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DOUKHAN
Segredos
De
Daniel
1
Sabedoria e Sonhos de Um Príncipe Judeu no
Exílio
2
Segredos de Daniel
Sabedoria e Sonhos de Um Príncipe Judeu no Exílio
Jacques B. Doukhan
3
Versão utilizada para os textos bíblicos:
João Ferreira de Almeida Atualizada, do site
www.BibleGateway.com
4
Conteúdo
Prólogo
5
6
Prólogo
A pequena aldeia do Iraque estava tumultuada com as
pessoas dirigindo insultos e maldições de um lado para o outro do
Rio Touster1. As mulheres lamentavam e praguejavam. Os homens
afiavam suas facas. As crianças tremiam. Na eminência de um
novo conflito no Oriente Médio, o problema não era a questão de
petróleo ou judeus versus árabes, mas uma velha tradição em
relação ao caixão de Daniel.
Uma crença antiga considerava os ossos do profeta como
um presságio de boa sorte. Observando que os habitantes da
margem onde estavam enterrados os ossos do profeta eram
prósperos e felizes, enquanto que do outro lado eles eram infelizes
e pobres, esses naturalmente pensaram em transferir o túmulo para
o seu lado do rio. O conflito estava para eclodir quando, depois de
muita discussão, um compromisso decidiu o assunto: os moradores
moveriam o caixão cada ano de um lado. A prática durou muitos
anos até a visita do Rei Sagarschah. Ele pensou que o freqüente
desenterrar desonrava a memória do profeta. Sob sua supervisão os
moradores fixaram o caixão no meio de uma ponte da mesma
distância de cada lado do rio. Daniel ficou então para todos.
Esta história, como foi contada por um viajante2 do século
doze, faz eco desde então. Um pequeno documento de 12
capítulos, perdido entre as dobras da Bíblia antiga é o único
remanescente do antigo profeta, o livro de Daniel contem uma
mensagem universal que transcende denominações e culturas. O
livro de Daniel interessa a todos nós.
O judaísmo já reconheceu Daniel, de acordo com o
testemunho de Flavius Josephus, como “um dos grandes profetas”,
que “ele não só profetizava habitualmente coisas futuras, como
faziam outros profetas, mas também fixou o tempo no qual isso
aconteceria.”3
Referências ao livro de Daniel aparecem na literatura inter
testamental (100-200 A.E.C.)4 e nas legendas do tempo,5 como sua
influência na comunidade de Qumram 6 todos testemunham a
mesma veneração.
7
O Talmude admira Daniel como alguém que pesaria mais
que “todos os homens sábios de outras nações.”7 O Midrash
considera Daniel e Jacó como os dois únicos recebedores da
revelação de Deus para o tempo do fim.8 De acordo com outro
Midrash, Deus descobriu a Daniel o destino de Israel e a data do
último julgamento.9 Apesar de algumas reservas resultando na
polêmica judeu-cristã, as profecias de Daniel permanecem o objeto
de intenso estudo da parte dos estudiosos judeus. O grande
Maimonides as aplicou a Roma, Grécia, Pérsia, Islam, e até ao
cristianismo.10 Renomados estudiosos tais como o exegeta Rashi, o
cabeça da comunidade Saadia Gaon, o poeta e filósofo
Nachmanides, o político Abravanel, e o humanista Loeb (Maharal)
todos ponderaram o livro de Daniel e tentaram derivar dele a data
da chegada do Messias.11 Mais recentemente, no século vinte, o
filósofo Franz Rosenzweig não hesitou em estabelecer uma ligação
entre a história do mundo e a profecia de Daniel. 12 Abraham
Heschel citou Daniel como o profeta em espera,13 e André Neher
qualificou-o como o “profeta da oração.” Para Elie Wiesel, o livro
de Daniel contem a flor da esperança.14
A tradição cristã lembra Daniel como um profeta de
referência. Foi muitas vezes baseado no livro de Daniel que os
primeiros cristãos apresentaram sua argumentação e testemunho.
O livro atraiu o interesse de filósofos cristãos tais como Hipólito,
Jerônimo, e até Tomás de Aquino.15 Mais tarde a Reforma
produziu uma inundação de comentários e estudos do livro de
Daniel. De acordo com Lutero, trabalhando então em sua tradução
das Escrituras, o livro de Daniel merecia ser publicado primeiro 16
Depois se tornou o tema central das mais brilhantes conferências
de Calvino.17 Durante o movimento de renovação religiosa do
século dezenove, o livro de Daniel inspirou expectativas
messiânicas.18 Hoje o livro de Daniel é de novo o objeto do
ressurgimento de estudos.19
Até o Islam tem tido interesse no livro de Daniel. A
tradição islâmica tem retido muito dos episódios da vida de
Daniyal, de outra forma conhecido como o “grande juízo e vitória”
(Daniel na corte de Nabucodonosor, na cova do leões, loucura de
Nabucodonosor, a festa de Nabucodonosor, etc.). Mas até aqui, o
Islam lembra Daniel especialmente como um profeta que prediz o
futuro e o fim do mundo. O Coorão refere-se às profecias de
8
Daniel através do sonho de Dhul Quarnain (os dois chifres),
provavelmente baseado na visão de Daniel 8. Na idade média os
muçulmanos conceberam horóscopos populares (Malhamat
Daniyal) cuja autoridade eles atribuíram a Daniel. O Islam
também associa as profecias de Daniel com a memória do grande
Califa Omar,20 Mais recentemente, o movimento Baha’i,
emergindo do Shiismo Iraniano, justifica sua existência baseada na
profecia de Daniel. Estudiosos do Bahaí acreditam que o décimo
segundo Bab ou Mahdi, que é esperado no Islam iraniano como
restaurador de uma era de paz e justiça, já veio em 1844 de nossa
era (1260 da hegira de Mohammed). Eles baseiam sua conclusão
na profecia de Daniel de 1260 dias.21
Entre as tradições religiosas, filósofos como Spinoza,
psicólogos como Jung, e cientistas como Newton tem prestado
atenção especial a Daniel,22 e o livro tem sempre inspirado o poeta
e o artista. Da paráfrase vazia do drama litúrgico da Idade Média
até as composições elaboradas da Darius Milhaud, e as melodias
roucas de Louis Armstrong, o tema de Daniel tem tomado
múltiplas formas: tragicomédias do século dezessete, a cantata, e
jazz do século vinte.23 Pintores tem desenhos inspirados nele.
Michelangelo, Rembrandt, Rubens, Delacroix,24 entre outros, tem
criado obras primas que não apenas pintam as extraordinárias
cenas de milagre, mas também desafiam o desenvolvimento do
ciclo profético. Realmente, o livro de Daniel não pertence
exclusivamente à tradição religiosa, mas também à herança
secular. De fato, podemos perceber o caráter universal do livro de
Daniel dentro de seu próprio trabalho.
Incontestavelmente, o livro de Daniel é primeiro e
principalmente um livro religioso. Contudo, sua profundidade
espiritual parece estar próxima de sua fantástica e deslumbrante
visão e milagres apocalípticos. Na realidade, a estrutura do livro de
Daniel aproxima o sensacional da cadência da oração diária. O
livro menciona sete orações. Algumas são mais implícitas através
do tradicional gesto de prostrar-se voltado para Jerusalém. Outras
são explícitas e enunciadas. Profundas e com beleza de
movimentos, elas estão sempre enraizadas no evento histórico da
experiência humana. A mais longa das orações aparece no capítulo
9, precisamente entre duas profecias: uma concernente aos 70 anos
de Jeremias, que anuncia o retorno de Israel do exílio; a outra, de
9
70 semanas, que fala de restauração de Jerusalém e da salvação do
mundo. Este entrelaçamento de oração com evento histórico é
típico do conceito bíblico do espiritual. Na bíblia, encontrando o
divino não implica separação do real. Ao contrário, as duas
experiências estão inter-relacionadas. A história repousa nas mãos
da oração.
E por que ela está encarnada, a espiritualidade de Daniel é
humana. O livro se apresenta em poesia, empregando artifícios
poéticos tais como paralelismo, ecos, jogo de palavras e ritmo. O
leitor precisará reconhecer tais artifícios de modo a alcançar o
sentido sutil das palavras. Portanto neste livro, beleza é verdade,
ainda que isso não implique que verdade racional e filosófica seja
secundária. De fato, o livro de Daniel apela ao nosso raciocínio e
inteligência. Um livro de sabedoria - ele contém os mais profundos
raciocínios sobre história, Deus, ética e existência. O cânon hebreu
inseriu o livro de Daniel entre os livros da Sabedoria. Ele
apresenta o próprio Daniel como um homem sábio (Dan 1:20;
2:13). Isto é, ele é o homem capacitado em entendimento. O livro
apresenta a verdade como algo a ser entendido.
Significativamente, o verbo “para entender” é uma das palavras
chave no livro de Daniel. Daniel tenta “entender” (ver Dan. 9:13).
O anjo faz Daniel “entender” a visão (ver Dan. 8:17; 9:22, 23).
Acontece também que Daniel fica “sem entender” (ver Dan 8:27).
Finalmente, o livro urge com as pessoas de Deus para “entender e
trazer outros ao entendimento” (ver Dan. 11:32, 33). Figuras
matemáticas permeiam a profecia de Daniel, uma rara ocorrência
na Bíblia. A predição de um evento segue com rigor o pensamento
científico. André Lacocque estava certo em declarar que “uma das
mais importantes contribuições do livro de Daniel é sua insistência
notável na ligação da fé com o conhecimento.”25 Tal “ênfase” na
inteligência pode parecer paradoxal no contexto de revelação,
como a fé muitas vezes parece oposta a inteligência. O livro de
Daniel nos ensina que inteligência e raciocínio são pré-requisitos.
Ainda que se apresente como um desafio à inteligência porque
suas palavras permanecem “seladas” (Dan 12:4, 9).
Alem da linguagem tradicional hebraica, Daniel emprega o
aramaico (Dan 2:4 a 7:28), a linguagem internacional daquela
época, assim como algumas palavras derivando de Babilônia
antiga (Akkadian), persa e até grego. Esta multiplicidade de
10
línguas no livro de Daniel é um exemplo único de uma mensagem
que vai além dos limites de Israel e se oferece à inteligência das
nações.
O caráter universal do livro também aparece no próprio
conteúdo. É um trabalho religioso que fala no nome de Deus e
revela a visão do acima, assim como um trabalho histórico que se
refere ao passado, presente e futuro. Além disso, ele é um livro de
orações vindo através de um homem que treme ante seu Criador;
um livro de poesia que mostra a beleza sem preço de suas canções.
Também ele é um trabalho de sabedoria e enigmas que provoca e
estimula o raciocínio e a inteligência. A pessoa religiosa, a mística,
assim como o cientista e filósofo, o judeu como o gentio – todos se
encontram retratados dentro desta matéria. O livro de Daniel é
universal e merece a atenção de todos.
1
Um pequeno rio a leste do Rio Tigre (anteriormente o Choasps)
2
Ver A.Asher, The Itinerary of Benjamin of Tudele (em hebraico) (Londres:
1840-1841), Vol. I, pp.152-154.
3
Josephus Antiquities of the Jews 10.266,267.
4
Ver Esdras 12:11, o livro de Enoque (83-90), the Sibylline oracles (4:388-
400), I Macabeus (1:54; 2:59ff.), the Testaments of the twelve Patriarchs, Jubilees, o
Apocalipse de Baruch, etc.
5
Ver especialmente as paginas inseridas na Bíblia Septuaginta (a oração de
Azarias, o hino dos três jovens, a história de Suzana, e o episódio de Bel e o Dragão). A
igreja católica manteve estes textos gregos (Deutero-canônicos), ausentes na Bíblia
Hebraica, mas não pelas igrejas da Reforma, que se referem a eles como Apócrifos.
6
O livro de Daniel foi indubitavelmente um favorito dos sect. de Qumran.
Arqueologistas tem recuperado muitos manuscritos, alguns contendo quase todos os
capítulos do livro, e um importante número de passagens (do capítulo 1, 5, 7, 8, 10 e 11)
aparece em duplicata. (ver A. Dupont-Sommer, The Essene Writing From Qumran, trans.
G. Vermes (Gloucester, Mass.: 1973); E. Ulich, “Daniel Manuscripts From Qumran, part
1: Preliminary Editions of 4QDan (b) and 4QDan (c),” Bulletin of the American Schools
of Oriental Research 268 (1987): 3-16; “Daniel Manuscripts From Qumran, part 2:
Preliminary Editions of 4QDan (b) and 4QDan (c),” Bulletin of the American Schools of
Oriental Research 274 (1989): 3-26.
7
Babylonian Talmud Yoma 77a.
8
Midrash Choher Tov 31.7.
9
Midrash Rabbah Genesis 98.2.
10
Iggert Teman IV, V.
11
Para referências a estes autores, ver Dan Cohn-Sherbok, The Jewish Messiah
(Edimburgh: 1997).pp. 119, 129.
12
Ver Franz Rosenzweig, The Star of Redemption, trans. William W. Hallo
(New York:1970), p.336.
13
Abraham J. Heschel, Israel: An Echo of Eternity (New York: 1969), p.97
11
14
Sobre o livro de Daniel, Elie Wiesel escreve: “Eu amo ler e lê-lo de novo. Por
cause de sua beleza? Por causa de seu perigo? De fato, é impossível decifrar seus
segredos, mas pelo menos nós sabemos que ele tem um segredo – este conhecimento
ajuda-nos ir alem do comum e rejeitar vulgaridade. Este conhecimento habilita-nos a dar
um nome à esperança que precede a própria criação. (Sages and Dreamers [New York:
1991], p. 114).
15
Para referencia destes autores, ver James A. Motgomery, A Critical and
Exegetical Commentary on the Book of Daniel (New York: 1927), pp. 107, 108.
16
Vorrede “uber den Propheten Daniel, 1530, rev. 1541 (Deutsche Bibel,
1960). P. 13.
17
John Calvin, Commentaries on the Book of the Prophet Daniel, trans. Thomas
Myers (Grand Rapids: 1948), vol 1.
18
Ver Henri Destoche, The Sociology of Hope, trans. Carol Martin-Sperry
(London/Boston/Henley: 1979)
19
Ver André Lacocque, The Book of Daniel, trans. David Pellauer (Atlanta:
1979); a bibliografia massiva em John E. Goldingay, World Biblical Commentary,
Daniel, vol. 30 (Dallas: 1989), pp.XXI-XXIV, XLI-LIII; e A S. van der Woude, ed., The
Book of Daniel in the Light of New Findings (Leuven: 1993).
20
Ver G. Vajda, “Dãniyãl,” em The Encyclopedia of Islam, new ed., ed.
B.Lews, Ch. Pellat and J. Schacht (Leiden: 1965), p. 112.
21
Ver Shogui Effendi, God Passes By, com uma introdução de George
Townshend (Wilmette, III.: 1970), pp. 57, 58.
22
Baruch Spinoza, Tractus Theologico-Politicus, trans. Sammuel Shirley
(Leiden/New York/Kobenhavn/Köln: 1989), p. 189; C.G. Jung, Dreams, trans. R. F. Hull
(Princeton: 1974), p. 37; Isaac Newton, Observation Upon the Prophecies of Daniel and
the Apocaplypse of St. John (Londres: 1733).
23
Um “Daniel Drama” composto no século doze por Hilarius, discipulo de
Abelard (Paris: Bibl. Nat. 11331, vol 12-16) e no século treze pelos Beauvais Cathedral
School (Londres, Brit. Mus. Egerton 2615, vol 95-108); Darius Milhaud, Les Miracles de
la foi, 1951; o Negro Spiritual “Shadrac,” composto em 1931 por Mac Gimsey (best-
seller record, 1938, por Louis Armstrong e sua orquestra); o German play Der Siegende
Hofmann Daniel, 1671; Vachel Lindsay, The Daniel Jazz, passado para música por Louis
Gruemberg em 1923.
24
Uma pintura Daniel entre os afrescos da Capela Sixtina no Vaticano (1508-
1512) – um selo disso apareceu em 1961; Vision of Daniel (1625), no museu nacional de
Berlim; Daniel and the Lions (1618) National Galery of Art, Washington, D.C.; Daniel
dans la fosse aux lions (1849), no Burbon Palace em Paris.
25
Lacocque, p. 191.
Capítulo 1
12
INTRODUÇÃO
A VITÓRIA DE BABILONIA
13
teu coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas de Deus
exaltarei o meu trono; e no monte da congregação me assentarei,
nas extremidades do norte; subirei acima das alturas das nuvens, e
serei semelhante ao Altíssimo” (Isa 14:4-14; cf Jer. 50:17-40; Eze
31).
Por trás da confrontação entre Babilônia e Jerusalém o
profeta vê um conflito de outra dimensão. Devemos ler o livro de
Daniel então com esta perspectiva em mente.
18
autor do livro de Daniel, assim como o próprios portadores dos
nomes, expressam resistência a aquilo que estava acontecendo.
Mas a determinação deles ultrapassa palavras e se estende
curiosamente para a dieta. O texto usa o mesmo verbo hebraico,
Sam para se referir à resolução de Daniel (“resolveu”, verso 8) e a
dar os novos nomes (“deu”, verso 7) pelo chefe dos eunucos.
Através destes ecos, o autor tenciona mostrar que Daniel estava
respondendo diretamente à tentativa do rei de forçá-lo à cultura
babilônica. Para preservar sua identidade, o exilado escolhe comer
e beber diferentemente. Ele pede vegetais e água.
Além de fazer uma “escolha saudável”, a preocupação é
essencialmente religiosa, alguma coisa já apontada no texto pelo
desejo de Daniel em “não se contaminar” (ver verso 8) –
linguagem religiosa encontrada no contexto levítico de alimentos
proibidos (Lev. 11). Daniel partilha a mesma preocupação de
qualquer judeu no exílio: alimento kosher. Ainda há mais aqui. A
frase que Daniel usa para designar o cardápio que ele deseja ter é
uma citação literal do texto da Criação. As mesmas palavras
hebraicas aparecem com a mesma associação: “vegetais,”5 “dar,”
“para comer” (ver Gên. 1:29). Reformulando a mesma expressão,
Daniel afirma que seu Deus é o Criador e não o rei. Assim sua
motivação é a mesma daquela implicada na lei levítica de kosher:
sua fé no Criador. De fato, as leis dietéticas de carnes limpas e
imundas também aparecem no livro de Levíticos de modo a
lembrar ao leitor o evento da Criação em Gênesis 1. 6 Porque
Daniel não tinha controle sobre seus recursos alimentares, então
sabiamente ele escolhe ser vegetariano, o modo mais seguro de se
manter kosher e também o mais explícito testemunho de sua fé no
Deus da Criação. Agindo assim, Daniel fala a linguagem mais
universal designada para atingir os gentios que o observam à mesa:
seu Deus é o Deus da Criação, portanto, também seu Deus.
Mas, além da sua preocupação testemunhada e seu desejo
de permanecer fiel, o comportamento de Daniel contem uma lição
importante em relação a muitas vezes ignorada conexão fé e
existência. Sua religião não se limita na crença espiritual ou a
abstrações, mas implica também ao nível concreto da existência.
Daniel nos ensina que fé envolve tanto alma como vida do corpo.
Que religião em si se preocupa com o comer pode desconcertar
tendências influenciadas pelo dualismo Platonista. Isso continua
19
apesar e tudo, uma preocupação bíblica. O primeiro teste humano
enfrentado envolveu o aspecto dietético. Adão e Eva determinaram
seu destino e conseqüentemente o da humanidade na base de uma
simples escolha de comida (Gên. 3). Depois, as leis levíticas de
carnes limpas e impuras desenvolveram este mesmo princípio ao
estabelecer uma ligação entre alimento e santidade. (Lev. 11:44,
45) Sacerdotes abstinham-se de bebidas alcoólicas para melhor
distinguir o que era sagrado e o que não era. (Lev. 10:8-11). No
deserto os israelitas aprenderam a mesma lição. Da chuva de
codornizes à queda do Maná, tais eventos tiveram um aspecto
religioso. Daniel não foi inovador. Sua preocupação religiosa com
a dieta tinha suas raízes na tradição bíblica.
Deve-se, portanto, observar que Daniel permanece
profundamente humano. Ele não é um asceta – longe disso. De
fato, os jovens hebreus são formosos e suas faces não mostram
desânimo, como o oficial real pensou que eles se tornariam (Dan.
1:10). Levou apenas 10 dias7 para fornecer a prova de que evitar
carne e vinho não impede ninguém de gozar a vida. Devemos
também notar o comportamento de Daniel em relação ao oficial
real. Suas convicções religiosas e seu ideal de santidade não o
tornam arrogante. Pelo contrário, Daniel se aproxima de seu
superior com humildade e pede “permissão” (verso 8). E até
mantém com ele um relacionamento de amizade e respeito (verso
9). Sua atitude contém uma importante lição para todos aqueles
obcecados por um desejo de santidade. A santidade não exclui a
humanidade, mas especialmente implica nela. Se envolver num
manto engomado de justiça não é santidade, nem o é a separação
da realidade ou da alegria da vida. Esta é uma idéia distorcida de
santidade há muito advogada pelos melancólicos e emagrecidos
“santos”. Ignorando bom alimento e alegria, eles tem tornado a
religião, intolerável para o restante de nós. Em reação a isso
movimentos humanísticos de toda sorte tem se levantado com seus
slogans de amor e fraternidade. Santos melancólicos tem tornado a
lei de Deus suspeita. Abraham Heschel declara que o segredo de
uma vida religiosa está em ser “santo e humano” 8. Daniel é uma
companhia agradável que se diverte com a realidade da vida
enquanto que ao mesmo tempo recusa se comprometer.
IV – A Libertação (Dan. 1:17-21)
20
E finalmente Deus intervém. Até então Ele parecia ausente.
O texto finalmente mencionou Deus no contexto do cativeiro. A
conclusão também menciona Deus, mas desta vez em um senso
positivo. Na introdução Deus tem “dado” os utensílios do Templo
ao rei. Agora Ele “dá” aos quatro jovens, ciência, inteligência e
sabedoria (verso 17). O uso de mesmo verbo (ntn) destaca a
simetria das duas situações e recorda ao leitor da existência da
providência. A noção de Deus emoldura o capítulo, aludindo à Sua
implícita presença e à Sua direção no curso dos eventos. É Ele
quem “dá”. Se os cativos hebreus se desenvolveram como eles
fizeram, não é um resultado direto de treino intensivo, mas o
resultado da graça do alto. Alguém, de qualquer forma, pode ser
tentado a extrair do texto uma relação de causa e efeito entre os 10
dias e seu estado resultando de seu bem-estar. A passagem repete o
número 10 como se o tamanho da sabedoria deles fossa
proporcional a seus esforços de 10 dias. Mas este na verdade não é
o caso. Daniel não absorveu este alimento como um “remédio
milagroso”, ou usou a dieta ideal como um sentido de perfeição
espiritual, mas como um sinal de sua fé em seu Deus. De fato,
Daniel e seus companheiros, assumiram o risco, o risco da fé – e
isso foi o que os salvou. À saúde e graça física Deus adicionou
sabedoria, inteligência e ciência. Eles reconheceram tudo como um
presente divino.
Para suplementar a lição de graça, o texto joga alguma luz
na natureza humana em si. Dimensões espirituais vão passo a
passo com qualidades intelectuais e físicas. O ser humano, de
acordo com Daniel, não é uma combinação de alma e corpo, mas
deve ser considerado como um todo, outro pensamento
revolucionário. A sociedade muitas vezes julga a pessoa de fé
como intelectualmente fraco, e que ciência não se acomoda
facilmente com explicações bíblicas simplistas. Por outro lado nós
muitas vezes esperamos saúde e beleza entre pessoas de menor
capacidade intelectual. Dificilmente alguém imagina um homem
de músculos bem torneados, tendo pensamentos profundos ou
envolvido em meditação espiritual. De qualquer forma Daniel nos
ensina que inteligência e desenvolvimento físico não se
confrontam. A reunião harmoniosa de todas as faculdades é um
ideal que devemos procurar. Não que agora devemos nos tornar
obcecado pela perfeição e nos unir a alguma elite, mas que nos
21
devemos dar alguma atenção a todas as dimensões do ser humano.
Graça toca a vida total. Não somos sós o resultado de nossas
ações, mas particularmente o produto de um presente, uma graça
de Deus. Deus encontra os cativos hebreus onde eles estão e dá-
lhes felicidade e sucesso no âmago de sua miséria.
Mas, a ação de Deus não para aqui. Além do atual exílio,
Deus prepara para eles a salvação tanta de dimensões históricas
como de repercussão cósmica. A conclusão do primeiro capítulo
alude a isso através da menção de Ciro, o rei associado na Bíblia
com o retorno do exílio e salvação de Israel (II Cron. 36:21-23), e
a resposta divina às orações previsões proféticas (Isa. 45:1-13).
ESTRUTURA DE DANIEL 1
A B
B1
X A1
22
1
Estudiosos tem estabelecido a data não só baseados na cronologia bíblica,
mas também de acordo com o ciclo astronômico mencionado pelas crônicas babilônicas
que dataram os reinados dos reis, de acordo com eclipses da lua e conjunções dos
planetas.
2
A lista de pedidos indica que os jovens tinham entre 16 e 18 anos de idade.
Alem disso, as Escrituras usam o mesmo termo yeled, de José, que tinha em torno de 18
anos quando foi deportado (Gen. 37:2, 30; ver também 39:21-23).
3
Ver Antiquities 10. 1866; ver também Talmud b. Sanhedrin 93b.
4
A palavra saris, traduzida por muitas versões como “eunuco” (Ver the New
King James Version; ver também a Septuaginta), indica que a pessoa passou por
castração. O sentido original da palavra provavelmente ocorreu na conotação mais
original de um governante oficial. Parece, contudo, que eles foram assim, eunucos no
sentido original do termo, como sugerido pela descrição Assíria da vida na corte que
retrata tais oficiais como sem barba.
5
O termo hebraico usado aqui para “vegetais” deriva de zera, significando
semente e implicando tudo que cresce na superfície da terra, incluindo grãos, frutas e
verduras.
6
O texto de Levíticos 11 como ele registra estas leis, usa a mesma técnica da
palavra e expressão estilística (bestas da terra, animais rastejantes, segundo sua espécie,
etc). Alem disso, a relação de animais segue a mesma seqüência como em Genesis 1:24-
26 (o sexto dia da Criação). Depois da criação dos animais da terra (Lev. 11:2-8; cf. Gen.
1:24,25), a criação do homem é relatada sucessivamente àquela das águas e dos animais
(Lev. 11:9-12; cf. Gen. 1:26), daquela dos animais do ar (Lev. 11:13-23; cf. Gen. 1:26), e
daquela dos animais da terra, incluindo repteis (Lev. 11:24-43; cf. Gen. 1:26),
Finalmente, em Levíticos 11, como Genesis 1:24-26, o relacionamento entre humanos e
animais tem sua reprodução no relacionam,entre humanos e Deus. Genesis 1:26 associa a
responsabilidade da dominação sobre os animais com o fato de Deus ter criado o homem
à Sua imagem. Do mesmo modo Levíticos 11 liga a responsabilidade de distinguir entre
as carnes limpas e as imundas com o fato de que a santidade humana reflete a santidade
divina: “Sede santo, porque Eu sou santo” (Lev. 11:44, 45).
7
Na Bíblia o número 10 simboliza uma quantidade mínima de alguma coisa
(Gen. 18:32;Amós 5:3; 6:9). Nós devemos também adicionar que Hebreu representa 10
pela menor letra do alfabeto, yod . Num contexto temporal, ele simboliza um instante do
tempo no qual nós encontramos a nos mesmos colocados em teste. Uma contagem
regressiva de 10 dias existe entre a Festa das Trombetas e o Dia da Expiação, servindo de
um tempo de preparação e teste.
8
Abraham Heschel, God in Search of Man (New York: 1955), p. 238.
23
Capítulo 2
O GIGANTE E A MONTANHA
24
O rei babilônico lembra ter sonhado alguma coisa e percebe
sua importância, mas ele esqueceu o conteúdo. Aqui está um
paradoxo bizarro. Sem dúvida, se Nabucodonosor não pode se
lembrar o conteúdo, como ele pode perceber sua importância? Pelo
fato de o sonho ter se repetido diversas vezes. A palavra “sonhos”
aparece no plural (verso 1). Esta ocorrência do mesmo sonho é
estranha e o verdadeiro fato de que ele continua esquecendo ele é
suficiente para alertar ao rei de sua extraordinária característica.
Mas ainda resta outra questão: Se Nabucodonosor sonhou diversas
vezes, e se ele entendeu sua importância, como foi que ele veio a
esquecer o sonho?
A primeira explanação que podemos aventurar é de ordem
psicológica: o rei apagou seu sonho precisamente porque ele se
sentiu impressionado por ele. Isto implica que o rei compreendeu a
mensagem divina, e que, apavorado, ele reprimiu o conteúdo da
visão para escapar de uma realidade da qual ele se sentiu
ameaçado. O próprio Daniel depois vai confirmar este primeiro
nível da explanação quando ele anuncia a Nabucodonosor que o
sonho veio ao rei “para que entendesses os pensamentos do teu
coração” (verso 30). Mas existe ainda outra razão, esta vez
pertencendo ao domínio do sobrenatural. O próprio Deus deve ter
originado a amnésia. Babilônia considerava que o fato de ter
esquecido um sonho era já um sinal de que ele era um recurso
divino: “se um homem esquece seu sonho, isto significa que seu
deus esta zangado com ele.”2 Os próprios Caldeus aludem a isso.
“Não há ninguém sobre a terra que possa cumprir a palavra do rei”
(verso 10), e eles ainda admitem: “a não ser os deuses cuja morada
não é com os homens” (verso 11). De fato, apenas uma revelação
do alto vai elucidar o sonho de seu governante. O próprio Daniel
aponta isso ao rei: “O mistério que o rei exigiu, nem sábios, nem
encantadores, nem magos, nem adivinhadores lhe podem revelar,
mas há um Deus no céu, o qual revela os mistérios” (versos 27,
28). O verdadeiro fato de que o rei esqueceu o sonho oferece a
prova sua origem divina. Não é apenas uma fantasia subjetiva. O
lapso de memória do rei, assim se torna um critério de
objetividade, um teste permitindo-lhe julgar a competência do
interpretador do sonho: “portanto, dizei-me o sonho para que eu
saiba que me podeis dar a sua interpretação” (verso 9). O rei não
fornece nenhuma pista para colocá-lo no caminho certo.
25
Nabucodonosor não está satisfeito com a simples suposição dos
astrólogos. Ele quer saber a única explicação possível e verdadeira
de seu sonho. A verdade é também única e específica. Em
comparação com a revelação, todas as outras reivindicações da
verdade são então “palavras mentirosas e perversas (verso 9) um
sentido de “ganhar tempo” (verso 8). Nabucodonosor entendeu
isso, e num instante de lucidez, repentinamente percebe que os
profetas estavam enganando-o. A angústia do rei então se torna em
ira. Realmente, é por que o rei está com medo que ele ameaça
matar. Violência e raiva muitas vezes expressam angústia e medo.
O caráter desproporcionado de sua punição confirma tal
diagnóstico: “sereis despedaçados, e as vossas casas serão feitas
um monturo” (verso 5) Nabucodonosor não está brincando e
ninguém ousa ignorar suas ameaças. Os assírios e babilônicos
eram bem conhecidos na antiguidade por sua crueldade. Recortar o
corpo de seus inimigos e queimar suas casas era pratica comum na
Mesopotâmia antiga. Todos deviam levar a sério a ira do rei. Não
poupava ninguém. Desde que Caldeus são charlatões e mentirosos,
o rei teria todos os homens sábios executados (verso 14). Todos,
incluindo Daniel.
26
Pessoa externa a nós mesmos. Nós falamos a um Deus que vai
responder.
E, de fato, o Deus dos céus responde: “Então foi revelado o
mistério a Daniel numa visão de noite” (verso 19). O profeta
reconhece o mecanismo por trás da revelação. Ele não ganha
acesso aos segredos divinos por praticar técnicas especiais, ou por
causa de superioridade intelectual ou dons literários. “A mim me
foi revelado este mistério, não por ter eu mais sabedoria que
qualquer outro vivente” (verso 30). Daniel entende que a resposta
à oração não depende de quem está orando – a passagem também
menciona a oração de seus companheiros (verso 18) – ou do valor
da pessoa.
O processo para isso tem uma orientação sobe-desce, tanto
como uma desce-sobe. Aqui está a principal diferença entre a
oração de Daniel e a magia dos Caldeus. Para os Caldeus tudo
ocorre embaixo, no nível técnico, assim a insistência deles em
saber o conteúdo do sonho. Acesso ao reino divino é inconcebível
para eles, pois a morada os deuses “não é com a carne mortal”
(verso 11). Daniel, por outro lado, não precisa dos dados do sonho
para elucidá-lo, pois seu Deus “revela mistérios” (verso 28). É
interessante notar que a expressão “Deus do céu” é a frase chave
através do livro e geralmente associada com a palavra “segredo”.
