Javé como Elohim. Alguns os
entendem como salmos dos lhos de Davi. Doxologia, 89:52:
“Bendito seja o Senhor para sempre, amém e amém.”
. 90—106, escritos possivelmente compilados após o cativeiro,
onde os judeus tinham outra visão de mundo. Um salmo é
atribuído a Moisés, um a Davi e o restante é anônimo.
Doxologia, 106:48: “Bendito seja o Senhor Deus de Israel, de
eternidade a eternidade, e todo o povo diga Amém e Aleluia.”
. 107—150, salmos cantados logo após o cativeiro na subida de
volta para Jerusalém, e também nas festas religiosas pelos
judeus da Diáspora subindo para Jerusalém. Doxologia, 150:1-6:
“Aleluia […] Aleluia […]”

▶ Provérbios

▷ Título e conteúdo
Trata-se de uma coletânea de aforismos e citações breves, porém
cheias de sabedoria, que guiavam moralmente o antigo povo de
Israel. Seu título em hebraico procede da palavra mashal, que tem
um sentido mais amplo que o termo “provérbio” em português.
Provérbio geralmente se limita a um dito curto, inteligente e
atrativo. Mashal, por sua vez, pode ser um pouco mais estendido e
vir na forma de um conto, uma parábola, uma comparação ou um
conselho.

▷ Autor
O rei Salomão é o principal autor ou compilador de Provérbios.
Seu nome aparece em Provérbios 1:1, 10:1 e 25:1. Se entendermos
Eclesiastes como sendo outro livro de Salomão, é possível que sejam
a esses provérbios que Eclesiastes 12:9 faz referência : “O Pregador,
além de sábio, ainda ensinou ao povo o conhecimento; e, atentando
e esquadrinhando, compôs muitos provérbios.” Na verdade, o
título hebraico Mishle Shelomoh é traduzido como “Provérbios de
Salomão”.

▷ Data
Sendo Salomão o principal editor desse conjunto de sabedoria, o
livro deve ter sido criado por volta do século 10 a.C., quando viveu o
referido rei de Israel.

▷ Localização
Jerusalém.
▷ Características literárias
Apesar de quase metade do livro ser composta por “aforismos” e
ditos curtos, a outra parte é redigida em forma de longas seções
poéticas de tipos variados. Entre elas temos “instruções”,
advertências formuladas como conselhos de um professor a um
aluno ou de um pai a seu lho. Tem-se também conselhos que um
rei dá ao príncipe que lhe substituirá no trono. Há curiosas
personi cações dramatizadas como sendo a sabedoria e a tolice
munidas de sentimento próprio. Por m, há os “ditos dos sábios”,
mais longos que os ditos “salomônicos”, e mais curtos (e mais
variados) que as “instruções”.

▷ Esboço
Provérbios de Salomão, Filho de David, rei de Israel (1—9).
Provérbios de Salomão (10—22:16).
Os ditos dos sábios (22:17—24:22).
Estes também são ditos dos sábios (24:23-34).
Estes são outros provérbios de Salomão que os o ciais do rei
Ezequias de Judá copiaram (25:1—29:27).
As Palavras de Agur (30:1-33).
As Palavras do rei Lemuel de Massa, que sua mãe lhe
ensinou” (31:1-9).
A mulher sábia ideal (também chamado de “mulher de
substância”) (31:10-3).

▶ Eclesiastes
▷ Título e conteúdo
O nome Eclesiastes vem do grego, através do latim, e signi ca,
literalmente, aquele que chama, convoca uma assembleia para
ouvir um importante pronunciamento. É uma tentativa muito
próxima de traduzir o original hebraico que o chama de Qohelet.
Embora o signi cado preciso do termo seja um tanto incerto, sabe-
se que ele vem da palavra Qahal, que quer dizer assembleia,
reunião, de modo que o que convoca seria realmente um pregador
ou preletor (aquele que explica).
O convite, neste caso, é para ouvir a sabedoria de um velho
homem que viveu o bastante para re etir sobre a vaidade da vida e
das conquistas, levando os ouvintes/leitores a consideraram o que
realmente vale a pena: o temor e a glória de Deus. Um apelo
especial é dirigido aos mais jovens, que seriam os mais atingidos
pelas vaidades da vida.

▷ Autor
Pouco se sabe a respeito do autor de Eclesiastes, além da
descrição que ele dá de si mesmo como “o pregador, lho de Davi,
rei em Jerusalém” (Eclesiastes 1:1). Tal declaração tem feito com
que o texto seja, desde longa data, atribuído a Salomão, e não
existem razões claras para negar sua autoria.

▷ Data
Se aceitarmos a autoria salomônica, o livro deve ter sido
elaborado por volta do século 10 a.C., quando viveu o referido rei de
Israel. Contudo, sua forma nal pode ter sido criada mais tarde,
pois em Eclesiastes 1:1—11 e 12:8—14 o texto refere-se ao pregador na
terceira pessoa. Isso sugere que outra pessoa, e não o próprio
pregador, compilou seus escritos e ensinamentos algum tempo
depois que foram feitos. Quanto tempo depois, não sabemos.

▷ Localização
Jerusalém.

▷ Características literárias
O gênero sapiencial do livro tem um estilo provocador. É que,
embora o autor diga ser uma pessoa que crê em Deus, ousa fazer
perguntas como se não acreditasse. Isso obriga o leitor a ler tudo até
o m, pois tudo o que é dito insere-se obrigatoriamente em sua
conclusão, isto é, que todas as ações serão julgadas por Deus
(Eclesiastes 12:13-14).
Por um lado, o texto parece dirigido a pessoas descrentes, pois
sistematiza perguntas feitas por quem não tem esperança. Por
outro lado, provoca aos que estão acomodados em sua crença, para
que re itam sobre perguntas que o comodismo muitas vezes evita
tratar.
O pregador apresenta perguntas e a rmações com as quais
muitas dessas pessoas tendem a concordar, mas depois as ajuda a
ver quanto propósito e sentido é possível encontrar na vida se
formos éis aos mandamentos de Deus.

▷ Esboço
Prólogo (1:1-2).
O problema da vaidade (1:3-11).
Tentativas de solução para o problema (1:12—2:26).
Nulidade dos esforços humanos (3:1—6:12).
A sabedoria do dia a dia (7:1—8:9).
Novamente a nulidade da vida (8:10—9:18).
A sabedoria na prática (10:1—11:6).
O temor e a Glória de Deus (11:7—12:7).
A conclusão de todas as coisas (12:8-14).

▶ Cantares

▷ Título e conteúdo
Alguns preferem chamá-lo de “Cântico dos Cânticos”, um
superlativo que serve para indicar que embora existam outros do
mesmo autor este é o melhor dentre eles. Trata-se de um poema
lírico escrito para exaltar as virtudes do amor entre um homem e
uma mulher. O poema claramente apresenta o plano matrimonial
como ideal divino. Um homem e uma mulher devem viver juntos,
amando um ao outro plenamente com todas as faculdades físicas,
mentais e espirituais. Por essa mesma razão, o livro de Cantares,
em que pese o tom sexual de algumas passagens, é usado para
representar o amor de Deus por seu povo ou de Cristo por sua
Igreja.

▷ Autor
De acordo com o próprio livro, seu autor seria o rei Salomão.
Este cântico seria uma das 1005 canções que ele escreveu (1Reis
4:32).

▷ Data
Salomão provavelmente escreveu esse cântico durante a
primeira parte de seu reinado. Isso colocaria a data de composição
por volta de 965 a.C.

▷ Localização
Jerusalém.

▷ Características literárias
Trata-se de um longo poema que não nega ao objeto de afeição
qualquer demonstração de carinho. O sentimento pelo outro
explode em palavras na boca daquele que o expressa e sintetiza de
modo exponencial o ideal de Deus para o ser humano, que é o
complemento trazido pela união com o sexo oposto.
Mas o texto adverte contra o extremo do ascetismo (a negação de
todo o prazer) e do hedonismo (busca desenfreada pelo prazer). O
ideal do casamento, proposto por Deus, é aqui exempli cado numa
mistura de atenção, afeto, empenho e prazer.

▷ Esboço
A afeição mútua entre o esposo e a esposa (1:1—2:7).
A esposa fala de seu esposo. Seu primeiro sonho sobre ele
(2:8—3:5).
O cortejo nupcial. O segundo sonho da esposa. Sua conversa
com as lhas de Jerusalém (3:6—6:3).
O esposo continua louvando a beleza da esposa. O desejo
dela é para ele (6:4—8:4).
Expressões nais de amor mútuo (8:5-14).

▶ Isaías

▷ Título e conteúdo
O título segue o nome do autor. Trata-se de uma coletânea de
oráculos proféticos dados num longo espaço de tempo em que Judá
e Jerusalém convivem com uma série de problemas internos e
externos. Parte dos problemas estava na situação geográ ca de
Judá, que cava no caminho entre o Egito e a Assíria, duas
superpotências disputando o poder.
Pelo menos três grandes ataques e devastações são aludidos no
livro: a guerra sírio-efraimita (duas vezes) e a invasão da Assíria
(uma vez). Judá era constantemente ameaçado por estes povos, fora
a exploração dos ricos sobre os pobres num contexto em que os
próprios governantes de Jerusalém eram, em sua maioria,
corruptos e apartados da lei de Deus.
Quatro grandes temáticas perpassam todo o livro: a grandeza de
Deus, seu julgamento sobre as nações, sua relação com seu povo e a
vinda do Messias.

▷ Autor
A tradição judaico-cristã sempre apontou Isaías, denominado no
texto como o autor do livro que leva o seu nome. Contudo, a partir
do século 18, os promotores da alta crítica apresentaram teses que
negavam a unidade do livro de Isaías. A ideia ainda defendida por
muitos é de que se tratam de dois ou três autores, e não apenas um.
Assim, o livro seria composto de três partes distintas: a primeira (1
—39) seria do século 8 a.C., a segunda (40—55) seria do período do
exílio babilônico (587-538 a.C.), e a terceira (56—66) depois do exílio
babilônico, em que os judeus voltaram para restaurar Jerusalém. A
essas partes dá-se o nome de proto, deutero e trito-Isaías.
Contudo, há também autores de linha mais conservadora que
ainda defendem, com base no texto original, que se trata de um
único autor escrevendo o livro em três diferentes períodos de sua
vida, cuja compilação nal se deu apenas após a sua morte.
▷ Data
Isaías viveu entre 765 e 681 a.C. Seu chamado se deu no ano da
morte do rei Uzias, em 740 a.C., e seu ministério profético foi
exercido no reino Judá durante os reinados de Uzias (c. 2Crônicas
26; 22), Jotão, Acaz, Ezequias e Manassés.

▷ Localização
Jerusalém.

▷ Características literárias
O livro é repleto de oráculos, paralelismos e estruturas
concêntricas. O oráculo é o anúncio da mensagem de Deus que o
profeta precisava entregar. O paralelismo é um estilo menor que
aparece dentro dos oráculos. Ele ocorre quando o escritor expressa
uma ideia e, em seguida, repete ou contrasta a ideia usando uma
estrutura textual semelhante com palavras diferentes. Isaías 1:2 é
um exemplo: “Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, tu, ó terra.” Esse tipo de
introdução não apenas chama todos a ouvirem seu discurso, como
facilita a memorização daquilo que será dito.
O mesmo se dá com a estrutura concêntrica, que repete os
paralelos de forma cônica, direcionando a mensagem para um
ponto central. É o caso de Isaías 55:8-9:
A Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos,
B Nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor.
C Porque assim como os céus são mais altos que a terra
B’ Assim são os meus caminhos mais altos que os vossos
caminhos
A’ E os meus pensamentos mais altos que os vossos
pensamentos.

▷ Esboço
Oráculos sobre Judá e Jerusalém (1:1—6:13).
Livro da Consolação (7:1—12:6), que corresponde ao tempo
da guerra siro-efraimita. Também é chamado “Livro do
Emanuel”.
Oráculos contra as nações estrangeiras (13:1—23:18).
Apocalipses (24:1—27:13 e 34:1—35:10), que anunciam a
renovação futura (escatologia) e são de um autor pós-exílico.
Oráculos de salvação de Israel e Judá (28:1—33:24).
Apêndice histórico, relacionado ao reinado de Ezequias (36:1
—39:8).
Deus Libertador (40:1—48:22).
Restauração de Sião (49:1—55:13).
Promessas e orientações aos que vierem da Babilônia (56:1—
66:24).

▶ Jeremias

▷ Título e conteúdo
Este é outro livro profético denominado a partir do nome de seu
autor. Trata-se de uma coletânea de profecias que registram o
destino nal de Judá, advertindo-lhes sobre a destruição que se
aproxima. O juízo de Deus viria pelas mãos dos babilônios que
destruiriam a cidade de Jerusalém por causa de sua impenitência,
imoralidade e idolatria. Jeremias, que era sacerdote e profeta,
conclama ao povo que se arrependa, mesmo sabendo que já era
tarde demais.
Contudo, ainda existe uma esperança. O mesmo profeta que
anuncia a vinda do cativeiro também prediz o tempo de sua
duração. O povo haveria de voltar, Deus não os rejeitaria para
sempre. Uma nova aliança seria feita e Deus restauraria a alegria de
seu povo (Jeremias 31:31-33).

▷ Autor
Jeremias.

▷ Data
O livro de Jeremias foi escrito entre 630 e 580 a.C.

▷ Localização
Jerusalém.
▷ Características literárias
Seguindo a linha dos livros proféticos, Jeremias também possui
vários oráculos revelados por Deus que deveriam ser transmitidos
ao povo. Contudo, ele tem uma peculiaridade: a narrativa profética
geralmente foca sua atenção na mensagem, e não na vida do
profeta. Jeremias, no entanto, contém informações biográ cas
extensivas acerca do seu autor. O texto mostra, além de suas
mensagens, o lado humano do profeta, sua angústia emocional e
seu con ito interno diante da oposição que sofrera por pregar a
palavra de Deus (cf. Jeremias 8:18—9:2; 15:15-18; 20:7-9; 26; 32; 37;
38).

▷ Esboço
Pregação durante o reinado de Josias. Jerusalém seria
destruída (1—6).
Pregação em vários lugares de Jerusalém, inclusive no
portão do templo, usando várias metáforas para suplicar ao
povo que melhore os seus caminhos (7—20).
Pregação durante o reinado do rei Zedequias. Babilônia
conquistaria Jerusalém (21—38).
Jerusalém é conquistada e muitos judeus são levados cativos
para a Babilônia. Os que permanecem em Judá rejeitam a
mensagem do profeta (39—44).
Jeremias promete a Baruque, seu escriba, que o Senhor vai
preservar sua vida (45).
Jeremias profetiza sobre a destruição dos listeus,
moabitas, babilônicos e povos de outras nações (46-52).
▶ Lamentações

▷ Título e conteúdo
Textos de lamentação são comuns na literatura do Antigo
Oriente Médio. Eles geralmente evocam a dor individual ou coletiva
causada pela destruição de uma cidade, pela morte de um ente
querido ou pelo castigo in igido por uma divindade. No contexto
bíblico não é diferente. Há salmos de lamentação e seções em
diversos profetas. Neste caso, o livro inteiro é um grande lamento
profético pela destruição do templo e da cidade de Jerusalém pelos
babilônios em 587 a.C. Seu próprio título em hebraico é uma
exclamação de luto.

▷ Autor
Embora o próprio livro não pareça denominar seu autor, uma
antiga tradição que remonta ao período da LXX o identi ca com
Jeremias. Nesta versão grega os judeus acrescentaram a seguinte
anotação antes do capítulo 1:1: “Aconteceu que, depois da redução
de Israel ao cativeiro e de Jerusalém ao deserto, o profeta jeremias
sentou-se chorando; ele proferiu esta lamentação sobre Jerusalém e
disse.”

▷ Data
Ca. de 587 a.C.
▷ Localização
Não sabemos onde Jeremias estava quando escreveu o livro, mas
pode ter sido em Jerusalém ou no Egito (ver Jeremias 43:6-7).

▷ Características literárias
O livro inteiro de Lamentações foi escrito em poesias muito bem
construídas. Os quatro primeiros capítulos formam acrósticos. Um
acróstico é uma forma poética na qual as primeiras letras de cada
linha formam uma sequência signi cativa. Esse recurso aparece
também nos assim chamados “Salmos alfabéticos”, como é o caso
do salmo 119. O livro de Lamentações contém composições de
acrósticos com base nas 22 letras do alfabeto hebraico.
Os capítulos 1, 2 e 4 contêm 22 versículos cada, e cada um começa
com uma letra diferente do alfabeto hebraico, em ordem alfabética.
O capítulo 3 contém 66 versos. Os três primeiros começam com álef,
a primeira letra do alfabeto hebraico, os próximos três versículos
começam com a segunda letra, beth, e assim por diante. O último
capítulo contém 22 versículos, mas não é um acróstico.

▷ Esboço
O primeiro poema: a miséria, o pecado e a oração de
Jerusalém (1:1-22).
O segundo poema: a destruição mandada por Deus e a
reação do profeta (2:1-22).
O terceiro poema: a severidade e misericórdia de Deus; a
submissão e a oração do povo (3:1-66).
O quarto poema: devastação, o resultado da desobediência
(4:1-22).
O quinto poema: uma oração registrando o sofrimento e
apelos nais de Jerusalém (5:1-22).

▶ Ezequiel

▷ Título e conteúdo
Livro profético que leva o nome de seu autor. O profeta era
contemporâneo de Jeremias e Daniel. Aos 30 anos de idade,
Ezequiel teve uma visão da glória de Deus e foi chamado para ser
profeta (Ezequiel 1:1-3). A partir daí, ele iria profetizar para o povo
de Israel espalhado pelo império babilônico.

▷ Autor
Ezequiel.

▷ Data
O livro de Ezequiel foi provavelmente escrito entre 593 a.C. e 565
a.C., durante o cativeiro babilônico dos judeus.
▷ Localização
Jerusalém e Babilônia (atual Iraque).

▷ Características literárias
No livro existem relatos de visões, mescladas de atos simbólicos,
parábolas e alegorias. É certo que os outros profetas também
empregam os mesmos elementos literários em sua mensagem, mas
em Ezequiel esses elementos se ampliam. As visões são mais
extensas e escritas com mais pormenores do que em outros
profetas. Há quem diga que ele seria o primeiro autor do Antigo
Testamento a utilizar o estilo apocalíptico de revelação profética.

▷ Esboço
O chamado de Ezequiel (1:1—3:21).
Oráculos sobre a destruição de Jerusalém (3:22—24:27).
Oráculos sobre a destruição das nações estrangeiras (25:1—
32:32).
Profecias de restauração (33:1—48:35).

▶ Daniel

▷ Título e conteúdo
Título dado após seu autor tradicional. Conta a história de
Daniel, que viveu a maior parte de sua vida como exilado na
Babilônia e na Medo-Pérsia Contém uma parte histórica, narrando
a própria vida do profeta, e outra profética, apresentando sonhos e
visões relacionadas ao juízo de Deus e o m dos tempos. É o livro do
Antigo Testamento que tem mais relações literárias com o
Apocalipse de João.

▷ Autor
Tradicionalmente, acredita-se que foi o próprio Daniel quem
escreveu este livro, embora sua edição nal possa ter sido obra de
outra pessoa. Os proponentes da alta crítica, no entanto, atribuem
o livro a um ou mais judeus anônimos que viveram durante o
período dos Macabeus.

▷ Data
A abordagem mais conservadora atribui a composição do livro
aproximadamente entre 605 e 520 a.C. Os partidários da alta crítica
colocam o livro durante o período das guerras entre os Ptolomeus e
Selêucidas e o reinado de Antíoco Epífanes IV (175-164 a.C.).

▷ Localização
Jerusalém, Babilônia (atual Iraque) e Pérsia (atual Irã).
▷ Características literárias
O livro começa como narrativa, destacando a biogra a de Daniel
e seus companheiros levados como cativos pelo rei da Babilônia.
Então, a partir do capítulo 7, inicia-se uma cadeia de simbolismos
proféticos, envolvendo bestas, feras, luta do bem contra o mal e
bastante teor apocalíptico. Ao falar de coisas terrenas, o autor tem
uma preferência pelo uso da prosa, ao passo que, ao falar de coisas
celestiais, opta pela poesia.

▷ Esboço
O cativeiro (1:1-21).
O sonho, a imagem de ouro e a humilhação do rei da
Babilônia (2:1—4:37).
Juízo sobre o rei da Babilônia (5:1-31).
Daniel na cova dos leões (6:1-28).
Visão dos quatro animais (7:1-28).
Visão do Carneiro e do Bode (8:27).
Oração de Daniel e a profecia das setenta semanas (9:1-27).
Visões na Pérsia (10:1—12:13).

▶ Oseias

▷ Título e conteúdo
Traz a mensagem e a vida de um dos profetas de Israel que teve
sua situação matrimonial usada por Deus para exempli car o
perdão dado ao povo que se desviara da aliança. A condição
adúltera de Israel, o chamado ao arrependimento e as alusões ao
Juízo de Deus são o elemento-chave de todo o livro.

▷ Autor
Não se sabe exatamente quem escreveu o livro, porém, a
considerar pelas informações autobiográ cas que aparecem no
texto, pode-se dizer que o próprio Oseias seria o autor do livro que
leva o seu nome.

▷ Data
Provavelmente no oitavo século a.C., durante o reinado de
Jeroboão II, rei de Israel (782-753 a.C.). Há quem diga, no entanto,
que devido às suas constantes referências ao reino de Judá, a
composição do livro só se deu após a queda de Samaria, em 722 a.C.

▷ Localização
Samaria, capital do reino de Israel.

▷ Características literárias
O livro possui um estilo narrativo e biográ co. Contudo, a
condição infeliz de um homem que é traído por sua esposa em uma
sociedade altamente patriarcal e a perdoa posteriormente é tido
por muitos como sinal de que não se trata de uma história
verdadeira, mas apenas uma metáfora para reforçar o simbolismo
da mensagem do profeta. Contudo, não existem elementos factíveis
para se negar a historicidade da trama.
O único ponto de dubiedade no texto é quanto à condição civil de
Gomer, esposa do profeta, antes de seu casamento. A nal, Deus lhe
mandara tomar por esposa uma mulher que lhe trairia ou uma
prostituta que não teria direito ao matrimônio comum? O fato é
que eles se casaram, Gomer gerou três lhos e depois foi, ou voltou,
para a vida de desonra. O texto não esclarece qual seria a
“prostituição” da mulher, mas no capítulo 3 Deus ordena a Oseias
que retome a esposa que o havia traído. A dura experiência do
profeta é usada no livro para ilustrar a situação divina em retomar
para si um povo que também lhe traíra indo após outros deuses.

▷ Esboço
A família de Oseias (1:1—3:5).
A in delidade de Israel (4:1-19).
O julgamento divino (5:1-15).
Pecado e arrependimento não genuíno (6:1—7:16).
O juízo de Deus (8:1—9:17).
Ilustrações do campo (10:1-15).
O convite de Deus (11:1—12:14).
Ingratidão do povo (13:1-16).
Promessas de Deus (14:1-9).
▶ Joel

▷ Título e conteúdo
Trata-se de um livro pequeno (apenas três capítulos) que leva o
nome de seu mensageiro, o profeta Joel. O texto pode ser dividido
em duas grandes temáticas. A primeira seria um convite ao povo
para que aceite o luto e supliquem a misericórdia de Deus após
enfrentarem uma invasão de gafanhotos na Judeia. A segunda seria
o julgamento das nações e conseguinte vitória de Javé, bem como
de Israel sobre seus inimigos.
O tema principal do livro de Joel é o Dia do Senhor, um dia da ira
e do juízo divino. Contudo, há uma mensagem especial sobre a
misericórdia de Deus, que tem a capacidade de perdoar e aplacar
sua própria ira se o povo se dispuser a mudar de atitude. Outro
ponto fundamental é o tema do derramamento do Espírito Santo
(3:1-2). O Novo Testamento retomará estes versos para interpretar o
fenômeno de Pentecostes, ocorrido após a ascensão de Cristo (Atos
2:16-21).

▷ Autor
De acordo com o livro, o autor seria o próprio Joel que dá nome à
obra.

▷ Data
O livro de Joel foi provavelmente escrito entre 835 e 800 a.C. Há
autores, no entanto, que o datam em algum tempo após o cativeiro
da Babilônia, no século 5 a.C.

▷ Localização
Judeia.

▷ Características literárias
Conforme dito acima, são duas partes que compõem a obra.
Uma fala da praga de gafanhotos e a outra do juízo de Deus sobre as
nações. A prosa e a poesia profética predominam em toda a
narrativa. Contudo, a diferença entre as duas partes seria apenas
em termos sequenciais, pois se a primeira for entendida como
símbolo do juízo de Deus (os gafanhotos seriam exércitos do juízo
divino), pode-se dizer que temos no começo a proclamação dos
juízos históricos de Deus, permitindo a a ição de seu povo e no
nal a proclamação do juízo escatológico de Deus, que seria o acerto
de contas nal com a humanidade.
Muitos autores percebem no livro os traços iniciais da literatura
apocalíptica. Joel, neste sentido, seria uma ponte entre a profecia
clássica e a literatura apocalíptica que estava nascendo. Daí a
linguagem metafórica baseada na praga de gafanhotos.

▷ Esboço
I. A mão do Senhor no presente (1:1—2:27).

A destruição pelas locustas (1:2—2:11).


O arrependimento de Judá (2:12-17).
A restauração do Senhor (2:18-27).

II. O dia do Senhor no futuro (2:28—3:21).

A graça do Senhor (2:28-32).


O julgamento do Senhor (3:1-17).
A bênção do Senhor (3:18-21).

▶ Amós

▷ Título e conteúdo
Como nos demais livros proféticos, este também leva o nome de
seu principal contribuidor, o profeta Amós. Pouco se sabe sobre sua
vida, exceto alguns excertos presentes no livro. Em 1:1 diz-se que
era pastor, e em 7:14 sua pro ssão (que para alguns seria melhor
traduzida por boiadeiro) é rea rmada, acrescentando que também
cultivava sicômoros. Aparentemente, seu ofício faz dele uma
pessoa, a princípio, pobre e sem cultura. Amós, contudo, se revela
um grande escritor. O profeta, ou escriba, que teria escrito suas
sentenças produziu uma exímia peça literária de denúncia à
idolatria e injustiça do povo de Israel, profetizando a destruição do
reino do Norte por causa do pecado.
▷ Autor
Ao que tudo indica, o próprio Amós seria o autor do livro que
leva seu nome, ainda que tenha usado um secretário letrado para
escrever suas visões.

▷ Data
Considerando as informações internas do livro acerca do
terremoto ocorrido nos dias do rei Uzias, acredita-se que o seu
ministério profético foi em algum período dentro do oitavo século
a.C.

▷ Local
A cidade de Tecoa, de onde procedera o profeta, seria uma vila
situada a, aproximadamente, 16 km ao sul de Jerusalém, 9 km de
Belém, e 20 km a oeste do Mar Morto. Contudo, considerando que
ele profetizou contra o reino do Norte, seu ministério pode ter se
estendido para outras localidades de Israel.

▷ Características literárias
O livro possui uma linguagem e vocabulário que demonstram a
familiaridade do autor com a vida no campo e as atividades
agropastoris. Apesar de se declarar homem simples, o autor
demonstra grande conhecimento da geogra a e política do povo de
Israel de seu tempo, bem como domínio teológico de temas
importantes, como a aliança entre Yahweh e seu povo.
Demonstra conhecimento legal das regras mosaicas e faz
referência a vários episódios históricos narrados no Pentateuco,
como a destruição de Sodoma e Gomorra, o Êxodo, a conquista de
Canaã, além da menção dos patriarcas Isaque, Jacó e José. Por isso,
há quem diga que haveria algum escriba letrado auxiliando o
profeta na redação de sua mensagem.

▷ Esboço
Título e prólogo (1:1-2).
Oráculos contra sete nações vizinhas de Israel e contra Judá
e Israel (1:3—2:16).
Oráculos contra Israel (3:1—6:14). Nesta parte encontram-se
as principais críticas de Amós contra a corrupção social e
religiosa e o anúncio do castigo (3:13-15; 5:1-3,16-20; 6:8-14).
Castigos divinos (7:1—9:10). São cinco visões, das quais as
primeiras quatro começam com a mesma fórmula e a quinta
é diferente. No meio das visões encontra-se a narração da
expulsão de Amós do santuário de Betel (7:10-17) e outros
oráculos (8:1-14; 9:7-10).
Esperança messiânica como oráculo de salvação (9:11-15).