Mas os Caldeus entendem-na no senso negativo como segredos
revelados na esfera divina enquanto Daniel faz aproximação dele
num senso positivo como segredos revelados pelo Deus no céu.
Cada vez que esta associação aparece, ela enfatiza o envolvimento
de Deus na história (Dan. 2:27-30, 44. 45; 4:36; 5:23, 24) O Deus
de Daniel, como oposto àquele dos Caldeus, não fica isolado ou
indiferente aos eventos humanos. Particularmente, o Deus do Céu
não apenas controla a história, mas também revela segredos. Ele é
o Deus que desce e se comunica com seu povo.
Vendo seu pedido concedido, Daniel agora passa a
agradecer. O profeta bendiz o Deus do Céu, porque “são dele a
sabedoria e a força” (Dan 2:20). Mas Daniel também bendiz a
Deus por que Ele desceu e deu daquilo que é inerente a Ele. “me
deste sabedoria e força; e agora me fizeste saber o que te
pedimos”. (verso 23; cf. verso 21). Este eco dos atributos divinos
que Deus dá como presente à humanidade lembra-nos da
dependência de Daniel de Deus. Ao dar graças, Daniel reconhece
27
agora que ele tem o segredo do rei, que sua oração não foi em vão.
Mas a revelação é também uma graça de Deus, algo concedido
independentemente dos esforços de Daniel. Na realidade o favor
divino afinal não teve em vista ele. Embora a revelação do
significado do sonho salvasse a vida do profeta, isso é de menor
importância e nem mesmo aparece em suas orações de
agradecimento. A resposta de Deus envolve mais que apenas o
destino do profeta. O que é importante é o destino do mundo – “o
que há de suceder nos últimos dias” (verso 28) – e a salvação do
rei – assim “se fizesse saber ao rei... para que entendesse os
pensamentos do teu coração” (verso 30). Neste sentido, a oração
de Daniel é uma verdadeira oração, pois não tem alvo pessoal mas
é oferecida em serviço para Deus, para a humanidade e para a
história. Em vez de chamar por Deus de baixo, a oração é
oferecida para Deus que Seu desejo possa ser feito. É
essencialmente um profundo anseio pelo reino de Deus. Por trás do
desejo de conhecer o segredo do rei permanece uma profunda
saudade pelo reino de Deus aqui na terra. Assim podemos entender
o sonho profético de Nabucodonosor anunciando o reino de Deus
como uma resposta direta à oração de Daniel.
1.A Estátua
A cabeça de outro. Nabucodonosor não precisou da ajuda
de Daniel para entender que a cabeça de ouro representava seu
próprio reinado. Esta relação dos metais em ordem decrescente da
cabeça aos dedos dos pés e os eventos sucessivos descritos no
processo destrutivo da pedra, dá a dica de numa progressão
cronológica. Foi então possível ao rei deduzir que a cabeça
representava o primeiro estagio, especialmente por que a palavra
“cabeça” em hebraico e em aramaico significa “começo” ou
“primeiro”. Além disso, ouro era o metal mais popular na
Babilônia. Depois de sua chegada na Babilônia, o historiador
grego Heródoto não pode senão ficar maravilhado pelo uso
abundante de ouro na construção de templos e do palácio. Paredes,
estátuas e outros objetos de ouro testemunharam do esplendor e
gloria de Babilônia (Heródoto 1. 181, 183; 3.1-7). O profeta
Jeremias comparou Babilônia a uma taça de ouro (Jer. 51:7), uma
interpretação que agora Daniel aprimora: “Tu, ó rei, és rei dos reis,
a quem o Deus do céu tem dado o reino, o poder, a força e a gloria;
em cuja mão ele entregou os filhos dos homens, onde quer que
habitem, os animais do campo e as aves do céu, e te fez reinar
sobre todos eles; tu és a cabeça de ouro” (Dan 2:37, 39).
O título de “rei dos reis” e o domínio dado sobre todas as
coisas vivas indicam a superioridade da Babilônia sobre os outros
reinos. “Rei dos reis” foi, é claro, também o título oficial do rei na
29
corte de Babilônia, e Ezequiel 26:7 especificamente aplica-o a
Nabucodonosor. O império chamou os reis babilônicos por esse
nome (em acadio: shar sharrani, “rei dos reis”) por que eles
controlavam os principados regionais e seus respectivos régulos.
Mas na boca de Daniel o título implica mais que realeza local. Seu
lugar na cabeça de ouro estabelece Nabucodonosor como
governador supremo da época. Além disso, o fato de que Deus lhe
deu domínio sobre todo ser vivo lembra a responsabilidade de
Adão dita com a mesma linguagem em Genesis 1:28. A passagem
aqui identifica Nabucodonosor com o primeiro homem; por
semelhança a Adão, ele é rei sobre a terra e como Adão, ele inicia
a história. Ao mesmo tempo, porém, a visão lembra a
Nabucodonosor sua dependência de Deus. O poder que ele possui
implica a responsabilidade de administrar e proteger, mas é algo
apenas como um presente e não inerente a ele. A despeito da
intoxicação de poder ele deve lembrar isto, para que não se
esqueça sua própria limitação e siga nas pegadas da antiga Babel
(Gen. 11:1-9). A profecia envolve mais que a pessoa de
Nabucodonosor. A palavra “rei” muitas vezes nas escrituras serve
de sinônimo de “reinado”: “depois de ti se levantará outro reino”
(Dan. 2:39; ver também verso 44; Dan.7:17). A “cabeça de ouro”,
o primeiro reino, representa então o reino da Babilônia do começo
com Nabucodonosor em 605 AEC até sua queda em 539 AEC.
O peito e braços de prata. Depois de Babilônia vem outro
império, inferior ao seu predecessor, como a visão implicitamente
indica através do valor inferior da prata, e Daniel também
explicitamente diz: “Outro reino se levantará, inferior ao teu”
(Dan. 2:39). O reinado sucessor foi dos Medos e Persas. Mas a
visão não alude somente ao reinado Persa, como alguns
comentaristas têm sugerido, por que o reinado persa foi
contemporâneo com o reinado de Babilônia e não seu sucessor. De
fato, o reinado dos Medos caiu sob o domínio Persa depois de uma
batalha entre Ciro da Pérsia e Astyages, rei dos Medos, em 550
AEC. Além disso, Ciro era da dinastia da Media, sendo através da
linhagem de sua mãe, neto do Rei Astyages, a quem ele destronou
e venceu. De acordo com Heródoto (1206), Tomyris, rainha de
Massagetae, se refere a Ciro como “Rei dos Medos”. Diante desse
background histórico, entende-se melhor por que as Escrituras se
referem ao reinado como aquele dos “Medos e Persas”. Daniel usa
30
a mesma expressão muitas vezes para descrever o reinado seguinte
a Babilônia. (Dan. 5:28; 6:8; 8:20) Um século depois o livro de
Ester confirma isso (Ester 1:3). Apesar de sua larga abrangência
geográfica, o reinado dos Medos e Persas foi culturalmente
inferior a Babilônia. De fato, conquistadores Medos e Persas
adotaram a civilização Babilônica, de longe, a mais complexa e
avançada até então.
A referência à prata alude à maior característica do
próximo reino. Persas usavam prata em seu sistema de taxação. De
acordo com Heródoto (3. 89-95), os sátrapas tinham que pagar o
tributo imposto sobre eles com prata. Somente os maiores sátrapas
tributários da Índia tinham que pagar seus tributos em ouro. E até
eles, as autoridades avaliavam em termos de prata. Claramente o
valor do padrão monetário para os persas daquele tempo era a
prata. Em um nível amplo, a prata serviu como uma característica
para este reino no qual isso fez alusão à sua prosperidade,
prosperidade que garantiu aos reis persas seu poder (Dan. 11.2) De
fato, a história relembra-os como os “ricos e poderosos” da época,
como Heródoto testemunha sobre Dario como “alguém tirando
vantagem de tudo” (Heródoto 3. 89). A supremacia do reinado
Medo-Persa durou de 539 AEC, a queda de Babilônia, até 331
AEC, a derrota do último rei persa, Dario III, pelo exército greco-
macedônico.
O ventre e coxas de bronze. O bronze sustenta o próximo
reino. Ele simboliza o poder conquistador da Grécia. O metal era
uma especialidade grega. O profeta Ezequiel se refere ao bronze
como o principal meio de câmbio os gregos (Eze. 27:13)5. O
exército grego empregava especialmente o bronze em suas
armaduras, capacetes, escudos, e até em suas armas. Somos
informados de que quando o Faraó egípcio Psammetic, o Primeiro,
consultou o oráculo de Laton perguntando por um meio para se
vingar de seu adversário persa, a resposta foi que “vingança viria
do mar nas mãos de homens de bronze”. O monarca egípcio
recebeu a resposta com algum ceticismo até o aparecimento, em
uma manhã, de um exército grego arruinado, em sua armadura de
bronze polido, nas terras egípcias. Vendo neles o cumprimento do
oráculo o rei Psammetic se aliou a eles contra seus inimigos
(Heródoto 2, 153, 154).
31
Além da conotação de decadência depois de seguir o ouro e
a prata, o bronze também implicou a idéia de conquista. A
armadura de bronze dos soldados gregos contrastou agudamente
com o tecido simples das roupas usadas pelos soldados medos e
persas (Heródoto 7. 61, 62).
Agora entendemos melhor a implicação por trás deste reino
de bronze que “terá domínio sobre toda terra” (Dan. 2:39). A
História confirma a profecia divina. Abrangendo a Fenícia,
Palestina e Egito, o exército de Alexandre o Grande, estendeu as
fronteiras do reino da Grécia tão distante como a Índia e a Pérsia.
Alexandre não só tomou o título de “Rei da Pérsia” como o
sucessor dos reis medos-persas, mas estabeleceu-se como
dominador do mundo. E não foi só no cenário militar. A cultura
grega agora floresceu até os mais remotos cantos do império.
Cientes de que um império tão vasto poderia facilmente se
desintegrar, Alexandre pensou em ganhar a confiança de seus
habitantes pela assimilação de seus soldados entre a população
nativa, até encorajando casamentos. Ele deu o exemplo casando
com uma princesa persa. Daí em diante a língua e a cultura grega
se espalhou por todo lugar e, ainda influencia a civilização em
nossos dias. A hegemonia grega duraria de 331 AEC, data da
vitória de Alexandre contra os persas, até 168 AEC, quando Roma
dominou a Macedônia. O império o anexou em 142 AEC.
As pernas de ferro. Depois da era do bronze, o sonho
profético prevê um período de ferro. O bronze foi para os gregos
como o ferro para os romanos. Poetas latinos testemunham desta
transição. Virgil descreve armaduras antigas como sendo
equipadas em bronze: “Bronze resplandece em seus escudos,
resplandece com o bronze suas espadas”6, Do mesmo modo,
Lucretius contrasta o bronze com o ferro: “O uso do bronze era
conhecido antes do ferro... Com bronze o homem cultivou o solo...
com o bronze eles provocaram a agitação da guerra”7.
Tais passagens na literatura do latim testificam de que a
transição do bronze para o ferro foi paralela àquela do império
grego para o romano. Considerando a realidade histórica, o
exército romano de fato é de ferro com espada, escudo, armadura e
capacete de ferro e particularmente seu pilum, uma lança de ferro
que poderia também servir como um dardo. Mas a explanação de
Daniel aponta mais que o material em si. O ferro também
32
simboliza “firmeza” (verso 41) e um comportamento que “quebra
todas as coisas... esmiúça” (verso 40).
A força do império romano também repousa em seus meios
de governar. Não contente só em expandir suas conquistas, até
além daquela de seus predecessores, Roma também desenvolveu
uma forma política altamente avançada. Além de ser a primeira
república da história, ela teve um sofisticado sistema
administrativo permitindo controlar, à distância, até os mais
diversos povos. Tais governos mantiveram a unidade do império e
salvaguardaram a paz do mundo, então conhecido como Pax
Romana. O poeta naturalista romano, Plínio, o Velho (EC 23-79)
descreveu-a e justamente o faz como “a infinita grandeza da paz
romana”. Durante o tempo do imperador Vespasiano, ele
acrescentou: “O poder de Roma possibilitou a unidade de Roma;
tudo deveria identificar sua contribuição em facilitar as relações
entre diferentes grupos étnicos, permitindo a eles se beneficiarem
freqüentemente da Pax Romana”8.
Com seu exército de ferro e sua garra férrea de fazer a
liderança, se entende melhor a observação do texto, de que Roma
“esmiúça e quebra tudo” (verso 40). Lembramos as vitorias
esmagadoras do exército romano; do dito histórico de Julio Cesar
“Veni, vidi, vici [“vim, vi, venci”].” Mas além destes sucessos, um
especialmente lembra o modo como Cesar tratava aqueles que
ousavam resistir. A política de represália imposta na antiga Gália
que resultou em queimar totalmente aldeias, a supressão dos
Druidas, a destruição de Cártago, e o cerco de Jerusalém são todos
eloqüentes exemplos do poder esmagador de Roma.
Longevidade também é sinal de força. O domínio romano
durou 500 anos. Mais longo de qualquer de seus predecessores.
Roma iria sucumbir então às invasões bárbaras. Odoacro, um
comandante germânico, destronou o último imperador em 476.
Os pés de ferro e barro. Julgando pelo comprimento dele
– mais que a metade da passagem (versos 41-43) - os eventos aqui
descritos parecem terem sido de primordial interesse para o
profeta. O texto não descreve este novo reinado como sendo
separado do reino de ferro que o precedeu. Particularmente, ele
ainda pertence ao quarto reino, como os sinais de ferro indicam.
Mas um novo elemento, aquele do barro, interpenetra o
velho. Esta estranha associação emprega três níveis de significado:
33
1. “Será um reino dividido” (verso 41). Aqui o
relacionamento é negativo. A associação de barro e ferro implica
divisão, um fato particularmente significante, pois ele ocorre logo
depois um período caracterizado por sua unidade. Um olhar
retrospectivo na história confirma isso. Realmente, desde a queda
de Roma a região do império anterior ainda tem que alcançar a
unidade; e se nós queremos crer no profeta, isso nunca ocorrerá.
2. “Assim por uma parte o reino será forte, e por outra será
frágil” (verso 42). A passagem recorda o ferro e barro como
entidades distintas. O ferro é para força como o barro para a
fraqueza. O reino, agora dividido, se torna uma composição
heterogênea de elementos fracos e fortes. O território do império
romano anterior é uma coleção de tanto força como fraqueza,
nações ricas e pobres.
Mas barro e ferro significam mais que “forte e fraco”. Nos
reinos precedentes, cada um dos elementos – ouro, prata, bronze e
ferro – tem uma função representativa. Neste contexto, se torna
provável que o elemento de barro deve também ter seu próprio
governo simbólico particular. Devemos notar que do metal para o
barro a transição é mais que abrupta. Até agora os metais
representaram poderes políticos. Barro representa, então, um poder
de uma natureza essencialmente diferente. Além disso, Daniel
especifica que este barro é “barro de oleiro” (verso 41 – NKJV).
As escrituras usam a imagem do barro, especialmente barro de
oleiro, no contexto da Criação: “Mas agora, ó Senhor, tu és nosso
Pai; nós somos o barro, e tu o nosso oleiro; e todos nós obra das
tuas mãos” (Isa 64:8).
Quando a Bíblia emprega a palavra “barro” é sempre
associada com a palavra “oleiro”, e sempre evoca a pessoa humana
em uma relação de dependência do Criador9. A referência ao barro
tem assim uma forte conotação religiosa. Temos boas razões de
crer que o barro na base da estátua representa um poder diferente,
de natureza religiosa, mas, de qualquer forma associada com o
poder político simbolizado pelo ferro.
Em um nível histórico, isso significa que depois da
dissolução do império romano, um novo poder se levantaria: um
poder religioso, apesar de mais ou menos próximo do poder
político de Roma. Este poder político-religioso subsistiria até hoje,
desde que o texto tem sua sobrevivência até o tempo do fim.
34
Os rabinos antigos debateram apaixonadamente a
identidade misteriosa deste poder, apesar de eles terem chegado a
um consenso nos quatro reinados. A maioria concorda que o citado
por último se refere respectivamente a Babilônia, Grécia, (Medo-)
Pérsia, e Roma. De acordo com os sábios tradicionais e com a
maioria dos comentaristas judeus, o quarto reinado (ferro e
ferro/barro) é indubitavelmente Roma e mais precisamente seu
associado, Edom. Na tradição judaica, Edom representa o inimigo
sanguinário de Israel, que ainda é seu irmão.
Não é de admirar, então, que para a maioria dos
comentaristas judeus, este estranho poder político-religioso não é
outro senão o cristianismo, a religião irmã do judaísmo. Adotada
pelo império romano, a religião órfã se tornaria depois a religião
estatal e logo oprimiria do povo judeu. De uma perspectiva
judaica, a igreja se encontra perfeitamente retratada na profecia. O
comentário ArtScroll sobre Daniel resumiu esta perspectiva:
“De acordo com comentaristas, Roma, na visão celestial
(7:8) vista por Daniel e explicada pelo anjo, passa por uma
metamorfose do poder secular do velho império, para o poder
religioso do cristianismo. O impotente órfão, adotado pelo
poderoso império, originalmente pelo imperador Constantino e
depois por seus sucessores, cresceu para aproveitar sua posição
exclusiva como religião estatal do grande império e levada a um
período de crescimento sem precedente. Seu poder, se temporal ou
espiritual, eclipsa aquele dos reinados e impérios. Assim durante
nosso exílio, o quarto reino é representado pela igreja cristã,
concebido como uma unidade a despeito de suas diversas
formas”10.
3. “misturar-se-ão” (Dan. 2:43). O relacionamento agora é
positivo, aludindo a tentativa de aliança entre dois elementos.
Então, “nos dias desses reis, o Deus do céu suscitará um reino”
(verso 44).
Também este período é o único na visão durante o qual
alguma ação acontece. Até agora, a explicação inspirada focaliza
em um estado de coisa ou uma qualidade: “dividido” (verso 41),
“forte” e “fraco” (verso 42, TEV). Enquanto que as duas
características descrevem um estado que dura até o fim, a ação
agora descrita acontece no fim dos tempos.
35
Pela primeira vez, a palavra está no plural e designa
diversos “reis” (verso 44). Antes, o reino tinha sido um apesar de
sua divisão (verso 41) e de suas partes fraca e forte (verso 42). A
visão descreve um fim dos tempos agitado, apressado em concluir
alianças que nunca irão dar certo. Aqui não ajuda pensar no
episódio de Babel. Já o verso 41 alude à torre de Babel, no uso das
raízes plg (dividido). A tradição bíblica geralmente liga esta raiz,
do qual veio o nome Peleg, para o evento da torre de Babel:
“porque em seus dias foi dividida a terra”, palag (Gen. 10:25; I
Cro.1:19). A profecia de Daniel assim prevê um evento
relacionado àquele da torre de Babel. Na história do Gênesis, Deus
desceu do céu no momento em que, com medo de ser destruído, o
povo da terra se uniu para construir uma torre e dar para si um
nome (Gên. 11:4). Do mesmo modo, Deus intervém no fim dos
tempos quando os poderes do mundo, também por causa do medo
da destruição, tentam se unir por “alianças humanas”.
Se um renovado interesse por unidade não caracteriza o fim
dos tempos, ele é estranhamente relevante hoje. Jamais na história
humana tem tido tantas tentativas mundiais para unidade. É a
característica distintiva de nossas políticas modernas. Pela
primeira vez, os poderes da terra sentem a necessidade de unir ou
reunir-se, encorajando assim, alianças em todos os níveis: as
políticas como OTAN, OAU (Organization of African Unity),
ONU, etc.; coalizões econômicas tais como o Mercado Comum, a
CCE, a OPEP, etc.; e até alianças religiosas tais como movimentos
ecumênicos, e político-religiosos como as ideologias right-wing
Mas recentemente a humanidade tem estado planejando
uma aliança mais audaciosa. Indo além das simples alianças
continentais ou ideológicas, desde a queda do comunismo,
poderosos do mundo ousam sonhar com políticas globais: a Nova
Ordem Mundial.
Poderia a profecia estar se referindo ao nosso tempo?
2. A Pedra
Agora entramos na mais importante parte da visão. Ela
ocupa a maior porção do sonho do rei e parece ser o ponto em
torno do qual tudo parece convergir. É a segunda parte do sonho,
uma explanação que segue a mesma estrutura de duas partes como
a exposição (ver acima). Antes disso Daniel já tinha introduzido
36
sua explicação com uma referencia ao “Deus do céu” que dá o
domínio (Dan. 2:37). Do mesmo modo, o profeta começa esta
segunda parte com um comentário sobre o “Deus do Céu” que
agora estabelece um reino (verso 44). Este paralelo no nível
introdutório, implicitamente contrasta as duas partes do sonho. Na
primeira parte, os reinos são dados à humanidade, enquanto na
segunda parte, o “Deus do céu” estabelece o reino e ele fica sob
seu controle. De fato, o segundo reino não é nada parecido com o
primeiro, opondo-se a ele em todos os níveis.
O material. Não podemos contrastar a unidade da pedra
com a diversidade dos metais da estátua. A segunda ordem
(descrita no segundo parte do sonho) compreende apenas um
reino, enquanto que o primeiro consistia de muitos. As Escrituras
usam a figura da pedra no contexto de uma aliança feita com Deus:
para construir o altar (Êxo. 20:24), o monumento (Deu. 27:4), e o
Templo (I Rei 6:7), e como uma tábua para gravar os
mandamentos da aliança entre Deus e Israel (Exo., 24:12). Isto
explica o mandamento proibindo o uso de ferramentas na pedra
(Exo. 20:25), pois ele poderia facilmente degenerar na fabricação
de um ídolo (Lev. 26:1). A pedra em sua forma bruta, como um
material para construção, veio a simbolizar a dimensão divina, e
por extensão o próprio Deus e o Messias (Sal. 118:22; Isa.28:16;
Zac. 3:9 e Atos 4:11).
Por outro lado, a descrição bíblica muitas vezes associa
metais com a manufatura de ídolos e implica uma religião de
inspiração humana. O livro de Daniel sempre relaciona metais com
atos de idolatria, especialmente aqueles da formação de estátuas
(Dan. 3:5; 5:4, 23). A pedra simboliza o reino de Deus, enquanto
que metais representam reinos humanos. Assim como o barro,
supostamente se refere à dimensão religiosa, mas nesta associação
ferro ele perde suas prerrogativas bíblicas e toma a forma de atos
de idolatria.
Suas origens. A intrusão da pedra cortada “sem auxilio de
mãos” (Dan: 2:34, 35), contrasta com caráter estático de metais. O
reino da pedra é diferente dos reinos da estátua. Este foi o Deus do
céu que estabeleceu (verso 44). Ele é do alto. Em sua explanação,
Daniel vê a pedra como uma “montanha” (verso 45). Pensamento
babilônico lembrou “a montanha” como o domicilio dos grandes
deuses, especialmente Enlil, a deidade suprema que morava nos
37
céus. De acordo com crenças babilônicas, esta montanha tocava o
céu e sustentava a pesada residência do deus supremo. Para
Nabucodonosor, a alusão a uma “grande montanha” (verso 35) é
então muito clara: a pedra, “cortada da montanha” (verso 45) e
atirada dos céus, representa um reino de origem divina. Para o
profeta hebreu, a montanha simboliza Sion ou Jerusalém (Dan.
9:16, 20; 11:45) e por extensão a residência celestial. As escrituras
freqüentemente descrevem a montanha de Sião, ou Jerusalém por
essa razão, como sendo nos céus. A linguagem do Salmo 48:2
alude à montanha de Sião como situada no cume mais alto
(literalmente: “nas extremidades de Zaphon”) (Isa 14:13).
Além disso, a palavra aramaica tur, ou montanha, é
equivalente a palavra hebraica tsur , “rocha”. A Bíblia muitas
vezes a usa para simbolizar o próprio Deus . A pedra é cortada da
rocha e conseqüentemente não tem só de origem divina, mas de
natureza divina. Os dois motivos – “rocha” (tsur) e “pedra” (eben)
– são sinônimos e representam Deus (Isa. 8:14).
Sua natureza. A visão opõe a pedra contra a estátua ao ser
jogada contra a segunda. O verbo “ferir” empregado em Daniel
2:35 sugere uma luta, um confronto entre as duas ordens. O reino
estabelecido por Deus não é um desdobramento dos reinos
humanos. Todos os reinos humanos foram “esmiuçados” (verso
35), destruídos e completamente consumidos (verso 44), “sem
deixar nenhum vestígio” O novo reino nada tem a ver com seus
predecessores, até o barro sendo destruído juntamente com o ferro
(versos 35, 45).
A diferença essencial está no fato dele vir de outro lugar: a
pedra cortada da montanha altera (muda) de volta, sua missão
consumada, a uma “grande montanha” (verso 35). A coincidência
entre a origem e o resultado (conseqüência) implicitamente
testemunha da divina natureza do reino. Nada resta da antiga
ordem.
Finalmente, o novo reino “não será jamais destruído”
(verso 44). Os reinos da terra foram temporários, e todos
finalmente desmoronaram. O reino final, por outro lado, durará
para sempre. O eterno vence o efêmero. Nós podemos apreciar o
contraste entre as duas ordens até em um nível regional. Gigante
como eram eles, a estátua foi definhada pela montanha que
“encheu toda a terra” (verso 35). O infinito sobrepujou o finito.
38
O reino celestial se estende sobre toda a terra e permanece
para sempre. Nossa mente racional acha difícil de imaginar tais
coisas. Nós mesmos nos encontramos tentados a seguir numerosos
teólogos e filósofos e “desmistificar” a visão. O reino do céu toma
então proporções mais que razoáveis de uma igreja, um povo, os
próprios esclarecidos, e assim por diante.
A tradição judaica vê o reino final como representando
todas as esperanças de Israel. Não pode ser humano, mas deve ser
o reino do Messias. Rashi e Ibn Exra, seguindo antigas
interpretações judaicas, lembraram isso como aquele do “Rei
Messias”, malkut melech hamashiah.11 Dessa forma Tanhuma,
comentando sobre “estavas vendo isso” (verso 34), explica: “Reish
Laquis disse: ‘é o rei Messias’”12. No verso 35 Pirkey Eliezer
identifica o “Rei || Messias, que no futuro, vai governar o mundo
de um canto a outro.”13
O argumento de Daniel para Nabucodonosor de que “fiel é
sua interpretação” está no fato de que o “sonho é verdadeiro”
(verso 45). O vav liga as duas cláusulas, uma conjunção de
coordenação que também funciona como uma conjunção de
conseqüência. Devemos entender as últimas palavras de Daniel
como sendo “o sonho é verdadeiro”, então “fiel é sua
interpretação”. A evidência acena para fé. O rei entende a lição e
extrai para si seu significado.
Oração por transferência. Oração é a única reação
possível. “então o rei Nabucodonosor caiu com o rosto em terra...”
(verso 46). Esta é a segunda oração no livro de Daniel. O rei
ainda não ousa dirigir-se ao Deus do céu, uma deidade muito
distante, muito estranha, talvez muito perturbadora para ele. Em
vez disso, o rei leva sua postura de oração para os pés de Daniel.
Isso não significa necessariamente que o rei confundiu Daniel por
seu Deus e que ele pretende adorá-lo. Do mesmo modo, de acordo
com o testemunho de Flavius Josephus, Alexandre, o Grande, se
prostra no chão perante o sacerdote de Jerusalém, dizendo: “Não
foi perante ele que eu me prostrei, mas do Deus que ele tem a
honra de ser sacerdote.”14. Além disso, Nabucodonosor claramente
reconhece a soberania de Deus: “vosso Deus é o Deus dos deuses”
(verso 47). Em fazendo assim, parece que ele se submete ao “Rei
dos reis” (verso 47). Mas ninguém se deixe enganar pela
eloqüência repentina. As expressões usadas são totalmente
39
ambíguas. “Rei dos reis” foi de fato, outro nome de Marduk, a
deidade babilônica da realeza, e para Nabu, um nome nascido do
próprio rei, “filho de Marduk”. A confissão do Rei é no mínimo
duvidosa. O rei babilônico ainda não entendeu que Deus é. Ele fala
do Deus de Daniel, mas ele acena para seu próprio deus: “Seu
Deus, Daniel, é meu; o poder você o tem do meu deus, meu pai.”
O rei ainda não mudou. Seu ato de adoração é ambíguo.
Eis por que não encontramos um final feliz. O rei não se
submete aos esperados passos de arrependimento, mas ao contrário
volta-se para Daniel. O rei babilônico transfere da
responsabilidade vertical para com o próprio Deus para uma
horizontal voltada para Daniel. Nabucodonosor percebe o mérito
de Daniel, mas sua apreciação para aí. A religião de
Nabucodonosor não vai além da pessoa humana de Daniel.
Sua oração está contaminada com o orgulho de um homem
que prefere sua própria religião e escolhe seu próprio ídolo sobre a
verdade de Deus. É mais fácil se prostrar perante uma estátua ou
até um ser humano do que perante um Deus invisível. A evidência
dada por Daniel não teve seu efeito completo. Nabucodonosor
agora crê que Deus existe, mas ele ainda não o adora. Ele prefere
evitar um relacionamento com este imprevisível Deus do futuro. O
plano de Deus para Nabucodonosor assim falhou.
Não é difícil reconhecer a plausibilidade histórica da
profecia de Daniel. Facilmente podemos identificar os reinos da
Babilônia, dos Medos e Pérsias, Grécia e Roma, etc. E podemos
até estar convencidos de que Deus enviou o sonho e levou
Nabucodonosor a admitir que é Ele o “revelador de mistérios”
(verso 47). Mas quando chega aos eventos além da história, tais
como o nebuloso reino de Deus, nós preferiríamos permanecer
céticos.
E ainda a total raison d’être do sonho profético foi
convencer-nos da historicidade dos últimos eventos, incluindo
aqueles concernentes ao reino de Deus. O sonho de
Nabucodonosor teria se restringido apenas a este último e
aparentemente mais importante reino. Mas, ao contrário, ele
prefere vaguear através da História, permitindo-nos ver passo a
passo a validade da profecia. Nenhum dos reinos da estátua é
muito importante – eles servem apenas como ponto de referência
levando à ultima profecia referente ao reino de Deus. Eles também
40
agem como marcadores cronológicos, situando no tempo o reino
vindouro de Deus. Os quatro reinos da estátua nos ensinam duas
coisas sobre o reino de Deus: primeiro, é real e vai realmente
manifestar-se na história, exatamente como os reinos humanos
fizeram. Segundo, os dados da profecia nos levam à conclusão que
estamos no tempo do fim, próximo de seu aparecimento. Como
Nabucodonosor, baseamos nossa crença naquilo que já temos
visto. O recado da história nos desperta e fortalece nossa fé no
Deus do futuro.
ESTRUTURA DE DANIEL II
A B
B1
X A1
41
a) três diálogos a) três ações do rei p/ Daniel
(Daniel→ Arioque → rei → (prostrado, respondido,
Daniel) promovido)
b) explicação do sonho por Daniel
I. A exposição
1. “na visão olhaste,”
verso 31 (imagem)
2. “estavas vendo isto,”
verso 34
(pedra → montanha)
II. A Interpretação
1.”O Deus do céu lhe tem
dado um reino,”
verso 37 (imagem)
2.”o Deus do céu
suscita um reino” verso
44 (montanha → pedra)
1
O segundo ano de Nabucodonosor (Dan. 2:1) corresponde, de fato, ao terceiro
ano de seu reinado. Muitas vezes os antigos omitiam o ano de sucessão ao trono,
portanto, o mesmo evento tem datas diferentes de acordo com o sistema usado (ver, por
exemplo, II Reis 8:25 e 9:29; ver também Dan. 11:1 E Jer. 28:1).
2
Ver A. Leo Oppenheim, Le rêve, son interpretation dans Le Proche-Orient
ancien (Paris, 1959).
3
André J. Festugière, La Révélation d’HermèsTrismégiste (Paris:1959) vol. 1,
pp. 92, 93.
4
Ver os oráculos da Pérsia e da Babilônia em James B. Pritchard, Ed. The
Ancient Near East. Supplementary Texts and Pictures Relating to the Old Testamen
(Princeton: 1969), pp.606, 607; ver também o poeta grego Hesiod do século oitavo AEC
(Works and Days 109-180), e até o poeta latino Ovid (metamorphoses 1. 89-414).
5
O texto hebraico fala de Yavan, a palavra hebraica para “Grecia”. A palavra
originalmente significa “pombo” e provavelmente aludia aos pombos-correio criados nas
ilhas gregas .De lá o termo veio a designar os habitantes daquelas ilhas. (Felix M. Abeil,
Geographie de La Palestine [Paris: 1967], pp. 259, 260). Também, a palavra “Ionian”,
“Ionia” (do Ion, nome de um dos filhos de Helen), deriva do hebraico Yavan.