▶ Obadias

▷ Título e conteúdo
O livro que leva o nome de Obadias traz uma mensagem
profética dura acerca da animosidade histórica entre Jacó e Esaú,
bem como entre seus descendentes, e a terrível vinda de
Nabucodonosor, rei da Babilônia, para destruir Jerusalém e o
templo de Deus.
Por causa da forte mensagem de dor, devido à opressão trazida
pelos babilônios, o livro de Obadias costuma ser chamado de “A
oração indignada de Obadias” e “Hino da ira”. O tom nacionalista
de seu lamento justi ca os codinomes alternativos da obra.
Embora existam outros Obadias mencionados em 1Reis, 1 e
2Crônicas, Esdras e Neemias, não devemos confundir nenhum
desses com o profeta que produzira este livro. Com exceção do fato
de que Obadias era um profeta no reino do sul (Judá), não sabemos
nada sobre seu passado ou ministério

▷ Autor
Há quem a rme que Obadias, que quer dizer “servo do Senhor”,
seria um pseudônimo e não o verdadeiro nome do profeta que
escreveu esta obra. Contudo, esse nome era comum naquele
momento e não há razões plausíveis para se duvidar de sua
originalidade. Segundo a tradição judaica, Obadias era mordomo
do rei Acabe. Porém esta a rmação tem incoerência cronológica
com as informações contidas no livro.

▷ Data
A profecia de Obadias foi feita pouco depois de uma das capturas
de Jerusalém, provavelmente a conquista pelos babilônios cerca de
587 a.C.

▷ Localização
Jerusalém (Judá) e Jordânia (Edom).

▷ Características literárias
Obadias escreve sob a perspectiva da animosidade dos
descendentes de Esaú, que se tornaram Edom, contra os
descendentes de Jacó, que se tornaram Judá e Israel. Outros
profetas também já haviam proclamado mensagens de reprovação
aos edomitas, contudo, a novidade deste profeta está em que ele
agrava o sentimento de alegria dos moradores de Edom, pela
derrota de Judá, pelo fato de que estes eram parentes que deviam
ser solidários a seus irmãos e não celebrantes de sua destruição.
Com linguagem altamente nacionalista, ele fala da crueldade de
Edom em car de lado enquanto seus irmãos eram destruídos, em
Jerusalém. Pior ainda foi o fato deles se alegrarem com o infortúnio
dos primeiros. Edom entrou em alianças com outras nações, para
tão somente destruir, aniquilar Judá. Eles chegaram até vender
judeus como escravos para seus inimigos. Deus se lembraria disso
no dia da restauração de Jerusalém. Esta era a assertiva do profeta.

▷ Esboço
Profecia contra Edom (1:1-4).
Alegria em Edom e dor em Jerusalém (1:5-10).
Consequências (1:11-16).
O Reino será do Senhor (1:17-21).

▶ Jonas

▷ Título e conteúdo
O livro leva o nome de um profeta israelita da tribo de Zebulom,
lho de Amitai, natural de Gete-Héfer. Seu ministério ocorreu
durante o reinado de Jeroboão II, rei de Israel. Sua mensagem é
incomum porque conclama ao povo de Nínive, e não a seus
compatriotas, que se arrependam. Além de sua resistência em
pregar para seus inimigos, o livro traz a surpreendente decisão do
rei de Nínive e seus súditos que aceitam a mensagem do profeta,
mudam de vida e, com isso, evitam a destruição anunciada pelo
profeta, situação que lhe traz grande perplexidade diante de Deus.

▷ Autor
Provavelmente Jonas, embora alguns autores pensem que seria
obra de um escriba posterior.

▷ Data
Se Jonas escreveu o livro, este seria, obviamente, datado
durante o reinado de Jeroboão II, no início do século 8, de 793 a.C. a
753 a.C. Se foi obra de um escriba posterior, ele poderia ter sido
produzido em algum tempo depois dos acontecimentos descritos
no livro, após a destruição de Nínive, que se deu em 612 a.C.

▷ Localização
Israel, porto de Haifa (ou Jope), Nínive, capital da Assíria, atual
Iraque.

▷ Características literárias
O uso de certos aramaísmos (1:5-7; 3:7; 4:11) leva alguns a
deduzirem que houve algum elemento redacional após o regresso
do cativeiro da Babilônia. Contudo, o que mais chama a atenção é a
peculiaridade do autor em não usar o substantivo profeta (nabi, em
hebraico), nem a fórmula típica das narrativas proféticas. Sua
mensagem se resume a uma frase: “Dentro de quarenta dias, Nínive
será destruída” (Jonas 3:4).
Uma mensagem é extraída de um evento real, que seria uma
decisão coletiva de arrependimento liderada pelo governador de
Nínive, a partir da mensagem dada pelo profeta. O contexto
histórico, no entanto, é extremamente reduzido e pobre de
detalhes.

▷ Esboço
Jonas opõe-se à vontade de Deus e foge para Társis. Ele é
engolido pelo peixe e vomitado na praia (1:1—2:11).
Jonas prega em Nínive, que se converte, e o profeta se
ressente (3:1—4:11).

▶ Miqueias

▷ Título e conteúdo
O título refere-se à mensagem de um profeta que dirigiu sua
mensagem tanto ao reino do Sul como ao reino do Norte. Por isso,
sua profecia contempla as cidades de Jerusalém, capital do reino de
Judá, e Samaria, capital do reino de Israel. Sua profecia contempla
a destruição de Samaria pelo exército da Assíria, o futuro cativeiro
da Babilônia, a revelação do juízo de Deus sobre os pecados do povo
e a restauração que seria iniciada após o cativeiro, garantindo que a
casa de Davi seria erguida mais uma vez e reinaria sobre o mundo
inteiro, trazendo paz para o povo de Deus.

▷ Autor
O autor do livro teria sido o próprio profeta Miqueias.

▷ Data
Miqueias foi provavelmente escrito entre 735 a.C. e 700 a.C.
▷ Local
Judá, Israel.

▷ Características literárias
A linguagem e o estilo se assemelham ao do profeta Isaías. Aliás,
existe uma clara semelhança em uma pequena parte dos textos (cf.
Isaías 2:2-4 e Miqueias 4:1-3). Talvez a contemporaneidade de
ambos estaria por trás dessa coincidência literária. Em seu livro,
Miqueias mostra ser um habilidoso escritor que organiza e alterna
os temas em sua mensagem com muita elegância e simetria. Parte
do livro é escrita na forma de um discurso público feito por alguém
com grande habilidade de oratória.
Contudo, em que pese a elegância de seu texto, o teor da
mensagem faz supor que ele exercera seu ministério entre os mais
simples do povo, ao passo que Isaías se dirigia aos membros da corte
judaica.

▷ Esboço
Tema: Quem é como o Senhor?
O julgamento precedido por Deus. (1:1-2:13)
A condenação dos líderes corruptos (3:1-12).
A realidade do reino de Deus (4:1—5:15).
As queixas de Deus contra seu povo (6:1—7:6).
Perdão e restauração de Deus sobre seu povo (7:7-20).
▶ Naum

▷ Título e conteúdo
Naum, cujo nome signi ca “consolo”, é um profeta que delineia
com sua mensagem o signi cado bíblico da História. Vivendo ainda
sob os ares da destruição de Samaria, ele dirige parte de seu
discurso aos assírios, responsáveis pela destruição e que sentiriam
em breve a pesada mão do Deus de Israel. Ele também faz acenos à
ocupação de Judá pelos inimigos e garante-lhes o pagamento por
sua maldade.

▷ Autor
Tudo leva a crer que o próprio Naum estaria por trás do texto do
livro que leva seu nome.

▷ Data
Por informações internas do próprio livro, Naum pode ter sido
escrito em qualquer período após o cerco assírio de Jerusalém, em
701 a.C., e antes da queda de Nínive, que ocorreu por volta de 612
a.C.

▷ Localização
Jerusalém, Judá (Israel), Nínive, Assíria (atual Iraque).

▷ Características literárias
Naum escreveu na forma poética, utilizando imagens e
simbolismo que o fazem próximo da literatura apocalíptica. Seu
tom é marcantemente hostil contra Nínive, da qual ele descreve
com maestria a futura destruição. O tema da ira divina choca-se
com aquelas visões mais românticas da divindade que negam
descrevê-lo como juiz e vingador. Porém, é importante reconhecer
que, por trás da ira do Senhor em relação a Nínive, há uma
profunda preocupação pelo sofrimento de vários povos que tinham
sido conquistados, mortos, escravizados e aterrorizados por esse
poder estrangeiro. Ou seja, o caráter irado de Deus justi ca-se no
sofrimento dos justos e opressão dos mais necessitados.

▷ Esboço
I. O Decreto de Deus contra Nínive (1:1-15).
II. A vingança de Deus contra Nínive (2:1-13).
III. O triunfo de Deus sobre Nínive (3:1-19).

▶ Habacuque

▷ Título e conteúdo
Habacuque é o relato profético de um mensageiro de Deus que
viveu pouco antes da destruição de Jerusalém causada pelos
babilônios. Ele não esconde sua indignação face às atrocidades e
injustiça social cometidas dentro do território de Judá. A vinda
destruidora dos babilônios seria uma clara consequência dessa
apostasia que os afastava da proteção de Deus. Um destaque
literário na obra é a oração de Habacuque.

▷ Autor
Ao que tudo indica seria o próprio Habacuque o autor do livro
que leva o seu nome.

▷ Data
O livro teria sido composto entre o nal do reinado de Josias
(609 a.C.) e a queda do Império Assírio (612 a.C.).

▷ Localização
Jerusalém.

▷ Características literárias
Enquanto os demais profetas anunciam juízo sobre esta ou
aquela nação, Habacuque desenvolve um diálogo franco e honesto
entre um único homem (ele mesmo) e seu Deus. Ele questiona ao
Senhor o motivo do sofrimento e demanda respostas do Altíssimo.
Mais do que isso, ele pede socorro a Deus.
Primeiramente, Deus lhe responde na forma de um diálogo que
antecipa a chegada de um exército invasor (os assírios) para efetivar
o decreto judicial de Deus. Isso, porém, não consola o profeta, pois
o invasor não vem para libertar, mas para punir. Seria trocar uma
opressão pela outra.
No arremate nal do diálogo, Deus estabelece que o justo viverá
por sua delidade. Com isso, os que sofrem as consequências da
violência são chamados a ser agentes na história, opondo-se aos
ímpios e realizando a justiça.

▷ Esboço
A perplexidade do profeta (1).
A resposta de Deus (2).
A oração do profeta (3).

▶ Sofonias

▷ Título e conteúdo
Trata-se de outro profeta do 7º século a.C. que discursa com
veemência acerca do juízo nal, ao destrinchar o termo técnico
“Dia do Senhor”, como referente ao último acerto de contas de Deus
com as nações, inclusive Judá e sua capital, Jerusalém.
▷ Autor
Segundo a tradição, seria o próprio Sofonias o autor do livro.

▷ Data
Considerando que Sofonias foi contemporâneo de Jeremias e
Habacuque, seu livro é datado em torno de 625 a.C.

▷ Localização
Judá.

▷ Características literárias
Neste livro, predomina a forma poética, o que dá destaque à sua
mensagem, que deveria ser memorizada pelos ouvintes. Traz uma
linguagem pesada de advertência e ameaça ― o juízo do Dia do
Senhor está chegando. Contudo, também fala do tempo oportuno
oferecido pela promessa de salvação trazida por Deus.

▷ Esboço
Introdução (1:1).
Uma advertência do juízo iminente (1:2-18.)
Uma exortação ao arrependimento imediato (2:1—3:8).
A promessa da salvação futura (3:9-20).

▶ Ageu

▷ Título e conteúdo
Este livro traz a mensagem de Ageu, o primeiro profeta a
oferecer uma mensagem de conforto aos judeus que voltaram do
cativeiro babilônico. Há quem pense que seu nome seria um
pseudônimo hebraico que signi ca “comemoração, festa ou festival
de ação de graças”.

▷ Autor
Provavelmente o próprio Ageu.

▷ Data
Considerando que o profeta seria contemporâneo de Zacarias, e
que escrevera logo após o m do cativeiro, a composição do livro é
datada por volta de 520 a.C.

▷ Localização
Judá.
▷ Características literárias
Trata-se de um sermão profético escrito em prosa. Ele usa os
eventos passados para conclamar o povo ao arrependimento ―
para que não precisem passar novamente pelo sofrimento recém
experimentado. Também adiciona promessas e revela
acontecimentos futuros referentes ao templo e à chegada do
Messias.

▷ Esboço
A reconstrução do Templo (1:1-15).
A glória maior do novo Templo (2:1-9).
A promessa messiânica de Deus (2:10-19).
A promessa de vitória para o povo de Deus (2:20-23).

▶ Zacarias

▷ Título e conteúdo
O livro tem o nome do profeta Zacarias e traz outro conjunto de
visões e profecias ao povo que voltara do cativeiro da Babilônia.

▷ Autor
O próprio Zacarias.
▷ Data
Em torno de 530 a.C.

▷ Localização
Judá.

▷ Características literárias
Elementos simbólicos presentes no texto conferem um estilo
apocalíptico a algumas visões do profeta. Ele não difere muito dos
elementos comuns da preleção profética anterior e posterior ao
cativeiro: o apelo ao arrependimento, a previsão do juízo ― neste
caso, a lembrança do juízo que viera, a promessa messiânica
relacionada ao templo e a cidade de Jerusalém.

▷ Esboço
I. O chamado ao arrependimento (1:1-6)
II. As oito visões (1:7—6:15)

O homem e os cavalos (1:7-17).


Os quatro chifres e o ferreiro (1:18-21).
O homem com um cordel de medir (2:1-13).
O sumo sacerdote (3:1-10).
O castiçal e o vaso de azeite (4:1-14).
O rolo voador (5:1-4).
A mulher no meio do efa (5:5-11).
Os quatro carros (6:1-8).

III. A coroação do sumo sacerdote (6:9-15)


IV. Ritual religioso ou arrependimento verdadeiro (7:1-14)
V. A restauração de Sião (8:1-23)
VI. O triunfo de Sião (8:1-23)
VII. A primeira profecia: O Messias rejeitado (9:1—11:17)
VIII. A Segunda profecia: O Messias reina (12:1—14:21)

▶ Malaquias

▷ Título e conteúdo
O livro que fecha a lista do Antigo Testamento refere-se a um
profeta que viveu por volta do quinto século a.C., e que repreendeu
o povo de Judá porque ainda insistia nos mesmos erros de seus
ancestrais que viveram antes do cativeiro babilônico. Os desvios
estavam especialmente vinculados ao templo de Jerusalém, aos
sacrifícios e à negligência do dízimo. Malaquias também anuncia a
chegada do Messias, o grande mensageiro que viria no mesmo
espírito de Elias para restaurar todas as coisas como eram em sua
origem.

▷ Autor
Malaquias.

▷ Data
Em torno de 450 ou 420 a.C.

▷ Localização
Judá.