6
Virgil Aeneid 7. 742, 743.
7
Lucretious De Retrum Natura 5. 1286-1294.
8
André Alba, Rome et Le Moyen Age jusqu’en 1328 (Paris: 1964), p. 126.
9
Isa. 29-16; 41:25; 45:9; Jer. 18:2; 19:1; Lam. 4:2; Rom. 9:21.
42
10
Nosson Scherman e Meir Zlotowitz, etc. Daniel ArtScroll Tanach Series
(Brooklyn: Mesorah Pubns. 1979), p. 105.
11
Miqraoth Gdoloth.
12
Tanhuma Exo. 25:3, 4
14 Rabbi Eliezer, Pirkê de Rabbi Eliezer, trans. Gerald Friedlander (New York:
1971, p. 83.
15 Antiquities 11. 333.
43
Capítulo 3
PASSOS NA FORNALHA
I. A Complexa Babel.
44
Esta usurpação pelo rei da Babilônia lembra ao leitor
aquela da antiga cidade de Babel. O uso comum da palavra bigah
no inicio de ambas as passagens (Gen. 11:1; conf. Dan. 3:1) já
sugere a ligação entre as duas. A torre, como a estátua, e edificada
“na planície,” evocando a vasta visão desta região2 - o espaço
necessário para a multidão se reunir lá para juntos adorarem.
O mais provável é que ambos os eventos ocorreram no
mesmo lugar. Definitivamente é a mesma área geográfica. E se
tomarmos a expressão vaga da “planície de Sinar” usado em
Gênesis 11:2 (KJV) no sentido mais amplo como uma “província
de Babilônia”, pode bem ser que se aplica à planície de Dura,
também situada “na província da Babilônia” (Dan. 3:1).
Escavações arqueológicas levaram a descoberta de um sitio cujo
nome Arábico ainda ecoa sua designação antiga como Tolul Dura
(colina de Dura). Ele está localizado, cinco quilometro ao sul da
antiga Babilônia, perto do Rio Dura, que se junta ao Eufrates. As
escavações ainda descobriram uma plataforma de 5.94m de altura
com 13.8m2 de superfície que pode bem ter servido como suporte
para a estátua3.
A cerimônia para a qual Nabucodonosor chama seus
convidados, como no episódio de Babel, é religiosa. É a dedicação,
um hanukkah (versos 2,3). A Bíblia sempre usa esta palavra com
relação ao altar ou o Templo (Num. 7:10; II Cro. 7:9). A intenção
de Nabucodonosor, portanto, é clara: ele substitui o culto de sua
pessoa em lugar da adoração divina. Logo não é surpresa que todo
o cenário leva ao ritual de adoração. O mesmo gesto de prostração,
sgd, através do qual Nabucodonosor do capítulo 2 expressa sua
adoração para Deus (verso 46), o rei agora requer dos outros para
sua estátua. Nabucodonosor substituiu Deus. Tal usurpação de
Deus perfeitamente reflete a tradição orgulhosa de Babel: um
movimento de baixo que decola reclamando a gloria e
prerrogativas divinas.
O paralelo entre os dois eventos é impressionante. No
tempo de Babel “todo o mundo” ajuntou-se na planície unidos em
um ato sagrado simples (Gen. 11:1). Nabucodonosor reúne, na
mesma planície, não apenas seus oficiais, mas todos “povos,
nações e gentes de todas as línguas” (Dan. 3:4) para uni-los em
uma cerimônia sagrada em sua honra. Aqui discernimos um traço
fundamental da religião de Babel: não tolera diversidade. É a
45
mesma paixão por unidade que testemunhamos entre os
construtores de Babel: “Eia edifiquemos para nós uma cidade e
uma torre... e façamo-nos um nome” (Gen. 11:4).
Ambos os metais e as medidas da estátua evoca a
preocupação com unidade. A estátua é inteiramente de ouro. Em
reação à estátua no sonho, constituída de diversos metais, cada um
representando outro reino, Nabucodonosor molda sua estátua em
um único metal, descrevendo seu próprio reino, o ouro. Ele não
apenas rejeita a idéia de sucessão, mas também o conceito de
diferença: tudo é feito do mesmo molde.
A estátua mede 60 cúbitos de altura. Devemos entender o
número 60 aqui no seu sentido cultural. O sistema numerológico
sumério-acádio é hexagesimal, diferente do sistema egípcio que
nós adotamos. Interessantemente, o sistema hexagesimal tem
sobrevivido em nossa concepção de tempo e espaço: 60 minutos,
60 segundos, 360 graus, etc. A utilização de uma vara de medir de
seis cúbitos (aproximadamente 3 metros ou 3.3 jardas) pelo profeta
Ezequiel (Eze 40:5) indica a influência babilônica. A medida de 60
cúbitos confirma a autenticidade histórica da conta. Além disso, a
desproporção entre os 60 cúbitos de comprimento versus apenas
seis cúbitos de largura sugere uma forma lembrando mais um
obelisco que uma estátua, similar ao muitos monumentos de
antiguidade que Plínio o Velho compararia com torres.4 A altura
extrema faz eco à arrogância de um rei que procura impressionar
os recém-chegados. Mas o número 60 aponta ainda para outra
preocupação: Na simbologia numérica da Babilônia, 60 representa
a noção de unidade. Ao erguer sua estátua na altura de 60 cúbitos
Nabucodonosor procura primariamente reforçar seu desejo de
unidade – de um reino, uma religião. Podemos entender melhor
sua obsessão por unidade à luz de um recente achado arqueológico
de um tablete cuneiforme datando do nono ano de seu reino (595-
594).5 O tablete relata uma certa insurreição que ameaçou a
unidade do reino.
À luz de tais eventos depois, entendemos que o rei se sentiu
compelido a edificar sua estátua como um símbolo de unidade 6.
Como um teste para garantir a fidelidade de seus subordinados.
Trazendo para nossos dias sabemos o que tais formas de
intolerância política têm engendrado. De Luiz XIV aos ayatolás,
não se esquecendo de Hitler e Stalin, é uma constante histórica:
46
quando o ideal é a unidade, a suspeita recai sobre qualquer tipo de
diferença. Esta então deve ser eliminada. Ai daquele que não se
enquadra dentro do molde. A violência se torna resultado da
intolerância. Então, o perigo acompanha o chamado para adoração:
“E qualquer que não se prostrar, e não adorar será na mesma hora
lançado dentro duma fornalha de fogo ardente” (Dan. 3:6).
A religião descrita nestas linhas não é o resultado de uma
reflexão, de uma escolha, nem da expressão de fé ou de uma
experiência profunda. Aqui, adoramos porque algo nos força a
fazê-lo. Nós ajoelhamos, mas o coração está noutro lugar. É uma
religião de burocratas, de carneiros, uma religião automática. E de
fato, eles são protótipo do que encontramos na planície de Dura.
A passagem cita primeiramente os burocratas, a posição
dos oficiais, do mais alto ao mais baixo. Encontramos todos
presentes, relacionados pela prolongada lista de Daniel em ordem
hierárquica (verso 3). A adoração deles é uma formalidade – eles
estão lá apenas por causa de sua posição. É do maior interesse
deles mostrar algum zelo, pois sua religião é sua posição e sucesso
na pirâmide social.
Seguindo os oficiais vem a multidão. Eles são como
carneiros partilhando o mesmo balido fraco, estereotipado.
Incapazes de adorar por si mesmo eles precisam ser guiados, um
sinal de partida, como em uma típica sociedade totalitária. Tudo
está em ordem, em uma linha certa, como narrado pelo texto:
“estavam todos em pé diante da imagem” (verso 3), prontos a
levantar suas mãos, ou os punhos, qual fantoches, como sugerido
particularmente pela leitura repetitiva da lista de oficiais quando
convocados pelo rei e como eles executam suas ordens, e pelo
refrão dos instrumentos musicais. Nabucodonosor então intimou
os sátrapas, prefeitos, governadores, conselheiros, tesoureiros
juízes, magistrados e todos os outros oficiais da província para
reunir-se7 para dedicação da imagem que ele tinha levantado
(verso 2).
“Então se ajuntaram os sátrapas, os prefeitos, os
governadores, os conselheiros, os tesoureiros, os juízes, os
magistrados, e todos os oficiais das províncias, para dedicação da
estátua que o rei Nabucodonosor fizera levantar; e estavam todos
em pé diante da imagem” (verso 3).
47
“Logo que ouvirdes o som da trombeta, da flauta, da harpa,
da cítara, do saltério, da gaita de foles, e de toda a sorte de música,
prostrar-vos-ei, e adorareis a imagem de ouro que o rei
Nabucodonosor tem levantado” (verso 5).
“Portanto, no mesmo instante em que todos os povos
ouviram o som da trombeta, da flauta, da harpa, da citara, do
saltério e de toda a sorte de música, se prostraram todos os povos,
nações, e línguas, e adoraram a estátua de ouro que o rei
Nabucodonosor tinha levantado” (verso 7).
Um parágrafo longo, mas propositalmente assim, ele
destaca o caráter automático de tal adoração através da técnica de
repetição satírica. O papel representado aqui, pela música, tem
uma função significante, como o narrador menciona numerosos
instrumentos de “toda espécie”, equilibrando três instrumentos de
sopro com três instrumentos de corda, emoldurando assim a
cerimônia com o símbolo triplicado de perfeição. Tudo, no local,
está calculado. Ainda que isso possa deixar surdo, a formação pelo
menos é mantida. Uma focalização organização externa muitas
vezes procura compensar a esterilidade interna. Os
administradores estão preocupados com estruturas e políticas, de
certa forma, apontando para uma extinção de reflexão e fé. O
formalismo da religião de Babel prevalece sobre a verdade
espiritual. O papel principal da música em tal contexto é produzir a
ilusão de sentimento religioso.
Os antigos sabiam como usar a música para obter uma
experiência mística. E de fato, a música tem há muito sido
associada com o uso de drogas e práticas de mutilação para induzir
ao êxtase, ou unio mystica. Tudo permanece no nível das emoções
e do sistema nervoso. Ainda hoje, graças à mídia, podemos
testemunhar o efeito da música sobre as massas. Cantores e
músicos exercem tremendo poder sobre as multidões de fãs
adoradores. Já não temos mais necessidade da letra de música ou
uma mensagem coerente para convencer os outros. O fenômeno
tem até invadido comunidades religiosas. Em reação à frieza
cerebral dos serviços tradicionais, certas denominações têm caído
em outro extremo. Eles dão tudo mastigado e despejam a
mensagem pelo bramir continuo de música de fundo. Fieis
transportados pelo espírito, gritam e choram em delirante
entusiasmo. Tais abordagens consideram a reflexão desnecessária
48
e fora de moda. Isso apenas favorece julgamentos absolutos. Este
episódio no livro de Daniel nos admoesta contra uma religião
estritamente emocional. Emoções só podem fazer parte da
experiência religiosa quando unidas à reflexão e meditação.
Adoração deve envolver todo o ser, e negligenciar um aspecto
pode levar a se curvar perante um ídolo. Do mesmo modo, na
planície de Dura, os pregadores de Babel não gastam tempo em
demonstrações secas ou argumentos. A música basta para
despertar adoração, e seus partidários vivem estritamente no
presente. Muitas vezes a passagem explicitamente enfatiza a
dimensão do presente.
“Logo que ouvirdes e som... prostrar-vos-eis, e adorareis”
(verso 5). Tomada da emoção trazida pela música e levado pela
influência da multidão, cada pessoa cai prostrada sem um
pensamento no amanhã. É quase um reflexo automático. A
fornalha ardente fica próxima como uma ameaça imediata – um
costume, por sinal, então corrente no Oriente Médio. Ele foi
testado em Larsa, sul da Babilônia, desde o sétimo século antes da
Era Comum, e é uma penalidade iniciada pelo Código de
Hamurabi (números 25 e 110). De acordo com a tradição judaica,
Abraão enfrentou este tipo de morte quando ele recusou a
reverenciar ídolos de Ninrod.8 Uns poucos anos antes de Daniel,
Nabucodonosor queimou dois falsos profetas, Zedekias e Acabe.
Jeremias se referiu à morte pelo fogo como uma maldição (Jer.
29:21, 22) . Na verdade, tais fornalhas eram uma parte normal da
paisagem da região, sendo usadas para queimar tijolos. Escavações
arqueológicas têm revelado várias fornalhas dessas na área em
torno da Babilônia. A Escritura também associa a fornalha com a
construção da torre de Babel (Gen. 11:3).
É também provável que a fornalha ficava exatamente aos
pés da estátua. De acordo com Diodorus da Sicília, os cartagineses
tinham levantado uma estátua de bronze de seu deus diretamente
no topo da fornalha escavada embaixo da terra, para a qual havia o
costume de jogar bebês para a morte. De fato, o conceito de
fornalha não foi uma abstração vaga na mente do antigo Oriente
Médio. Os fogos queimavam com devastação fatal aquelas regiões
secas. O povo, instantaneamente, se lembraria da fornalha como
um perigo imediato. Aqui, de novo, encontramos a dimensão do
presente aludido em: “Qualquer que não se prostrar e não a adorar,
49
será na mesma hora lançado dentro duma fornalha de fogo
ardente” (Dan. 3:6). Apavorados pela proximidade do perigo, seus
pensamentos se tornaram encaixados no presente e sua obediência
procede somente do instinto de auto-preservação.
Violenta e intolerante, totalitária e mecânica, a religião de
Babel é também aquela que focaliza o presente. De qualquer
forma, funciona: todos obedecem. Todos?
50
Quanto a Daniel, sua função de governador ou “sátrapa”,
coloca-o acima dos Caldeus e ao mesmo tempo fora de seu
alcance. Sua alta posição isentava-o de tomar o juramento de
lealdade. Além disso, fica a possibilidade dele estar em outro lugar
devido a suas responsabilidades. A última palavra do capítulo 2
situa Daniel “na corte real” (verso 49). Além de sua alusão à alta
posição de Daniel (na frase “no portão”, ver Rute 4:1-12; Ester
3:2, tradição judaica tem interpretado a frase para lembrar que
Daniel, de fato, estava ausente no momento da dedicação da
estátua. Assim o Talmude tem um uso idiomático da frase para
designar um escravo que está distante de seu Senhor (Erubin
72a).De qualquer forma, se geograficamente ou em termos de sua
posição oficial, Daniel está pelo menos no momento além do
alcance dos caldeus. Além disso os caldeus preferiram ignorar os
outros judeus para intimidar o rei pelo número. A tática mais sábia
seria apresentar uma queixa razoável, limitando assim suas vítimas
aos três judeus em questão. Além do que, os três judeus foram
acusados diretamente em suas posições e conseqüentemente, o
foco de suas tramas.
III.No Fogo
Mas o rei hesita e não ordena sua execução imediata. Ele os
conhece bem. Por alguns anos agora eles tem estado ao seu
serviço. Em lugar disso, dá a eles a chance de se explicarem.
Nabucodonosor indaga se eles realmente ignoraram o decreto real.
(Dan. 3:14). Talvez as ordens tenham sido de alguma forma,
distorcidas ao longo do caminho. Talvez eles não tenham
entendido a seriedade da situação. O rei, portanto, repete palavra
por palavra a ordem para se submeter, em adoração (verso 15). A
confrontação que então segue opõe duas mentalidades religiosas
irreconciliáveis.
A religião de Nabucodonosor, aquela dos caldeus, é uma do
imediato: “Agora, pois se estais prontos quando ouvirdes... para
vos prostrardes e adorardes... mas se não a adorardes, sereis
lançados, na mesma hora, dentro duma fornalha ardente de fogo”
(verso 15). Para ele, só o presente interessa e ele nem mesmo
considera o futuro. “quem é esse deus que vos poderá livrar das
minhas mãos?” (verso 15). Por outro lado, a religião dos judeus se
centraliza essencialmente no futuro. “O nosso Deus, a quem nós
51
servimos, pode nos livrar da fornalha de fogo ardente, e ele nos
livrará da tua mão, ó rei” (verso 17). Os judeus vão além. Para o
“se” (verso 15) do rei que introduz a ameaça imediata, os judeus
ecoam com o “se” do verso 18 que levanta o risco da fé e move
além dos limites do futuro próximo. Ambos os casos empregam a
mesma expressão aramaica, hen la (se... não, de outra forma). O
contraste entre estas duas concepções de religião é impressionante.
O “se” do rei aponta para uma religião mecânica de casualidade:
“se não a adorardes... sereis lançados” (verso 15), enquanto que o
“se” dos judeus testemunham da graça e liberdade sustentada pela
religião deles: “se não, (livrar) fica sabendo, ó rei, que não
serviremos a teus deuses” (verso 18). Tal comportamento vai além
da compreensão do rei. Desenha-se para ele que os judeus se
colocaram além de sua vontade. Olhando além do imediato, eles
mantêm a esperança no futuro. Em face de falha, eles respondem
por serviço incondicional.
Aqui está a diferença entre idolatria e a religião de Israel.
Idolatria é uma religião moldada na imagem humana. Os
adoradores manipulam automaticamente o ídolo – objeto de
benção ou maldição. A religião de Israel, contudo, é uma revelação
do alto, do Deus vivo com quem nós podemos estabelecer um
relacionamento pessoal que não só implica uma troca de amor,
mas também de questões. É por isso que, até quando este Deus,
não salva, até se Ele não abençoa, o judeu pode continuar fiel
apesar de...
Nabucodonosor dá-lhes oportunidade de se defenderem,
pois ele argumenta e ameaça-os, mas não para beneficiá-los. Os
judeus, o texto nos diz, recusam responder (verso 16). O termo
aramaico “responder” também significa “não se defender”. Os
judeus opõem-se ao rei de um modo não violento que o deixa num
estado de confusão e sem saída. Para a religião de Babel,
centralizada no presente e conseqüentemente legalista, formalista e
violenta, os judeus defendem uma religião focalizada no futuro e
conseqüentemente livre, incondicional, e não violenta.
Pressionado além de seus limites, o rei perde a calma. O
texto nos diz que “se lhe mudou o aspecto do semblante” (verso
19). O aramaico literalmente diz que seu “semblante mudou”. O
rei reage com raiva e violência em resposta à serena segurança dos
judeus. Ele ordena que seus servos aqueçam a fornalha “sete vezes
52
mais” (verso 19, isto é, no seu máximo (ver Prov. 24:16; 26:16),
como se a temperatura anterior tinha sido insuficiente. Os guardas
atiraram os judeus para dentro, vestidos com toda sua roupa. As
vítimas não tiveram tempo de se prepararem psicologicamente.
Custando a vida de seus executores, como aconteceu, a
reação mostra quanto o rei está perturbado e angustiado. É como
se ele antecipasse o próximo milagre. Ele é, de fato, o primeiro a
notar o inconcebível, o primeiro a reagir. A passagem apenas tem
mencionado que os três homens tinham sido “ligados” e
“lançados” dentro da fornalha (Dan. 3:21) então o rei vê “quatro
homens soltos, que andam passeando dentro do fogo, e nenhum
dano sofrem” (verso 25). Os três judeus não só estão intocados e
livres, mas como já destacado, não sem humor, pelo texto, eles
“andam passeando” (verso 25), testemunhando de um Deus que
zomba do poder humano.
Mas quem é o misterioso quarto homem? Nabucodonosor
está mais ou menos consciente da ligação entre aquela quarta
pessoa e o milagre. Intrigado, ele contempla o ser semelhante a um
“filho dos deuses” (verso 25). Na linguagem semítica, o termo
“filho de” passa, de forma idiomática, a natureza do que é
qualificado. Neste caso, um “filho de 20 anos” significa 20 anos de
idade (Êxo. 30:14); “filho do homem”, significa pertencendo à
natureza humana (Jer. 49:18); “filho do gado” significa ter uma
natureza bovina (Num. 15:8); “filho da morte” significa de
natureza mortal (I Sam. 2:31), etc. O rei conclui que o quarto ser
tem natureza divina. Significantemente, a Septuaginta o traduz
como “anjo de Deus”, uma designação usada de novo no verso 28.
Na Bíblia Hebraica o “anjo de Deus” funciona como representante
de Deus e, algumas vezes, é identificado com o próprio Deus (ver
Gên. 16:10-13; 21:17; 22:15, 16; Ose. 12:4; Gen. 32:28, etc.). As
Escrituras dão a tais seres o título de acordo com Metzudos, “por
nós os vimos como se eles fossem parte da família Divina.” 9
Quando ele identifica a quarta figura no fogo, Nabucodonosor não
tem mais dúvidas da origem do milagre. Ele chama para fora os
três judeus, convidando-os a sair, admitindo assim sua derrota.
Humilhado, o rei entende que ele agora enfrenta um Deus
totalmente fora do comum. Ele não pode senão se lembrar de seu
sonho, e reconhecer que está se relacionando com o mesmo Deus.
A expressão pela qual ele O designa como “o Altíssimo” (Dan.
53
3:26) alude à sua confissão no capítulo 2 de “Deus dos deuses”
(Dan. 2:47).
Aqui novamente o milagre não é resultado de poder e
tecnologia humana, mas somente ação de Deus. Estamos agora
fora do mundo dos mágicos. A quarta pessoa foi necessária para o
milagre ocorrer. A salvação vem de fora, não de dentro, é a
primeira lição que podemos derivar da divina presença
manifestada na quarta pessoa. Não importa quanto rigoroso e justo
alguém seja, salvação continua sendo trabalho de um Deus que não
se prende no céu ou em uma atitude de indiferença. Por que Deus
ama. Ele escolhe descer ao nível humano. Para salvar outros do
fogo, o Deus do amor deve ele mesmo passar através dele. Por que
Ele próprio quer o nosso companheirismo, Ele caminha conosco
(Dan. 3:25), Mas Sua ação não o limita ao companheirismo. Deus
salva também. Os três judeus saíram da fornalha em chamas (verso
26).
Imediatamente a multidão se reuniu em volta deles,
querendo tocá-los, para certificar-se que eles estavam bem. “viram
que o fogo não tinha tido poder algum sobre os corpos destes
homens, nem foram chamuscados os cabelos da sua cabeça, nem
sofreram mudança os seus mantos, nem sobre eles tinha passado o
cheiro do fogo” (Dan. 27). Da cabeça aos pés, eles permaneceram
ilesos. O Deus dos judeus não parou apenas para confortá-los, nem
para assegurar-lhes sua simpatia, mas também salvou-os do fogo.
O Deus da Bíblia é primeiramente a deidade que salva. Ele
não é só o Deus de uma experiência mística, sentimental ou até
intelectual. Religião é mais que uma impressão – ela se situa além
das opiniões. Os sátrapas e todos os oficiais do rei agora entendem
que o Deus dos Judeus não é somente o Deus que desce, mas
também o Deus que tem poder sobre a morte. Os babilônicos
olharam para os três judeus como seres ressuscitados. Afinal eles
sobreviveram à morte. Por este milagre Deus se define como sendo
o Criador: “Mas agora, assim diz o Senhor que te criou, ó Jacó, e
que te formou, ó Israel:... Quando passares pelo fogo, não te
queimarás, nem a chama arderá em ti” (Isa. 43:1, 2).
Somente o criador pode salvar do fogo; somente Ele pode
transformar morte em vida. Os três judeus estão eles mesmos
impressionados, incapazes de expressar uma palavra. Mas seu
silêncio também ecoa suas últimas palavras dita antes ao rei: “não
54
necessitamos te responder sobre este negócio” (Dan. 3:16). A
resposta está no evento. Palavras são supérfluas em face da
evidência. O verdadeiro fato de que eles estão vivos e bem,
testemunha da fé deles em Deus. Esperaríamos um longo discurso
comentando e trabalhando sobre o assunto, mas os três judeus
permanecem em silêncio.
Aqui está lição poderosa para aqueles sempre ávidos para
testemunhar, pregar, vangloriar da ação de Deus em suas vidas! O
comportamento dos judeus lembra-nos que o testemunho
silencioso muitas vezes fala mais alto até do mais emocionante
testemunho. Experiências autênticas não precisam de palavras.
Onde a salvação e verdade estão envolvidas, quando trabalhamos
com o que é essencial, muitas palavras podem ser suspeitas. Seu
barulho e multiplicidade muitas vezes camuflam nosso próprio
vazio e incertezas, assim como estamos procurando convencer-nos
de uma verdade não ainda completamente entendida. É a ausência
de profundidade que gera o falar deslizante. Nós confeccionamos
frases bem torneadas que nós então desatamos quando a ocasião
permite, mas em essência, realmente não temos nada a dizer.
IV. A Vingança
Os judeus permanecem em silêncio enquanto os outros
falam por eles. Mas isso torna o testemunho mais que convincente.
O rei agora acha falsas as acusações diretas dos caldeus
contra os judeus. O mandamento (teem) do rei (verso 10) para
adorar a imagem de ouro, agora se torna o mandamento (teem)
proibindo qualquer deturpação do Deus dos judeus (verso 29).
Novamente aqui, o rei prefere evitar contato direto com a
Divindade hebraica. Apesar de ter se encontrado face a face com
Ele, Nabucodonosor age e fala como se nada tivesse acontecido.
Ele viu os quatro homens, e sua atenção se focalizou no quarto
(verso 25), ainda assim, ele chama apenas três deles para se
juntarem a ele e ignora o outro. Ele, reconhecidamente, introduz
seu discurso com o tradicional “Louvado seja Deus” (verso 28), 10
mas permanece intrinsecamente apartado do Deus do céu – ele está
apenas fazendo uma observação objetiva.
Sua teologia está correta. Nabucodonosor definiu este Deus
como um ser que salva e como a única deidade. Mas para ele, este
Deus existe e age apenas em relação aos judeus. Não é sua
55
deidade. Nem é Ele no sentido absoluto. Nós podemos sentir a
ambigüidade de Nabucodonosor e distância em suas palavras: “O
Deus de Sadraque, Mesaque e Abednego”, que “livrou seus
servos!” por que “eles confiaram nele. E frustraram a ordem do rei,
escolhendo antes entregar os seus corpos, do que servir ou adorar a
deus algum, senão o seu Deus” (verso 28). Para ele, a religião de
Israel permanece um negocio tribal. Ele interpreta a atitude dos
judeus como de coragem e resposta heróica de um povo que fixa
seus próprios princípios. Ele não considera isso como um ato de fé
no Deus universal, o único Deus verdadeiro. Nabucodonosor
admite apenas que o poder do Deus Hebreu obviamente ultrapassa
aquele das outras divindades: “porquanto não há outro deus que
possa livrar dessa maneira” (verso 29). Mas aquilo de modo
nenhum implica em um relacionamento pessoal de sua parte. É
fora de questão para ele se converter para outra religião. Alguém
pode por um instante ficar impressionado e até perturbado pela
força do argumento, ou reconhecer a unicidade e superioridade de
uma verdade, e ainda cair de volta na posição mais conveniente de
“cada um na sua própria religião”. É mais sábio então, para
alguém, ficar onde está e evitar a necessária confrontação, o
desarraigamento, e até a incerteza do crescimento e exploração
religiosa. Afinal de contas, é necessário ter muita coragem para
aplicar as lições da verdade à existência concreta atual. Todos nós
sabemos em que grau nossos pequenos hábitos de pensamento ou
de ações, ou de comidas ou bebidas, são causadores de danos, mas
isso não implica que estamos prontos para mudá-los. Tal é a
natureza humana. É mais fácil continuar se enganando, ainda que
saibamos isso, do que parar e andar de acordo com a verdade.
Quanto mais integrado em uma sociedade, mais difícil é fazê-lo.
Para os reis, os sacerdotes, aqueles possuem poder político, para os
ricos, para aqueles que têm tido sucesso – para todos aqueles que
estão confortáveis e respeitáveis em um sistema, uma tarefa assim
é quase inconcebível.
Pelo menos o rei autoriza um decreto legalizando a religião
dos judeus. De agora em diante, sob pena de morte ninguém pode
ultrajar ou deturpar o Deus Hebreu. A situação agora é revertida. O
mesmo público é intimado a adorar a imagem – “todo o povo,
nação e língua” (verso 29) – deve agora respeitar a religião dos
outros.
56
Tal decreto tem um pouco a ver com tolerância. Nem é
uma questão de respeitar as outras religiões. De fato, a única
religião mencionada é a dos judeus. O que das outras? Dado todas
as conquistas pelo exercito babilônico, nós sabemos que as mais
diversas religiões co-habitavam sob a soberania da Babilônia. O
público representa “todos os povos”. Já a religião de Israel, é a
única digna de reconhecimento, dados os recentes eventos. Na
mente do rei a religião Israelita é superior daquela dos outros, e
então, a única digna de ser mencionada. O decreto não mostra a
tolerância do rei às outras religiões, mas testemunha da descoberta
de uma verdade que o perturba – perturba-o ao ponto de se sentir
compelido a apoiar seu decreto com uma ameaça. De fato,
qualquer zelo “missionário” que aponta um dedo enraivecido e
invoca sob a “ira de Deus,” procura apenas desviar a atenção das
suas responsabilidades. É errado considerar a violência religiosa,
sempre como uma expressão de profunda convicção. Assassinato e
guerra, as torturas da Inquisição, e todas as medidas repressivas
tomadas em nome da religião são sintomas de covarde angústia
espiritual. Para compensar a falha religiosa, os fanáticos, eles
mesmo se tornam Deus e assumem o direito de matar. É o crime
de Caim, a primeira ocorrência de intolerância religiosa, que
introduziria uma interminável brutalidade na história humana.
Caim matou Abel não por causa da convicção de sua própria
verdade ou por que Abel estava errado, mas por causa de sua falha
religiosa, por que ele foi incapaz de responder a Deus.11
A B C
C1
X B1 A1
A (versos 1-7)
O rei levanta uma imagem na
província de Dura
B (versos 2-12)
Uma acusação contra os judeus
A decreto contra os judeus
C (versos 13-23)
Os judeus lançados na fornalha
Diálogo: o rei e os judeus
C1 (versos 24-27)
Os judeus salvos da fornalha
58
Diálogo: o rei e os judeus
B1 (versos 28, 29)
Uma benção em favor dos judeus
Um decreto em favor dos judeus
A1 (verso 30)
Os judeus são promovidos na província
de Babilônia
1
.Em relação a este contexto, é interessante notar uma inscrição de
Nabucodonosor (Wadi-Brisa) na qual o rei se refere a uma estátua que ele
levantou no Líbano, também simbolizando a eternidade de seu reino: “Além de
minha estátua como rei... escrevi uma anotação mencionando meu nome, ... eu
edifiquei para a posteridade... Possa minha descendência governar para
sempre” (James B. Pritchard, Ed., Ancient Near Eastern Texts Relating to the
Old Testament, 2nd Ed. [Princeton: 1955], p. 307). Obviamente não é a mesma
estátua daquela de nosso texto, mas a inscrição testemunha da afinidade do rei
com estátuas e corrobora deste modo com a narrativa bíblica.
2
.Ver André Parrot, The Tower of Babel (New York: 1955), p. 15.
3
.Oppert, Expédition Scientifique em Mésopotamie, vol. 1, pp.238ff.
4
.Plínio Natural History 34. 18.
5
.Ver William H. Shea, “Daniel 3: Extra-Biblical Texts and the
Convocation on the Plaino of Dura,” Andrews University Seminary Studies 20,
No. 1 (1982): 29-52.
6
.Tal preocupação por unidade politica explicaria a viagem de
Zedequias para Babilônia no quarto ano de seu reino, em torno de 594 AEC
(ver Jer. 51:59-64).
7
.A passagem usa a mesma palavra kush na convocação (verso 2)
assim como na execução (verso 3); nós fazemos isso pela palavra “montar”.
8
. Babilonian Talmud Pesahim 118ª; ver também Moses Alshekh am
seu comentário de Daniel (habezelet hasharon, The Rose of Sharon [Venice:
1952]).
9
.Sherman and Zlotowitz, p. 128.
10
.Cf. Gen. 14:20; I Rei 1:48; I Cro. 16:36; Esd. 7:27; Sal. 18:46;
28:6; 31:22; 66:20; etc.
11
.Ver Jacques Doukhan, “A Propos Du Crime de Cain”, Conscience
Et Liberté (1976), note 12, pp. 44-48.
59
Capítulo 4
60
Nos capítulos precedentes, Nabucodonosor apareceu
apenas para dar ordens. Agora, pela primeira vez, suas palavras
não atacam do comando. Em vez disso, elas representam um
testemunho espontâneo do que Deus tem feito para ele. Pela
primeira vez o rei está de bom humor: “pareceu-me bem...”
Nabucodonosor não fala por que ele deve, mas por que ele gosta
de fazê-lo. O cruel, vingativo governante que aprendemos a temer
se torna um poeta, rompendo em uma canção sobre o Altíssimo.
I.Sinais e Maravilhas
Seu coração, ainda está maravilhado com os milagres que
ele experimentou. Nabucodonosor deixa sua alma transbordar com
louvores. É a terceira oração do livro de Daniel. Embora
composta por um rei pagão a oração é apesar disso, exemplar e
bela. Lendo a passagem, os rabinos do Talmude exclamaram: “O
rei roubou todas as canções e louvores de David.”1
Suas primeiras palavras são um clamor, uma exclamação
repetida em um ritmo de três palavras:
“Sinais, quão grandiosos!
Maravilhas, quão poderosas!” (tradução literal da
primeira parte do verso 3).
A sintaxe da frase aramaica enfatiza cada primeira palavra
(“sinais,” “maravilhas”) para transmitir melhor a admiração do rei.
Por definição, a função dos sinais e milagres é atrair
atenção pelo seu caráter extraordinário evocando assim outra
realidade invisível à percepção humana.
Vendo tais milagres, o rei intuitivamente sente aquela
realidade. Nabucodonosor não só fica maravilhado pelo milagre –
ele também percebe, através do milagre presente, o milagre do
futuro, o reino de Deus. Para ele, o milagre não é apenas um sinal
de estar sendo abençoado e sucesso na terra, mas também uma
indicação para outro mundo, do reino por vir.
O poema aqui desenvolve em um duplo paralelismo em um
ritmo de três palavras:
“Seu reino (é) um reino eterno
Seu domínio de geração em geração” (verso 3,
tradução literal).
Esta verdade provavelmente é a mais difícil para
Nabucodonosor aceitar. Desde seu sonho da estátua, o governador
61
babilônico nunca pode admitir que seu reino era apenas a cabeça.
Como filho do deus Marduk, ele queria que seu reino fosse eterno.
Pela primeira vez, ele entende que eternidade é uma característica
só do reino de Deus. É o único reino eterno. Apesar de rei da
Babilônia, Nabucodonosor reconhece pela primeira vez a
existência de uma autoridade acima dele. E ele vai mais além,
quando ele reconhece que o domínio de Deus se estende de
“geração em geração”. Não só a presente geração, mas todas
aquelas que virão se submeterão à Sua autoridade.
Mas o milagre foi somente, um antegozo das coisas por vir.
Nabucodonosor agora anseia por mais, por outro tipo de alegria,
por outro reino. O milagre não trouxe com ele nenhuma solução
durável. Doenças e obstáculos irão de novo surgir na próxima
virada. A raison d’être dos milagres é essencialmente produzir, em
um instante de consciência, o reconhecimento daquele outro
mundo.
A oração de Nabucodonosor anseia por um reino por vir.
Nascendo do milagre, ela, como toda oração verdadeira,
testemunha do reino de Deus.
Um sonho, pela primeira vez, o fez entender como tudo é
efêmero. O terrível sonho subjugou-o na época em que ele estava
mais tranqüilo, mergulhando-o na profundidade de seu ser e de sua
existência.
68
Mas foi o orgulho que impulsionou Nabucodonosor a
assumir este trabalho. E é, através dos olhos do orgulho, que ele
contemplaria mais tarde sua criação – não apenas como disse a
Bíblia, mas também como relatado pelas inscrições cuneiformes.
Uns 50 tabletes de autoria de Nabucodonosor mesmo testemunham
de seus sentimentos. Nabucodonosor escreveu sobre seu palácio:
“construí este palácio, lugar de minha realeza sobre os poderosos
reis... palácio de alegria, de regozijo... Na Babilônia, eu edifiquei-
o, sobre o topo do antigo canal... com argamassa e tijolos eu
assegurei seus fundamentos.”8 Ou, sobre a cidade da Babilônia
como um todo: “Eu tenho construído Babilônia, a cidade santa, a
glória dos grandes deuses, mais proeminente que antes... Nenhum
rei... jamais criou, nenhum rei anterior jamais construiu, o que eu
de forma magnífica construí para Marduk.”9 A profecia tinha
predito o orgulho do rei pois ela o descreve como uma poderosa
árvore, seus galhos atingindo os céus, aspirando à divindade.
De maneira interessante, o texto relembra ao leitor a
historia de Babel. Como Nabucodonosor, os construtores da Torre
de Babel queriam “atingir os céus”. Como o rei babilônico, eles
procuraram “façamo-nos um nome” (Gen. 11:4). E do mesmo
modo, uma voz do céu interrompe o trabalho deles (versos 5-7),
alterando sua linguagem para uma fala incompreensível (verso 9).
2.O Rei Insano
Os sintomas. O rei começa a agir como um animal,
comendo, dormindo, e pensando como um boi. Paradoxalmente,
ao procurar sobrepujar outros humanos, ele caiu abaixo da
humanidade. Qualquer ambição de sucesso deve ponderar
cuidadosamente seu significado. Quando alguém atinge o topo,
que alternativa há senão mergulhar de volta?
A pequena aventura de Nabucodonosor parece que tem
outros paralelos na história antiga. Em Babilonian Job (1600-1150
AEC) nós lemos: “Como um she-nâkim ou um sûkû-demon ele fez
minha unha do dedo crescer.”10
A novela de Ahikar (sétimo século AEC) tem um dito
característico: “Eu me encurvaria sobre a terra, meu cabelo caindo
sobre meus ombros, minha barba caindo sobre meu peito, meu
corpo estava coberto de poeira, e minhas unhas eram como as da
águia.”11
69
Hoje psicólogos tem diagnosticado o comportamento de
Nabucodonosor como uma variante de paranóia e esquizofrenia. 12
Gregory Zilboorg, historiador da psiquiatria, relata diversos casos
assim entre o terceiro e sétimo séculos EC.13
Tão rara e estranha quanto a doença possa parecer, ela tem
sido uma constante através da história. Hoje praticamente isso
desapareceu nos países industrializados, onde elas são tratadas
adequadamente, mas traços dela aparecem na China, Índia e
América do Sul. Nos anos recentes diversos casos assim foram
encontrados nos hospitais de Paris e Bordeaux.14
Os sintomas são sempre os mesmos. O paciente imagina
que ele foi transformado em um lobo (licantropia), um boi
(boantropia), ou outro animal. (cão, leopardo, cobra, crocodilo), e
comporta-se como tal nos mínimos detalhes. A ilusão do paciente
é tão perfeita que afeta até o modo como ele se vê. Uma mulher de
49 anos estava convencida que sua cabeça era de totalmente de
lobo com focinho e dentes caninos. E quando ela abria sua boca
para falar ela ouviria seu rosnar e uivo como um animal.15
Se crermos no que os historiadores e psiquiatras
mencionaram acima, a “síndrome de Nabucodonosor” parece ter
verdadeiramente existido. Claro, encontramos completo silêncio
tanto quanto as crônicas oficiais babilônicas são envolvidas. Ainda
um número de recursos extra-bíblicos parecem dar apoio à história
bíblica.
Três séculos depois da morte de Nabucodonosor o
sacerdote babilônico Berosus fala-nos que “depois de quarenta e
três anos de reinar, Nabucodonosor caiu doente no local da
construção de uma muralha... e morreu”16. Esta ligação entre a
doença do rei e construção de um período de doença precedendo a
morte aponta para o caráter especial que esta doença deve ter tido.
Um historiador grego Abydenus (terceiro século AEC)
testemunha que Nabucodonosor se tornou “possuído por um deus
ou alguma coisa do tipo, escalou o terraço de seu palácio
pronunciando palavras proféticas, e desaparecendo
17
repentinamente.” . De novo encontramos diversos motivos em
comum com o texto bíblico: a localização do rei no terraço, uma
profecia, e seu inexplicável desaparecimento.
Finalmente, a descoberta recente de tabletes cuneiformes
confirma a narração bíblica. Em 1975 o assiriologista A. K.
70
Grayson publicou um texto cuneiforme, agora conservado no
Museu Britânico (BM 34113=sp213), que faz alusão à insanidade
de Nabucodonosor. Parece que por um pouco “sua vida pareceu
sem valor”, ele deu ordens contraditórias e sem sentido, e ele não
podia expressar afeição nem a seu filho ou sua filha, reconhecer
seu clã ou até participar na construção de Babilônia e de seu
templo.18
Considerando a história e diagnósticos psiquiátricos, a
história de Daniel parece possível.
O tempo. De acordo com o texto bíblico, Nabucodonosor
permaneceu em sua condição patológica por um período de “sete
tempos”. Situar a doença no tempo dá um certo grau de
historicidade. O texto localiza o evento exatamente após o rei
acabar seu projeto especial de construção na Babilônia. Diversos
elementos sugerem que devemos traduzir a palavra aramaica idan
no sentido de “anos”:
1. Significantemente a doença do rei começa exatamente
“depois de doze meses”, lembrando que alguém poderia começar a
contar em termos de períodos de 12 meses adicionais. O ano é a
unidade básica na qual devemos converter “tempos” proféticos.
2. A relação entre estes dois períodos de tempo (12 meses e
sete anos) está destacada no estilo do texto. As duas expressões
“doze meses” e “sete anos” imitam uma a outra, desde que a
expressão similar aramaica (“no fim desse tempo”, liqsath [versos
29 e 34] )introduzem ambos os termos.
3. A etimologia da palavra idan (tempo) está relacionada à
palavra od (repetir, retornar, refazer), apontando a uma repetição
do mesmo tempo, ou da mesma estação (Dan. 2:21) de cada ano
novo.
4. Daniel 7:25 define idan como sendo um ano, um
conceito que encontramos até mais explícito na passagem paralela
de Apocalipse 12:14 (ver depois esses capítulos).
5. A Septuaginta e os rabinos medievais (Rashi, Ibn Ezra,
etc.) mantêm esta interpretação baseada no sentido de “anos”.
Quando a passagem usa a palavra “tempos” em lugar de
“anos”, é para atrair nossa atenção ao número sete, símbolo do
divino. E, de fato, a doença não é de causas naturais, mas
divinamente infringida. O fim do julgamento de Nabucodonosor
71
está “selado” (Dan. 4:16, 34). Deus controla seu destino, e
ninguém pode mudá-lo.
V.Oração do Morto
Isto é, ninguém a não ser o rei pode alterar: “Eu,
Nabucodonosor, levantei ao céu meus olhos, e voltou a mim o meu
entendimento” (verso 34). Não importa quanto severo seja o caso
de lycantropia, o paciente sempre retém um fragmento de
consciência e experimenta ocasionais momentos de lucidez. Até
nas garras de uma doença mental uma pessoa permanece humana,
nunca perdendo completamente seu potencial para liberdade e
vontade livre. Os psicólogos, cientes disso, então, recusam
classificar seus pacientes sob um rótulo irrevogável de “louco”.
Em vez disso eles consideram o paciente como uma pessoa doente,
indicando que sempre existe um potencial para melhora.
Nossa passagem revela que até o mais rígido determinismo
pode ser influenciado pela liberdade humana. Até no poço da
bestialidade, alguém pode erguer os olhos e ser reunido à
humanidade. Tudo o que Nabucodonosor tinha de fazer era
levantar seus olhos para o céu (verso 34). Nabucodonosor se
tornou um animal quando ele pensou de si mesmo como um deus e
olhou para baixo, da cobertura de seu palácio real. Mas ele
readquiriu sua humanidade quando se viu ele mesmo como um
animal, e levantou os olhos da sujeira de sua morada animal. O
paradoxo é valioso, tanto no nível psicológico como teológico.
É impossível para o próprio humano se desenvolver sem
primeiro conhecer suas limitações. Qualquer um que pensar ser um
passarinho vai se atirar contra uma janela e aterrissar no pavimento
abaixo em muito más condições. Para estar habilitado a voar,
alguém precisa cultivar um conhecimento das leis da gravidade e
trabalhar em torno delas. Aqui encontramos o segredo da liberdade
e felicidade. Mas há ainda outra lição, esta vez com respeito a
salvação. Somente aquele que é capaz de ver além dele ou dela
mesmo pode ser salvo. Salvação é de fora, não de dentro. Como
Nabucodonosor, devemos levantar nossos olhos em direção ao
céu. Quando o rei descobre esta verdade no profundo de sua alma,
sua sanidade retorna com sua fé, confirmando a tradição bíblica:
“Diz o néscio em seu coração: ‘Não há Deus’” (Sal 53:1, 14:1). A
ilusão é pensar que é uma ilusão acreditar. Para Daniel, fé e razão
72
são compatíveis. Fé emerge da razão e, é a característica
fundamental da razão.
A experiência de Nabucodonosor tem implicações
universais. Além da cura do rei, nós percebemos o milagre da
ressurreição. As primeiras palavras desta seção já apontam para
isso: “ao fim dos dias” (tradução literal, verso 34). Daniel 12:13
usa as mesmas palavras em relação à ressurreição. A
“ressurreição” de Nabucodonosor, pavimenta o caminho para a
ressurreição “no fim dos dias.” O rei babilônico desperta de seu
estupor e fala. Até agora a passagem tem se referido a ele na
terceira pessoa. Tendo readquirido a consciência, ele está de novo
habilitado a falar na primeira pessoa. Suas primeiras palavras são
uma oração – a quarta oração do livro de Daniel.
Ainda coberto de sujeira, seus olhos captando os céus,
Nabucodonosor deixa seus pensamentos se alternarem do céu à
terra e da terra ao céu. Isso dá à sua oração uma estrutura
particular.
Recuperada sua sanidade, o primeiro movimento de
Nabucodonosor é para o céu. Das três emoções de sua alma (“eu
bendisse... eu louvei e glorifiquei”) ele paraleliza três atributos de
Deus (Ele vive para sempre, Ele domina para sempre, Ele reina
para sempre) (verso 34). As três referências à eternidade de Deus
fazem eco às três expressões de adoração por Nabucodonosor.
Tudo começa com o reconhecimento da eternidade de Deus, de
Sua existência, de Seu domínio, e de Seu reino.
O ressuscitado vai da morte para vida. Ligando-se de volta
à existência, ele está para sempre impressionado com a noção da
eternidade de Deus. Sua oração é então aquela de adoração,
focalizada totalmente em Deus. Nabucodonosor expressa seu
agradecimento (ele louva a Deus), seu temor (ele honra a Deus), e
sua admiração (ele glorifica a Deus). Como ele emerge da
insanidade, Nabucodonosor não vê nada senão Deus.
Repentinamente ele se torna ciente de que deve tudo a Ele. Sem
Deus ele não é nada.
É a primeira lição que ele aprende sobre seu retorno. “e
todos os moradores da terra são reputados em nada” (verso 35). O
texto original usa duas palavras: hshb, que significa “avaliar,”
“contar,” e la, que significa “vazio,” “nada,” ou o advérbio de
73
negação, “não.” Perto de Deus, os habitantes da terra parecem
como “nada.”
Salvação então é possível apenas através do milagre da
criação. Nabucodonosor claramente alude à criação na associação
clássica de “céu e terra” com a “ação” e a “mão” de Deus (verso
35). Na mão de Deus os exércitos do céu assim como os habitantes
da terra são ineficazes. “Não há quem lhe possa deter a mão, nem
lhe dizer: que fazes?” É uma expressão que a Bíblia usa no
contexto da criação.
“Ai daquele que contende com o seu Criador! o caco entre
outros cacos de barro! Porventura dirá o barro ao que o formou:
Que fazes? Ou dirá a tua obra: Não tens mãos?” (Isa. 45:9).
“Ele é sábio de coração e poderoso em forças.. Ele dá
ordens ao sol... o que sela as estrelas; o que sozinho estende os
céus, e anda sobre as ondas do mar; o que fez a Ursa ... Quem lhe
dirá: Que é que fazes?” (Jó 9:4-12).
Nabucodonosor tomou o milagre da criação para se tornar
completo. Ele tinha perdido tudo, inclusive sua própria identidade.
Agora ele recebe tudo de volta: “voltou a mim o meu
entendimento... minha majestade e o meu resplendor” (Dan. 4:36).
A palavra tub (“retornou,” “restaurou”) aparece três vezes na
passagem, uma vez no verso 34, duas vezes no verso 36. Ele se
tornou até mais próspero: “fui restabelecido no meu reino, e foi-me
acrescentada excelente grandeza” (verso 36). Neste sentido,
podemos comparar a experiência do rei com a ressurreição. Os
ressuscitados se levantarão para a vida, vindo da sepultura em um
estado melhor e mais glorioso que antes (Ver I Cor. 15:35-50).
É do alto de seu sucesso que o rei pronuncia as últimas
palavras de sua oração, as quais são também suas últimas palavras
no livro de Daniel. A oração termina como ela começou. A mesma
estrutura triplicada apóia os atributos divinos assim como a
emanação (expansão) de sua alma: “Eu, Nabucodonosor, louvo, e
exalço e glorifico ao Rei do céu” (Dan. 4:37). Como oposto ao
satisfeito e prospero “Eu Nabucodonosor” do verso 4, este “Eu,
Nabucodonosor” é totalmente focalizado no céu. O novo rei pode
agora ver além dele mesmo em direção a Deus. O quadro de amor
a Deus digno de louvor, de honra e gloria agora é completado com
a dimensão de justiça: “Todas as suas obras são retas, e os seus
caminhos justos, e ele pode humilhar aos que andam na soberba”.
74
Nabucodonosor se livrou de seu infantil orgulho. Ele amadureceu
para a humildade. O que os outros aprendem em uma vida inteira,
Nabucodonosor entendeu num tempo de sete anos. Tendo
experimentado a precariedade da vida, agora ele sabe que não é
eterno. E ciente de suas limitações, ele decide seguir o caminho do
arrependimento e da humildade. O monarca finalmente
experimentou a conversão
_________
1
.Sanhedrin 92b.
2
.Herodotus 1. 108.
3
.Ver S. Langdon, Building Inscriuptions of the Neo-Babylonian
Empire (1905), numero 19; Wasi Vrisa, B. Col. VII 34.
4
.Ver A. Barns, Notes on the Book of Daniel (New York: 1881), p.
213.
75
5
.S.Birch, Ed. Records of the Past: Being English Translations of hth
Assyrian end Egyptian Monuments (Londres: 1888-1892), vol. 7, p. 71.
6
.Ver S. Langdon, Building Inscription od the Neo-Babylonian
Empire (Paris: 1905),Nabucodonosor, Nb. XIV, col. II; ver Antiquities 10. 223-
226.
7
.Ver Albert Champdor, Babylonian, trans. Elsa Coult (Londres /New
York: 1958),p. 146.
8
.Cylindre de Grotefend, KB 3, 2, 39.
9
.In the Berlim Museus (citado em Francis D. Nichol, The Seventh-
day Adventist Bible Commentary [Washington, D.C.: 1977], vol. 4, p. 799).
10
.Ver James A. Montgomery, A. Critical and Exegetical
Commentary on the Book of Daniel (New York: 1927), p. 244.
11
. 21:1 (Trad. Nau.).
12
. Ver especialmente M. Benezech ET AL, “A propôs d’une
observation de lycanthropie avec violences mortelles,” em Annales medico-
psycologiques 147, No. 4(1989): 244.
13
. Gregory Zilboorg and George W. Henry, A History of Medical
Psychology (New York: 1941), pp. 105, 167, 171, 228, 261.
14
. Ver J. P. Boulhaut, Lycanthropic et patologie mentale (thesis,
Université de Bordeaux II,1988), cf. Ian Woodward, The Werewolf Delusion
(New York: 1979), pp. 22-29.
15
. Harvey A. Rosenstock and Kenneth R. Vincent, “A Case of
Lycanthropy,” no American Journal of Psychiatry 134, No. 10 (1977): 1148.
16
. Josephus Against Apion 1. 146
17
. Citado por Eusébio, em Praeparatio Evangelica 9. 11.
18
. A. K. Grayson, Babylonian Historical-Literary Text
(Toronto/Buffalo:1975), pp. 87-92.
76
Capítulo 5
77
são avisados por uma profecia que, é então cumprida, como um
juízo de Deus. Até seus destinos divergem. Até parece que
Belshazzar deliberadamente toma a direção oposta de
Nabucodonosor.
Belshazzar estava bem informado com o grande monarca
que morreu, de acordo com as crônicas babilônicas, na idade
madura de 104 em 562 AEC. Por essa época Belshazzar já estava
com 26 era chefe do exercito babilônico.1 Nossa história acontece
na noite anterior da captura de Babilônia por Ciro em 539 AEC,
apenas a uns 20 anos de pois da morte de Nabucodonosor. Alem
disso, Belshazzar pela linhagem de sua mãe, é neto de
Nabucodonosor, um fato apontado sete vezes por nosso capítulo
(versos 2, 11, 13, 18, 22). Ele não tinha esquecido a historia de sua
família.
80
Mas se Belshazzar parece ter esquecido Daniel e a
experiência religiosa de seu avô, ele consegue relembrar as origens
do profeta: “És tu aquele Daniel, um dos cativos de Judá, que o rei,
meu pai, trouxe de Judá?” (verso 13). Sua pergunta traz de volta as
palavras do capítulo 1 e procura lembrar a Daniel e a todos os
outros da superioridade dos deuses babilônicos sobre o Deus de
Israel. Quando ele reformula as palavras da rainha mãe (verso 14),
cuidadosamente ele evita o adjetivo “santo” que ela usou para
qualificar o Deus de Daniel. Belshazzar está manipulando os fatos,
omitindo e recordando seja o que for que sirva melhor a seu
argumento. Ele tenta comprar Daniel oferecendo-lhe uma corrente
de ouro e uma alta posição (verso 16). Em essência, ele está
pedindo para Daniel distorcer o oráculo divino, falar o que o rei
quer ouvir. Ele está também procurando a clemência de um Deus
que ele parece ter irritado.
V. Reprimenda de um Profeta
A resposta de Daniel é inflexível. Acostumados como
estamos com o tato e respeito normal de Daniel, sua resposta dura
nos surpreende: “Os teus presentes fiquem contigo, e dá os teus
prêmios a outro” (verso 17), Daniel vê através do rei e quer manter
sua própria liberdade pessoal e de falar. Mas a irritação de Daniel
não é causada só por este último incidente. Os erros de Belshazzar
vão muito mais fundo do que sua atual tentativa tola de suborno.
“E tu, Belshazzar, que és seu filho, não humilhaste o teu coração,
ainda que soubesse tudo isso” (verso 22).
Agora nós entendemos Belshazzar, sua tentativa de enterrar
o passado e com ele o Deus de Israel. No fundo, ele sabe e sempre
soube a verdade. E por que ela o perturba, ele procura destruí-la,
esquecê-la. Ele reconhece que o Deus de Israel é o Deus
verdadeiro, e é esta ciência que ele tenta abafar através de seu
esquecimento. Mas Belshazzar não esqueceu – ele consciente e
abertamente se rebela contra Deus no qual ele acredita: “porém te
elevaste contra o Senhor do céu” ((verso 23). De fato, o rei está
muito mais familiar com o Deus hebreu do que ele cuida de
admitir, um fato que Daniel sugere no fim de sua fala: “mas tu, não
glorificaste o Deus que mantém em sua mão o teu fôlego e todos
os teus caminhos” (verso 23, tradução literal). A associação de
“mão” e “fôlego” claramente alude à criação do primeiro homem,
81
quando Deus formou-o com Sua mão (Sal. 119:73; Isa. 41:20) e
assoprou vida em suas narinas (Gen. 2:7). Elas pertencem à
linguagem bíblica da criação. “Qual dentre todas estas coisas não
sabe que a mão do Senhor fez isto? Na sua mão está a vida de todo
ser vivente, e o espírito de todo o gênero humano” (Jô 12:9. 10;
ver também Jô 34:14, 15; Sal. 104:28-30).
É, então, um Belshazzar que sabe (Dan. 5:22), que agora
descarta o Criador pelo ídolo de metal e pedra, o qual não sabe
(verso 23). A primeira ação gera a segunda. Ele que rejeita o Deus
da Criação eventualmente cairá de volta nos ídolos, obra de suas
próprias mãos e imagem de si próprio. Tais indivíduos se tornam
seu próprio Deus.
O papel do profeta tomou precedência sobre aquele do
homem sábio. Em lugar de, rapidamente decifrar a inscrição,
Daniel deixou-se desviar do assunto, em um longo discurso
acusatório. A razão fundamental do escrito na parede interessa
mais do que o escrito em si. A salvação do rei é mais importante
do que decifrar a misteriosa mensagem.
V. A Morte do Rei
O ritmo da história apressa-se. O rei reage “imediatamente”
(tradução literal de Daniel 5:29), não tendo outra escolha. Depois
de honrar Daniel apressadamente, ele então o deixa de lado para
atender assuntos mais urgentes, tais como a aproximação do
exército inimigo. O texto termina em uma nota irônica: tendo
perdido tudo, Belshazzar está agora querendo partilhar tudo o que
ele tem, até suas prerrogativas reais. Os atendentes do rei vestem
Daniel de um manto púrpura, cor real (cf. Ester 8:15), 13 E
Belshazzar indica-o como a terceira pessoa do reino, depois de
Nabonidus e ele mesmo. Sobre a corrente de ouro, é um símbolo
de grande honra.
85
Agora Daniel aceita os presentes, sabendo que os próximos
eventos vão nulificar seus valores. Dentro de horas a profecia é
cumprida. Forças invasoras ocupam Babilônia e, no processo,
matam Belshazzar. Um novo rei, Dario, o Medo, ascende ao trono.
Entre os documentos cuneiformes relatando a queda de
Babilônia, as “crônicas de Nabonidus” testemunham da exatidão
da história bíblica: “Gobryas (Ugharu), o governador de Gutium e
o exército de Ciro penetraram na Babilônia sem lutar. Mais tarde
Nabonidus foi preso quando retornou à Babilônia... No mês de
Arahshamnu, no terceiro dia, Ciro entrou na Babilônia... Gobryas,
seu governador, instalou (sub-) governadores na Babilônia.” 14 O
texto babilônico não menciona Belshazzar, desde que seu foco
principal está em Nabonidus. Mas a última ausência confirma a
existência de um príncipe regente na Babilônia.
A primeira coisa que o novo governador faz é indicar os
regentes abaixo dele, algo também mencionado no livro de Daniel
(Dan. 6:3). As evidências sugerem que Gobryas não é outro senão
Dario, o Medo. O nome Dario é um título honorário significando
“ele que segura o cetro,” e Gobryas pode bem tê-lo adotado.
De acordo com crônicas antigas, Gobryas morreu um ano e
três semanas após a conquista de Babilônia, explicando assim por
que Ciro não tomou o título de “rei da Babilônia” até um ano
depois,15 e por que Daniel 6:28 menciona-o como o sucessor
imediato de Dario. Por outro lado conhecido como Dario, o Medo,
Gobrays está com 62 anos no inicio de seu governo (Dan. 5:31) e
reina exatamente um ano sobre Babilônia. E de fato, o livro de
Daniel apenas alude ao primeiro ano de seu reino (Dan. 9:1).
O capítulo 5 constitui um ponto de retorno no livro de
Daniel: o reino dos Medos e Persas sucedeu àquele da Babilônia
em cumprimento parcial da profecia do capítulo 2. Como seu avô
(capitulo 3), Belshazzar pensou em escapar da verdade,
sustentando tenazmente que Babilônia era eterna. Ambos os
monarcas seriam lembrados de sua temeridade pela violenta
intervenção do alto. A árvore seria cortada, e a mão pediria de
volta o fôlego. Ambos verificaram em sua existência o
cumprimento das palavras proféticas. Do mesmo modo, os eventos
restantes preditos também aconteceriam. Na pessoa de Belshazzar,
ambas as profecias encontrariam seu cumprimento: a antiga
profecia da estátua, assim como a mais recente escrita na parede.
86
ESTRUTURA DE DANIEL 5
A A glória do rei (versos 1-4)
B O mistério da escrita (versos 5-9)
C O sermão da rainha (versos 10-12)
D Belshazzar consulta Belteshazzar (versos 13-16)
C1 O sermão do profeta (versos 17-24)
B1 Decifrando a escrita (versos 25-28)
A1 A queda do rei (versos 29-31)
__________
1
Birch, Records of the Past, vol. 7, p. 159.
2
Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, p. 313.
3
Lacocque, The Book of Daniel, p. 94.
4
Pritchard, pp. 306, 560, 561.
5
Também no Novo Testamento Jesus traça na areia um juizo contra os
acusadores do adultério (João 8:6).
6
Ver Theophilus G. Piches, The Old Testment: In the Light of the Historical
Records and Legends of Assyria and Babylonia (Londres: 1903), pp. 430-451).
7
Ver Miq. 1; Jer. 7:11; Amós 8:1.
8
Comparar os diversos baixo-relevos egipcios que descrevem o deus Anúbis
levando o morto em direção à grande balança que vai pesar o coração da pessoa na
presença da deusa Maat.
9
As duas palavras “Medos e Pérsas” são contadas como uma só, desde que
eles formaram um único reinado.
10
Pritchard, pp. 606, 607.
11
Chamado Evil-Merodach nas Escrituras (II Reis 25:27; Jer. 52:31-34).
12
Nergal-Sharezer nas Escrituras (Jer. 39:3, 13).
13
Xenophon Anabasis (1. 2, 5, etc.)
14
Pritchard, p. 306
15
Ver William H. Shea, “An Unrecognized Vassal King of Babilonian in the
Early Achaemenid Period,” Andrews University Sminary Studies 10 (1972): 113-117.
87
Capítulo 6
LEÕES ENCANTADOS
88
história vai se repetir? O autor do livro de Daniel parece lembrar
isso. O capítulo 6 faz um paralelo com o capítulo 3. Com o mesmo
desenvolvimento, a mesma construção de palavras, e as mesmas
frases (“levantar,” “acusar,” “com pressa,” “decreto,” etc.). Do
mesmo modo a repetição das palavras chave dentro do próprio
capítulo (“rei,” “Daniel,” “reino,” “oração,” “leão,” “esconderijo,”
etc.), faz eco com a repetição dos oficiais e dos instrumentos
musicais no capítulo 3. Tal processo estilístico sugere que Daniel
agora está indo para a mesma experiência dos três hebreus do
capitulo 3. A ausência dos três hebreus neste contexto, assim como
a ausência de Daniel no capítulo 3 não resulta de covardia. Se eles
se encontrassem nas mesmas circunstâncias, a reação deles seria a
mesma. Os eventos agora se restringem ao nível da alta
administração, envolvendo somente Daniel.
O Complexo de Babel
Como no capítulo 3, o principal interesse na abertura do
capítulo 6 é construir uma base forte para o reino. E, como antes, o
rei convoca os altos oficiais. No capítulo 3 o assunto refere-se a
“levantar” (hqm) a estátua (verso 1). O principal interesse de nosso
capítulo presente focaliza o mesmo “levantar” (hqm)
administradores sobre o reino (Dan. 6:1). Os mesmo verbos
aramaicos aparecem nos dois capítulos.
Já de começo Daniel se encontra separado de seus colegas.
A administração foi dividida entre 120 sátrapas, ou governadores
(ver Ester 1:1; 8:9).1 Acima dos governadores haviam três
presidentes.:Daniel é um deles. O rei até considerou levantá-lo
(hqm) sobre todo o reino ( Dan. 6:3).
Dario pensa em construir seu sucesso administrativo sobre
Daniel. Diversas razões inspiram sua escolha. A primeira de todas
é que o hebreu, como ele, é estrangeiro, um aliado em uma terra
estranha. Daniel também previu a queda de Babilônia e a sucessão
do reino Medo-Persa. Além disso, o profeta acaba de ser nomeado
para governador do reino e servir o país por muitos anos. Para
evitar futuro caos, Dario decide deixar intactas as estruturas
principais do governo babilônico. Mas a razão real não é política.
“Daniel sobrepujava a estes presidentes e aos sátrapas; porque nele
havia um espírito excelente; e o rei pensava constituí-lo sobre todo
o reino” (verso 3) Daniel 5:12 e os capítulos 1 e 2 fazem referencia
89
à mesma superioridade para descrever as bênçãos e inspiração de
Deus. Em outras palavras, o rei está procurando se apropriar e
explorar o poder extraordinário que Daniel possui. A mentalidade
de Babel se infiltrou até nas boas intenções do rei. Estamos de
novo em um contexto religioso, e é nesta luz que devemos
interpretar o resto da passagem.
91
oratória. Tal oração é rara, pois ela surge da ameaça de morte
eminente e apresenta apenas o essencial.
Mas em muitos modos a oração não é diferente daquelas
anteriores de Daniel. Não são as circunstâncias que o forçaram a
este estado de oração. O texto menciona que ele “orava... como
também antes costumava fazer” (verse 10). Para o procedimento
dos sátrapas, Daniel contrapõe a oração de um homem livre. Ele
ora não importa as circunstâncias, em tempo bom e ruim. Oração
para ele, não o último recurso para a doença ou morte, mas uma
parte integral de sua vida. A oração de Daniel é aquela de um herói
e um santo.