▷ Características literárias
Escrito em forma de prosa, o autor mistura elementos proféticos
de exortação com predições ainda distantes em relação à vinda do
Messias. Ao levantar a sua voz severa contra a degradação moral e
religiosa do seu tempo, Malaquias prepara a comunidade dos
crentes para o reencontro com Deus, através da chegada de seu
Messias.

▷ Esboço
O amor de Deus pelo seu povo (1:1-5).
Processamento contra os sacerdotes e levitas (1:6—2:9).
Reprovação da in delidade do povo (2:10-16).
Anúncio do “Dia do Senhor” e da visita do seu mensageiro
(2:17—3:5).
Ordens para o restabelecimento dos dízimos e das ofertas
(3:6-12).
Promessas de restauração para os éis (3:13-18).
Novo anúncio da vinda do “Dia do Senhor” (3:19-21).
Promessas de envio de um novo Elias (3:22-23).

NOVO TESTAMENTO

▶ Mateus

▷ Título e conteúdo
O título desse livro refere-se ao seu autor tradicional, que foi um
dos discípulos de Jesus e escreveu sua vida em forma de anúncio ou
kerygma.

▷ Autor
Apesar da negação feita pela alta crítica, a tradição mais
longínqua aponta Mateus como o autor desse evangelho que leva o
seu nome.

▷ Data
Os críticos assumem que Mateus teria sido composto por volta
do ano 90 d.C., contudo, há indicativos fortes o su ciente para
estabelecer uma data mais antiga por volta do ano 60 d.C.

▷ Localização
A história se passa nas regiões da Judeia, Galileia, Pereia, Egito e
outras localidades por onde Jesus passou, mas o local de
composição do texto parece ter sido Antioquia da Síria ou em
alguma localidade entre Judá e a Galileia.

▷ Características literárias
Os evangelhos não são meras biogra as de Jesus Cristo, e isso é
importante para entender o estilo de Mateus. Trata-se, antes, de
um anúncio, de um kerygma. Mateus escreve num grego popular
(koiné), mas de forma concisa e polida, embora esteja repleto de
aramaísmos e hebraísmos, isto é, formas de se expressar semitas
que nem sempre são adaptadas ao grego. A tradição cristã diz que
Mateus colecionou ditos originais de Cristo em aramaico e pode tê-
las usado na composição de seu evangelho, embora o consenso
entre os especialistas seja de que a presente forma não contém
indícios de ser uma tradução do aramaico, mas a redação de um
texto originalmente escrito em grego.

▷ Esboço
Prólogo: Genealogia e narrativa da infância de Jesus (1:1—
2:23).
Proclamação do Reino dos Céus (3:1—7:29).
Discurso: O Sermão da Montanha (5:1—7:29).
O ministério de Jesus na Galileia (8:1—11:1).
Discurso: Missão e martírio (9:35—11:1).
Histórias e parábolas em meio a controvérsias (11:2—13:52).
Discurso: Parábolas do Reino (13:1-52).
Narrativa, controvérsia e discurso (13:53—17:27).
Discurso: Ensino sobre a Igreja (18:1-35).
Jesus na Judeia e em Jerusalém (19:1—25:46).
Discurso: Os ensinos escatológicos de Jesus (24:1—25:46).
A narrativa da morte e ressurreição (26:1—28:1-20).

▶ Marcos

▷ Título e conteúdo
O evangelho que recebe o nome de Marcos tem por trás de seu
texto a gura do apóstolo Pedro. Marcos seria um redator que
escreveu o texto com base naquilo que Pedro dizia, pois ele mesmo
não havia sido apóstolo nem testemunha ocular da maioria das
coisas que escreveu. Por isso, alguns sugerem Pedro como coautor
de Marcos. Esse evangelho traz o anúncio da vida e obras de Jesus.

▷ Autores
Marcos e Pedro (?).

▷ Data
Os críticos o colocam em torno do ano 70 d.C., mas há evidências
de que ele teria sido composto por volta da década de 50 d.C.

▷ Localização
A vida de Jesus é passada na região da Judeia, Galileia e
arredores. Quanto ao local de produção do evangelho, presume-se
que tenha sido em Roma. Apenas uns pouquíssimos autores
supõem que Marcos escreveu o evangelho em Alexandria.

▷ Características literárias
Marcos é chamado de o evangelho do anonimato ou evangelho
do segredo messiânico, pois é o autor que mais enfatiza o pedido de
Jesus para que os que se aproximavam dele não revelasse sua
identidade, a m de que os eventos nais que estavam preditos por
Deus não acontecessem antes do esperado. Ele usa de descrições
simples e claras, como se estivesse escrevendo para crianças. O
caráter sintético de sua mensagem pode ter in uência de Pedro,
que também era um homem simples e de poucas letras.

▷ Esboço
Introdução (1:1-13).
Declaração sumária (1:1).
Cumprimento da profecia do Antigo Testamento (1:2-3).
O ministério de João Batista (1:4-8).
O batismo de Jesus (1:9-11).
A tentação de Jesus (1:12-13).

I. O Ministério de Jesus na Galileia (1:14―9:50)

Princípio: Sucesso e con itos iniciais (1:14―3:6).


Etapas posteriores: Aumento de popularidade e oposição
(3:7―6:13).
Ministério fora da Galileia (6:14―8:26).
Ministério no caminho para a Judeia (8:26―9:50).

II. O Ministério de Jesus na Judeia (10:1―16:20)

Ministério na Transjordânia (10:1-52).


Ministério em Jerusalém (11:1―13:37).
A Paixão (14:1―15:47).
A ressurreição (16:1-20).

▶ Lucas

▷ Título e conteúdo
O texto em si não contém o nome do seu autor, contudo, a mais
antiga tradição cristã aponta para Lucas, o amado médico,
discípulo e companheiro de Paulo. Seu texto, referente à vida e
obras de Jesus de Nazaré, vincula-o ao livro de Atos dos Apóstolos e,
juntos, podem ter sido preparados para compor o dossiê de defesa
de Paulo perante o tribunal de Roma.

▷ Autor
Lucas.

▷ Data
Em torno de 60 d.C.

▷ Localização
Roma.

▷ Características literárias
Lucas escreve do modo mais erudito de todos os evangelistas,
embora use largamente o grego comum, e não esconde os fortes
traços de aramaísmos que podem signi car alguma ascendência
judaica por parte de sua família ou o uso de fontes mais antigas que
não estariam escritas em grego. O prefácio segue um claro estilo
grego clássico e a continuidade judaica. O que em Mateus pode ser
entendido de modo circunscrito ao judaísmo, em Lucas é uma
tarefa universal de Cristo, vindo para salvar toda a humanidade.
Lucas é o que mais enfatiza o papel das mulheres no ministério
de Jesus, a fé genuína de crianças e a salvação estendida a todos os
não judeus que aceitassem o Messias.

▷ Esboço
Prólogo (1:1-4).
A narrativa da infância (1:5—2:52).
Preparação para o ministério público (3:1—4:13).
O ministério galileu (4:14—9:50).
A narrativa de viagem (no caminho para Jerusalém) (9:51—
19:28).
O ministério de Jerusalém (19:29—21:38).
A paixão e glori cação de Jesus (22:1—24:53).

▶ João

▷ Título e conteúdo
O evangelho que leva o nome do discípulo amado é um dos mais
profundos acerca do ministério de Jesus. De todos, é o que mais
acentua sua divindade, pré-existência e corporeidade após a
ressurreição. Possui uma forma de narrar os fatos da vida de Cristo
que combate grupos dissidentes da Igreja Primitiva, especialmente
os gnósticos, que negavam a doutrina da encarnação.
É um evangelho ricamente doutrinário, principalmente no
tocante à sua apresentação da morte de Cristo como sacrifício
expiatório pela humanidade e o uso extensivo do título de “Filho de
Deus” aplicado à pessoa de Jesus Cristo.

▷ Autor
A tradição da Igreja, de longa data, aponta João, o discípulo
amado, como sendo o autor do evangelho que leva o seu nome.
Alguns, no entanto, tendem a negar essa autoria, falando antes de
uma comunidade joanina que produziu o texto em nome do
apóstolo João. Tal hipótese, contudo, carece de mais evidências que
a corroborem.

▷ Data
Fim do século 1 d.C.

▷ Localização
A vida de Jesus se passa no eixo entre a Judeia e a Galileia, mas o
evangelho foi quase seguramente redigido na cidade de Éfeso, atual
Turquia.

▷ Características literárias
O fato de acentuar a natureza divina de Jesus muito mais que os
outros evangelhos, faz com que João utilize de algumas fórmulas
especí cas não encontradas assim em outras partes da Bíblia. Uma
delas é o extensivo uso de “eu sou” referindo-se a Cristo como eco
da apresentação divina a Moisés onde o Altíssimo se revela como
“Eu sou aquele que é”. Em João, Jesus se apropria dessa expressão
para autode nir-se.
Além disso, o autor desenvolve algumas ideias-chave de forma
crescente e concêntrica. É o caso de sua dissertação sobre a luz, a
hora, a vida, o mundo. Do mesmo modo, o evangelho evita a
palavra “milagres”, preferindo o uso de “sinais”, porque estes
revelam a verdadeira identidade de Jesus.

▷ Esboço
O PRÓLOGO (1:1-18)

O Logos em sua existência eterna absoluta (1:1).


O Logos em relação à criação (1:2-18).
Os fatos essenciais (1:2-5).
A manifestação histórica de maneira geral (1:6-13).
A encarnação conforme apreendida pela experiência
pessoal (1:14-18).
A substância do testemunho apostólico pessoal (1:14).
A testemunha da profecia —João (1:15).
A natureza da revelação (1:16-18).
Na experiência dos crentes (1:16).
Em relação à Lei (1:17).
Em sua fonte nal (1:18).

O LIVRO DOS SINAIS (1:19—20:31)


O primeiro sinal: transformação da água em vinho em Caná.

O ensino: Jesus é o cumpridor do velho e o doador do novo


(1:19—3:21).
O testemunho de João (1:19-34).
O testemunho dos discípulos (1:35-51).
O testemunho do sinal (2:1—3:36).

O segundo sinal: a cura do lho do régulo.

O ensino: Jesus não é limitado por tempo ou espaço (4:1-54).

O terceiro sinal: cura do homem paralítico.

O ensino: unidade do ser e atividade do Pai e do Filho (5:1-


47).

O quarto sinal: alimentação das multidões e caminhada sobre as


águas.

O ensino: Jesus é Salvador, sustentador e protetor da vida


(6:1-71).

O quinto sinal: a cura do cego.

O ensino: Jesus é a Luz do Mundo (7:1—10:42).

O sexto sinal: a ressurreição de Lázaro.

O ensino: Jesus é a Ressurreição e a Vida (11:1—12:50).

O sétimo sinal: morte, sepultamento e ressurreição de Jesus.


O ensino: Jesus é Emanuel — Deus Conosco (13:1—20:31).

O EPÍLOGO (21:1-25)

O Senhor e o corpo de discípulos (21:1-14).


O Senhor e os discípulos como indivíduos (21:15-23).
Observações conclusivas (21:24-25).

▶ Atos

▷ Título e conteúdo
Este livro traz a continuação da narrativa evangélica a partir do
texto de Lucas, que novamente se dirige a Teó lo e lhe con a o
manuscrito que estava preparando. Em que pese a tradição do
nome “Atos dos Apóstolos”, é notório que não se trata de uma
narrativa sobre a obra de todos os doze apóstolos de Jesus. Da
maioria deles não se têm nenhum relato. O que se acentua na
narrativa são atos de Paulo (o apóstolo dos gentios), com alguma
atuação de Pedro e Tiago. Conta-se, en m, a história dos primeiros
anos da Igreja após a ascensão de Cristo. Seus dramas, sua
perseguição, seu fervor missionário e desa os teológicos. Alguns
propõem que, devido à ação divina destacada na história, o mesmo
deveria se chamar Atos do Espírito Santo, em vez de Atos dos
Apóstolos.

▷ Autor
Lucas.

▷ Data
Em torno do ano 60 d.C.

▷ Localização
Israel, Síria, Grécia (Ásia Menor), Roma.

▷ Caraterísticas literárias
O texto é narrativo e com características de alto valor cultural.
Seu autor não fazia parte do ciclo original de discípulos, mas
recebeu instruções detalhadas daqueles que foram testemunhas do
evento e, com base nisso, o escreveu. Ele emprega com rigor os
detalhes históricos, políticos, o nome de cada personagem
envolvido e os títulos que possuía.
Ao descrever, porém, as obras de Paulo, o autor muda de estilo e
passa a redigir sob a ótica de quem estava lá, que testemunhou
aquilo que escrevera, pois estivera todo o tempo ao lado de Paulo.
Há quem acredite que o livro de Atos, em conjunto com o livro de
Lucas, seriam partes de uma mesma peça jurídica usada em defesa
de Paulo por ocasião de seu julgamento em Roma.

▷ Esboço
ATOS 1—5: A Igreja Primitiva em Jerusalém

O prefácio literário (1:1-5).


Narrativas preparatórias para o Pentecostes (1:6-26).
Pentecostes (2).
Pregando o evangelho em Jerusalém (3—5).

ATOS 6:1—13:3: Os helenistas e o início da missão aos gentios

A escolha dos sete (6:1-7).


A história de Estêvão (6:8—8:3).
A missão em Samaria (8:4-40).
O interlúdio paulino (9:1-31).
Pedro trabalha nas cidades costeiras (9:32—11:18).
Os helenistas chegam a Antioquia (11:19-30).
Término das narrativas em Jerusalém (12).
A igreja de Antioquia envia os primeiros missionários à
diáspora (13:1-3).

ATOS 13:4—15:30: A primeira missão paulina e suas


consequências

A primeira jornada missionária (13:4—14:28).


A conferência de Jerusalém (15:1-35).

ATOS 15:36—21:16: A missão grega de Paulo

A primeira missão paulina em território grego (15:36—


18:22.).
A segunda missão paulina em território grego (18:23—21:16).
ATOS 21:17—28:31: A estrada para Roma

Em Jerusalém (21:17—23:25).
Em Cesareia (24:1—26:32).
A viagem para Roma (27:1—28:16).
Paulo em Roma (28:17-31).

▶ Romanos

▷ Título e conteúdo
O livro refere-se a uma carta escrita por Paulo aos cristãos de
Roma. Nela, ele trata de alguns assuntos referentes ao andamento
da igreja de Roma, como sua futura visita àquela congregação, a
ajuda aos necessitados de Jerusalém e seu próprio itinerário para
Espanha, através da Itália. Mas o apóstolo também aproveita o
ensejo da missiva para esclarecer alguns pontos doutrinários e
defender sua teologia, especialmente no que diz respeito à relação
entre a lei e a justi cação pela fé, bem como o bom convívio entre
cristãos gentios e judeus.