Ele toma coragem heróica para ignorar o edito e orar
mesmo assim. Ao fazer o simples ato de ajoelhar-se, Daniel arrisca
sua vida. Ele poderia ter orado secretamente. As escrituram até
encorajam a orar em secreto (Mat. 6:6). Quando a oração se torna
moda, é melhor orar sozinho. Mas quando as autoridades declaram
ilegal a oração, orar em secreto é indicar que o rei é maior que
Deus. Daniel poderia, por um pouco, pelo menos, se adaptado às
circunstâncias. Afinal, Deus perdoa – Ele conhece o coração de
uma pessoa. Mas Daniel prefere morrer a, por um momento
guardar sua vida religiosa. Sob este céu escuro, ele não corre para
o esconderijo, mas se mantém alto como um homem livre. O
profeta escolhe permanecer fiel a Deus em seu coração e em suas
ações. Sua coragem é impressionante. Um homem inteligente e
experiente, Daniel sabe contra o que ele está de pé. Não é ação de
uma virtude inocente, incapaz de prever a gravidade das
conseqüências.
Porém, mais que a oração de um herói, a oração de Daniel
é aquela de um santo. É mais fácil fazer uma oração no meio da
tribulação do que na vida diária. Para a coragem de Daniel
devemos adicionar a virtude da paciência. “É mais fácil ser um
herói do que um santo” Comenta o Dr. Rieux na novela The
Plague de Albert Camus. A atitude heróica é publica e de vida
curta. É isso que a torna heróica. Por outro lado, uma atitude santa
se mantém na obscuridade e dura uma vida inteira. Ninguém que
aplaude, ninguém sabe, e nem cuida. Causa menos esforços orar
durante uma emergência ou teste do que no decurso de uma vida
normal.
92
Se Daniel não sucumbe à sua tentativa é por causa da
armadura que ele dá à sua oração. Em sua casa ele separou um
“quarto em cima” para sua oração diária, um luxo que apenas
alguns poucos altos oficiais tinham. (II Reis 1:2, 4:10, 11). Oração
se tornou, então, associada com um lugar, tornando mais fácil
deixar outras preocupações de fora. Também Daniel mantém sua
vida de oração através da disciplina. O profeta ora “três vezes ao
dia” (Dan. 6:10, 13). A oração não deve depender apenas daqueles
“enlevos da alma” que vem e vai de acordo com nosso humor ou
da qualidade da luz da lua, O exemplo de Daniel nos ensina que
nós devemos integrar a oração no ritmo da vida em si. Oração é
vida. Ela deve ser nutrida, deve ser administrada, deve ser deixada
livre para respirar. Um sinal, um anseio da alma, a oração é uma
necessidade básica que devemos executar até quando o sentimento
não está lá. Nossa vida de oração deve ser uma parte tão vital de
nossa vida como a refeição, trabalho e outros compromissos.
Somente assim seremos fortes suficientes para enfrentar o teste
quando ele vier.
De forma interessante, o tempo da oração de Daniel
coincide com o programa dos sacrifícios do Templo de Jerusalém
(I Cron. 23:30-31). Em recordação destes rituais, Daniel se volta
para o ocidente. Durante sua oração inaugurando o Templo,
Salomão já percebeu esta extrapolação do ritual da oração dos
exilados. “se na terra aonde forem levados cativos, caírem em si, e
se eles... orarem a ti voltados para... a cidade que escolheste e para
a casa que edifiquei ao teu nome; ouve então do céu, lugar da tua
habitação, a oração e a sua súplica” (I Reis 8:47-49).
A oração está assim, intimamente ligada ao sacrifício,
Como os sacrifícios, Deus pretende pela oração trazer-nos para
perto dEle. O verbo hebraico “sacrificar” vem da raiz qrb que
significa “perto” e implica aproximar Deus da pessoa. Oração não
é uma ascensão do ser humano até Deus, mas a descida de Deus à
humanidade. Aqui está a diferença entre a religião de Daniel e
aquela dos babilônicos, que depende de seus próprios esforços.
A orientação da oração em direção ao Templo é também
um gesto de esperança: a esperança de retorno do exilado, da
restauração do Templo. Oração também assegura a dimensão do
futuro. Daniel não se volta para Jerusalém como um feiticeiro que
se voltaria para o céu por chuva. Seu estilo não tem nenhum
93
propósito mágico. Ele sabe que a resposta ao seu problema está em
outro lugar – “no céu”, como disse Salomão. Daniel ora em
direção a Jerusalém por que ele espera no futuro. Sua oração está
situada no tempo, não no espaço. Para o hebreu, o sagrado está no
tempo, não no espaço. Não é o monumento que importa, mas o
tempo. Abraham Heschel observou que “o dia do Senhor é mais
importante ao profeta do que ‘a casa do Senhor.’”3
As três religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e
islamismo – tem mantido o gesto de Daniel. Todas as três religiões
orientariam seus oradores e construir seus lugares de adoração na
direção de Jerusalém.
A oração de Daniel ondeia em si em torno de dois
elementos de fé e esperança implicados por dois verbos. Daniel
“agradece” (Dan. 6:10), e ele “suplica” (verso 11). O primeiro
verbo vem da palavra yad (mão aberta) e expressa a gratidão de
alguém que recebeu algo. A segunda palavra, mithannan, deriva de
hnn (graça) e é a suplica da pessoa que não recebeu.
Oração então tem suas raízes em escassez e abundância da
graça de um Deus que dá. Orar é reconhecer seu prop0rio vazio e
reconhecer que tudo vem do alto. Tal oração é um ato de
humildade. Daniel se ajoelha para orar, o gesto do escravo ou do
soldado conquistado, cujo destino agora está nas mãos do
dominador.
IV. A Vingança
As duas ordens que o rei deu no início de nossa história
tem seu eco em mais duas que ele dá agora. A ordem de lançar
Daniel na cova dos leões tem sua contraparte no decreto de lançar
95
os acusadores do profeta, com suas famílias inteiras dentro da
cova. Mas está é tão sem sentido quanto a primeira. Violência para
Deus não repara a violência contra Deus. Dario permanece tão
obtuso como sempre, pois ele prefere seguir o costume. 5 A punição
é coletiva de modo a evitar possível retaliação de membros
sobreviventes da família. Esta vez nenhum anjo intervém. Os leões
não dão tempo de suas vítimas atingirem o chão. De acordo com a
tradição registrada por Flavius Josephus,6 os acusadores de Daniel
teriam questionado a autenticidade do milagre sugerindo que os
leões tinham sido tão bem alimentados que eles ignoraram Daniel.
Eles agora recebem uma chance de testar suas objeções.
O edito de adoração ao Deus de Daniel substitui o edito de
adorar o rei. O decreto de Dario faz paralelo com aquele de
Nabucodonosor no capítulo 3. Mas enquanto que Nabucodonosor
tinha proibido apenas a blasfêmia contra Deus, Dario ordena que o
povo O adore: “Faço um decreto, pelo qual em todo o domínio do
meu reino os homens tremam e temam perante o Deus de Daniel”
(verso 26).
Dario entende o aspecto universal do milagre da cova do
leão. Quando alguém encontra a realidade da existência de Deus, é
impossível se calar. Seu decreto glorifica o Deus vivo. A sexta
oração do livro de Daniel, nos lembra a oração de Nabucodonosor
no capítulo 4 por sua similaridade de estilo, palavras, e conteúdo.
A oração também se centraliza em Deus e na eternidade de seu
reino. Mas Dario tem um entendimento mais profundo do Deus
hebreu do que teve Nabucodonosor, como vemos quando ele
confessa Deus como o “Deus vivo,” o Criador e Salvador. Suas
primeiras palavras O descrevem como o eterno “Deus vivo” que
“permanece para sempre” e cujo “reino nunca será destruído”
como os reinos da terra (verso 26).
A oração do rei persa trabalha no tema da vida. Através da
oração alguém se torna mais ciente da genuína vida que permanece
e na qual a felicidade é mais que uma miragem. Oração é um ato
de protesto contra o sofrimento e a morte, um grito contra o
inaceitável. Através da oração nós recebemos esperança. Orar é
amar a vida, estar ligado de novo à vida através de Deus. Uma
oração assim é o reconhecimento de que sem Deus nada pode
existir ou sobreviver. De manhã nos oramos assim que acordamos
96
para a vida diária. À tarde oramos pelo pão que nos sustenta. E à
noite nós circundamos nossa alma ao Seu cuidado.
O tema da vida celebrado pela oração está enraizado no
evento bíblico da Criação. A vida é relacionada com Deus porque
Ele é sua origem, o Criador de tudo que existe. Isto é onde a
oração bíblica difere daquela dos pagãos. Pagãos oram por aquilo
que eles têm. Fiéis da Bíblia oram a Ele que os fez. É por isso que
a oração reveste o invisível. Qualquer descrição de Deus é coisa de
homem, assim falsificando a oração. O povo então entende tudo no
universo como “sinais e maravilhas” (verso 27). O sol e as estrelas,
as montanhas e o mar, homem e mulher, saltar tanto por sua
própria iniciativa ou por acaso. Tudo resultou de criação
intencional. E tudo é um milagre, um sinal invisível de Deus. O ato
de orar tem suas raízes no evento da Criação. É a fé de que Deus
tem o poder de transformar miséria em alegria, morte em vida,
nada em alguma coisa.
Somente neste contexto a salvação pode ocorrer como
vimos no terceiro estágio da oração: “Ele livra e salva” ((verso
27). Crença na salvação implica crença na Criação, e crença na
Criação comanda crença no Deus vivo. Por que somente o Criador
que ainda vive, tem o poder de mudar morte em vida. Oração é
mais que uma experiência confortante e subjetiva. Ela aspira a uma
mudança das dimensões cósmicas. Mais que uma experiência
transcendental de harmonia e paz, é um clamor existencial por um
mundo melhor. Quando oramos por nossas necessidades diárias,
pelo doente, e até pela paz no mundo, a questão é sempre a
mesma. O cumprimento final da oração é salvação, a vinda do
reino de Deus. Os antigos rabinos costumavam dizer que “uma
oração onde não há menção do reino de Deus, não é oração.” 7 É
por isso que a conseqüência final da oração é ressurreição. As três
idéias contidas na oração de Dario (o “Deus vivo,” o Deus Criador,
e o Deus que salva) convergem no evento da ressurreição: “Foi Ele
quem livrou Daniel do poder dos leões” (verso 27).
Os três temas da vida, criação e salvação já estavam
presentes na experiência de Daniel. Sobrevivendo aos leões e
saindo da cova sem nenhum dano, como foi com os três hebreus
no capítulo 3, Daniel é considerado como levantado da morte. No
Novo Testamento, a Epístola aos Hebreus, relembra ambas as
histórias e interpreta-as à luz da ressurreição (Heb. 11:33, 34). A
97
tradição bíblica, especialmente os Salmos, muitas vezes usa o leão
para simbolizar o poder da morte (Sal. 22:13, 21; 57:4-6; 91:9-13).
A imaginação cristã tem também mantido esta história como um
símbolo de vitória sobre a morte. Fiéis tem pintado a cena de
Daniel salvo dos leões, em sarcófagos como lembrando, na morte,
do milagre da ressurreição.8 Na perspectiva cristã, a história de
Daniel apresenta muitas similaridades com a história de Jesus, um
ponto já reconhecido pelos primeiros cristãos, para quem o livro de
Daniel se tornou uma constante fonte de inspiração. 9 Como Daniel,
Jesus foi vítima de uma conspiração pelos altos oficiais invejosos
de Sua influência. Como na história de Daniel, as forças do mal
manipularam a autoridade governamental e invocaram uma razão
política para justificar a sentença. Em ambos os casos a vítima era
inocente, e as tentativas de salvá-lo foram feitas em vão. E nos
dois casos a ressurreição ocorreu de uma tumba selada.
Daniel se levanta da morte maior do que antes. Ele está
livre. O Deus condenado a ser adorado às escondidas, considerado
uma simples deidade tribal, agora é Deus do universo (Dan. 6:26,
27). Tudo esta revertido. A vitória de Daniel é ressoante. Empolga
os oportunistas que se inclinam aos deuses do sucesso, e encoraja
os raros poucos que ainda escolhem o risco da fé.
V. Sucesso de Daniel
O fim da história menciona o sucesso de Daniel em
paralelo com o sucesso dos três hebreus no capítulo 3. Mas onde a
prosperidade dos três hebreus resultou do rei (Dan. 3:30) a
prosperidade de Daniel permanece independente da clemência real
e continua através do reino de Ciro. O capítulo termina em uma
nota de esperança que transcende a felicidade pessoal do profeta e
o milagre em si. A menção de “Ciro o Persa” (verso 28) já aponta
para o fim do Exílio como cumprimento das profecias referentes à
restauração de Israel.
No livro de Daniel o nome “Ciro” é, de fato, um ponto de
referência. “Ciro” marca a conclusão do primeiro capítulo, mas
também ocorre próximo do fim do livro todo. (Dan. 10:1). Agora
ele paira na conclusão da primeira parte do livro de Daniel. As
duas partes estão assim claramente delineadas por sua ocorrência.
A primeira parte da história de Daniel – sua vida, seus
decretos e sucesso. O sonho profético desta seção, na maior parte,
98
se limita ao tempo da vida das pessoas envolvidas. Na segunda
parte, porém, deixamos a cena contemporânea, para olhar o
“futuro distante” (Dan. 8:26; 12:4, 9) Ambas as partes estão inter-
relacionadas. Cada uma confirma a outra. Testemunhando o
cumprimento das profecias do passado, nos encoraja a crer na
autenticidade e eventual cumprimento, das futuras. O milagre
encontrado na vida diária é o sinal de outra realidade: “o seu
domínio durará até o fim” (Dan. 6:26; 4:3, 34). A experiência de
Deus em cada dia da vida alimenta o sonho por outro reino ainda.
Esta é a intenção por trás da intervenção divina: reforçar a fé e a
esperança e despertar nosso anseio por um mundo novo.
A primeira parte do livro preparou a caminho para a
segunda parte.
Estrutura de Daniel 6
(cf. Capítulo 3)
______
1
.Ver também Herodotus 3.89.
2
.Diodorus of Sicily 17 30.
3
.Abraham J. Heschel, The Sabbath: Its Meaning for Modern Man (New York:
1951), p. 79.
4
Herodotus 1. 195
99
5
.Herodotus 3. 339.
6
.Antiquities 10.
7
. .Babilonian Talmud Berakoth 40b.
8
. M. Delcor, Le Livre de Daniel (Paris: 1971), pp. 138, 139.
9
.Aphrahat, Demonstrations in Nicene and Post-Nocene Fathers (Grand Rapids:
1989), vol. 13, p. 399.
Capítulo 7
100
simbólico. Encontramos animais bizarros e números obscuros, um
gênero chamado “apocalíptico.” Para marcar a transição. O autor
interrompe o fluxo cronológico dos eventos.
O capítulo 7 nos leva de volta no tempo de Belshazzar,
quando Nabonidus ainda estava em Tema3 (553 AEC). É também o
ano da vitória de Ciro sobre o rei dos Medos, Astyages.
Apesar de sua obscuridade, o capítulo 7 tem um número de
motivos familiares tomados dos capítulos precedentes,
especialmente capítulo 2. De fato, aas duas visões seguem um
desenvolvimento paralelo. Elas cobrem o mesmo espaço de tempo,
de Babilônia até fim do tempo humano, e evoca os mesmos quatro
reinos representados simbolicamente pelos metais do capítulo 2, e
pelos animais do capítulo 7. Um paralelo assim é mais do que um
fator unificante – ele é a chave para nosso método de
interpretação. Devemos ler o capítulo 7 à luz do capítulo 2.
As duas visões, porém, permanecem distintas. No capítulo
2 Nabucodonosor recebeu a visão. Aqui um sonho visita o próprio
Daniel. A ligação entre o conteúdo do sonho e sua comunicação é
mais direta como já vemos implicado por um jogo de palavras:
“Teve Daniel, na sua cama, um sonho e visões da sua cabeça
[resh]. Então escreveu o sonho, e relatou a suma [resh] das coisas”
Através deste eco da palavra resh, o autor estabelece uma
ligação direta entre o que foi revelado e o que foi anotado. Em
outras palavras, não nos é permitido qualquer maquiagem. O que
Deus revelou é o que o autor vai narrar – nem mais, nem menos. E
por que Deus o apresentou, devemos tomá-lo a sério.
Desde o começo, a visão funciona em um nível universal. É
a água agitada e emoldurada pelos quatro ventos da terra (verso 2).
A menção da água leva-nos de volta ao tempo da Criação (Gên.
1:1), e quatro ventos da terra personificam os quatro cantos da
terra. (Zac. 6:5, 6). A profecia de Daniel se refere ao mundo
inteiro.
Podemos dividir a visão em três cenas sucessivas, cada
uma, introduzida pela mesma expressão: “eu estava olhando, numa
visão noturna” (Dan. 7:2, 7, 13). A interjeição “e eis que” waaru
(versos 2, 5, 7, 13) ou waalu (verso 8) divide cada cena do turno
em sub partes.
1.O Leão
O leão alado corresponde ao primeiro metal da estátua em
Daniel 2 e representa Babilônia. Não é necessário cavar tradições
mitológicas e astrológicas de modo a justificar seu relacionamento
com Babilônia. Princípios bíblicos, assim como esculturas
babilônicas, são suficientes. De fato, a arte babilônica muitas vezes
pinta leões alados, como vemos, por exemplo, em tijolos
vitrificados de muros preservados em vários museus. Um grande
número de leões alados decorou a estrada principal para Babilônia.
De modo interessante as Escrituras representam o próprio
Nabucodonosor pela dupla imagem de leão e de águia (Jer. 49:19,
22).
Mas a metáfora do leão alado tem até mais com isso, pois
ele casa a força do leão (Prov. 30:30) com a velocidade da águia
(II Sam. 1:23). Ele se torna quase invencível. Este reino é o
animal, exatamente como o reino do capítulo 2, descrito como a
“cabeça” e, o “rei dos reis.” Assim como o arrancar das asas nos
recorda de cortar os galhos da grande árvore do capítulo 4. O
animal é então, levantado da terra e posto sobre dois pés como um
homem. No livro de Daniel características humanas passam a
dimensão religiosa (ver nosso comentário “o barro” no capítulo 2).
Em uma alusão à recuperação e conversão de Nabucodonosor, ele
recebe o coração de um homem. A posição vertical simboliza o rei,
agora possível de ser movido por Deus, o poder do animal
102
destruindo todos os quatro, tendo sido momentaneamente vencido.
Esta conversão de um rei pagão ao Deus de Israel mais de 10 anos
antes, ainda está fresca na memória de Daniel, é extraordinária e
dispensa, portanto, uma menção especial. O mistério do leão alado
então é fácil de resolver: ele representa Babilônia. Mas os ventos
da mudança desenham ainda outro monstro.
2.O Urso
Deste reino em diante, os animais não refletem o contexto
histórico e cultural de cada reino, mas particularmente uma função
psicológica deles. Olhar para um horóscopo ou mito antigo, não
nos ajudará a entender as imagens. A Bíblia caracterizou o urso
pela sua crueldade (II Sam. 17:8; Prov. 28:15; Amós 5:19). A
passagem paralela de Daniel 2 identifica o urso como Medos e
Persas, uma conclusão confirmada pela postura bizarra do urso: o
qual “se levantou de um lado” (Dan. 7:5). A criatura
evidentemente não fica sobre em suas patas traseiras, por que mais
tarde é lhe dito “levanta-te e devora.” Provavelmente o urso se
levantou de um lado, esquerdo ou direito, apresentando uma parte
de seu corpo como maior do que a outra, e pronto para o ataque. É
uma “tendência de virar para o outro lado,” já apontada pela forma
haphel do aramaico “levantado.” A imagem do “lado”, símbolo
bíblico de agressividade (ver Eze. 34:21, o qual descreve a
agressividade da ovelha que empurra “com o lado e com o
ombro”, alude à crueldade das criaturas. No capítulo 8 dois chifres,
um maior do que o outro (verso 3), demonstra o poder dos Medos
e Persas. Um urso “se levantou de um lado,” representando assim a
dualidade de poderes, um mais forte do que o outro.
A história confirma a descrição profética. Por volta de 650
AEC os persas eram vassalos dos medos apesar de que eles tinham
autonomia e conduziam seus próprios assuntos governamentais.
Nos anos 550 Ciro, filho do rei persa Cambyses I, mas também
neto por sua mãe, do rei da Média Astyages, ascendeu ao trono da
Pérsia. Imediatamente ele empreendeu um golpe político e causou
a queda do governo, tornando-se o único governador de todo o
reino. O grande animal político girou sobre seu lado, dando
supremacia aos uma vez inferiores persas. O livro de Ester, no qual
a tradicional expressão “Medos e Persas” se torna “Pérsia e
Media” (Ester 1:3), também confirma o surgimento da supremacia
Persa.
103
Outra característica do animal é que ele traz três costelas
em sua boca. Uma passagem similar em Amós menciona três
pedaços de carne e ossos recuperados da boca do leão como os
únicos remanescentes de sua refeição (Amós 3:12). É outro meio
para sugerir a voracidade do animal. O caráter carnívoro da
comida (“três costelas” ou lados) faz eco à posição agressiva do
urso (“de seu lado”). A passagem então conclui: “Levanta-te,
devora muita carne!” – uma passagem muitas vezes entendida
como aludindo à três principais conquistas da Pérsia: Lidia,
Babilônia, e Egito. Mas se estas três conquistas são só o
remanescente, quanto maior foi o poder de conquista realmente
devorador de Ciro! Um livro escolar declara:
“O império Persa foi criado numa única geração por Ciro, o
Grande. Em 559 B.C., ele chegou ao trono da Pérsia, então um
pequeno reino bem ao oeste do vale mais baixo da Mesopotâmia.
Unificou a Pérsia sob seu governo; fez uma aliança com a
Babilônia; e comandou uma rebelião bem sucedida em direção ao
norte contra os Medos, que eram os soberanos da Pérsia. Nos anos
seguintes ele expandiu seu império em todas as direções, no
processo derrotando Cresus e ocupando a Lidia.”4
As mais antigas origens da tradição judaica já reconheciam,
não sem humor, o urso como representando a Pérsia “Persas
comem e bebem como urso, tem cabelos como urso, são agitados
como urso.”5 Outra passagem do Talmud chama o anjo guardião
persa de “urso de Daniel.”6
3.O Leopardo
O leopardo corresponde ao terceiro reino da estátua e
representa a Grécia. A adição de quatro asas intensifica a
velocidade já característica do leopardo (Hab. 1:8). Do mesmo
modo, as quatro cabeças multiplicam a idéia de dominação. Como
já temos visto, o número quatro simboliza totalidade e
universalidade. Este reino é então, caracterizado pela rapidez e
universalidade de suas conquistas: “e foi-lhe dado domínio” (Dan.
7:6). O terceiro reino é o único que o domínio lhe é
especificamente oferecido. Seus predecessores jamais receberam
tal poder como um presente. O leão teve “um coração de homem”
(verso 4); o urso recebeu a ordem que “devora muita carne” (verso
5); mas apenas o leopardo tem domínio (“foi lhe dado domínio,”
104
verso 6) permitido. É claro que cada animal adquire certo tipo de
domínio: o leão com o coração humano recebe a supremacia do
humano sobre o animal, como Adão, a quem Deus ordenou:
“dominai sobre... todos os animais” (Gên. 1:28; Jer. 27:5-7). O
domínio do urso se estende sobre o mundo material e regional,
mas permanece limitado a uma área de “carne”. Mas para o
leopardo o domínio é completo. Vamos do “muito” (tradução
literal do aramaico sagî, na NIV “fartura sua”) para “toda a terra”
(Dan. 2.29). O domínio do leopardo envolve muito mais do uma
mera conquista geográfica. Ele se estende também no nível
cultural. E, de fato, o pensamento grego se infiltrou em todo lugar
e constitui a espinha dorsal do pensamento ocidental hoje.
De modo interessante, o domínio não é inato, mas algo
Permitido por Deus. O verbo “dar” (verso 4, 6) também serve para
juízo de Deus (ver capítulo 1). A idéia de Deus participando nos
desvios sangrentos da história pode parecer chocante. Contudo não
se deve confundir a dádiva do poder com sua administração. O
poder está nas mãos de Deus. Ao dá-lo aos humanos, ele coloca a
responsabilidade do poder sobre eles. A conseqüência é somente
da pessoa, de fazer bem ou mal. É outra lição de humildade para o
poderoso, que imagine que seu poder surgiu de seus próprios
esforços. As Escrituras nos lembram de sua origem e de nossa
responsabilidade para lidar com ele com cuidado. E porque um dia
Deus vai exigir o poder, nos é permitido ter esperança. O Deus que
começou a história vai também acabá-la.
106
coisas. Reconhecemos aqui o quarto poder de Daniel 2 com sua
dupla natureza, política e religiosa.
Seu tempo. O chifre pequeno aparece cronologicamente
depois dos dez chifres, causando no processo, a queda de três
deles. A história nos diz que eles, originalmente, pertenceram ao
ramo ariano do cristianismo e estiveram em conflito perpétuo com
o corpo principal da igreja, ameaçando sua supremacia,
especialmente desde que alguns deles (os Visigodos, os Vândalos
e os Ostrogodos) se mudaram para a Itália e regiões vizinhas.
Governos católicos da região consideraram como dever sagrado
eliminar sua influência herética. Clóvis, o rei dos Francos (481-
511), também conhecido como o “novo Constantino,” converteu-
se ao cristianismo (496? 506?). Mal se levantou das águas
batismais, tomou a ofensiva contra os Visigodos de Vouille, perto
de Poitiers (508), dizimando-os. Justiniano, governador do Império
Romano oriental (527-565), declarou o papa “governador de todos
os padres santos de Deus”9 e declarou guerra com os Arianos. As
forças católicas exterminaram os Vândalos no norte da África, na
batalha de Tricamarum em 1534 e caçaram os Ostrogodos fora de
Roma em 538. A península italiana agora está livre dos vestígios
Arianos, e a cristandade católica pode agora pacificamente
desabrochar tanto no nível religioso como no nível político.
A proporção de três dos 10 é também simbólica. Na
aritmética bíblica, a medida de três décimos aparece
tradicionalmente no contexto de ofertas (Lev. 14:10; Num. 15:9;
28:12, 20, 28; 29:3, etc.) Desde que as ofertas seriam, divididas
em três partes (Num. 15:6, 7; 28:14, etc.), a proporção de três
décimos seria arredondada a um terço para evitar assim
complicações decimais. Três décimos seriam então equivalentes a
um terço. A linguagem simbólica bíblica emprega o conceito de
um terço para sugerir a perspectiva de destruição total ou vitoria
total (Eze. 5:2; Zac. 13:8; Apo. 8:9; 9:18; 12:4). Em outras
palavras, alem da destruição dos três reinos, a visão está aludindo à
total destruição de todos os 10 reinos.
Suas ações. O chifre pequeno direciona seus ataques a
Deus e ao Seu povo. Eles na verdade, estão inter-relacionados,
como sugeridos pelo paralelismo alternativo descrevendo-os (Dan.
7:25).
A Ele vai falar contra o Altíssimo (contra Deus)
107
B e oprime Seus santos (contra Seu povo)
A1 e tenta mudar os tempos e a lei (contra Deus)
B1 Os santos lhes seriam entregues por um tempo, tempos e
metade de um tempo (contra Seu povo).
Contra Deus. O primeiro ataque do chifre pequeno é um
ataque verbal (versos 8, 20, 25): “neste chifre havia... uma boca
que falava grandes coisas.” O termo aramaico rabreban veio da
raiz rah (grande, elevado) e conduz a idéia de presunção e orgulho.
O espírito de Babel se reencarnou neste poder emergente cujo
objetivo é usurpar Deus.
Mas a arrogância do chifre pequeno vai além das palavras
(A). Ela procura dessa forma, substituir Deus no nível da história
(A1). Nesta primeira oração (Dan. 2:21), Daniel se refere a Deus
como aquele que “muda os tempos e as estações,” uma expressão
que ele imediatamente explica: “Ele remove os reis e estabelece os
reis.” As duas clausulas estão relacionadas. O capítulo 7 associa a
mesma palavra para “tempo” com a possessão do reino: “chegou o
tempo” (Dan. 7:22), lembrando o fato de que é Deus quem
determina o tempo.
Contra o povo de Deus. Agora o chifre pequeno se volta
contra os “santos” em uma explosão de vingança homicida. A
propósito, eles não têm nada a ver com auréolas e harpas. No livro
de Daniel os “santos” são aqueles que pertencem a outro reino
(Dan. 4:17; 7:18, 22). Sendo estrangeiros, eles são mais
vulneráveis à perseguição. De fato, tanto quanto o livro está
interessado, “santos” é um sinônimo para “o perseguido” (Dan.
7:21; 8:24). Por que eles têm suas raízes na cidade celestial de
Deus, os “santos” se colocam numa posição de ameaça aos
construtores da “cidade de deus” da terra e derrama suspeita em
suas tentativas de substituir o próprio Deus. Inquisições, pogroms
e câmaras de gás são os jogos mortais do ser humano agindo como
Deus. Perseguição é o resultado fatal da usurpação humana de ser
Deus.
Mas a perseguição dos santos não permanece uma
abstração. Nosso texto indica sua duração no tempo – é para durar
“um tempo, tempos e metade de um tempo,” isto é, três anos e
meio. Nossa interpretação repousa em vários elementos:
1.Uma passagem precedente usou a mesma palavra para
“tempo” (idan) no sentido de anos (Dan. 4:16, 23, 25).
108
2.O aramaico entende a forma plural indefinida “tempo”
(Dan. 7:25) como um plural de dualidade (isto é duas vezes);
assim, adicionando um período de três anos e meio, isto é 1260
dias (o ano judaico, como o Babilônico, segue o calendário lunar e
consiste de 360 dias).
3.A mesma expressão aparece em Daniel 12:7 em relação
ao espaço similar de tempo (1290 dias e 1335 dias), todos os quais
contam para o mesmo tempo do fim (Dan. 12:7, 9, 11, 12).
4.O livro do Apocalipse (Apo. 11:2, 3; 12:6; 13:5) mais
adiante, estabelece nosso método de cálculo. Ele usa a mesma
fórmula, “um tempo, tempos e metade de um tempo” em relação
ao evento da perseguição, convertendo para 1260 dias (Apo. 11:3 e
12:6) ou em 42 meses (Apo. 11:2; 13:5).
Situando assim no tempo, o período toma um significado
histórico. Empregando a informação acima, nós podemos colocá-
lo cronologicamente. Há, contudo, uma diferença entre “tempos”
do capítulo 4 e o “tempos” do capítulo 7. No capítulo 4 o contexto
foi histórico, enquanto no capítulo 7 encontramos a nós mesmos
no contexto histórico. O último usa linguagem simbólica que não
deve ser tomada literalmente. Na linguagem profética da Bíblia,
um dia simboliza um ano. Evidencias para tal uso aparece no livro
de Ezequiel, um profeta contemporâneo de Daniel e também no
exílio (Eze. 4:6). Traços dele também estão presentes no livro de
Daniel (ver comentário em Daniel 9). Assim, concluímos que a
expressão “um tempo, tempos e metade de um tempo” significa
1260 dias proféticos, isto é, 1260 anos.
Um estudo da cronologia profética leva-nos ao ano 538 EC.
A Itália está completamente livre dos Arianos, e especialmente dos
Ostrogodos. A igreja cristã coloca seus fundamentos no que Y.
Congar define como as “bases de uma visão hierárquico-
descendente (descida), e finalmente uma teocracia do poder.”10
Gregório, o Grande (590-604) se tornou, de acordo com Jules
Isaac, o “primeiro papa a acumular a função tanto política como
religiosa.”11. Daqui para frente, a igreja não tem mais adversários e
é livre para fazer o que quiser. A história da igreja medieval deixa
atrás o rastro sangrento das Cruzadas, da Inquisição, do massacre
do dia de S. Bartolomeu, e da guerra dos 30 anos. Milhares de
vítimas – protestantes, huguenotes, judeus, e até católicos –
preferiram derramar seu próprio sangue a se submeter de forma
109
indiscreta a instituição político-religiosa. Por um tempo, tal
opressão pareceu justificada. Afinal de contas, como hereges,
todas as vítimas estavam de qualquer forma ligadas ao inferno.
Ainda, poucos séculos antes, o grande Hillel tinha dito “até quando
o opressor está certo, Deus está sempre do lado da vítima.” Mas o
opressor jamais está certo. Sua violência não é senão o sintoma de
sua própria incerteza, de sua própria falha. Em qualquer caso,
qualquer que seja a identidade das vítimas, os justos referidos pelo
profeta como “santos” estão sempre entre eles.
Se o período da perseguição começa no ano 538, deve
terminar 1260 anos mais tarde em 1798 (1260 mais 538). Aquele
ano presenciaria o levante dos Jesuítas, o erguer-se dos
Enciclopedistas (filósofos da dúvida), e a Revolução Francesa com
seu grito de raiva contra a autoridade eclesiástica. A Revolução
Francesa confrontaria a igreja com uma sociedade ateísta tendo
somente um deus: a razão.
Mas, o mais importante, em 1798 o exército francês, sob o
comando do General Berthier, invadiria Roma, prendendo e
deportando o papa. O General Bonaparte pretendia erradicar a
autoridade papal e da igreja. Ironicamente, foi a França, a “filha
mais velha da igreja,” que originalmente estabeleceu o papado
como um poder político. Agora, a nação desnudaria o papa de suas
prerrogativas.12
Sua identidade. O chifre pequeno tem se tornado um
poder político sob a aparência de igreja. Em nossa era ecumênica
tal acusação parece injusta. Afinal de contas, a Idade Escura já
acabou, e também as Inquisições e Cruzadas. A igreja hoje
trabalha pela paz mundial e patrocina organizações humanitárias.
Levantar a profecia seria fora de lugar. Mas o presente não apaga o
passado. O fato permanece de que a profecia tem sido cumprida.
Mesmo que a igreja não persegue mais, ainda aspira pela
prerrogativa de “determinar tempos” e “leis”. O dogma tem
multiplicado a revelação bíblica, e o domingo, primeiro dia da
tradição, tem substituído o Sábado do sétimo dia da revelação
bíblica. Que a igreja que Deus, cujo fim é testemunhar dEle,
encontra carga de usurpação, naturalmente nos perturba. Perturbou
grandemente o próprio Daniel. “Quanto a mim, Daniel, os meus
pensamentos muito me perturbaram e o meu semblante se mudou”
(Dan. 7:28); ver também verso 15).
110
Nossa interpretação do texto não é nova. Reformadores
como Lutero e autores judeus, tais como Isaac Abarbanel, já
anteciparam isso. Geralmente os judeus do mundo islâmico viram
no chifre pequeno um poder sucedendo o Império Romano, mas
representando Ismael (Edom), do que especialmente a igreja
(como foi o caso de Saadia Gaon, Manasseh bem Israel, Ibn Ezra,
etc.), e o jesuíta português, Blasius Viegas (1554-1559) seguiu a
linha de interpretação deles, testemunhando, sob um nome fictício,
contra sua própria igreja.
No calor do argumento, contudo, não devemos ir ao
extremo de ver os traços do chifre pequeno em todos os aspectos
da cristandade católica. A profecia denuncia a igreja católica como
uma instituição histórica e política, não o fiel como individuo. De
fato, o mal representado pelo chifre pequeno aparece em qualquer
comunidade religiosa, que permite intolerância, anti-semitismo, e
tradição humana, prevalecendo sobre o amor, respeito e fidelidade
à revelação divina.
Devemos evitar o uso inapropriado da mensagem profética.
Seu principal objetivo e lançar nova luz nos eventos históricos e
atividade divina. Assim isso não é uma desculpa para a ira justa.
Do mesmo modo, aceitar o melhor caminho da profecia não
significa necessariamente que devemos rejeitar o velho, mas em
vez disso olhar para o cumprimento de um potencial que tem
permanecido despercebido ou oculto. A pesar de suas estratégias
políticas e seus compromissos, a igreja nunca conseguiu estender a
mão no mundo. O reconhecimento da verdade da profecia não
deve levar-nos ao anti-catolicismo.
Por outro lado, devemos aceitar a verdade com coragem e
honestidade. Sinceridade não é suficiente. Deve ser acoplada com
a verdade: “santifica-os na verdade. A tua palavra é a verdade”
(João 17:17). Adaptação não é suficiente para ganhar a corrida.
Devemos também saber em que direção correr. Respeito e amor
andam de mãos dadas com a coragem e honestidade.
3.o Juizo
O veredicto não está em nossas mãos. Todos os cristãos
são, em algum grau, responsáveis em parte do mal encarnado pelo
chifre pequeno. Muitos de nós, sob as mesmas circunstâncias, teria
se comportado de um modo verdadeiro “medieval,” e teria
participado, não com menos entusiasmo, na mesma política de
111
opressão e compromisso. É por isso que o juízo está além do
controle humano. As Escrituras retratam-no como um evento
situado no tempo e no espaço, seu veredicto envolve o destino,
tanto do chifre pequeno como dos santos.
O juízo aqui descrito questiona nossos preconceitos sobre
ele. Por exemplo, não devemos esperá-lo aqui, e agora em nossas
condições presentes. O sucesso ou desgraça que encontramos ao
longo do caminho, não são sinais do juízo divino. Na Idade Média
tais crenças levaram à praticas de provas, onde o presumido réu
sofria o fogo ou água fervendo, para provar inocência. A
sociedade, mais tarde, aboliu tais práticas bárbaras na qual a
inocência dependia menos da razão e justiça do que da sorte ou
fraude.
Também não devemos esperar juízo nem mesmo na morte,
o momento fatal que sela a direção de nossa alma. Nem o juízo
que nos sobrevirá na ressurreição.
Para Daniel, o juízo é um evento único e universal
acontecendo no momento final da história humana. O evento do
juízo aparece na última parte de nosso texto, e coincide com a
ocorrência histórica do quarto animal e do chifre pequeno. O juízo
aparece na segunda parte da visão e começa pela clausula: “depois
disto, eu continuava olhando em visões noturnas” (Dan. 7:7) e pelo
“continuei olhando,” que introduz o chifre pequeno (verso 9). A
estrutura da visão claramente situa o juízo antes do fim da história
da humanidade. O Verso 26 até parece colocá-lo logo após os
1260 anos (portanto depois de 1789): “os santos lhe serão
entregues na mão por um tempo, tempos e metade de um tempo.”.
O texto então acrescenta: “mas o tribunal se assentará” (versos 25,
26).
Daniel lembra isso como o mais importante evento da
profecia. Significantemente, a estrutura chiastica do capítulo 7
coloca o juízo diretamente no centro (ver nossa estrutura do
capítulo 7). E desde que o capítulo 7 está no meio do livro de
Daniel, segue-se que o juízo é o centro de todo o trabalho de
Daniel. A tradição bíblica lembra o profeta em conexão com o
juízo divino. O livro de Ezequiel13 (Eze. 14:14-20), o único outro
livro no Antigo Testamento que se refere a Daniel, associa o
profeta com Jó e Noé, duas figuras centrais do tema do juízo de
Deus,14 no contexto de juízo (versos 13: 17-22). Do mesmo modo,
112
no Novo Testamento, a única passagem referente a Daniel lida
com o grande dia do juízo (Mat. 24:15-21, 38, 39). Finalmente, o
próprio Daniel testemunha da importância do julgamento divino
no verdadeiro nome: “Daniel” significa precisamente “juízo de
Deus.”
Juízo é o cumprimento das esperanças e nostalgias da
humanidade. Em nossas mentes conduz a idéias de crime e
punição, e inspira medo e apreensão. A Bíblia, contudo, vê juízo
do ponto de vista dos oprimidos, vítimas do sofrimento, e assim
coloca-o no contexto de salvação e vitória sobre o opressor e o
mal. A cultura israelita já reconheceu aquele fato em um nível
nacional. Os juízes de Israel eram heróis de guerra que
exterminariam o inimigo. As escrituras se referem a eles como
salvadores, moshiah (Jui. 3:9, 15; 6:36; 12:3). Este aspecto de dois
níveis do juízo de Deus é especialmente claro nos salmos, que
descrevem Deus julgando, tanto como salvador quanto como
vingador. (Sal. 18:47, 48; 58:11; 94:1-6, 22, 23; 149:4, 7, 9, etc.).
Uma descrição assim de Deus pode chocar nossas sensibilidades
modernas. Só atrair o leão para deixar ir embora o cordeiro não
adianta. Para salvar o cordeiro, alguém precisa submeter o leão. É
por isso que o termo tsedaqa, que significa “justiça,” implicando a
punição do opressor, também significa “amor,” porque, liberta o
oprimido para voltar à vida.
O capítulo 7 de Daniel também explica estas duas
dimensões do juízo divino. O juízo é pronunciado “a favor dos
santos do altíssimo” (verso 22) e contra seus inimigos. De fato, a
visão vê juízo contra um fundo de guerra e opressão: “Enquanto eu
olhava, eis que o mesmo chifre fazia guerra contra os santos, e
prevalecia contra eles” (verso 21).
Na explicação da visão (versos 26, 27) o juízo ocorre em
dois aspectos: um negativo contra o chifre pequeno, que derrota e
extermina (verso 26), e outro positivo, para os santos que recebem
o reino de Deus (verso 27). A cena do juízo é dominada pela
imagem de “trono,” “Ancião de Dias,” e “livros abertos.”
O Trono é a primeira coisa que Daniel nota. Desde o
começo, o contexto define a cena como de realeza, testemunhando
da presença invisível de um rei. Mas o trono é diferente de outros
tronos. Para descrevê-lo, Daniel usa a linguagem de Ezequiel. De
fato, é o mesmo trono! Os dois tronos dão a impressão de estar em
113
chamas (Eze. 1:27; Dan. 7:9, 10) e ambos estão montados sobre
rodas (Eze. 1:21); Dan. 7:9) O profeta Ezequiel descreve o trono
“Este era o aspecto da semelhança da gloria do Senhor,” e então
cai em adoração (Eze. 1:28). Daniel também está aterrorizado, e
usa o plural “tronos” para enfatizar. O equivalente em Português
seria “super trono” (cf. Isa. 6:1). O resto da passagem esclarece o
assunto por ter apenas uma pessoa sentada.
A visão do trono, claramente alude ao juízo de Deus. Ela
evoca o estabelecimento da justiça, e seu aspecto ardente é o
símbolo bíblico do ódio, destruição e juízo (Deut. 4:24; Sal. 18:9-
14; 21:10; 50:3; 97:3). No antigo Oriente Médio, como um todo e
em Israel em particular, juízo era função real. O rei faria decisões
legais enquanto sentado em seu trono. Esta imagem do rei que
julga, é especialmente vivida nos salmos cantados durante os
serviços do Templo. A palavra chave “o Senhor reina” está
normalmente associada à noção de juízo.
O salmo 97 entre outros (Sal. 93; 99), começa com a frase
“O Senhor reina,” continua com a descrição do trono de Deus
fundado em “justiça e equidade,” perante o qual o fogo “abrasa
seus inimigos em redor” (versos 2,3), e conclui com uma
referência explícita ao juízo e realeza de Deus: “por causa dos teus
juízos, Senhor. Pois tu, Senhor, és Altíssimo sobre toda a terra; tu
és sobremodo exaltado acima de todos os deuses” (versos 8, 9).
A visão do trono, como parte da cena do juízo, também
revela o reino divino. A monarquia não é idéia nossa de perfeição.
O povo não elege Deus, e Seu governo não inclui diferentes
partidos políticos. De fato, Sua presença domina tudo, e Ele tem
todo o controle. Mas, tal domínio era o maior desejo dos heróis
bíblicos (Sal. 139:7-9; 33:5; 119:64; 104:24; Isa. 6:3; Num. 14:21;
Hab. 3:3; Rom. 14:11; Fil. 2:10). Todos os inimigos de Deus são
exterminados. A história já não é mais arrastada nas mãos do
destino ou dos opressores. A cidade de paz e justiça, sonhada pelos
profetas, não teve sua origem em negociações. Seus muros
ressoam com o grito de vitoria completa e radical sobre o mal e a
morte.
“O Ancião de Dias” é uma expressão estranha, não
encontrada em nenhum lugar na Bíblia, apesar de expressão
similar, aparecer na literatura Ugaritíca (Cananita) chamando o
grande deus El o “rei, pai de anos” e juiz.15 A idéia conduzida
114
aqui, é aquela da eternidade do deus-juiz, um conceito reforçado
pela imagem do cabelo branco. Cercado por multidões de servos
que O assistem, o Ancião de Dias representa o próprio Deus. (cf.
Sal. 68:18; Heb. 12:22). Além disso, Ele é aquele que ascendeu ao
grande trono para reinar e julgar. Na tendência bíblica, Sua idade
avançada o qualifica melhor como juiz. Idade é sinal de sabedoria.
O Talmude faz alusão a esta passagem em Daniel, quando
menciona o cabelo de Deus como sendo preto quando Ele vai à
guerra como um jovem e branco quando sentado na corte como um
homem idoso.16 O Ancião de Dias estava presente no começo do
tempo, como Seu nome indica. Ele sabe toda ação quando ainda
não é nascida (Sal. 139:1-4). Somente Ele sabe a história inteira e
está na melhor posição para julgar. Suas “vestes... branca como a
neve” (Dan. 7:9) representa Seu caráter. Ele é um juiz que não
pode ser subornado, e Seu veredicto será totalmente objetivo. Não
tendo tido parte no pecado, Ele está pronto para condenar, Sua
faculdades morais de juízo permanecem não entorpecidas.
Somente Ele tem conhecimento do bem e do mal, um paradoxo já
enunciado em Gênesis. Quando o homem e a mulher pecaram e
mal se misturou com o bem ao ponto de ser humanamente
impossível separá-los. Quanto mais a pessoa se dedica ao mal,
menos ela o vê como tal. Somente Ele que nunca esteve sujeito ao
mal, pode verdadeiramente condená-lo.
Os livros se abrem imediatamente após o Ancião de Dias
tomar seu assento. É último processo do juízo. O profeta não
acrescenta nada mais. A Bíblia geralmente descreve Deus como
escrevendo num contexto de juízo (ver capítulo 5). A menção dos
livros no tribunal divino também implica em juízo. A função deles
é registrar todas as ações passadas, e servir como testemunhas
silenciosas, durante o juízo (Êxo. 13:9; 17:14). É por isso que o
profeta Malaquias fala que um “memorial foi escrito” (mal. 3:16-
18). Esta perspectiva de lembrança novamente relata juízo para
salvação.
Por exemplo, Deus se lembrou de Noé (Gên. 8:1), Abraão,
Isaac, Jacó (Êxo. 32:13), Raquel (Gên. 30:22), Ana (I Sam. 1:19)),
e Israel (Sal. 115:12). Nos salmos, as vítimas da opressão clamam
“Lembra-te, Senhor!” (Sal. 25:6; 74:2; 89:50, 119:49; etc.).
Mas a lembrança de Deus pode também trazer punição.
Deus se lembra de Amaleque (I Sam. 15:2), de nossas iniqüidades
115
(Sal. 79:8; Jer. 14:10), e Babilônia (Apo. 16:19) e sua iniqüidade
(Apo. 18:5).
Do mesmo modo, “livrar-se há teu povo, todo aquele que
for achado escrito no livro” (Dan. 12:1). Ainda, é também nos
livros, que Daniel testemunha a execução do chifre pequeno (Dan.
7:11, 12). O momento que o livro abre, contudo, não coincide com
a execução da sentença. O que Daniel vê nos livros é apenas o
veredicto, se culpado ou não. A sentença vem depois. Versos 11 e
12 anunciam o destino do chifre pequeno, mais especificamente do
quarto animal, carregando o chifre pequeno. A destruição do
quarto animal é total, em contraste com a destruição, apenas
parcial, dos outros três animais, cada um sendo a continuação do
anterior.
Devemos então ler os versos, anunciando a morte do quarto
animal, como antecipando um futuro distante, enquanto que,
interpretando os versos que descrevem a morte dos outros três
animais, como uma volta ao passado. Os versos 10-12: “E os livros
foram abertos. Então, estive olhando [nos livros abertos]... estive
olhando até que o quarto animal foi morto, e o seu corpo destruído;
pois ele foi entregue para ser queimado pelo fogo. (Quanto aos
outros foi-lhes tirado o domínio; todavia foi-lhes concedida
prolongação de vida por um prazo e mais um tempo.)”
Deus pretende que a visão do juízo seja uma boa notícia.
No crepúsculo da história humana, o evento do juízo é o último
raio de esperança. O juízo anuncia um novo mundo, uma nova
ordem, uma cidade de paz e justiça. A promessa do fim de nossa
miséria prediz um novo começo.
ESTRUTURA DE DANIEL 7
O Juízo
c1 O chifre pequeno
b1 O animal com dez chifres
a1 Os três animais
III. O Filho do Homem (versos 13, 14)
♦ Chegando
♦ Flashback do juízo
♦ Reino de Deus
B. Explicação da visão (versos 15-27)
119
IPrimeira explicação (versos 15-18)
♦ Os quatro animais, o juízo, o reino
II Pedido de mais explicação (versos 19-22)
♦ O quarto animal, o juízo, o reino
III Explicação final (versos 23-27)
♦ O quarto animal, o juízo, o reino
Epílogo: Pensamentos perturbados (verso 28)
1
.Norman Porteous, Daniel: A Commentary, 2nd, Ver. Ed. (Londres: 1979), p.
95; ver |L.F. Hartman and A. A. Di Lella, The Book of Daniel, Anchor Bible (New York:
1977), vol. 23, p. 208.
2
.Lacocque, The Book of Daniel, p. 122.
3
.Ver a inscrção de Nabonidus em Pritchard, Ancient Near Eastern Texts, PP.
562, 563.
4
.Donald Kagan, Steven Ozment, e Frank M. Turner, The Western Heritage,
3rd Eed. (New York: 1987), p. 59.
5
.Babylonian Talmud Kiddushin 72a.
6
.Babylonian Talmud Yoma 77a.
7
.A.Alba, Rome et le Moyen Age jusqu’en 1328 (Paris: 1964), p. 164.
8
.Ver René Grousset e Emile G. Léonard, Histoire Universelle, vol. 1, Des
origines à l’Islam, sous La direction de G. Grousset et D. G. Leonard (Paris: 1968), p.
349; cf. Charles A. Robinson, Jr., Ancient History: From Prehistoric Times ti the Death
of Justinian (new York: 1951), pp. 658-665.
9
.P. De Luz, Histoire dês Papes (Paris: 1960), vol. 1. p. 62.
10
.L´Eglise de St Augustin à l´époque moderne (Paris: 1970), vol. 1, p. 32
11
.Genèse de l´Antisémitisme (Paris: 1956), p. 196.
12
. O livro de Apocalipse descreve o mesmo evento. Parece o mesmo animal de
10 chifres, primeiro ferido depois completamente curado (Apo. 13:3, 12). A História
mostra que a autoridade papal, apesar de ter sido sacudida no raiar do século dezoito, foi
restaurada no reavivamento católico do século dezenove (ver Y.Congar, L´Eglise de St.
Augustin à l´époque moderne, PP. 414, 415).
13
. A pequena diferença na pronuncia do nome de Daniel (em Ezequiel “Danel,”
sem o yod) não é recebido como um argumento válido contra nossa identificação.
Sabemos que os Massoretas adicionaram o yod muito mais tarde, em torno do décimo
século, como uma vogal. Além disso, a tradição Massorética sugere, na margem do texto
de Ezequiel 28:3, a leitura alternativa (qere) “Daniel.” Este método de leitura dupla é
também atestado para outros nomes. Por exemplo, Gênesis 46:24 chama o filho de
Naftali, Jahtseel e Jahtsiel (com um yod) em II Cron. 7:13; do mesmo modo, o nome do
rei sírio Hazael é escrito com a letra vogal hey em II Reis 8:8 e sem em II Reis 8:9.
14
. A visão de Ezequiel 14 é datada do sexto ano de Jeoiaquim (Eze. 8:1; 1:2),
isto é, 13 anos depois de Daniel ter chegada na Babilônia, sinal do juízo de Deus contra
Israel (Daniel 1). Ezequiel estava bem acostumado com Daniel, e sua alusão a ele no
contexto mencionado duas vezes na passagem (Eze. 14:14, 20), indica os três níveis do
juízo divino, variando do geral para o particular: a terra (Noé), o povo de Israel (Daniel),
a família e o individall (Jó).
120
15
.Ver I AB 1-7; cotado em Lacocque, PP. 142, 143.
16
. Babylonian Talmud Hagigah 14a.
17
.A. Caquot, “Les Quatres bêtes ET Le Fils d´Homme (Daniel 7),” in Semitica
17 (1967): 31-71.
Capítulo 8
A GUERRA DE KIPPUR
121
A luta conclui com um estranho ritual, cuja natureza
preocuparia Daniel por toda a visão. Mas a perturbação de Daniel
difere do infortúnio daquela que aconteceu aos israelitas em 1973,
durante a guerra do Yom Kippur deles. Aquela que ele vê (versos
3-12) e ouve (versos 13, 14), vai além dos limites histórico e
geográfico de Israel: A guerra de Kippur de Daniel acontece em
uma escala cósmica.
124
5.E finalmente, como no capítulo 7, o chifre pequeno
sucede o reino dos animais, e fica até o fim como poder único.
Indubitavelmente, é o mesmo daquele encontrado no capítulo 7.
A única diferença seria sua origem. Diferente do chifre
pequeno do capítulo 7, que emerge de um dos quatro animais, o
chifre pequeno do capítulo 8 surge de um dos quatro ventos do céu
(Dan. 8:8). Esta expressão nos leva de volta às origens dos quatro
animais no capítulo 7: o mar é sacudido pelos quatro ventos do céu
(Dan. 7:2). O chifre pequeno teria então emergido de um daqueles
ventos e não de um dos chifres, como algumas traduções parece
indicar. Antes de tudo, normalmente o chifre cresce da cabeça e
não de outro chifre. Alem disso, no livro de Daniel, quando um
chifre aparece depois do anterior, é sempre às custas da queda de
algum deles. (Dan. 7:8; 8:8).
Gramaticalmente falando, a expressão hebraica traduzida
como “de um deles” (Dan. 8:9)) deve na verdade ser lida como “de
uma [feminino] deles [masculino],” sugerindo uma ligação com a
expressão precedente: “os quatro ventos [feminino] do céu
[masculino].” Na poesia hebraica, isto é conhecido como
paralelismo gramatical com a aliteração de t e m:
Ventos (F) do céu (M): ruhot hashamaim
De um (F) deles (M): ahat mehem (versos 8, 9)
Através do uso dos quatro ventos, Daniel faz alusão aos
quatro animais. Ao mencionar que o chifre veio de um dos ventos,
ele está indicando que ele se origina em um dos animais. O
profeta, propositalmente, não faz nenhuma menção dos animais
para manter a atenção de seus leitores somente no carneiro e no
bode.
4.A Associação do Carneiro e o Bode
A questão é, por que a visão do capítulo 8 substitui o ciclo
de quatro animais com apenas dois, e mais insignificante nesse
caso. Ela omite o primeiro e o quarto reinos, ambos considerados
primeiramente por Daniel: Babilônia, a residência presente de
Daniel representada pela “cabeça” e o “leão” (Dan. 2:37, 38; 7:4) e
Roma, o estranho reino que perturbaria profundamente Daniel
(Dan. 2:40; 7:7, 19). E por que este repentino recuo do fantástico
ao familiar, do bizarro animal hibrido, representando reinos
pagãos, a dois animais comuns, classificados como limpos pela lei
levítica?
125
Se Daniel decidiu usar os dois reinos do meio como a
principal característica de sua visão, é exatamente por causa de sua
insignificância. Seu principal foco é na verdade, não os reinos em
si, mas os dois animais: o carneiro e o bode.
Esta associação se torna significante, no contexto do maior
festival anual judaico, o Yom Kippur, o Dia da Expiação (Lev.
16:5). O Yom Kippur tem como seu sacrifício tradicional, a oferta
dual de um carneiro e um bode. Além de suas representações dos
reinos Medos-Persas e Grécia, os dois animais também evocam o
Dia da Expiação.
A atmosfera levítica se define até mais, na ação do chifre
pequeno, que envolve o “holocausto contínuo,” “pecado,” e o
“santuário” (Dan. 8:11). A passagem até menciona o principal
oficiante do sistema sacrifical, o sumo sacerdote. A palavra
hebraica traduzida como “Príncipe” ou “chefe” (SAR; versos 11,
25) é o termo técnico para o sumo sacerdote (Ezra 8:24). No
contexto do livro de Daniel a palavra se refere a Michael (Dan.
10:5, 13, 21; 12:1), que está vestido de linho, como o sumo
sacerdote oficiante, durante o Dia de Kippur (Lev. 16:4).
Mas, aproxima cena é ainda mais explícita em sua
interferência com Dia de Kippur.
2.Uma Criação
De acordo com Levíticos 16, este festival tem implicações
cósmicas. O povo submeteu “toda a iniqüidade do povo” ao juízo
divino. A expressão “todos seus pecados” ocorre como o motivo
principal em Levíticos 16 (versos 21, 22, 30), e também aparece
no salmo inspirado por este grande festival (Sal. 130:8). O Dia da
Expiação é o momento onde os pecados de todo Israel recebem
expiação, ou perdão. Perdão foi assegurado durante o ano através
do sacrifício “continuo”, mas no Dia da Expiação, ele necessitou
da substituição de outros sacrifícios. A expiação do pecado já não
é um assunto individual. O Dia da Expiação era o único tempo,
quando a totalidade do povo de Israel e todo o espaço do santuário,
eram totalmente “purificados” (Lev. 16:17, 33, 34). Era também
único tempo no qual o sumo sacerdote podia entrar no Santo dos
Santos, no santuário, e fisicamente se apresentar a Deus (Êxo.
30:6-10; Lev. 16:2, 14). Era o único tempo quando o Grande
Perdão de Deus se estendia além do perdão simples, individual. O
pecado não era somente perdoado, mas banido do campo. O sumo
sacerdote enviava “Azazel”, a encarnação do pecado, para o
deserto (verso 21).
Mas, esta cerimônia representa mais do o juízo. A limpeza
do santuário é, na verdade, o sinal da purificação total de toda a
terra, no dia do juízo de Deus. A teologia Bíblica entende que os
israelitas são os representantes do mundo inteiro que Deus criou. A
descrição da construção do santuário em Êxodo 25-40, faz paralelo
com a narração da criação do mundo em Gênesis 1:1-2:4. Ambos
ocorrem em sete estágios e ambos terminam com a mesma frase
técnica: “acabou a obra” (Gên. 2:2; Êxo. 40:33). A construção do
Templo de Salomão, também acontece em sete estágios, e termina
com as mesmas palavras “acabou a obra” (I Reis 7:40, 51). A frase
aparece apenas nestas três passagens da Bíblia, e claramente indica
o relacionamento entre o santuário-templo e Criação. Os Salmos
também testemunham desta ligação: “Edificou o seu santuário,
como os lugares elevados, como a terra que fundou para sempre”
(ver Sal. 789:69; cf. 134:3; 150:1, 6).
129
De certo modo, Kippur nos lembra, então, do Sábado
semanal, evocado como naquele dia da criação do mundo (Êxo.
20:11; cf. Gên. 2:1-3). De forma significante, de todos os festivais
descritos no livro de Levíticos, encontramos o livro destacando
somente estes dois, o Sábado e o Dia da Expiação, separados como
sendo um dia quando o povo deve “não trabalhar,” como oposto
de fazer, “trabalho regular” (Lev. 23:3, 28, 35, etc.).
Para os israelitas, Kippur simboliza a purificação do
mundo, uma verdadeira re-criação. É por isso que Daniel usa a
expressão “tardes e manhãs” (Dan. 8:14), uma frase que ocorre
estritamente no com texto da Criação (Gên. 1:5, 8, 1’3, 19, 23, 31).
A tradição judaica também associou a idéia da Criação,
como aquela do juízo, o dia de Kippur. O Midrash antigo,
interpretando os primeiros versos da Criação, declara: “E houve
uma tarde, e houve uma manhã, um dia, isto significa que o Santo,
Bendito seja Ele, deu a eles (Israel) um dia, o qual não é outro
senão o dia de Kippur.”11
As orações recitadas no Yom Kippur lembram ao crente
que o Deus que julga é também o Criador que perdoa, “Bendito
sejas tu, Ó Senhor nosso Deus, Rei do Universo, que abre a porta
de Sua graça, e abre os olhos daqueles que esperam pelo perdão
dEle que criou luz e escuridão, e todas as coisas.”12
“Como pode o humano ser justo perante seu Criador,
quando ele fica nu perante Ele?”13
A profecia de Daniel vê, no horizonte da história, um
Kippur celestial descrito em termos de juízo e criação. O Kippur
que os israelitas celebraram no deserto, não é senão um traçado
grosseiro do Kippur celestial. Os dois eventos pertencem a duas
ordens totalmente diferentes. E ainda, para compreender o Kippur
divino, é preciso entender o Kippur terrestre. Sua mensagem
espiritual nos lembra, de que a história vai chegar ao um fim, que o
Deus-Juiz vai se levantar para selar o destino da raça humana, e
preparar para eles um novo reino.
Agora entendemos a relevância de ambos, o juízo e a
criação, durante tais momentos na história. Na verdade, o juízo e a
criação realizam o mesmo caminho. O Juízo elege um novo povo,
arrancado das garras do pecado e do sofrimento, um povo
apartado, separado dos outros povos, mas também um povo
perdoado. A Criação molda um mundo novo, liberto da sombra da
130
morte, um planeta purificado. Neste contexto, o juízo é sinônimo
de criação, como ambos implicam numa separação radical.14 O
Kippur é simultaneamente o anúncio do juízo divino e a esperança
da re-criação.
Por outro lado, o anúncio do juízo de Deus convida-nos ao
arrependimento. Yom Kippur é o dia para o israelita “negar a si
próprio” (Lev. 16:29, 31), o dia de assumir responsabilidade por
suas ações. Deus “criou [o] mais profundo do ser” e pesou todas as
ações (Sal. 139). Mas acreditar no juízo divino não implica em
uma atitude desolada, de humilhação em miséria e iniqüidade,
sempre passando por juízo. Ao contrário, “alegra-te... anime-te o
teu coração nos dias da tua mocidade, e anda pelos caminhos do
teu coração, e pela vista dos teus olhos; sabe, porém, que por todas
estas coisas te trará a juízo” (Ecl. 11:9). O Juízo não exclui a
alegria da vida – de preferência implica isso. Nosso anúncio do
juízo provê a estrutura na qual sentimos a vida.
A promessa da re-criação também valida nossa esperança.
Podemos esperar mudanças reais. A verdadeira salvação é
histórica, não somente espiritual. Não podemos salvar, a nós
mesmos, em nossa condição presente. Somente Deus pode, e para
fazer isso Ele precisa transformar o mundo – o significado
essencial por trás do festival de Kippur. Uma velha história fala de
10 rabinos, corretos e justos, torturados até a morte pelos
Romanos. O livro de orações narra que uma voz então rasgou
através dos céus e clamou: É essa então a recompensa do justo?” à
qual Deus respondeu: “cala-te! ou eu destruo o mundo!” Não há
outra solução para o problema do mal. A salvação implica a
destruição da verdadeira causa do sofrimento e morte. Não é uma
experiência mística ou psicológica, salvação é um evento de
proporções cósmicas, que vem do além e está situada na história.
Lembramos que o capítulo 7 localiza o juízo “depois de um
tempo, tempos e metade de um tempo,” isto é, depois de 1798. O
capítulo 8 é ainda mais explícito: o reino do chifre pequeno duraria
2300 tardes e manhã. A expressão “tarde-manhã,” emprestada da
história da Criação, representa um dia que devemos entender, no
sentido profético, como um ano (representando 2300 anos). Mas
esta nova informação não ajuda muito. Um período de tempo sem
nenhuma indicação de seu ponto de partida poderia estar suspenso
em qualquer período da história. O anjo Gabriel simplesmente
131
especifica que ele leva ao fim: “Entende, filho do homem, pois
esta visão se refere ao tempo do fim”(verso 17; também ver verso
26).
Daniel está “atemorizado pela visão” que ele acha ser
“além do entendimento” (eyn mebin, verso 27). Deixamos o
capítulo 8 com uma nota de frustração porque precisamos de mais
informações para entender sua visão. Mas a compreensão que
devemos ter, não é de ordem filosófica. Nossa inteligência não
tropeça aqui, na complexidade de uma verdade abstrata, mas no
tempo do evento previsto. O profeta entende que ele envolve a
questão do tempo do fim. O livro de Daniel emprega a mesma
palavra, “entender” (Bin) para a profecia dos 70 anos (Dan. 9:22) e
depois para a profecia das setenta semanas. 15 O que ele não
entende é exatamente quando no fim do tempo. O foco é menos de
implicação teológica da profecia do que um evento que vai
acontecer em um dado momento.
Até receber uma data de inicio, a profecia permanece uma
abstração, sujeita a dúvida. Para se tornar o objeto de esperança, a
promessa de re-criação deve ser inserida na cronologia da história.
Juízo e re-criação são as duas faces do Kippur. Não é de
surpreender que o livro de Apocalipse menciona-as como os dois
vetores da fé durante os últimos dias. Entrando no ciclo de Daniel
7, exatamente antes da vinda do Filho do homem – isto é, durante
o Kippur celestial – as profecias de Apocalipse 13 e 14 mencionam
um mensageiro produzindo a mensagem dual de juízo e criação:
“dizendo com grande voz: Temei a Deus, e dai-lhe glória, porque é
chegada a hora do seu juízo; e adorai aquele que fez o céu, e a
terra, e o mar, e as fontes das águas” (Apo. 14:7).