▷ Autor
Apóstolo Paulo.

▷ Data
Provavelmente na primavera de 57 d.C.

▷ Localização
Acredita-se que esta carta fora enviada para os cristãos de Roma
a partir da cidade de Corinto.

▷ Características literárias
É a carta mais longa e mais teológica do Novo Testamento. Nela,
Paulo usa muito o recurso da diatribe, que consiste na exposição de
uma ideia, doutrina ou argumento em forma de diálogos
imaginários, possuindo gênero coloquial e dotado de sentenças
curtas ou condicionais, com o interesse de despertar a atenção do
leitor, como se ele estivesse assistindo a um debate.
Por isso, encontramos em Romanos muitas perguntas retóricas,
mas também muitas declarações incisivas, imperativos e paralelos
contrastantes. A força de sua linguagem se assemelha àquela
encontrada em grandes escritores da época, como Epíteto e Sêneca.

▷ Esboço
Introdução e tema (1:1-17).
A humanidade precisa da salvação (1:18—3:20).
A via da salvação que Deus propõe (3:21—4:25).
A nova vida em Cristo (5:1—8:39).
Israel no plano de Deus (9:1—11:36).
Conduta cristã (2:1—15:13).
Conclusão e saudações (15:14—16:27).

▶ 1 e 2Coríntios

▷ Título e conteúdo
Trata-se de duas cartas inspiradas de um total de quatro (duas
outras estão perdidas) que foram escritas pelo apóstolo Paulo em
resposta às notícias que recebia da igreja de Corinto. Esta era uma
comunidade muito problemática desde a sua fundação. Nela, havia
problemas morais, doutrinários, litúrgicos e litigiosos que são
devidamente tratados pelo apóstolo em ambas as missivas. A
segunda parece mais ampla que a primeira, pois é endereçada não
apenas aos coríntios, mas a todos os irmãos que estavam
espalhados pela Acaia.

▷ Autor
Apóstolo Paulo.

▷ Data
Cerca de 56 d.C.
▷ Localização
A primeira provavelmente foi escrita em Éfeso e a segunda, na
Macedônia.

▷ Características literárias
Ambas as cartas não têm um caráter sistemático como acontece
na Epístola aos Romanos. Elas têm uma função mais pragmática
que é responder aos problemas que estavam ocorrendo na
comunidade de crentes, bem como animar-lhes a fé para que não se
esmoreçam seguindo guias heréticos ou ensinamentos espúrios. Há
também um grande tom de exortação diante dos graves problemas
morais que eram trazidos perante o apóstolo.

▷ Esboço
1Coríntios

Prólogo (1:1-9).
Divisões na igreja de Corinto (1:10—4:21).
Escândalos na igreja (5:1—6:20).
Resposta a questões concretas (7:1—11:1).
A Assembleia Litúrgica (11:2-34).
Os carismas (12:1—14:40).
A ressurreição dos mortos (15:1-58).
Epílogo (16:1-24).
2Coríntios

Prólogo (1:1-11).
Paulo justi ca sua postura diante da igreja (1:12—7:16).
Paulo dá instruções (8:1—9:15).
Paulo justi ca novamente sua postura diante da igreja (10:1
—13:13).

▶ Gálatas

▷ Título e conteúdo
Esta carta foi endereçada a um certo grupo de igrejas que caria
ao norte da Galácia ou em suas fronteiras com a Frígia. O fato é que,
em se tratando de comunidades cristãs desta região, o nome Gálatas
parece muito apropriado.
Nela, Paulo apresenta mais uma vez sua preocupação com
aqueles que estavam se afastando da mensagem de Cristo para
seguir ensinos dissidentes, como aqueles que exigiam dos não
judeus que se convertiam a necessidade de circuncidar-se antes de
se unir à igreja. Ao mesmo tempo em que corrige as distorções,
Paulo levanta uma apaixonante defesa de seu ministério apostólico
que parecia negado até mesmo por líderes in uentes do
cristianismo. Alguns certamente estavam usando essa oposição
interna para minar a credibilidade autoritativa do ensino de Paulo.

▷ Autor
Apóstolo Paulo.

▷ Data
Cerca de 57 d.C.

▷ Localização
Paulo provavelmente escreveu esta carta por ocasião de sua
viagem pela Macedônia.

▷ Características literárias
É uma carta de estilo fortemente apologético e exortativo. Nela,
Paulo dirige uma severa repreensão tanto aos membros da igreja
que estavam se afastando quanto aos falsos mestres que os estavam
desencaminhando. Em sua defesa, o autor ainda imprime um
caráter autobiográ co em certa parte do texto que oferece
importantes informações sobre sua própria personalidade e
desa os pessoais.

▷ Esboço
Introdução (1:1-10).
Origem divina do Evangelho (1:11—2:21).
O Evangelho faz-nos lhos de Deus (3:1—4:7).
O Evangelho faz-nos livres (4:8—5:12).
Vida cristã, caminho de liberdade (5:13—6:10).
Conclusão (6:11-18).

▶ Efésios

▷ Título e conteúdo
O título desta epístola vem da ideia de que ela fora escrita para a
comunidade de crentes que residia em Éfeso, conforme as palavras
introdutórias do autor, aos “santos que estão em Éfeso”. Contudo,
as cópias mais antigas dessa carta não possuem tal expressão, o que
leva muitos a julgarem que se trata de uma mensagem direcionada
não especi camente a uma igreja apenas, mas a diversas
comunidades cristãs, incluindo a de Éfeso.
Esta carta tem como tema central o propósito eterno de Deus:
Jesus Cristo é o cabeça da Igreja, que é formada a partir de muitas
nações e raças.

▷ Autor
Apóstolo Paulo.

▷ Data
Cerca de 62 d.C.
▷ Localização
Provavelmente escrita da prisão domiciliar de Paulo em Roma.

▷ Característica literária
A carta é escrita em forma de homilia, mas usando o modelo de
epístola. Traz um tom pastoral e mais paterno que as cartas de
caráter apologético.

▷ Esboço
Apresentação (1:1-2).

I. A Igreja e o Evangelho (1:3—3:21)

A graça de Deus (1:3-14).


Cristo, Senhor do mundo e da Igreja (1:15-23).
A obra de Cristo (2:1-22).
Lugar de Paulo no plano de Deus (3:1-21).

II. Exortação aos batizados (4:1—6:20)

Viver na unidade (4:1-16).


Instruções várias (4:17—5:20).
Cristo e a Igreja. Consequências (5:21—6:9).
Combater inimigos espirituais (6:10-20).
Saudação nal (6:21-24).
▶ Filipenses

▷ Título e conteúdo
Dirigida à comunidade de Filipos, esta carta não tem uma
estrutura teológica bem organizada como Romanos, mas trata de
alguns ensinos especiais colocados numa temática de relação
fraterna entre o apóstolo e a comunidade. A ênfase desta carta está
no gozo que o crente em Cristo encontra em todas as circunstâncias
da vida. Os acontecimentos dramáticos aos quais a epístola faz
referência são vistos por Paulo como uma fonte de esperança para o
anúncio de sua mensagem.

▷ Autor
Paulo.

▷ Data
A data de produção desta carta é disputada entre os especialistas,
alguns a colocam em torno de 55 d.C., enquanto outros a situam
num período mais tardio, entre 60 e 62 d.C.

▷ Localização
Imprecisa.
▷ Características literárias
A escrita é claramente epistolar, mas o que chama a atenção é
que na primeira parte Paulo escreve num estilo menos combativo.
Ele parece contente com aquilo que anuncia. Chama-nos também a
atenção os frequentes usos do caso genitivo, que indica posse ou
origem, e as frases são mais extensas que o normal.

▷ Esboço
Introdução (1:1-11).
Prisão de Paulo (1:12-26).
Deveres da comunidade (1:27—2:18).
Solicitude pela comunidade (2:19—3:1).
O apóstolo, modelo da comunidade (3:2—4:1).
Conclusão (4:2-23).

▶ Colossenses

▷ Título e conteúdo
Trata-se de uma carta preocupante que Paulo, já prisioneiro em
Roma, envia para os cristãos da cidade de Colossos devido às
notícias que recebera de que falsas doutrinas estavam sendo
ensinadas aos membros da comunidade fundada por Epafras,
provável discípulo de Paulo e que viajara até Roma para dar-lhe um
relatório do que estaria acontecendo à comunidade. A carta tem
como objetivo esclarecer pontos doutrinários divergentes e
combater os ensinos que estavam minando a fé original do
cristianismo.

▷ Autor
Apóstolo Paulo.

▷ Data
Cerca de 62 d.C.

▷ Localização
Roma.

▷ Características literárias
O tom da carta parece indicar que Paulo não os conhecera
pessoalmente, mas apenas ouvira falar a seu respeito. O estilo é
exortativo e catequético, ou seja, Paulo escreve da perspectiva de
um apóstolo investido de autoridade, que os conclama a
permanecerem rmes contra os ensinamentos que diferem
daqueles recebidos anteriormente por Epafras. A divindade de
Cristo é fortemente anunciada através de sua identi cação como
Senhor, Cabeça, Salvador e Criador de todas as coisas. Qualquer
doutrina que se afaste disso é denominada como “ loso a e vãs
sutilezas” dos homens (2:8).

▷ Esboço
Introdução (1:1-23).
O Evangelho de Paulo (1:24—2:5).
Fidelidade ao Evangelho (2:6-23).
Viver segundo o Evangelho (3:1—4:6).
Conclusão (4:7-18).

▶ 1 e 2Tessalonicenses

▷ Título e conteúdo
As duas cartas que levam esse nome foram endereçadas aos
cristãos da cidade de Tessalônica. São provavelmente os mais
antigos escritos do Novo Testamento, redigidas até mesmo antes
dos quatro evangelhos. Elas abrangem, de modo geral, instruções
doutrinárias às comunidades cristãs recém-formadas pelo trabalho
evangelístico de Paulo.

▷ Autor
Apóstolo Paulo.
▷ Data
A primeira carta foi escrita provavelmente em torno de 49 d.C. e
a segunda, cerca de um ano depois. Os que não reconhecem a
autenticidade da segunda epístola atribuem-na a uma produção
anônima posterior ao ano 70 d.C.

▷ Localização
Paulo as escreveu em Corinto.

▷ Características literárias
Na primeira epístola o tom é mais pastoral. Paulo escreve como
um pai preocupado com a sedução que o paganismo poderia ter
sobre seus lhos recém-nascidos na fé cristã. Em suas sentenças,
sobressaem a gratidão, o entusiasmo e a con ança que desejava
transmitir aos crentes.
A segunda tem um tom menos apaixonado. A iminência da volta
de Jesus que Paulo pregara anteriormente, e que aparece destacada
na primeira epístola, foi interpretada por muitos como
signi cando que o Senhor já havia voltado ou que, devido à sua
brevidade, era importante para aquela geração alcançar a volta de
Cristo em vida. Em outras palavras, os que morreram sem ver a
volta do Senhor estariam perdidos. Então, Paulo esclarece tais
pontos de desentendimento a rmando que a ressurreição faz parte
dos planos de Deus e que o Dia do Senhor, embora iminente, ainda
estaria no futuro.
▷ Esboço
1Tessalonicenses

Motivos de agradecimento (1:2—3:13).


O dia a dia da vida cristã (4:1—5:24).
Saudação nal (5:25-28).

2Tessalonicentes

Saudação (1:1-2).
Conforto na tribulação (1:3-12).
A volta de Cristo (2:1—3:5).
O perigo da ociosidade cristã (3:6-15).
Despedida (3:16-18).

▶ 1 e 2Timóteo

▷ Título e conteúdo
As duas cartas enviadas a Timóteo abrem uma seção chamada
“epístolas pastorais” de Paulo, mediante as quais se dirige a seus
auxiliares, nominalmente Timóteo e Tito, instruindo-os a como
dirigirem as igrejas. Paulo sentia que estava para morrer na mão
dos romanos e fazia planos para deixar substitutos cheios do
Espírito Santo, que pudessem dar continuidade a sua obra.
▷ Autor
Apóstolo Paulo.

▷ Data
Cerca de 62 d.C.

▷ Localização
Paulo escreve de sua prisão em Roma para Timóteo, que estaria
pastoreando as igrejas a partir da cidade de Éfeso.

▷ Características literárias
São duas cartas de cunho bastante fraternal e paterno. Paulo
insta Timóteo que não tenha medo, que não se acanhe por causa de
sua pouca idade e nem permita que alguém o rebaixe devido à sua
juventude. Também o orienta a ser el e a não dar margens para
que seu comportamento ou de qualquer outro líder macule a
missão da igreja. Ele também se despede e prepara o jovem pastor
para a sua (a de Paulo) breve morte, mas revisa a trajetória de sua
vida, puxando do arquivo de sua memória as di culdades e os
livramentos proporcionados por Deus. Finalmente, lembra que
todo esforço feito nesta vida redunda no recebimento da coroa da
vida eterna.
▷ Esboço
1Timóteo

Saudação inicial e ação de graças (1:1-20).


A organização eclesial (2:1—4:16).
Conselhos às várias classes de pessoas (5:1—6:19).
Saudação nal (6:20-21).

2Timóteo

Saudação e agradecimento (1:1-5)


Exortações a Timóteo (1:6-18).
A missão de Timóteo (2:1-13).
Os falsos mestres (2:14-26).
Di culdades da missão (3:1-17).
O testemunho de Paulo (4:1-18).
Despedida (4:19-22).

▶ Tito

▷ Título e conteúdo
Como as epístolas endereçadas a Timóteo, esta breve carta
instrui a Tito, outro discípulo de Paulo e líder no ministério da
Igreja Cristã. Tito é mencionado na Carta aos Gálatas (2:3), na qual
se lê que ele não foi obrigado a ser circuncidado quando se
converteu ao cristianismo. Ele também é mencionado em algumas
sentenças de 2Coríntios como um comprometido colaborador do
apóstolo Paulo.

▷ Autor
Apóstolo Paulo.

▷ Data
Cerca do ano 62 d.C.

▷ Localização
Paulo escreve de Roma para Tito, que estava na ilha de Creta.

▷ Características literárias
É muito parecida com 1Timóteo, talvez porque, à semelhança
daquela, Paulo também vê a necessidade de instruir Tito a como
liderar as igrejas cristãs da Ásia Menor, especialmente a
comunidade que ele presidia. A igreja estava se organizando e logo
surgiam os primeiros problemas de doutrina e unidade dos crentes.

▷ Esboço
Saudação (1:1-4).
Orientações a Tito (1:5-9).
Os falsos mestres (1:10-16).
A moral cristã (2:1-15).
Deveres sociais (3:1-11).
Recomendações nais (3:12-14).
Despedida (3:15).

▶ Filemon

▷ Título e conteúdo
A carta endereçada a um certo Filemon é de cunho único em
todo o conjunto de epístolas Paulinas. Não se trata de orientação
doutrinária ou pastoral, mas de um pedido de perdão que Paulo faz
em benefício de Onésimo, escravo fugitivo de Filemon e que agora
voltava para casa.

▷ Autor
Apóstolo Paulo.

▷ Data
Cerca de 60 ou 61 d.C.
▷ Localização
A carta foi escrita de um dos últimos cativeiros de Paulo, que
pode ter sido em Éfeso, Cesareia ou Roma. É destinada a Filemon,
que residia na cidade de Colosso.

▷ Características literárias
A carta não apresenta um escopo teológico, mas ético e
pragmático. É uma das mais breves epístolas de Paulo, escrita num
tom pessoal, a m de resolver um caso bastante especí co, a volta
de Onésimo a seu senhor.

▷ Esboço
Saudação (1-3).
Ação de graças com base na qualidade cristã de Filemon (4-
7).
Pedido em favor de Onésimo (8-11).
Saudações da parte de amigos de Paulo (23-24).
Bênção (25).

▶ Hebreus

▷ Título e conteúdo
Embora seja comumente denominada de Epístola de Paulo aos
Hebreus, há sérias dúvidas de que se trata realmente de uma
epístola direcionada aos hebreus ― termo este que seria uma
referência étnica aos antigos israelitas ou judeus, como são
comumente chamados no Novo Testamento. O conteúdo parece
mais com o de um sermão ou discurso pregado, se não por Paulo,
por alguém muito próximo dele, pois a essência teológica do texto é
claramente paulina.
Embora seja difícil de nir seus destinatários, o texto remete a
algum grupo judaico-cristão muito bem a nado com a linguagem e
liturgia do judaísmo, o que justi ca o título “aos hebreus”, ainda
que este tenha um cunho meramente metafórico.

▷ Autor
Os especialistas se dividem, havendo quem diga que o texto é de
Paulo ou de algum discípulo ligado a ele. De fato, há muito de Paulo
neste conteúdo. A estrutura mecânica da carta se assemelha a das
cartas de Paulo ― primeiro a discussão doutrinária, a seguir a
exortação;
Uma famosa coleção dos primeiros manuscritos de papiro do
Egito (início do terceiro século), conhecida como Papiro Chester
Beatty II, traz Hebreus entre as cartas paulinas.
Os mais importantes manuscritos unciais do quarto século, Álef,
Alexandrino, Vaticano e Efraimita, con rmam a autoria paulina. A
maioria dos pais da Igreja se posicionaram a favor de Paulo como o
autor de Hebreus, dentre eles temos Cirilo, João Crisóstomo,
Agostinho e Jerônimo.
▷ Data
A data exata é desconhecida, mas considerando a expressão “os
da Itália vos saúdam” (13:24), deve-se entender que ela foi produzida
em algum período em que a mensagem cristã já havia alcançado a
Europa e antes da destruição do Templo de Jerusalém, pois esta
parece referir-se ao santuário judeu como em pleno
funcionamento. Por isso, qualquer data entre os anos 60 d.C. é
relativamente plausível.

▷ Localização
Talvez em alguma região da Itália.

▷ Características literárias
O texto traz uma característica de discurso ou pregação
transcrita. O autor nunca escreve, mas sempre “fala”. Somente no
nal do texto é que temos uma despedida típica de epístolas. Por
isso, considera-se que estamos diante de um sermão anotado por
um escriba e direcionado a diferentes comunidades cristãs.

▷ Esboço
Prólogo (1:1-4).
A supremacia do Filho de Deus (1:5—2:18).
O sacerdócio do Filho de Deus (3:1—5:10).
O sacerdócio de Cristo (5:11—10:18).
A fé que opera e persevera (10:19—12:29).
Recomendações (13:1-25).
Bênção e saudação nal (13:20-25).

▶ Tiago

▷ Título e conteúdo
Com Tiago, inicia-se o ciclo das chamadas “epístolas universais”
ou “epístolas gerais”. Eusébio foi o primeiro a cunhá-las com o
título grego de katholie (católicas), cujo sentido seria exatamente o
de algo universal e, portanto, direcionado não a uma comunidade
especí ca, mas para todas as igrejas cristãs.
O título vem de seu autor e seu conteúdo versa sobre diferentes
temas que vão surgindo ao longo do texto. Fala-se de questões
básicas da vida cristã em comunidade, que seriam atitudes frente às
provações da vida, a verdadeira religião baseada na caridade, a
sabedoria que vem do alto, a ameaça aos avarentos, a paciência e a
constância cristã, o cuidado dos doentes e a complexa relação entre
fé e obras.

▷ Autor
O autor, ao que tudo indica, era um Tiago conhecido da igreja.
Ele se identi ca apenas como “servo de Deus e de Jesus Cristo”.
Vários Tiagos são mencionados no Novo Testamento, e todos, em
princípio, parecem ter chances iguais de ser o autor da epístola.
Contudo, a maioria dos comentaristas o identi ca como sendo
Tiago “irmão de Jesus” e presidente da igreja em Jerusalém. Esta
parece ser a melhor hipótese.

▷ Data
A data de produção desta epístola é tema de grande controvérsia.
Muitos autores a colocam por volta do ano 45 d.C., ou da
perseguição de Cláudio, entre 50 d.C. e 52 d.C. E há também os que a
colocam como posterior ao ano 70 d.C., sendo a diáspora referida
àquela que se seguiu à destruição de Jerusalém pelos romanos.

▷ Localização
Alguns autores pensam que seria Jerusalém o lugar de produção
da epístola. Outros a colocam como oriunda de Roma, Antioquia,
Cesareia ou Alexandria.

▷ Características literárias
A carta possui um grego muito bem redigido em pé de igualdade
com o livro de Hebreus. Nele, há elementos de retórica grega e
citações de prováveis ditos de Cristo não encontrados em outras
partes do Novo Testamento. O autor também lança mão da diatribe
cínico-estoica, pequenos diálogos com um interlocutor imaginário
(2:18-19), perguntas retóricas (2:4, 5b, 14,16; 3:11-12; 4:4-5) e
interpelações incisivas (1:16,19; 4:13; 5:1). Contudo, se o argumento
nal não é grego, mas semítico, o ensinamento é claramente
cristão.
Os temas, no entanto, não aparecem na ordem de um tratado
teológico, como no caso de Hebreus. Sua organização é delineada a
partir de um diálogo ou argumentação imaginária que faz com que
os assuntos tratados surjam espontaneamente, mas não de modo
improvisado. O autor sabe muito bem a que temas sapienciais
pretende conduzir o leitor e os esmiúça com o rigor de um escriba
judeu que transita com facilidade entre os modos gregos e rabínicos
de argumentação.

▷ Esboço
A atitude cristã perante as provações (1:1—2:25).
A verdadeira religião (1: 26—3:12).
A verdadeira sabedoria (3:13—4:12).
Ameaças dos ricos opressores (4:13—5:6).
Advertências nais (5:7-20).

▶ 1 e 2Pedro

▷ Título e conteúdo
As duas cartas são atribuídas tradicionalmente a Pedro, mas
muitos atualmente lançam dúvida sobre a autoria petrina de ambos
os textos. O primeiro é autodenominado como sendo uma carta de
Pedro (1:1), por meio de seu secretário Silvano (5:12). Seu conteúdo
gira em torno de uma severa perseguição à Igreja e é escrita para
cristãos perseguidos que são instados a não perderem a fé. A
segunda carta, bem diferente do estilo da primeira, evoca a
iminente morte do autor (1:14), suas memórias e uma visão que teve
da glória de Cristo no dia de seu batismo (1:17). Também traz uma
admoestação contra os falsos ensinos e menciona heresias
destruidoras que ameaçavam a unidade da igreja.

▷ Autor
A tradição longamente aponta Pedro como o autor de ambas as
cartas que levam o seu nome.

▷ Data
Em algum período em torno do ano 60 d.C.

▷ Localização
De Roma para os cristãos espalhados por todo o território
daquele império.

▷ Características literárias
O estilo de ambas é claramente epistolar. A primeira carta é mais
pastoral e animadora, a segunda tem um tom mais apologético. A
primeira tem uma elegância e estilo comparável ao de Tiago, mas a
segunda é redigida de modo mais simplório. As duas juntas têm
muitos pontos de contato com outras partes do Novo Testamento,
especialmente as epístolas de Paulo e Tiago. Contudo, a relação não
constitui dependência literária de em relação à outra, mas apelo à
fonte comum que era a do ensino apostólico cristão.

▷ Esboço
1Pedro

Saudação (1:1-12).
Exortação à santidade (1:13—2:10).
Os cristãos perante o mundo (2:11—3:12).
Os cristãos perante o sofrimento (3:13—4:11).
Últimas exortações (4:12—5:14).

2Pedro

Saudação (1:1-2).
Exortação à perseverança na fé (1:3-21).
Denúncia dos falsos mestres (2:1-22).
A segunda vinda do Senhor (3:1-16).
Despedida (3:17-18).

▶ 1, 2 e 3João
▷ Título e conteúdo
Aqui temos o conjunto de três cartas tradicionalmente
atribuídas ao apóstolo João. A primeira destina-se a uma
comunidade cristã minada por algum tipo de heresia gnóstica, que
parecia ter surgido dentro de algum grupo de ex-membros e que
agora ameaçavam a unidade da Igreja. Talvez por isso o termo
grego koinonia (comunidade) seja uma palavra essencial na
argumentação do autor.
Na segunda carta, o autor, que se autodenomina “o ancião”,
previne a “senhora eleita” (uma líder local ou uma metáfora para
designar a comunidade como um todo) contra a in ltração dos
dissidentes. Para tanto, ele insta no mandamento do amor e na
unidade doutrinária como forma de combater os hereges.
Finalmente, fala da cristologia e os pontos que estavam sendo
distorcidos.
Finalmente, a terceira carta é direcionada a Gaio,
recomendando-lhe a hospitalidade a um grupo de missionários
liderados por Demétrio e que chegariam até sua cidade. Ela
também o encoraja a advertir contra um certo Diótrefes que se
opusera à liderança do ancião que escreve aquela epístola.

▷ Autor
João, muito provavelmente o discípulo amado e apóstolo de
Cristo, embora alguns autores pensem que seria outro ancião de
mesmo nome do apóstolo.
▷ Data
Em torno do ano 90 d.C.

▷ Localização
Provavelmente, as epístolas foram escritas da cidade de Éfeso.

▷ Características literárias
As cartas têm um caráter fortemente doutrinário e apologético.
Preocupa-se também com o lado prático das admoestações ao
direcionar como as coisas deveriam ser geridas nas comunidades
cristãs, bem como quem estava ou não autorizado a ensinar em
nome dos apóstolos.

▷ Esboço
1João

A encarnação (1:1-10).
A vida de justiça (2:1-29).
A vida dos lhos de Deus (3:1—4:6).
A fonte do amor (4:7-21).
O triunfo da justiça (5:1-5).
A garantia da vida eterna (5:6-12).
Certezas cristãs (5:13-21).
2João

Introdução (1-3).
Elogio pela lealdade passada (4).
Exortações (5-11).
Conclusão (12-13).

3João

Saudação (1).
Mensagem a Gaio (2-8).
Condenação à arrogância de Diótrefes (9-11).
Elogio a Demétrio (12).
Conclusão (13-14).

▶ Judas

▷ Título e conteúdo
A epístola que leva o nome de Judas é tão pequena e destituída
de elementos formais de uma epístola comum que muitos a
reputam por folha anti-herética ou bilhete de urgência enviado às
igrejas com o m de preveni-las dos mesmos perigos apontados nas
cartas de Tiago e João, a saber, forças dissidentes que haviam
adentrado na Igreja Cristã primitiva.

▷ Autor
O Novo Testamento fala efetivamente de “Tiago e Judas” entre
os irmãos do Senhor (Marcos 6:3), assim, alguns pensam que este
deveria ser um ponto de referência para a identi cação desse Judas.
Embora esta pareça uma identi cação razoável, devemos lembrar
que a identi cação do Tiago da epístola com o irmão de Cristo é
hipotética. Seja como for, esse Judas se identi ca como “servo de
Jesus Cristo” (como na epístola de Tiago) e “irmão de Tiago”. O que
corrobora não com a certeza, mas com a possibilidade de que seria o
mesmo Judas mencionado em Marcos 6:3.

▷ Data
Este é um dos textos do Novo Testamento mais difícil de datar.
Os comentaristas o colocam em qualquer período entre os anos 50
d.C. e 90 d.C.

▷ Localização
Inde nida.

▷ Características literárias
Um dos problemas em aberto com relação a Judas é que, por um
lado, ela não é uma verdadeira carta, como Romanos ou Gálatas —
faltam elementos pessoais entre o remetente e os destinatários. Por
outro lado, porém, não é um tratado como Hebreus. Alguns
biblistas a classi cam como uma “folha volante anti-herética”, o
que combina com seu conteúdo. Quanto à classi cação epistolar,
devemos levar em conta que nem todas as cartas precisavam ter
todo o conteúdo formal das principais epístolas de Paulo. Algumas
missivas de guerra (como as óstracas ou as cartas de Amarna) têm
características de bilhetes que denotam sua urgência ou o
aproveitamento de um viajante que se dispõe a levar a mensagem.
Note que a epístola assume bem esse caráter de urgência em
meio a uma guerra espiritual. O autor apresenta uma situação
difícil, criada pela intromissão de pessoas subversivas na
comunidade e centraliza suas linhas na denúncia dos erros que
motivaram o escândalo. A comparação com erros do passado nos dá
a entender que se tratavam de pessoas (talvez cristãos gnósticos)
que pretendiam ter uma vida licenciosa baseados na crença de que
eram especiais por causa do conhecimento que possuíam (isso nos
lembra bastante o m da epístola de 2Pedro).

▷ Esboço
Saudação (1-2)
I. Advertência contra os falsos mestres dentro da comunidade
(3-19)

Motivo para a advertência (3-4).


Lembrete do antigo povo ímpio (5-7).
Caráter do julgamento dos falsos mestres (8-19).

II. Exortações por perseverança (20-23)

Manter a fé (20-21).
Resgatar os enganados (22-23).
Doxologia (24-25).