De acordo com o livro de Apocalipse, que surge do livro de
Daniel, os últimos dias ressoarão com uma nova adoração,
adotando as duas noções de juízo e criação. Esta adoração será
mais que uma experiência emocional ou espiritual. Ela vai brotar
da esperança no juízo divino e salvação, e fé na criação. Ainda
mais, esta adoração vai testemunhar da verdadeira fé na Bíblia, o
livro que começa, de fato, com criação (Gên. 1; Mat. 1; João 1) e
termina com juízo e salvação (Mal. 4:2; II Cron. 36:21-23; Apo.
22:17-21)
132
ESTRUTURA DE DANIEL 8
I.visão
O que ele vê (versos 3-12):
1. “Eu vi... e observei”
♦ o carneiro (versos 23, 24)
2. “Eu vi... e observei”
♦ o bode com um chifre (verso 5-8)
♦ os quatro chifres (verso 8b)
♦ chifre pequeno (versos 9-12)
O que ele ouve (versos 13, 14)
“Kippur” (versos 13, 14)
II Interpretação da Visão
1. O que ele vê: aparência de um homem (verso 15)
2. O que ele ouve:
♦ Faz entender a visão (versos 16-19)
♦ Carneiro: Medos e Persas (verso 20)
♦ Bode: Yavan (verso 21)
♦ Quatro chifres: quatro reinos (verso 22)
♦ No final:
• surgimento de um poder (versos 24, 25a)
• sucesso (versos 24, 25a)
• queda (verso 25b)
♦ Visão das tardes e manhãs (verso 26).
1
.Cf. Charles Bounflower, In and Around the Book of Daniel (Londres: 1923),
p. 217.
2
.Herodotus, 5. 49.
3
.Robinson, p. 336
4
.Miqraoth Gdoloth.
5
.Ver Levíticos 16:30 na Bíblia Septuaginta.
133
6
.Miqraoth Gdoloth
7
.Tradução do autor do Livro de Oração, Mahzor minoroch hachana weyom
hakippurim, primeira parte,31.
8
.“Atonement, Day of” The Jewis Encyclopedia (!902)
9
.Ver Ensiklopedia Miqraoth 3 (1965), 595; cf. K. Hrubi, “Le Yom ha-
Kippurim on Jour de l’Expiation,” Old Testament Studies 10 (1965: 58ff. Notar também
que o Beney Israel celebra os dois festivais como um (Van Gondoever, Fêtes et
calendriers bibliques (1967), p. 57ff.
10
.Babylonian Talmud, Rosh Hashana, 16b.
11
.Midrash Rabbah, Genesis 4. 10.
12
.Yotser leyom Kippur.
13
.Mosaph leyom Kippur.
14
.Gordon J. Wenham, Genesis 1-15, Word Bíblical Commentary, vol. 1 (Waco,
Texas: Word, 1987), p. 18.
15
.Ver também Dan. 12:7, 8, que liga o verbo “entender” ao período “um
tempo, tempos e metade de um tempo” e “o tempo do fim” (versos 9, 11).
134
Capítulo 9
135
Daniel 9:2: “eu, Daniel, entendi pelos livros, que o número de
anos, de que falara o Senhor ao profeta Jeremias, que haviam de
durar as desolações de Jerusalém, era de setenta anos.”
A visão precedente deixou um gosto de desapontamento.
Por um instante Daniel pode ter chegado á conclusão de que a
devastação de Jerusalém duraria 2300 anos. Mas depois de
consultar o livro de Jeremias, ele se encontra confiante. O exílio
não excederia 70anos. “Porque assim diz o Senhor: Certamente
que passados setenta anos em Babilônia, eu vos visitarei, e
cumprirei sobre vós a minha boa palavra, tornando a trazer-vos a
este lugar... Então me invocareis, e ireis e orareis a mim, e eu vos
ouvirei” (Jer. 29:10-12; cf. 25:11, 12).
Na conclusão da Bíblia Hebraica, o livro de Crônicas
reformula a profecia de Jeremias, tornando este tempo uma
referência direta a Ciro. Assim para o período de 70 anos em si, a
passagem vê isso como uma referência ao ano Sabático (7 x 10):
“o rei dos caldeus (Nabucodonosor)... todos os vasos da
casa de Deus... tudo levou para Babilônia... e aos que escaparam
da espada, a esses levou para Babilônia, e se tornaram servos dele
e de seus filhos, até o tempo do rei da Pérsia, para se cumprir a
palavra do Senhor proferida pela boca de Jeremias, até haver a
terra gozado dos seus sábados; pois por todos os dias da desolação
repousou, até que os setenta anos se cumpriram. Ora no primeiro
ano de Ciro, rei da Pérsia, para que se cumprisse a palavra do
Senhor proferida pela boca de Jeremias, despertou o Senhor o
espírito de Ciro, rei da Pérsia, de modo que ele fez proclamar por
todo o seu reino, de vida voz e também por escrito, este decreto:
Assim diz Ciro, rei da Pérsia: O Senhor Deus do céu... me
encarregou de lhe edificar uma casa em Jerusalém, que é em Judá.
Quem há entre voz de todo o seu povo suba, e o Senhor seu Deus
seja com ele.” III Cron. 36:18-23).
Portanto, dos 70 anos, começando em 605 AEC com a
destruição de Jerusalém (Dan. 1), 68 anos haviam se passado e até
então nada aconteceu. O povo ainda está no exílio e Jerusalém em
ruínas. Fortificado, por sua própria experiência com profecia,
Daniel se apega a esta última promessa. Ele desenvolve um
interesse renovado em profecias, através de eventos do ano
passado. Tendo testemunhado seu cumprimento parcial, ele anseia
por mais. Sentindo as 70 semanas se escoando lentamente, sem
136
nenhum sinal de mudança, Daniel se lançou ele mesmo aos pés de
Deus em oração.
semanas B1
X setenta
A1 setenta
143
O chiasma já aponta para a natureza daquelas semanas ao
fazer um paralelo, “setenta” com “setenta” e “anos” com
“semanas.” Desde o inicio, o texto de Daniel 9, deve nos dar uma
diretiva de qual linha de interpretação seguir: que devemos ler
estas semanas como semanas de anos. Além disso, imediatamente
seguindo o capítulo 9, as primeiras palavras do capítulo 10
confirmam de modo direto, a interpretação dada acima. Quando
ele menciona 3 semanas de jejum, o texto escolhe adicionar
exatamente “três semanas de dias” (verso 2, tradução literal), a
única ocorrência em toda a Bíblia de uma distinção tão cuidadosa,
como se para distinguir entre dois tipos de semana: a semana de
anos em Daniel 9 e a semana de dias no capítulo 10.
2.A equação de “dia-ano” aparece em toda a Bíblia.
Narrativas, muitas vezes, empregam a palavra “dias” (yamim) no
sentido de anos, onde a maioria das traduções atualmente traduz
por “anos” (ver Êxo. 13:10; Juí. 11:40; I Sam. 1:21; 2:19; 27:7;
Num. 9:22; I Reis 11:42; Gên. 47:9, etc.). As passagens poéticas
da Bíblia contêm muitos paralelismos entre “dias” e “anos”: “São
os teus dias como os dias do homem? Ou são os teus anos como os
anos de um homem?” (Jó 10:5); “Considero os dias da
antiguidade, os anos dos tempos passados” (Sal. 77:5); “a apregoar
o ano aceitável do Senhor e o dia da vingança do nosso Deus” (Isa.
61:2).
Este princípio também aparece nos testos Levíticos. Por
seis anos os lavradores israelitas trabalhavam sua terra, mas no
sétimo ano ela tinha de ser deixada ociosa. As Escrituras chamam
o sétimo ano de um descanso sabático, como o sétimo dia da
semana (Lev. 25:1-7), com a diferença que era um “Sábado de
anos” e não um “Sábado de dias.” A Bíblia usa a mesma
linguagem em relação ao jubileu: “contarás sete sábados de anos,
sete vezes sete anos” (verso 8).
O principio também aplicado à profecia. “Assim, os 40
dias, durante os quais os espias exploraram Canaã, se tornaram nos
40 anos vagueando no deserto. “Segundo o número dos dias que
espiaste a terra, a saber, quarenta dias, levareis sobre vós as vossas
iniqüidades por quarenta anos, um ano por um dia” (Num. 14:34).
Do mesmo modo Deus deu ordem ao profeta Ezequiel para deitar
sobre seu lado esquerdo, por muitos dias, cada dia simbolizando
144
um ano. “Eu fixei os anos da sua iniqüidade, para que eles sejam
contados em dias” (Eze. 4:5).
3.Tanto a tradição judaica como cristã tem entendido as
semanas de Daniel, como semanas de anos. Entre numerosos
trabalhos, citamos textos como da literatura helenística no Book of
Jubilees (terceiro/segundo séculos AEC), o Testament of Levi
(primeiro século AEC), I Enoch (segundo século AEC); na
literatura de Qumran (segundo século AEC) tais textos como II Q
Melchitsedeq, 4 Q 384-390 Pseudo-Ezequiel, o Damascus
Document; na literatura rabínica, textos como o Seder Olam
(segundo século EC), o Talmud, o Midrash Rabbah, e mais tarde
os exegetas clássicos da Idade Média, como Saadia Gaon, Rashi,
Ibn Ezra no Miqraoth Gdoloth.2 Todos testemunham desde os
tempos mais antigos a validade de nossa linha de interpretação. O
princípio de interpretação de dia-ano, é provavelmente o mais
antigo e o mais sólido princípio na exegese de nossa passagem.
Semanas Indivisíveis. As semanas de anos da visão são
supostas a levar à vinda do Messias: “até o ungido príncipe sete
semanas e sessenta e duas semanas... e depois dessas sessenta e
duas semanas deve ser tirado o Messias, e ninguém por ele” (Dan.
9:25, 26; tradução literal).
A vinda do Messias é para ocorrer depois de 62 semanas,
que são adicionadas às sete semanas. Não existe quebra entre as
sete semanas e as 62 semanas, como algumas traduções podem
indicar. Nem o texto massorético – isto é o texto pontuado e
vocalizado pelos Massoretas no décimo século EC (nossa versão
hebraica atual) – indica o acento disjuntivo (Athnakh), que
indicaria uma pausa após “sete semanas.” Mas muitos elementos
apontam para continuidade.
1.A primeira razão é lógica e contextual. Já a introdução
soma as semanas como 70: “Setenta semanas estão decretadas
sobre o teu povo, e sobre a tua santa cidade” (verso 24). Além
disto, se não tomarmos as semanas no sentido de anos, uma
ruptura depois de sete semanas seria ilógica, indicando que o
Messias teria vindo 49 anos depois de 457 AEC (sete vezes sete)
em lugar de 483 anos depois daquela data (69 vezes sete).
2.A segunda razão é estilística.3 O autor bíblico construiu a
estrutura do texto, sobre os dois temas entrelaçados, do Messias e
Jerusalém, cada um com uma palavra chave. Cada vez que o texto
145
se refere ao Messias (A1, A2, A3), a palavra “semanas” (shabuim)
aparece, enquanto cada vez que o texto fala de Jerusalém (B 1,B2,
B3) a palavra “trincheira”/“decreto” (hrs) aparece. Note a estrutura
literária de Daniel 25-27 (tradução literal):
A1 Vinda do Messias (verso 25)
(desde a saída da palavra para restaurar e construir
Jerusalém), até “o” Príncipe Messias, 7 semanas
e 62 semanas.
B1 Construção da cidade (verso 25b)
ela será restaurada e construída com praças e
trincheiras em um tempo de tribulação.
A2 Morte do Messias (verso 26a).
depois das 62 semanas, ele será cortado sem
nenhuma ajuda.
B2 Destruição da cidade (verso 26b).
e o povo do príncipe agressivo destruirá a cidade e o
santuário; seu fim será em uma inundação; até o fim
da guerra está decretado desolações.
A3 Aliança como Messias (verso 27a).
E ele fortalecerá uma aliança com muitos por uma
semana; e no meio da semana ele fará o sacrifício e
a oferta cessar para sempre.
B3 Destruição da cidade (verso 27b).
e nas asas da abominação, desolações até o fim, e
então o que foi decretado será derramado sobre o
poder desolador.
As mesmas duas palavras chave, aparecem cada vez, em
seus respectivos contextos (“semanas” no contexto do Messias, e
“trincheira/decreto” no contexto de Jerusalém). Tal característica
literária se refere a sete e 62 semanas somente ao Messias e não
para Jerusalém (assim como “trincheira/decreto” está relacionado
para Jerusalém e não para o Messias). Então, concluímos da
estrutura, que a quebra viria somente depois das 62 semanas (e não
depois das sete semanas), como no caso das antigas traduções,
como a Bíblia Septuaginta, a Bíblia Siríaca, e até a versão Qumran
do texto.4
3.A terceira razão deriva da sintaxe e uso do assento
disjuntivo massorético, o athnach anexado á palavra “sete.”
Realmente o uso do athnach não significa sempre separação. Ele é
146
muitas vezes usado para marcar uma ênfase.5 Assim em Gênesis
1:1 o athnach está colocado sob o verbo bara (criar) obviamente
não para marcar uma separação entre este verbo e seu objeto
complementar, “céus e terra” mas de preferência, para enfatizar a
operação divina da criação. Se o athnach tivesse sido tomado
como um disjuntivo completo, isso atrapalharia o significado da
sentença, fazendo-o ler “no começo Deus criou. O céu e a terra.”
Outro exemplo aparece em Genesis 22:10 no qual o athnach está
colocado na palavra “faca”, não para fazer a separação, mas para
marcar aqui também uma ênfase, uma pausa expressando a idéia
de que a faca está suspensa. O efeito do athnach não é sintático e
não deve ser interpretado como fazendo uma separação. Ele
enfatiza a faca, que ameaça Isaac, e assim sugere algum tipo de
suspensão. Do mesmo modo Daniel 9:24 o athnach está colocado
na palavra “sete”, para enfatizar a importância do número sete na
mensagem profética. É notável, realmente, que a experiência
profética de Daniel começa (Dan. 9:2) com a visão dos 70 anos (7
x10) e conclui com a visão de 7 semanas (7 x 7 x 10). Também
simbólico, é o modo de como as 70 semanas estão divididas para,
de novo, salientar o número 7. Ele marca em Daniel 9:25 o inicio
das 70 semanas (7 semanas), e nos versos 6-27, o fim das 70
semanas (1 semana = 7 dias). A razão para esta ênfase sobre o
número 7 é obviamente para conduzir à idéia de salvação completa
e final, ligada à vinda do Messias.
Então, as semanas de Daniel 9 constituem uma soma
indivisível. Devemos ler as 62 semanas em conjunto com as sete
semanas. Com base na data do início da profecia (457 AEC) e sua
duração (70 semanas de anos) se torna possível determinar o fim
da profecia e descobrir o evento para o qual a profecia leva.
3.O Fim da Profecia
Sua Vinda. A vinda do Messias é esperada então por 69
semanas de anos, isto é, 483 (69 x 7) do ponto de partida, 457
AEC. A sétima semana seria então, o ano 27 de nossa era. O
aparecimento de um indivíduo chamado “Cristo” (tradução grega
da palavra Ungido/Messias) marcaria este ano. É precisamente o
ano quando Jesus foi batizado e “ungido” pelo espírito (Lucas
3:21, 22). Lucas data o evento no décimo quinto ano do reinado de
Tibério Cesar (verso 1).6 Jesus inaugurou Seu ministério, como
Messias, ao ler publicamente, no texto de Isaias, a descrição de
147
Sua própria obra em termos de Jubileu: “O espírito do Senhor está
sobre mim, porquanto me ungiu para anunciar boas novas aos
pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos, e
restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os
oprimidos, e para proclamar o ano aceitável do Senhor” (Lucas
4:18, 19).
Ao mencionar o Jubileu, Jesus se situa diretamente na
perspectiva da profecia das 70 semanas, a qual descreve o mesmo
evento, também em termos de Jubileu (ver abaixo). Assim, Jesus
define, a si próprio, como o cumprimento da profecia: “Então
começou a dizer-lhes: Hoje se cumpriu esta escritura aos vossos
ouvidos” (verso 21).
Sua Morte. O texto da profecia vai tão longe, a ponto de
predizer a morte do Messias: “E depois de sessenta e duas semanas
será cortado o ungido... e na metade da semana fará cessar o
sacrifício e a oferenda” (Dan. 9:26, 27, tradução literal).
A violência, implicada na morte do Messias, o texto faz
pelo verbo “cortar” (krt na forma Niphal: passivo). De modo
interessante, o verbo nesta forma, normalmente designa, nas partes
legais do Pentateuco, uma pessoa condenada à morte. O verbo está
em um tempo que implica uma ação brutal e definitiva (hebraico
imperfeito). Mas as Escrituras também descrevem a morte do
Messias em termos Levíticos. O verbo krt pertence ao contexto da
aliança, tornada possível, através dos sacrifícios. Em hebraico, o
verbo krt sempre acompanha a palavra aliança (Gên. 15:18; Jer.
34:13), por que em hebraico, a aliança é corte (krt) A palavra krt é
rica em conotações de aliança e de sacrifício, necessário, do
cordeiro. (Gên. 15:10; Jer. 34:18).
Em outras palavras, Daniel anuncia a morte do Messias, em
termos evocativos da aliança, manifestada pela morte do cordeiro
no sistema Levítico. A introdução da profecia das 70 semanas já
faz alusão a isto ao mencionar a expiação do pecado (Dan. 9:24).
A profecia, dessa forma, identifica o Messias com o
sacrifício da aliança. Como o carneiro, Sua morte tornou possível a
aliança e garantiu o perdão divino. Tudo isso era a linguagem que
os israelitas, vivendo em um contexto onde o sacrifício era uma
parte da vida diária, poderiam facilmente entender. O profeta
Isaias, usaria as mesmas palavras, ao descrever o servo sofredor –
não representando nem Israel nem o profeta 7 - que também precisa
148
morrer como um cordeiro de modo a o garantir perdão e a
salvação: “mas o Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de todos
nós. Ele foi oprimido e afligido, mas não abriu sua boca; como um
cordeiro que é levado ao matadouro, e como a ovelha que é muda
perante os seus tosquiadores, assim ele não abriu a boca” (Isa.
53:6, 7). Assim não é de surpreender que os judeus, no tempo de
Jesus, reconhecessem o Messias como “o Cordeiro de Deus, que
tira o pecado do mundo!” (João 1:29), e estavam habilitados a
discernir, nos sacrifícios diários oferecidos no Templo, uma
prefiguração do Salvador-Messias, como “a sombra dos bens
futuros” (Heb. 10:1).
Conseqüentemente, Sua morte deveria resultar na anulação
dos sacrifícios: “Ora, onde há remissão destes, não há mais oferta
pelo pecado” (verso 18), exatamente como o profeta Daniel tinha
predito: “Ele... fará cessar o sacrifício e a oblação” (Dan. 9:27).
A morte do Messias era então para ocorrer no meio da
septuagésima semana (verso 27). “Meio” é uma tradução do termo
hebraico hatsi melhor do que “metade,” como algumas versões
parecem deduzir. Em certos contextos a palavra não significa
“metade,” porém, em uma situação envolvendo um período de
tempo ela sempre significa “meio,” como no caso de nossa
passagem (ver Êxo. 12:29; Jos. 10:13; Juízes 16:3; Rute 3:8; Sal.
102:24). “No meio da semana” significa três anos e meio depois
do ano 27, isto é, o ano 31, o ano da Crucificação. O tempo e a
importância, da morte de Jesus de Nazaré, concordam
perfeitamente com a profecia.
A queda de Jerusalém. Em seguida à morte do Messias, o
profeta Daniel focaliza o destino de Jerusalém e do Templo: “E o
povo do príncipe agressivo deverá destruir a cidade e o santuário;
seu fim deverá ser em uma inundação; até o fim da guerra é
decretado, desolações... e sobre a asa abominações, desolações até
o fim, e então o que foi decretado, será derramado sobre o poder
desolador” (Dan. 9:26, 27, tradução literal).
A profecia é suficiente clara. Ela se refere à queda de
Jerusalém e a destruição do Templo, mas não data o evento. A
profecia das 70 semanas se restringe a data cronológica do evento
do Messias (ver acima). Ela apenas nos informa que haverá
“guerras”, “desolações,” e “abominações,” e que a tragédia
149
ocorrerá, cronologicamente, algum tempo depois da morte do
Messias.
Um forte consenso na tradição judaica, reconhece que esta
profecia se referia aos romanos, que “inundaram” para dentro da
cidade e “devastaram” o Templo, resultando em “desolação” total.
Flavius Josephus,8 que aparentemente testemunhou o evento, o
Talmud,9 e os grandes rabinos medievais10 Rashi, Ibn Ezra, etc.,
todos concordam que devemos aplicar esta visão profética ao cerco
de Jerusalém, pelas legiões de Vespasiano, e finalmente por Tito
no ano 70 EC.
Note que a profecia não cita o evento como punição de
deus sobre seu povo. Todas as referências da história de Jerusalém
(sua reconstrução, assim como sua destruição) servem como
marcos para situar o evento do Messias. Os romanos, de qualquer
forma, são denunciados como o mal. O verbo “destruir” (yashhît
em Dan. 9:26) também aparece em Daniel 8:24 com o poder do
mal, o chifre pequeno, como seu sujeito. Também os romanos são
o objeto direto da retribuição divina que ‘será derramada sobre
eles,’ linguagem que implica Deus como agente.
Agora, se o texto implica uma possível conexão entre a
queda de Jerusalém e os pecados de Israel, ele nunca sugere o fim
do povo judeu, como ele o faz para os romanos. Ele menciona sim
a conclusão do sistema sacrifical. E isso não implica a fim da
teocracia judaica, visto que o último rei davídico agora se assenta
num trono celestial. Mas o povo judeu sobrevive e ainda mantém a
adoração e o testemunho do Deus de Abraão, Isaac, Jacó, e Daniel.
Muitos deles reconheceram Jesus como seu Messias e assim
levaram o antigo testemunho para distantes partes do mundo.
A aliança. É notório que o profeta Daniel não descreve a
obra do Messias como uma “nova aliança”, mas de preferência,
reforçar a aliança original. A passagem usa a palavra “confirmar”
(NVI) ou “reforçar” (higbir da raiz gbr denotando força). O
encontro com o Messias não foi designado para conseguir
“converso novo” fora de Israel, mas ao contrário, era para reforçar
suas raízes e sua aliança com o Deus de Israel.
Além disso, esta aliança refere-se a rabbim (“muitos”), um
termo técnico que conota uma idéia de universalidade.11 Assim a
aliança não é somente “reforçada” com “muitos” judeus, mas
também é estendida às “muitas” nações. Em contraste com o
150
evento da queda de Jerusalém, este evento está situado no tempo,
pois ele se refere ao Messias: “E Ele fará um pacto firme com
muitos por uma semana”12 (Dan. 9:27). A profecia então nos leva
ao final da última semana das 70 semanas (34 EC). É notório que a
data marca um evento, que tem tido um considerável impacto na
civilização, assim como sendo um evento chave para a salvação da
humanidade. Foi o ano em que a mensagem do Deus de Israel,
explodiu além das fronteiras da Palestina e atingiu os gentios, os
“muitos” justos mencionados (Atos 8). Ele é também, o ano da
conversão de Paulo e de sua comissão por Cristo (Atos 9). Assim
como foi também, o ano que Deus derramou o Espírito Santo
sobre os gentios e Pedro recebeu sua estranha visão, encorajando-o
a pregar aos gentios.
Ainda muitos cristãos, em lugar de prestar atenção ao que o
Messias tinha feito em favor do mundo, incluindo primeiramente
os judeus (ver Rom. 1:16), preferiram especular e capitalizar no
que eles pensaram que Ele estava fazendo contra os judeus.
Cristãos se referiram a profecia das 70 semanas para justificar o
antigo anti-semitismo visceral. Ironicamente, a visão falando de
esperança e amor, se tornou o pretexto para a pregação sobre a
“rejeição dos judeus,” “a maldição divina sobre eles,” “O ultimato
de Deus para Israel,” etc., quando, em nenhum lugar o texto da
profecia sugere tal conceito. O Novo Testamento não dá suporte a
um ensino assim. Pelo contrário, Paulo pergunta: “Acaso rejeitou
Deus ao seu povo? De modo nenhum; por que eu também sou
israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim. Deus
não rejeitou ao seu povo que antes conheceu” (Rom. 11:1,2). E
alguns versos mais adiante, o apóstolo se refere ao princípio
rabínico, Akut Aboth (os méritos dos pais), para tornar ao mesmo
caso: “quanto à eleição, amados por causa dos pais, porque os dons
e a vocação de Deus são irretratáveis.” (versos 28, 29). Por outro
lado, no mesmo capítulo e falando daqueles cristãos que pareciam
vangloriar-se e desprezar suas raízes judaicas, Paulo endurece:
“não te glories contra os ramos; e, se contra eles te gloriares, não
és tu que sustentas a raiz, mas a raiz a ti” (verso 18). O apóstolo
aqui descobre e denuncia por trás disso, um poder direcionando ao
anti-semitismo; um menosprezo das raízes judaicas. E se estão eles
mesmos rejeitando os judeus, tais indivíduos envolvem Deus em
seu julgamento e assim justificam sua teologia ao declarar que
151
“Deus rejeitou os judeus.” Ao fazer isso, eles se identificam com
Deus, num comportamento que os traz junto do chifre pequeno de
Daniel 7 e 8. Na verdade, ao entreter o anti-semitismo, os cristãos
de qualquer denominação, podem se associar com o chifre
pequeno opressor. Num certo sentido eles se tornam o chifre
pequeno.
4.A Conexão Entre as Profecias
Deus enviou a profecia das 70 semanas não só para nos
convencer sobre do evento histórico do Messias. Temos visto que
para o profeta Daniel, a visão das 70 semanas tem a função de
ajudar a “entender” melhor, a visão das 2300 tardes e manhãs. De
fato, as duas profecias estão situadas na mesma perspectiva e
devem ser entendidas, uma relacionada com a outra.
1.No nível cronológico, a profecia das 70 semanas traz a
ligação perdida para a profecia das 2300 tardes e manhãs: seu
ponto de início. As duas profecias começam com o mesmo evento,
o decreto de Artaxerxes em 457 AEC. Contudo, a profecia das 70
semanas tem seu cumprimento logo, nos anos 27, 31 e 34. Aquela
das 2300 tardes e manhãs cobre um longo período. A expressão
técnica “tardes e manhas” emprestadas da linguagem da Criação,
designa “um dia”. Em nosso contexto profético um dia significa
um ano. Assim se contamos 2300 anos de 457 AEC, chegaremos
ao ano de 1844. Mas não existe nada mais suspeito e perturbador
do que uma data, especialmente em assunto de religião. Sentimo-
nos mais confortáveis quando a verdade religiosa permanece
dentro dos limites do domínio espiritual. No pensamento hebraico,
de qualquer forma, verdade não é apenas uma mensagem espiritual
ou filosófica, desenhada apenas para nutrir nossas almas ou
mentes. Ao contrário, verdade bíblica é essencialmente histórica.
Deus fala na história. E qualquer explicação, ou qualquer grau de
ênfase, que queremos dar para a data do cumprindo desta profecia,
não devemos ficar surpresos de que profecia bíblica leva em conta
este risco, entrando na carne da história, até em nossa história
moderna.
2.As duas profecias estão relacionadas e complementam
uma a outra em relação à verdade teológica delas. A salvação
ocorre em dois passos: primeiro o evento da cruz, e segundo, a
grande expiação cósmica (2300 tardes e manhãs), algo já
implicado pelo ritual Levítico. O sacrifício diário não era
152
suficiente. Kippur era também necessário para atingir a salvação
completa. O profeta Daniel já sugere tal necessidade. Todos os
verbos chaves de Daniel 8 e 9 estão na forma passiva (Niphal),
característico da linguagem Levítica. Daniel 9 usa seis verbos na
forma passiva: “são decretado” (verso 24), “ela será reconstruída”
(verso 25), “será cortado” (verso 26), “foi decretado” (verso 26),
“que foi decretado” (verso 27), “foi despejado” (verso 27). Daniel
8 emprega apenas um verbo nesta forma: “consagrado” (verso 14).
O verbo no capítulo 8 completa os outros seis no capítulo 9,
adicionando o número sagrado 7.
Mas Daniel 8 e 9 partilham também outro elemento em
comum: o sumo-sacerdote. Daniel 9:24 e Êxodo 29:36, 37 são as
duas únicas passagens na Bíblia com os três temas comuns de
expiação, unção e Santo dos santos. Sem dúvida Daniel tinha em
mente Êxodo 29:42-44 quando ele transcreveu sua visão. Os
últimos capítulos descrevem a consagração de Aarão, o primeiro
sumo-sacerdote em Israel (versos 36, 37), e a instituição do
sacrifício diário (versos 42-44). Deste modo, a profecia de Daniel
9 liga a morte expiatória do Messias com a consagração do sumo-
sacerdote e do sacrifício diário. Do mesmo modo, o capítulo 8
evoca a pessoa do sumo-sacerdote muitas vezes pela palavra
“príncipe” (sar termo técnico para o sumo-sacerdote de Israel; ver
I Cron. 15:22; Esdras 8:24; Dan. 10:5; e acima).
Contudo, as duas profecias, não estão situadas no tempo,
do mesmo modo. A segunda profecia (Daniel 9) indica o momento
exato da vinda (unção) do Messias. A primeira (Daniel 8) indica o
fim do período de tempo, dado em resposta à pergunta “quanto
tempo?” (Dan. 8:13). A profecia das 70 semanas providencia a
data exata de um evento enquanto a profecia das 2300 tardes e
manhãs apresenta uma duração depois da qual haverá outro
evento, aquele da purificação do santuário (verso 14). A datação
dos eventos do capítulo 9 é fixada enquanto que a datação dos
eventos do capítulo 8 permanece aberta. A forma verbal,
expressando isso, serve de diferença entre as duas datas. Um
imperfeito hebraico (yekaret: “será cortado,” 9:26) que uma ação
dinâmica, descreve a morte do Messias. Um perfeito hebraico
(nitsdaq: “será re-consagrada,” 8:14) descreve a purificação do
santuário. A morte do Messias ocorre no ano 31. É uma ação
153
definida, começando e terminando exatamente assim. A
purificação do santuário, por outro lado, é uma ação indefinida
estendida para além do ano de 1844 e a qual Daniel descreve como
“o tempo do fim” (ver Daniel 8:17, 26).
Este tempo do fim contém um evento que devemos, além
disso, entender em relação ao evento ocorrendo no ano 31. Muitos
cristãos têm negligenciado este aspecto em suas doutrinas de
salvação. Eles declaram que a cruz é suficiente. “Tudo foi
cumprido”. O cristianismo se tornou assim uma religião obcecada
com a cruz, uma religião do passado e do presente. Isso entende
salvação por obras boas e de auto sacrifício, padronizada após o
Grande exemplo, ou apenas uma fé sentimental interessada com o
pensamento e lembrança do sacrifício do Messias. De qualquer
modo, a salvação foi. A religião cristã não tem necessidade de
futuro, desde que a cruz já conseguiu a salvação. Experiências
subjetivas vêm substituir o evento histórico. Uma religião
existencial prevalece sobre a esperança bíblica no reino de Deus,
que promete então, que a morte e o mal, não mais vão atacar.
A cruz sem o reino não faz sentido. Do mesmo modo
precisamos do evento da cruz para sobreviver ao juízo. Para salvar
a humanidade, Deus teve de descer até a humilhação da
humanidade, morrer, e através de Sua morte, salvar, redimir-nos de
nosso pecado. Apesar disso Deus não quer meramente mostrar Seu
amor por nós, como faz um herói em um ato grandioso de auto-
sacrifício, de tal maneira que devemos amar e adorá-lO. Tal amor
seria completamente egoísta. Por que Ele realmente ama, Deus
quer realmente salvar.
Para realmente acabar com a morte e o mal, a vida deve ser
transformada, e todos os traços do pecado, retirados. Salvação é
mais que um ato angélico de graça – é um ato de violência contra a
natureza, contra os elementos. Tais são as implicações do juízo no
fim dos tempos.
3.Finalmente, no nível existencial do crente, fé no sacrifício
redentor do Messias e esperança no reino de Deus depende um do
outro. Quanto maior a fé mais intensa é a espera. Nossa existência
está situada entre o “agora” e o “ainda não.” Neste estado de
tensão a vida enfrenta um novo significado. Esperança no futuro
enriquece o presente. A boa notícia do evangelho é que apesar da
154
morte, e da sensação que temos da vinda da perdição, podemos
ainda sonhar e esperar algo do futuro.