▶ Apocalipse

▷ Título e conteúdo
O Apocalipse, ou ainda, Apocalipse de João, é o título de um tipo
especí co de literatura profética vista no Antigo Testamento e aqui
no último livro do Novo Testamento. Conforme a tradução do
grego, Apocalipse signi ca “revelação”, e é este o conteúdo da
profecia uma revelação dada por Jesus Cristo acerca de si mesmo,
dos acontecimentos futuros e do destino nal deste mundo.
O conteúdo é bastante simbólico e um dos mais difíceis de se
decifrar em toda a Escritura. Fala da luta entre o bem e o mal,
dramatizada em forma de animais monstruosos que saem do mar e
da terra, de anjos que voam pelo meio do céu e eventos
cataclísmicos que atingem a natureza. Em meio a tudo isso estão
acontecimentos reais no céu e na terra simbolizados pelos
elementos literários que o livro utiliza para transmitir sua
mensagem de conforto e advertência.

▷ Autor
Há muita polêmica entre os comentaristas sobre quem seria esse
João que assina o livro. A tradição mais antiga do cristianismo o
tem identi cado com o apóstolo João, também chamado “o
discípulo amado”, que seria o último dos apóstolos a estar com vida
no nal do primeiro século da nossa era.

▷ Data
Acredita-se que o Apocalipse tenha sido composto entre os anos
90 e 96 d.C.

▷ Localização
Ilha de Patmos.

▷ Características literárias
Trata-se de um texto repleto de símbolos e imagens surreais que
apontam para realidades históricas e supraterrenas. Ele toma por
paradigma literário quatro elementos típicos desse tipo de
literatura: uma revelação que é dada por Deus; a transmissão que é
dada por um mediador, o vidente que recebe a mensagem, e os
temas que dizem respeito ao passado, presente e futuro do povo de
Deus.

▷ Esboço
Introdução (1:1-20).
As sete Igrejas (2:1—3:22).
O Trono de Deus-Pai e do Cordeiro (4:1—5:14).
Os seis primeiros selos (6:1-17).
Os 144 mil selados/multidão (7:1-17).
O sétimo selo: sete trombetas/interlúdio — o anjo com o
livrinho e as duas testemunhas (8:1—11:19).
O dragão e a mulher (12:1-12).
O dragão, a mulher e as bestas (12:13—13:18).
Os 144 mil selados/os seis anjos/multidão (14:1-20).
Um outro sinal: sete pragas/julgamento de Babilônia (15:1—
18:24).
As Bodas do Cordeiro/a volta de Cristo/Milênio (19:1—20:15).
A Nova Jerusalém (21:1—22:5).
Conclusão (22:6-21).
113 A palavra “católica”, embora hoje designe o nome do maior ramo eclesiástico do
cristianismo, tinha outro sentido no passado. Ela vem do grego katholikós. É esse o sentido
usado em relação às epístolas não paulinas do Novo Testamento.

114 Os esboços aqui apresentados são adaptados de múltiplas fontes e representam apenas
uma tentativa de delineamento do livro. Não se trata, portanto, de uma sistematização
exata ou uniforme em todas as Bíblias. Variações de esboço são muito comuns neste
sentido.

115 Etã, o ezraíta (Salmos 89) — este Etã é associado a um certo Hermã, entre os cantores de
Davi (1Cr 15:17-19), mas também há referências a um Etã entre os sábios de Israel (1Reis
4:31).
CAPÍTULO DEZOITO

FATOS E CURIOSIDADES
BÍBLICAS

VOCAB LÁRIO ORIGINAL

No texto hebraico do Antigo Testamento é possível detectar 8.674


diferentes palavras. Já o texto grego do Novo Testamento conta
com 5.624. O menor verso da Bíblia varia de acordo com a tradução
que se adota. Por exemplo, Jó 3:2 traz “Jó disse” (sete letras), mas
algumas versões trazem “E Jó, falando, disse” — o que o excluiria
do ranking de menor versículo. O próximo (e que se mantém assim
em quase todas as traduções) seria Êxodo 20:13: “Não matarás.” Já
no Novo Testamento, o menor verso seria João 11:35: “Jesus
chorou.”
Quanto ao maior versículo da Bíblia, a indicação mais comum
vai para Ester 8:9, que tem 414 letras, conforme a tradução de
Almeida, e 368 na edição pastoral. No original hebraico, ele teria
371 letras. O menor livro da Bíblia é 2João, com um capítulo e treze
versículos. Já o maior é o livro dos Salmos com 150 diferentes
canções — isso se considerarmos cada salmo equivalente a um
capítulo.
O maior capítulo da Bíblia é o Salmo 119, com 176 versículos, e o
menor, o Salmo 117, com apenas dois versículos.

O TEMPO NAS ESCRIT RAS

Na Bíblia, a ideia primária da palavra dia é em referência à parte


clara que vai do nascer ao pôr do sol. No início dos tempos, o
período de 24 horas era dividido em duas partes: êrev (tarde) e bôker
(manhã). Êrev começava ao pôr do sol ou, conforme Gênesis 3:8,
“viração do dia”, e terminava ao nascer do sol, onde começava o
bôker. Até hoje os judeus usam a palavra êrev como referência à
primeira parte da noite, que vai do pôr do sol até por volta das 22h,
período em que usam a expressão “êrev tôv” (“boa noite”, ao chegar)
e “laila tôv” (“boa noite”, ao sair).
Assim, os dias na Bíblia seriam de pôr do sol ao pôr do sol. A
ideia comum hoje em dia de medir o tempo de meia-noite à meia-
noite é de origem romana, conforme o testemunho de Plutarco,
Plínio, Aulus Gêlio e Macrobius.
Depois, a parte clara do dia (bôker) começou a ser dividida, e o
meio-dia era chamado “maior calor do dia”, quando todos
procuravam abrigo e faziam sua refeição (almoço), e depois a sesta
(Gênesis 18:1-4; 2Samuel 4:5).
Diferentemente do formato de hora que usamos hoje, o tempo
na época bíblica era marcado numa contagem de 12 horas para o
dia.
As horas do dia eram contadas desde a alvorada (por volta das
seis da manhã) até o pôr do sol (por volta das seis da tarde), e eram
divididas em 12 partes, sendo três as principais entre o nascer do sol
(primeira hora) e o poente (duodécima hora): hora terceira (por volta
das nove horas — Mateus 20:3; Marcos 15:25; Atos 2:15); hora sexta
(por volta do meio-dia — Mateus 20:5; 27:45; João 4:6; 19:14; Atos
10:9); e hora nona (por volta das três da tarde — Mateus 27:45,46;
Atos 3:1; 10:3,30).
Mas não eram horas exatas de 60 minutos cada. A nal, elas
estavam atreladas ao pôr do sol e à parte clara do dia, que variava de
acordo com a estação do ano. Uma hora equivalia a 1/12,
aproximadamente, do período em que o sol brilha no céu, desde a
alvorada até ao ocaso. Ou seja, desde aproximadamente 6 horas da
manhã às 18 horas. É por isso que, em uma de suas ilustrações,
Jesus perguntou retoricamente: “Não há doze horas de luz no dia?”
(João 11:9).
Esse tempo de 12 horas era dividido em cinco horas principais.
Sua duração às vezes suplantava o tempo das horas seguintes. Por
exemplo, a primeira hora iniciava-se às seis da manhã e poderia
durar até as 9h — abarcando o tempo da segunda hora e durando,
aproximadamente, 180 minutos. Assim, um navio que estivesse
para partir à primeira hora, poderia sair às 6h, 7h, 8h ou pouco
antes das 9h — naquele tempo não havia a pressa que temos hoje
em dia!
Contudo, quando a situação necessitava de maior precisão, o
autor poderia falar, por exemplo, da sétima hora (por volta das 13h),
mencionada num milagre de Jesus relatado em João 4:49-54. Cita-
se também a undécima hora, na narração da parábola dos
trabalhadores da vinha (Mateus 20:6,9). Nesta parábola, o Senhor
faz referência às várias horas do dia claro: indiretamente, à
primeira hora (vv. 1-2), terceira hora (vv. 3,4), hora sexta (v. 5), hora
undécima (vv. 6,9), e o cair da tarde (hora duodécima — v. 8). A
seguir, veja as horas mencionadas na Bíblia, cuja equivalência com
o nosso relógio seria, aproximadamente, a seguinte:

Terça hora (a partir das 9h da manhã).


Sexta hora (a partir do meio-dia).
Nona hora (a partir das 15h).

Outras expressões de tempo podem ser vistas em Gênesis 3:8,


que relata que, “por volta da viração do dia” (i.e., à tardinha), o
Senhor Deus falou com Adão e Eva logo após ambos terem pecado.
Esse era o momento, na cultura Oriental, em que o trabalho braçal
havia terminado e as famílias se reuniam para um merecido
descanso e descontração. No entanto, o Senhor não deixou para
depois um assunto judicial tão sério.
Por outro lado, o texto de Gênesis 18:1-2 mostra que os anjos
foram à tenda de Abraão em Manre “por volta do calor do dia;
depois, o Senhor apareceu a Abraão junto aos carvalhos “no maior
calor do dia”.
Esse era exatamente o meio-dia, período em que o Sol estava a
pino, ardendo sobre as colinas da Judeia. O calor podia ser
sufocante, então esse seria o melhor momento para os
trabalhadores comerem alguma coisa e descansar um pouco de suas
atividades debaixo de uma sombra (cf. Gênesis 43:16,25; 2Samuel
4:5).
No tempo do Antigo Testamento, os judeus dividiam a noite em
três vigílias, a saber:

. Vigília da noite (Salmos 63:6) ou princípio das vigílias


(Lamentações 2:19), que ia do Sol posto até às 22h.
. Vigília média ou da meia-noite (Juízes 7:19), que principiava às
22h e prolongava-se às 2h da madrugada.
. Vigília da manhã (1Samuel 11:11), que ia desde às 2h da
madrugada até o nascer do sol.

Em tempos posteriores, a noite começou a ser dividida, segundo


o costume dos romanos, em quatro vigílias (das 6 da tarde às 6 da
manhã), de três horas cada uma (Mateus 14:25; Lucas 12:38). Em
Marcos 13:35, as quatro vigílias são designadas pelo nome especial
de cada uma.
Foi na quarta vigília da noite que o Senhor Jesus andou sobre as
águas ao encontro dos seus discípulos que estavam no barco
(Marcos 14:25). Foi no término desse horário que o Senhor, depois
de ter pernoitado na cidade de Betânia, ao dirigir-se de volta a
Jerusalém, no caminho, teve fome e encontrou uma gueira sem
frutos e a amaldiçoou a m de dar uma lição de fé aos seus
discípulos (Mateus 21:17-22). Foi também nesta vigília que o Senhor
ressuscitou dentre os mortos no primeiro dia da semana (Marcos
16:2). Veja também João 18:28.
A semana judaica, conforme o testemunho bíblico, foi
inaugurada juntamente com a criação do mundo, conforme o relato
de Gênesis 1, que diz que o mundo foi criado por Deus em seis dias, e
no sétimo descansou. Desses sete dias do ciclo semanal, apenas o
sábado tem um nome próprio (Shabat em hebraico, que signi ca
“descanso”, “cessação de atividade”). Os demais dias são designados
apenas por seu elemento numeral:

Yom ehad (ou rishon) dia 1


Yom sheni dia 2
Yom shelishi dia 3
Yom rebishi (ou revi’i) dia 4

Yom hamishi dia 5


Yom shishi dia 6

O calendário hebraico, que o povo da Bíblia usava, era solar e


lunar ao mesmo tempo, conforme o salmo 104:19 e Gênesis 1. Assim,
o calendário era dividido em doze meses de 29 ou 30 dias, e estava
baseado nas fases da lua. Tanto que a palavra hebraica usada na
Biblia para mês é chodesh, que quer dizer “lua nova”. Isso vai
ocasionar uma diferença de dias entre o ciclo lunar e o solar. Assim,
para resolver essa situação, cada período de tempo do ano judaico
recebia um mês suplementar — conhecido como “segundo Adar”
(Adar sheni), antes do mês de Nisã.
O início do ano religioso era celebrado na primavera (o 1º de
Nisã); no entanto, o ano novo civil era celebrado no outono, no mês
de Tisri. A numeração dos meses começa na primavera, com o mês
de Nisã ou Aviv, da mesma forma que na Babilônia.

N MERO DO NOME REFERÊNCIA BÍBLICA MESES SOLARES


MÊS (NOMENCLAT RA
AT AL)

1 Nisã (ou Aviv) Êxodo 12:2; 23:15; Neemias 2:1; Ester 3:7 março-abril
2 Lyar (ou Zive) 1Reis 6: abril-maio
3 Sivã Ester 8:9 maio-junho
4 Tamuz Ezequiel 8:14 junho-julho
5 Abe (ou Av) 2Reis 25:8; Números 33:38 julho-agosto
6 Elul Neemias 6:15 agosto-setembro
7 Tisri (ou Etanim) 1Reis 8:2; Levítico 23:24; Neemias 8:13, setembro-outubro
14:16
8 Heshvan (ou Bul) 1Reis 6:38 outubro-novembro

9 Quisleu (ou Kislev) Neemias 1:1 novembro-


dezembro

10 Tevete Ester 2:16 dezembro-janeiro


11 Shevat Zacarias 1:7 janeiro-fevereiro

12 Adar Ester 3:7 e 13; Ester 8:12; Esdras 6:15 fevereiro-março


(13) Adar-Sheni (ou mês suplementar
Veadar)

▶ Pesos, moedas e medidas116

▷ Medidas
I. Medidas de comprimento

A unidade principal era o cúbito ou côvado, o equivalente a


18 polegadas ou mais (45,7 centímetros).
4 dedos = a largura da mão (o dedo era o polegar, daí a
polegada, 2,54 cm, e a mão, 1/6 de côvado ou 7,6 cm).
3 larguras da mão = 1 palmo (1/2 côvado ou 22,8 cm).
2 palmos = 1 cúbito; ou côvado (a distância do cotovelo à
ponta do dedo médio, 45,7 cm).
No período greco-romano as distâncias eram medidas por
milhas (1.478 m) e estádios (185 m).
Pés romanos = a milha romana = 1.478,7 metros = a 4.851,43
pés (29,5 cm) ingleses.
8 estádios (Lucas 24:13) eram livremente calculados como
uma milha, embora teoricamente o estádio fosse igual a 600
pés gregos, ou 625 romanos (onze polegadas e meia ou 29,5
cm), que vinha a ser o comprimento da pista de corridas em
Olímpia.

II. Medidas de área ou superfície


O acre (jeira) é a tradução da palavra hebraica semed, jugo, e de
maanah, sulco, 1Samuel 14:14; Isaías 5:10 (a jeira, ou jugo, é a área
que uma junta de bois consegue lavrar num dia). O actus romano
tinha 120 pés romanos de comprimento, e o jugerum, jugo, era um
trato de terra de dois actus de comprimento por um de largura,
menos de 2/3 de um acre. Provavelmente, o acre hebreu não era
muito diferente.
III. Medidas de capacidade
A unidade padrão era o efa (e ) para as substâncias secas, e o
bato, para os líquidos. O efa e o bato são de igual capacidade
(Ezequiel 45:11), contendo mais ou menos 8,1/4 galões e 1,2/3 pontos
ou aproximadamente 32 litros (galão americano = 3,785 litros, e o
pinto = 0,568 litros).
IV. Medidas para líquidos

12 logues (sextários) = 1 him (o logue é = a 1/72 do efa ou 0.445


mL; o him é = a 1/6 do efa ou 5,34 litros).
6 hins = 1 bato (32 litros).
10 batos = 1 ômer, ou coro (Ezequiel 45:14) (320 litros).

V. Medidas para sólidos


6 cabos = 1 módio (o cabo é 1/18 do efa ou 1 litro e 777 mL, e o
módio 10 litros e 666 mL).
3 módios, ou medidas, ou 10 ômeres, ou 1 efa (= 32 litros)
(Êxodo 16:36; Números 15:4, Septuaginta)

Alqueire
Do árabe alkail, medida equivalente ao módio dos romanos. As
citações dos Evangelhos de Mateus 5:15, Marcos 4:21 e Lucas 11:33
referem-se especialmente à vasilha com tal capacidade, que servia
para medir os cereais.
Bato
Uma medida hebreia de capacidade usada para medir líquidos
(2Reis 7:26,38; 2Crônicas 2:10; 4:5; Esdras 7:22). A décima parte de
um ômer, correspondendo em volume ao efa, uma medida de
capacidade para secos (Ezequiel 45:10,11,14). Medida padrão
equivalente em volume ao efa, ao almude e à metreta, 32 litros.
Cabo
Uma medida hebreia para sólidos, contendo, de acordo com a
tradição rabínica, um sexto de um módio ou uma centésima
octogésima parte de um ômer (1 litro e 778 mL).
Coro ou ômer
[Um montão]. Uma medida para substâncias líquidas e sólidas.
Equivale a dez batos ou efas (Ezequiel 45:11,14) ou 100 ômeres (320
litros) (Êxodo 16:36). 
Efa ou e
[Derivado talvez de uma antiga medida egípcia denominada
oiphi]. Uma medida de capacidade contendo 10 ômeres (Êxodo
16:36), e usada para artigos como farinha (Juízes 6:19) ou cevada
(Rute 2:17). Era equivalente a um bato ou uma décima parte de um
coro (Ezequiel 45:11,14), e continha uma metreta ática ou setenta e
dois sextários (logues). (Antig. 8. 2, 9; 9.4,5; e 15.9,2, onde leia-se
metretas para medimnoi)
Comerciantes desonestos às vezes possuíam um efa de
capacidade insu ciente e usavam-no para fraudar (Amós 8:5). (As
medidas efa, bato, alamude e metreta são da mesma capacidade, 32
litros) 
Him ou Hin
Uma medida líquida hebraica, contendo mais ou menos um
galão e três quartos (6 litros e 623 mL, quase 1/5 do efa) (Êxodo
29:40). 
Ômer ou Gômer ou Gomor
Uma medida para substâncias secas. Contendo a décima parte
do bato ou efa (3,2 litros) (Êxodo 16:36). 

▷ VI. Pesos e moedas


Os hebreus usavam balanças e pesos (Levítico 19:36); eles
pesavam o dinheiro como também outros produtos (Jeremias
32:10). As denominações eram: talento (círculo), mane (parte),
shekel (ou siclo) (peso), gera (grão), e beca (meio [shekel]).

20 geras = 1 Shekel (ou siclo).


60 shekeis = 1 mane.
60 manes = 1 talento.

É importante observar que a tabela para o ouro e a prata é


diferente da tabela de outros artigos, e é:

20 geras = 1 shekel.
50 shekeis = 1 mane.
60 manes = 1 talento.

Mane vem do hebreu Maneh (1Reis 10:17) ou do grego Mna


(1Macabeus 14:24; 15:18 ― livro apócrifo), que geralmente acredita-
se ser calculado com a base no talento ático, e, consequentemente,
um pouco mais que meio mane hebreu.
A libra (João12:3; 19:39) equivale à libra romana, da qual duas
metades equivaliam a um mane hebreu de ouro. A libra como uma
soma de dinheiro era equivalente a 100 dracmas, valendo mais ou
menos dólares em 2020 (Lucas 19:13).
Em peso, um shekel equipara-se a 20 geras, e um mane era 20 +
25 + 15 = 60 shekeis (Ezequiel 45:12). Essa interpretação é con rmada
pela divisão assíria e babilônica de seu mane em 60 partes. Pesos
com a denominação de mane foram descobertos em Nínive e
Babilônia, e mostram que foram usados talentos leves e pesados; o
primeiro era igual a 60,6 quilogramas, e o último exatamente uma
metade, ou seja, 30,3 quilogramas. Os manes pesados e leves
pesavam 1.010 e 505 gramas, respectivamente, e os shekeis 16,83 e
8,41 gramas.
De acordo com Josefo, o mane de ouro hebreu era igual a duas e
meia libras romanas (Antig. 14:7,1), ou 818,57 gramas e, segundo
Madden, 819,538 gramas. Parece, assim, que o mane de ouro judeu
foi calculado em 50 shekeis, que o shekel de ouro era pouco mais
leve que o shekel assírio, pesando 16,37 gramas e, de acordo com
Madden, 16,39 gramas, e que o shekel de ouro e o shekel de peso
foram planejados para serem idênticos. A diferença entre este
shekel hebreu e o shekel assírio era de aproximadamente sete
gramas (troy).
Uma comparação de 1Reis 10:17 com 2Crônicas 9:16, se o texto for
puro, indica provavelmente que um mane de ouro era calculado às
vezes por 100 shekeis leves, em vez de 50 shekeis normais.
Três mil shekeis de prata igualavam-se a um talento. Isso
transparece do fato de que metade de 603.550 shekeis, ou 301.775
shekeis do santuário equivaliam a 100 talentos e 1.775 shekeis
(Êxodo 38:25,26). Pode-se justamente concluir que o talento de
prata era contado em 60 manes de 50 shekeis cada. O shekel era
igual a 20 geras (Êxodo 30:13). O shekel de prata, contudo, era mais
leve que o shekel de ouro. O peso médio das moedas existentes de
shekel de prata são somente de 14,5565 gramas, de acordo com
Madden, 14,5668, gramas.
Ceitil ou centavo ou quadrante; asse e sestércio
Nome de certa moeda romana chamada quadrante feita de
bronze, igual à quarta parte de um asse ou ás. (O asse ou ás [as, em
latim, plural asses] era uma moeda romana de bronze e,
posteriormente, de cobre, em circulação durante a República e o
Império. Recebeu o nome da unidade de peso também chamada
asse, que era equivalente a 12 onças (unciae), isto é, uma libra
romana.)
Os gregos empregavam o mesmo nome, igual à metade de um
farthing, ou à quarta parte de um cent americano (Mateus 5:26;
Marcos 12:42). O sestércio (sestertius, em latim) era uma antiga
moeda romana. O nome provém das palavras latinas semis (“meio”)
e tres (“três”), isto é, “meio terceiro”, porque valia dois asses e meio.
Denário ou dinheiro
A tradução do grego denarion. O denário era uma moeda de
prata romana (Mateus 22:19-21), no valor de mais ou menos 17
centavos no tempo de Cristo. Era o pagamento ordinário de um
operário agrícola por um dia (Mateus 20:2,9,13). O hospedeiro do
bom samaritano recebeu dois denários para cuidar do judeu ferido,
entretanto, ele prometeu suplementar esta soma se as despesas
excedessem a isso (Lucas 10:35). Os apóstolos calcularam que seriam
precisos 200 denários para comprar pão su ciente para alimentar 5
mil pessoas (Marcos 6:37). Isso seria um denário para cada 25
pessoas, ou dois terços de um centavo para cada pessoa.
Em Apocalipse 6:6, os preços eram daqueles de muita carência que
estavam à morte.
Dracma
A dracma (em grego, δραχμή) é o nome de uma antiga unidade
monetária encontrada em muitas cidades-estados gregas e estados
sucessores, e em muitos reinos do Médio Oriente do período
helenístico. O dracma era a mais antiga moeda ainda em circulação
no mundo, até ser substituído pelo euro.
Shekel ou siclo
Um peso (unidade básica = 12 gramas) usado para os metais
(Gênesis 24:22; I Samuel 17:5,7). Em um período remoto, esta
quantidade de prata fundida era um padrão reconhecido nas
transações nanceiras (Gênesis 23:15-16). A metade de um shekel
devia ser dado por cada homem como resgate por sua vida, quando
foi feito o censo (Êxodo 30:14-15).
O valor do shekel era de aproximadamente 65 centavos. Em 141-
140 a.C., no quarto ano do sacerdócio de Simão Macabeu, Antíoco
VII, que não era ainda o rei da Síria, mas já detinha autoridade,
permitiu-lhe cunhar o dinheiro em seu próprio nome, e os siclos de
prata e os meios-siclos começam desde esse período a existir. Nas
traduções portuguesas da Bíblia, o vocábulo “siclo” corresponde a
Shekel (Êxodo 30:13; Deuteronômio 22:19 etc.).
Talento
Um peso (3 mil siclos) usado tanto para produtos ordinários
como para os metais preciosos, mas de padrão diferente nos
respectivos casos. Aparece na parábola dos talentos, em que um
senhor distribui talentos entre seus empregados, de acordo com
suas diversas habilidades, para serem postos em uso rentável
(Mateus 25:14-30). O uso gurativo da palavra talento é
provavelmente derivado de expressões como a de usar seus talentos
para o bem.

PRINCIPAIS GÊNEROS LITERÁRIOS


DA BÍBLIA

Dividem-se assim os diversos gêneros literários encontrados na


Bíblia:

Narrativo/histórico.
Legislativo.
Sapiencial.
Profético.
Cânticos.
Evangelho.
Epistolar.
Apocalíptico.

Sub-áreas dentro dos gêneros literários


Prosa.
Poesia.
Parábola.
Hipérbole.
Midrash.
Diatribe.
Alegoria.

▶ Diferenças entre profecia e


apocalipse
PROFECIA APOCALÍPTICA
É, num primeiro momento, uma É escrita e deve ser lida.
pregação oral, face a face.
Às vezes recebida em visão estática. Sempre recebida em visão estática.

É primariamente uma mensagem de É primariamente uma mensagem de conforto, paciência e


arrependimento e justiça (se o povo confiança de que Deus intervirá para livrar seu povo eleito e
eleito e seu rei não fizerem a vontade recompensá-lo no fim dos tempos.
de Deus, haverá um juízo sobre ela).
É, antes de tudo, presente, e alude a É presente, em parte, mas sua maior concentração está em usar o
circunstâncias históricas do momento hoje para apontar o mundo do amanhã, principalmente o seu
em que o profeta está falando. A trajeto linear rumo ao escaton. É uma mensagem que interessa às
iminência de um ataque, por gerações que nem existem durante os dias do vidente.
exemplo.
Não precisa de intérprete. Tem de ser interpretada por alguém (anjo, Deus, Jesus Cristo).

Trata de fatos reais, sendo que, às É toda enigmática e codificada. A realidade é escondida em
vezes, usa parábolas e gestos figuras e códigos.
simbólicos.

Expressa mais a Palavra de Deus que Expressa mais visões dos atos que as Palavras de Deus (Ex. “vi e
uma visão (Ex. “Assim diz o Senhor”). ouvi”).

Tem uma visão otimista do mundo. Tem uma visão catastrófica do mundo. É dualista e só acredita
Diz que se o povo for fiel, as bênçãos numa restauração escatológica.
existentes neste planeta serão
derramadas sobre eles sem medida.
116 Baseado no Novo Dicionário da Bíblia de John Davis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se você chegou até aqui e está lendo essas palavras conclusivas,


certamente o fez por um dentre dois motivos: porque leu todo o
conteúdo ou porque saltou direto para esta parte nal. Se a última
opção for a verdadeira, convido gentilmente que você volte os olhos
ao miolo do livro, pois tem muita informação interessante lá
dentro. E, se chegou até aqui porque leu tudo, certamente
entenderá minha vontade contida de querer dizer mais coisas.
Quando João terminou de escrever o seu evangelho, anotou que
ainda havia muita coisa sobre Jesus que ele queria contar e não
pôde. Também falou de forma poeticamente hiperbólica que se
tudo o que pudesse ser dito de Jesus fosse, de fato, escrito, nem
mesmo o mundo inteiro seria capaz de conter os livros que se
escreveriam (João 21:25).
Não sou nem de perto comparável a João. Ele andou
literalmente com Jesus e era inspirado, eu não. Contudo, tenho
minha relação espiritual com Deus e, como João, sinto-me um
discípulo apaixonado por Cristo. Por isso, ouso concluir com o
mesmo sentimento de “frustração editorial” dele. Não sei se escrevi
tudo que poderia ser dito sobre a Bíblia Sagrada. Mas de uma coisa
tenho certeza: se o que as Escrituras dizem for verdade — e estou
certo de que são ―, minha humilde contribuição poderá ser uma
luz para despertar pessoas para a Bíblia Sagrada. Seja para conhecê-
la, seja para se aprofundar nela.
Compare tudo que escrevi até aqui como um menino apontando
para o pôr do sol no horizonte. Sua atitude singela não tem outro
objetivo senão que os demais olhem para o espetáculo do sol.
Enquanto todos comentam maravilhados sobre a beleza daquele
momento vespertino, ele pega sua bicicleta e volta para casa na
certeza do dever cumprido. Certeza, aliás, que dura até o dia
seguinte, quando ele volta para o mesmo lugar, encontra outras
pessoas e, de novo, aponta para o sol no horizonte. Ele não quer ser
visto, não é para o seu dedo que deseja que todos olhem, é para o
astro-rei com seus raios de beleza descendo atrás dos montes.
É assim que me sinto, como esse menino. Não foi meu objetivo
iluminar a Bíblia com meu livro. Isso seria tão estúpido quanto
clarear o sol à luz de uma vela. O que z foi apenas apontar para ela,
e se você olhou para o horizonte bíblico com sentimentos de êxtase
e emoção, então posso dormir em paz. Cumpri meu objetivo, pelo
menos por hoje, até que amanhã eu encontre novas pessoas que
também precisam ver a luz.
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