Mas nossa espera pelo novo reino não é passiva. Dinâmica
por natureza, ela deriva da impaciência, como foi no caso de
Daniel. A escolha ética, a luta contra a injustiça e sofrimento, tudo
se intensifica durante nossa espera. O futuro projeta luz e
perspectiva no presente. Nós vemos além da necessidade imediata,
o sofrimento dos outros não é mais indiferente. Por que pensamos
além de nossa condição presente, nossas decisões têm uma base
mais profunda.
Desesperando qualquer entendimento, e preocupado pela
demora de Deus, Daniel cai de joelhos, em oração. No momento
propício da oferta da tarde, a resposta de Deus é um Messias
agonizante. Em Daniel 7 o Messias era o “filho do homem” real,
que recebeu o domínio sobre o mundo. No próximo capítulo, em
Daniel 8, o Messias foi o sumo-sacerdote oficiante no traje de
Kippur. Finalmente, em Daniel 9 o Messias é a vítima expiatória.
A mente hebraica representa o cenário para trás. Por que é a morte
do Messias que serve como base para a salvação (capítulo 9).
Então, brandindo o poder expiatório deste sacrifício, o Messias
advoga por nós, na corte celestial, e ganha o julgamento (capítulo
8). Finalmente, o reino é anunciado (capítulo 7).
ESTRUTURA DE DANIEL 9
I O Messias dos setenta anos (versos 1, 2)
1 Ano da vinda de Ciro
2 Profecia de Jeremias
II Oração (versos 3-19)
A Invocação de Deus (verso 4)
B Nós... (versos 5, 6)
C Nota universal (versos 7-9)
a Para você (verso 7)
b Para nós (verso 7)
155
c Para todo Israel (verso 7)
b1 Para nós (verso 8)
a1 Para você (verso 9)
B1 Nós... (versos 10-14)
A1 Invocação de Deus (versos 15-19)
III O Messias das setenta semanas (versos 20-27)
70 semanas determinadas sobre o povo e sobre Jerusalém
(verso 24)
A1 Vinda do Messias: no fim de 7 e 62 semanas (verso 25a)
B1 Construção da cidade (hrs)
A2 Morte do Messias: depois das 62 semanas (verso 26a)
B2 Destruição da cidade (hrs)
A3 Aliança: meio da semana (verso 27a)
B3 Destruição do destruidor (hrs)
1
. A História nos diz que Artaxerxes começou seu reinado em 465 AEC, o ano
de sua ascensão ao trono (ver: “Artaxerxes” na Universal Larousse). De acordo com a
Bíblia, contudo, o primeiro ano de seu reinado teria começado no início do próximo ano,
em Tishri (ver Jer. 25:1 e Dan. 1:1,2; cf. II Reis 18:1, 9, 10; cf. Mishna Rosh Hashanah
1. 1). O setimo ano de Artaxerxes teria então se extendido do outono (Tishri) 458 ao
outono 457).
2
. Ver Jacques Doukhan, Drinking at the Sources (Mountain View, Calif.:
Pacific Press, 1981), p. 67.
3
. Ver Jacque Doukhan, “The Seventy Weeks of Dan. 9: An Exegetical Study,”
17, No. 1 (1979): 12-14.
4
. Ver Geza Vermes, The Complete Dead Sea Scrolls in English (New York:
1997), p. 127.
5
. Ver William Wickes, Two Treatises on the Accentuation of the Old
Testament (New York: 1970), parts I:32-35; II:4.
6
. Ver Doukhan, Drinking at the Sources, pp. 135, 136, n. 186.
7
. Para distinção entre o servo e Israel, ver Isa 49:5-7 e 53:4-6.
8
. Josephus, Wars of the Jews, 5.6, 10.
9
. Babylonian Talmud Gittin 56a, 56b, 57b.
10
. Miqraoth Gdoloth.
11
. Doukhan, “The Seventy Weeks of Dan. 9,” p. 21.
12
. Notar que a palavra “para” usada geralmente em nossas traduções do Inglês
não aparece no hebraico. Em nossa tradução literal do hebraico, os dois pontos são como
o acento disjuntivo Massorético tifha.
156
Capítulo 10
157
oficiantes do Templo (Esd. 4:4, 5). Os esforços deles colocaram
em risco a re-construção do Templo. Corações antes inflamados de
esperança agora sustentam as cinzas da desilusão. As notícias
finalmente chegaram até Daniel. Desesperadamente ele se ajoelha
em oração: “Naqueles dias eu, Daniel, estava pranteando por três
semanas inteiras” (Dan. 10:2). Aquela mesma angustia que ele
teve então, dois anos antes quando ele tinha se voltado para a
antiga profecia de Jeremias, tomou conta dele de novo.
Na realidade, o capítulo 10 segue a mesma progressão do
capítulo 9, uma correspondência temática levantada pela estrutura
triádica dos dois capítulos. Os dois capítulos começam com o
desespero de que a profecia não seria cumprida. Nos dois casos,
Daniel expressa seu pesar em um gesto de contrição, e finalmente,
nos dois casos, o anjo Gabriel aparece para explicar.
I.Jejuando na Páscoa
Daniel jejua por três semanas. A tradição bíblia requer,
normalmente, apenas três dias para o ato de arrependimento (Êxo.
19:10-15; Ester 4:16). Tanta é a intensidade de sua oração que
Daniel a multiplica por sete. A tradição judaica antiga guarda as
“três semanas” unidas, para comemorar as várias tragédias que
sobrevieram ao povo judeu, especialmente a destruição do
Templo. Este período de lamentações, também chamado beyn
hametzarim (literalmente “entre os apertos,” significando “em
aflição”) ocorre de dezessete de Tamuz até o nove de Av (Julho-
agosto).2
A oração e o jejum de Daniel ocorrem, contudo, no
primeiro mês do ano, Nisan, isto é, precisamente durante o tempo
da Páscoa e dos pães ázimos. Isso parece aludir ao fato de que ele
sente a necessidade de especificar aquilo: “nem carne nem vinho
entraram na minha boca” (Dan. 10:3), o que seria esperado na
refeição ritual da Páscoa. Comentaristas judeus tem se admirado
sobre esta irregularidade, que faz Daniel transgredir o mandamento
de comer o cordeiro e os quatro copos de vinho. Eles justificam a
decisão de Daniel, portanto, pelo motivo de que a interrupção da
construção do Templo assegurou tal responsabilidade. Nós vamos
encontrar um exemplo parecido de jejum acontecendo na Páscoa
em Ester 4:16.
158
Uma visão vem a Daniel, no dia vinte e quatro de Nisan,
imediatamente depois de concluir a semana da Páscoa. (da noite de
quatorze até vinte e um). Certamente, não é um acidente que a
visão ocorre contra o fundo de Páscoa, que celebra a libertação do
Egito e marca o caminho para a Terra Prometida.
159
Tudo está no superlativo, em uma tentativa de descrever a
forma extraordinária e sobrenatural, do Sacerdote. Este tipo de
descrição aparece em outra parte das escrituras. O livro de
Ezequiel menciona as mesmas coisas: relâmpago (Eze. 1:14),
crisólito (verso 16), bronze polido (versos 7, 27), fogo (versos 13,
27), a voz como uma multidão (verso 24). Ezequiel interpreta isso
como “o aspecto da semelhança da glória do Senhor” (verso 28).
Este mesmo ser reaparece no livro do Apocalipse, lá também,
associado com a festa da Páscoa3 e usando as mesmas vestes
sacerdotais, os poderes,4 com o cinto de ouro (Apo. 1:13). Lá Seus
olhos flamejam como fogo e Seu corpo parece com bronze polido.
Também Sua voz ressoa como uma multidão (verso 15). Naquele
contexto, o ser se identifica como divino: “Eu sou o Primeiro e o
Último, e o que vive; fui morto, mas eis aqui estou vivo pelos
séculos dos séculos; e tenho as chaves da morte e do haddes”
(versos 17,18). A linguagem usada aqui, claramente se refere a
Jesus Cristo, descrito nos versos acima como “o primogênito dos
mortos” (verso 5), o “Alfa e o Omega” (verso 8). Além disso, a
reação de Daniel, como aquela de Ezequiel e João, é de terror
(Dan. 10:9,, 10; Eze. 1:28; Apo. 1:17). Tal imagem, de paralelo
fora do livro de Daniel, indica que ele, como João e Ezequiel,
vêem um ser divino e não apenas um anjo. Nem Gabriel inflige um
terror assim (Dan. 9:21).
O próprio livro de Daniel identifica o ser como “filho do
homem” de Dan. 7:13. Daniel 10:4 usa o termo ambíguo “homem”
para descrevê-lo, um fato depois confirmado pelo livro de
Apocalipse, que explicitamente identifica o ser descrito em Daniel
10 como “filho do homem” de Daniel 7 (Apo. 1:13). Assim o filho
do homem do capítulo 7, o Príncipe “Sumo-Sacerdote” no capítulo
8, e nosso ser brilhante como fogo no capítulo 10 todos
representam o mesmo ser homem-Deus, que tanto tem terrificado
Daniel, Ezequiel e João.
Impressionado por sua extraordinária visão, o profeta está
muito perturbado até para tentar entender. Agora o anjo Gabriel,
familiar, intervém para fortalecer e confortar Daniel, e ajudá-lo a
entender.
III.A Visão Confortante
No verso 9 a visão muda de vista para som, assim que
Gabriel dá a Daniel “discernimento e entendimento” (cf. Dan.
160
8:17-19; 9:21-23). O mensageiro do alto se apresenta com os
mesmos termos daquele usado no capítulo 9. “desde o primeiro dia
em que aplicaste o teu coração a compreender e humilhar-te
perante o teu Deus, são ouvidas as tuas palavras, e por causa das
tuas palavras vim” (Dan 10:12).
Daniel apenas tinha começado sua oração quando suas
palavras já foram ouvidas. Suas três semanas de oração e jejum
nem mesmo era necessário. Do primeiro dia Deus tinha ouvido sua
oração. As Escrituras não registram as palavras dessa oração tão
longa, como que para lembrar ao leitor, do pouco valor que as
palavras têm perante Deus. Deus ouve a oração mesmo antes de
ela ter sido formulada, para não dizer enfeitada por palavras. O
conteúdo da oração é mais importante do que a forma que ela
toma. A palavra não tem poder em si. Isso nos lembra da história
de um homem muito piedoso que, depois de esquecer todas suas
orações, corre até o rabino e clama: “Eu esqueci como se ora. O
que eu vou fazer?” então o rabino responde: “Não se preocupe, só
recite todo o alfabeto e os anjos vão compor para você as mais
lindas orações.” Uma criança gaguejando, às vezes fala mais alto
do que as invocações, elaboradas e eloqüentes, de grandes
profissionais da oração. A resposta de Deus não depende nem da
quantidade nem da qualidade das palavras.
Mas ainda outra lição permanece escondida por trás das
palavras do anjo. Durante os 21 dias que Daniel gastou orando,
Gabriel esteve envolvido em uma luta com “o príncipe do reino da
Pérsia” (verso 13) – até por que a luta espiritual experimentada por
Daniel foi, de certa forma, relacionada com o conflito entre os
reinos terrestres. A oração de Daniel, que parece para nós tão
pequena e fútil, tem na verdade repercussões cósmicas. De alguma
forma parece que Gabriel se contradiz. Por um lado, ele indica que
a oração de Daniel foi desperdiçada, enquanto que por outro ele
admite que ela (a oração) o sustentou por 21 dias em sua luta com
o príncipe da Pérsia.
A relação entre estas duas verdades parece contraditória e
misteriosa. Os trabalhos mais piedosos da humanidade não valem
nada por si mesmos, mas Deus os dispõe para afetar o curso da
história. Deus escolheu precisar dos humanos. Somente um
movimento que desce de Deus, ligando o céu à terra, permite
esperança e fé para subsistir. A vida toma sentido apesar de seus
161
absurdos e acidentes. Apesar de sua contingência, a existência
permanece nas mãos divinas. Ele sempre terá a última palavra.
A revelação de Gabriel se desenvolve em dois estágios
sucessivos, cada um paralelo ao outro, e terminando na mesma
evocação de Miguel, o anjo aliado do alto.
163
guerra cósmica e espiritual mais séria entre o bem e o mal, a visão
traz esperança de vitória.
Os autores do Novo Testamento têm identificado este ser –
o sacerdote com olhos flamejantes, o Filho do homem – como
Jesus Cristo, o juiz glorioso que vem sobre as nuvens (Apo. 1:13-
18) e sumo-sacerdote oficiando no templo celestial (Heb. 7:5-10 e
9:11-15). Os primeiros rabinos seguiram uma linha similar de
pensamento e viram Michael como o esperado Mashiach e o
sumo-sacerdote oficiando na Tsion celestial.9
ESTRUTURA DO CAPITULO 10
Introdução (verso 1)
1.Última menção de Ciro
2.Construção do templo comprometida
I Tishri no Tigre (versos 2, 3)
Três semanas de jejum e oração
II A visão assustadora (Michael) (versos 4-8)
1.O grande sacerdote (cf. Eze. 1; Apo. 1)
2.Daniel em sono profundo
III A Visão esclarecedora (Gabriel) (versos 9-21)
A Palavras ouvidas, prostração (verso 9)
B Fortificado pelo anjo (versos 10, 11)
C Encorajado pelo anjo (verso 12)
D Batalha contra Pérsia com Michael
(versos 13, 14)
A1 Palavras ouvidas, prostração (verso 15)
B1 Fortificado pelo anjo (versos 16, 17)
C1 Encorajado pelo anjo (versos 18, 19)
D1 Batalha contra Pérsia com Michael
(versos 20, 21)
1
.Lacocque, The Book of Daniel, p. 200
2
. Contando do primeiro mês, Nisan, Zacarias 8:19 se refere a estes fatos
respectivamente a Tamuz (quarto mês) e Av (quinto mês).
3
. Ver Doukhan, Le cri du ciel, PP. 40-42.
4
. É a única ocorrência desta palavra grega no Novo Testamento. A Bíblia
Septuaginta, contudo, usa-a para se referir a veste específica do sumo-sacerdote (na
164
Bíblia Septuaginta, ver Êxo. 25:6, 7; 28:4; Eze. 9:2, 3, 11, etc.; cf. também Antiquities, 3.
153ff; cf. Irinaeus Adv Haer 4, 20)
5
. Êxo. 17:11; I Sam. 2:9; II Sam. 1:23; Jó 21:7; Isa. 42:13, etc.
6
. I Sam. 14:52; Isa. 3:2; Jer. 46:12; Eze. 39:20; Zac. 9:13; Sal. 33:16, etc.
7
. Gên. 1:5; Êxo. 40:2; Lev. 23:24; Deut. 1:3; I Reis 16:23; II Cro. 29:17; Esd.
1:1; 3:6; 7:9; 10:16, 17; Eze. 26:1; 29:17; 31:1, etc.
8
. O livro de Daniel tem seis aplicações para a palavra echad significando
“primeiro” (Dan. 1:21; 9:1, 2; 11:1; 6:2; 7:1) contra quatro aplicações para a palavra
rishon (Dan. 8:21; 10:4, 12, 13). Esta tendência aparece principalmente na literatura pós-
exílio por causa da influência do aramaico.
9
. Ver Babylonian Talmud Zebahim, 62ª; Babylonian Talmud Menahoth 110ª;
Midrash Rabbah of Exodus 18:5; Midrash on the Psalms, Psalm 134, section 1; Pesikta
Rabbati, Piska 44, secção 10; etc.
165
Capítulo 11
GUERRAS MUNDIAIS
166
I.As Guerras Persas
O anjo Gabriel fala novamente a história do início. Ele
volta no tempo do “primeiro ano de Dario” (Dan. 11:1), De modo
significante, a profecia focaliza em ninguém mais que Artaxerxes
o Persa, identificado em nosso comentário (ver acima) como o
ponto de partida da profecia dos 70 anos e daquela das 2300 tardes
e manhãs. “Eis que ainda se levantarão três reis na Pérsia, e o
quarto será muito mais rico do que todos eles; e tendo se tornado
forte por meio das suas riquezas agitará todos contra o reino da
Grécia” (verso 2).
Os três reis são de origem persa. Nós estamos no reinado
de Ciro (com o co-regente Dario). Assim, os três reis seriam
Cambyses (530-522), Dario (522-486),1 Xerxes, o Assuero de
Ester (486-465), sendo o quarto Artaxerxes (465-423). Não foi
somente a tradição judaica adotou esta interpretação2, a história
também confirma isso. Artaxerxes, como descrito na profecia, foi
extremamente rico. O texto histórico o descreve como o rei “mais
astuto (de todos os seus predecessores) e subornou seus aliados
(das cidades gregas conquistadas), enfraquecendo-os ao criar
dissensões entre eles,”3
A menção de Artaxerxes no surgimento do grande conflito
é particularmente significante. É ele que marcou o ponto de partida
da profecia das 70 semanas e das 2300 tardes e manhãs. Assim
como Deus conduziu a história até a vinda do Messias, no capítulo
9, e até o tempo do fim, no capítulo 8, do mesmo modo Ele vai
fazê-lo com o grande conflito que está por vir.
O reino mencionado depois de Artaxerxes é fácil de ser
reconhecido. A linguagem do anjo no verso 3 e 4 é a mesma de
Daniel 8:8: “O bode, pois, se engrandeceu sobremaneira; e estando
ele forte, aquele grande chifre foi quebrado, e no seu lugar outros
quatro também notáveis nasceram para os quatro ventos do céu.”
“Depois se levantará um rei poderoso, que reinará com
grande domínio, e fará o que lhe aprouver. Mas estando ele em pé,
o seu reino será quebrado, e será repartido para os quatro ventos do
céu” (Dan. 11:3, 4).
Estamos, dessa forma, trabalhando com Alexandre o
Grande, cujo império, depois que ele morreu, os seus quatro
generais dividiram subseqüentemente “para os quatro ventos do
céu”. A totalidade do reino da Grécia, incluindo as suas colônias,
167
está incluída na palavra “império” (malkuth [versos 2, 4]) assim
como foi também o caso com o reino da Pérsia (Dan. 10:13). A
próxima frase é mais difícil de entender. Ela literalmente diz:
“Porém não os seus descendentes, nem tampouco segundo o poder
com que reinou; por que o seu reino será arrancado, e passara a
outros que não eles” (Dan. 11:4).
Em outras palavras, estamos testemunhando aqui a
transição do poder como “reino” (Malkuth) passar para “outros
que não eles.” A forma plural de “eles” (elleh) relaciona-o com os
quatro ventos do céu, também na forma plural.4 O reino então
chega sob o controle de um poder que se levanta depois da divisão
do império helenístico. Este novo poder, como já temos visto nas
profecias anteriores, é Roma.
Certos comentaristas interpretam a expressão “eles” como
se referindo a outros generais além dos quatro mencionados acima.
Eles pensam então na dinastia da Armênia e Capadócia que
adquiriram sua independência 150 anos depois da morte de
Alexandre.5 Uma interpretação assim não se encaixa no texto
bíblico. Tanto quando a Armenia e a Capadócia foram
relacionadas, elas envolveram apenas parte do império, até a
narração bíblica claramente menciona os “quatro ventos do céu,”
implicando assim a totalidade do império. Claramente, a profecia
tinha o próprio reino de Roma em mente.
Como no capítulo 8, Daniel 11 apenas faz alusão ao reino
de Roma e focaliza no próximo estágio que vai durar até “o tempo
do fim” (verso 40).
168
Capítulo 8 Capítulo 11
Pérsia (versos 3, 4) Pérsia (verso 2)
Grécia (versos 5-8) Grécia (versos 2, 3)
Roma (versos 8, 9) Roma (verso 4)
Chifre pequeno Conflito norte-sul
(versos 9-12) (versos 5-39)
Tempo do fim Tempo do fim
(versos 13, 14, 17, 25) (versos 40-45)
169
mesma daquela do chifre pequeno do capítulo 8. Agora precisamos
descobrir o significado deste conflito e suas implicações históricas.
1.A Significado Espiritual
As duas estruturas literárias do texto e do simbolismo da
referência norte-sul implicam em um conflito de natureza
espiritual.
A estrutura literária. Desde o verso 5 a narração se
desenvolve em seis seções. As três primeiras (versos 5-12; A, B,
C) são simétricas às três últimas (versos 13-39: A 1, B1, C1). As
duas partes ABC e A1 B1 C1 refletem uma a outra, temática
(mesmos temas) e linguisticamente (as mesmas palavras e
expressões). Além disso, os ataques dos dois poderes se alternam
(A sul; B norte; C sul, A1 norte; B1 sul; C1 norte). Quando A se
refere ao sul, A1 se refere ao norte e assim vai.
170
Um imenso exército Um poderoso exército
(halil) (verso 9) (hayil) (verso 25)
171
com uma técnica estilística, sugerindo mais do que o evento em si,
mas também com o que ele pretende simbolizar.
O simbolismo norte-sul. De modo significante,
começando com o verso 5, os dois reinos já não são mais
explicados, como foi o caso até agora (Pérsia, Grécia). A alusão ao
norte e sul se torna abstrata e metafórica.
Em outro lugar a Bíblia usa a unidade “norte-sul” para
expressar a idéia de totalidade e espaço terrestre.9
“São teus os céus, e tua é a terra; o mundo e a sua
plenitude, tu os fundastes. O norte e o sul, tu os criaste” (Sal.
89:11, 12).
“E dize à terra de Israel: Assim diz o Senhor: Eis que estou
contra ti, e tirarei a minha espada da bainha, e exterminarei do
meio de ti o justo e o ímpio... a minha espada sairá da bainha
contra toda a carne, desde o sul até o norte. (Eze. 21:3, 4).10
Tomadas separadamente, as referências tanto ao norte
como ao sul, tem seus próprios significados O norte é a
representação bíblica do mal, que usurpa Deus. O chifre pequeno
vem do norte. Do mesmo modo, os profetas identificaram o mal e
tragédias como vindo do norte:
“Tu, ó Filístia, estás toda derretida; porque do norte vem
fumaça; e não há vacilante nas suas fileiras.” (Isa 14:31).
“Do norte se estenderá o mal sobre todos os habitantes da
terra.” (Jer. 1:14).
A linguagem tem sua origem na ameaça proposta pelos
exércitos babilônicos que subiram sobre o “Crescente Fértil” e
desceram pelo norte. Babilônia, a grande usurpadora, rapidamente
foi assimilada na imagem do norte.
“Diz o Senhor dos exércitos, o Deus de Israel: Eis que eu
castigarei a Amon de Tebas, e a Faraó, e ao Egito, juntamente com
os seus deuses e os seus reis, sim, ao próprio Faraó, e aos que nele
confiam. E os entregarei na mão dos que procuram a sua morte, na
mão de Nabucodonosor, rei de Babilônia, e na mão dos seus
servos.” (Jer. 46:25, 26).
A ligação entre Babilônia e o norte depois encontrou
confirmação na literatura do antigo Oriente Médio. Na mitologia
cananita o deus Baal residia no norte. A referência ao norte, seja
ela através de Baal ou Babilônia, carrega implicações religiosas e
172
faz alusões à usurpação de Deus. Isaias compôs seu épico no rei da
Babilônia com estas idéias em mente:
“E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu; acima das
estrelas de Deus exaltarei o meu trono; e no monte da congregação
me assentarei, nas extremidades do norte; subirei acima das alturas
das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo.” (Isa. 14:13, 14)
Uma alusão similar de Babilônia aparece no livro de
Apocalipse chamando o chifre pequeno, usurpador de Deus,
“Babilônia” (Apo. 14:8; 16:19; 17:5; 18:2, 10, 21).
Por outro lado, o sul simboliza, na tradição bíblica, o poder
humano sem Deus. O sul simboliza o Egito (Dan. 11:43),
especialmente Faraó em sua rejeição orgulhosa de Deus: “Quem é
o Senhor, para que eu ouça a sua voz... Não conheço o Senhor”
(Êxo. 5:2)
Os profetas consideraram uma aliança com o Egito como
um deslocamento da fé de Deus para a humanidade – fé na
humanidade substituindo a fé em Deus. “Ai dos que descem ao
Egito a buscar socorro, e se estribam em cavalos, e têm confiança
em carros, por serem muitos, e nos cavaleiros, por serem muito
fortes; e não atentam para o Santo de Israel, e não buscam ao
Senhor... Ora os egípcios são homens, e não Deus; e os seus
cavalos carne, e não espírito” (Isa 31:1-3).11
Por outro lado, temos o norte representando poder religioso
aspirando usurpar Deus, enquanto que por outro, temos o sul
representando o esforço humano que rejeita Deus e tem fé só na
humanidade.
Tais referências ao norte e ao sul eram muito bem
conhecidas dos israelitas comuns e foi parte integrante da história
da nação. Espremidos entre o Egito e a Babilônia, Israel chegou a
entender e imaginar seu destino, estritamente em relação a estas
duas forças dominantes. Assim não é de surpreender que Daniel
devesse usar as referências tradicionais ao norte a ao sul ao
descrever o destino do povo de Deus. Já a alusão ao chifre
pequeno, testemunha do caráter espiritual do conflito. O livro de
Daniel sempre descreve este poder em linguagem simbólica. Em
Daniel 2, o barro representa o humano. Daniel 7 e 8 têm o chifre
pequeno com características humanas. Já temos visto como as
características humanas servem para o espiritual no livro de
Daniel.
173
Devemos entender ambas as conclusões do capítulo (versos
40-45) e o desenvolvimento precedente (versos 5-40) em um
sentido simbólico. Eles têm a mesma linguagem poética de
regularidade e simetria ao falar dos poderes nortistas e sulistas,
ambos, envolvidos tanto na conclusão, quanto no
desenvolvimento. Estamos lidando com o mesmo rei do norte: “o
rei do sul lutará com ele” (verso 40). O “ele” é o rei do norte,
mencionado nos versos precedentes. Devemos, portanto, entender
a referência norte-sul em um sentido simétrico por todo o caminho,
não só do verso 40 até o fim, mas também, antes do verso 40, isto
é, do verso 5 em diante.
Seu desenvolvimento em sete estágios (o sétimo estágio
sendo o tempo do fim), depois dá apoio ao aspecto alegórico ou
simbólico da narração. De A1 em diante, contudo, o antagonismo
norte-sul se encaixa com o conflito paralelo entre o norte e o povo
de Deus.
Em A1 os versos 16 e 20 descrevem o conflito como uma
batalha conduzida pelo norte contra a “Terra Gloriosa”, uma
expressão idiomática designando a Palestina, localização do
Templo (Zac. 7:14; Eze. 20:6, 15),12 entendido assim em um
sentido religioso, e não simplesmente em sentido geográfico.
Em C1 o conflito invade de novo nos versos 30-32 através
da agressão do norte contra a aliança santa, o santuário e o povo de
Deus. De baixo de paralelismo e símbolos, o texto aponta a um
progresso cronológico e de certa forma um desenvolvimento
histórico obscuro.
2.Significado Histórico
Não é fácil encontrar a contraparte histórica de nossa
passagem. Neste estágio de nossa pesquisa, contudo, ainda é
possível delinear três temas principais nos versos 5 a 39.
O tema do conflito entre o norte e o sul. Isso pode se
referir ao conflito que tradicionalmente contrapôs dois inimigos
inexoráveis: De um lado, o poder religioso eclesiástico (o norte)
representa o papel de Deus na terra, atuando como único
intercessor entre a humanidade miserável e Deus. E do outro lado,
os movimento filosóficos e políticos (o sul) lutam contra o
fanatismo e obscurantismo com a arma da razão. Ambos os
movimentos constantemente entram em guerra um contra o outro.
174
Vemos esta luta interminável revelada nos ataques dos Neo-
Platonistas, as perseguições dos imperadores pagãos (Nero,
Diocleciano, Julian, etc.), as correntes humanísticas nascidas no
Renascentismo, a Revolução Francesa, e finalmente em nossas
ideologias e formas de governo secular e materialista atuais.
O tema de aliança entre o norte e o sul nos versos 6, 17,
22, 23. Pensamos nas tentativas de compromisso entre a igreja e o
estado de Constantino, as alianças medievais em questões de lei,
controle territorial, poder e filosofia, e muitas forças político-
religiosas trabalhando no presente.
O tema do conflito entre e norte e o povo de Deus nos
versos 16, 28, 30, 31,35.. Perseguições e intolerância têm marcado
a história da igreja desde o quarto século até a revolução francesa.
A forma literária de nosso texto, particularmente sua
simetria, admoesta-nos contra uma interpretação literal dos
detalhes. Este três temas pavimentam o caminho para os eventos
do tempo do fim. Por enquanto os conflitos norte-sul, suas
alianças, e ataques do norte contra o povo de Deus, têm sido
meramente preliminares. Devemos esperar pela última fase, em
relação ao tempo do fim (versos 40-45), para realmente captar o
significado total por trás destes conflitos e alianças. A passagem
fala da perspectiva do fim esboçada no desenvolvimento (versos 5-
40), apenas aqueles temas relevantes ao tempo do fim. Somente na
conclusão da narração estaremos, de algum modo, capacitados a
captar o significado dos três temas traçados no desenvolvimento.
Esta última batalha ocorre em duas ofensivas, cada uma
envolvendo algum tipo de ataque contra o povo de deus.
1.Primeiro testemunhamos um ataque do sul contra o norte.
A batalha é curta, mas intensa, com o sul sendo esmagado pelo
norte: “virá como turbilhão contra ele, com carros e cavaleiros, e
com muitos navios” (verso 40). Esta primeira vitória massiva
precede a vitória final do norte. Ele alcança finalmente a “Terra
Gloriosa”, mas a vitória ainda não é total: “dezenas de milhares
cairão, mas da sua mão escaparão estes: Edom e Moabe, e as
primícias dos filhos de Amom” (verso 41).
Historicamente, significa que o poder político-religioso vai
triunfar sobre os movimentos ateístas e políticos. Durante o calor
da ação, serão feitas tentativas contra o povo de Deus. Apesar
disso, se crermos em Daniel, a vitória do norte não é nem total,
175
nem definitiva. É uma linguagem simbólica, que a profecia sugere
uma resistência do sul pressionando de Edom, Moab e Armom. 13
Isso significa que os vários movimentos ateístas e humanísticos
resistirão, e por pouco tempo, prevalecerão sobre as forças
religiosas.
2.Mas a profecia de Daniel olha ainda além. Uma segunda
ofensiva toma lugar. O rei do norte penetra nas regiões mais
sulistas do sul: Egito, Líbia e Etiópia. Mas rumores do norte, isto
é, da Palestina (se considerarmos que ele está na Etiópia naquele
tempo) força-o a retornar naquela direção. Ele começa com
“grande furor” (verso 44). Suas intenções são claras: para “destruir
e aniquilar.” Ocupado com as conquistas do sul, até aqui ele tem
negligenciado tais distúrbios. Agora nada mais o segura. Já não
mais sozinho, seus inimigos agora marcham ao seu lado (verso
43). Pela primeira vez, o norte e o sul são aliados. As pessoas do
sul (líbios, etíopes e egípcios) reconhecem o norte como seu líder e
seguem-no para a última batalha, contra o “glorioso monte santo.”
Eles levantam seus campos “entre os mares” (verso 45), isto é
entre o Mar Mediterrâneo e o Mar Morto, que cercam a terra de
Israel.14 A aparência deles ameaça o Templo de Deus. Na
linguagem bíblica, o “glorioso monte santo” designa o local do
Templo, e por extensão, o próprio Templo.15
É o Templo que faz a terra sagrada e maravilhosa (tsevi).
Uma terra assim só pode ser descrita em termos poéticos, pois
além de suas paisagens o poeta de Israel sente as dimensões santas
da morada de Deus. O salmista (Sal. 48:1, 2) assimila o “monte
santo” para o “monte Sião” (o extremo norte), uma expressão
idiomática designando os altos celestiais da morada de Deus (ver
Isa. 14:13). Encontramos um uso similar por ocasião da dedicação
do Templo de Salomão: “Meu nome estará ali; para ouvires a
oração que o teu servo fizer, voltando para este lugar. Ouve, pois,
a súplica do teu servo, e do teu povo Israel, quando orarem
voltados para este lugar” (I Reis 8:29, 30). Os israelitas deveriam
então fazer suas orações voltados para a direção ao Templo,
residência do nome de Deus, e então do céu, o lugar da morada de
Deus, viria a resposta.
A expressão “glorioso monte santo” de Daniel 11:45 é
então a localização celestial da morada de Deus. Já Daniel 2
mencionou uma montanha assim no contexto do fim,
176
especificamente durante a última tentativa de unir os reinos
terrenos (Dan. 2:35, 44, 45). Encontramos os mesmos elementos
na famosa profecia do Armagedom, em Apocalipse 16. Ele
também caracteriza o tempo do fim pela união dos “reis de todo o
mundo” (verso 14).
O Armagedom do livro do Apocalipse, assim como a
montanha, do livro de Daniel, não deve ser entendido como uma
localização geográfica, mas como uma alusão a uma batalha
espiritual de dimensões cósmicas. Devemos especialmente manter
isso em mente assim como consideramos as implicações históricas
do monte. De acordo com Daniel 2 e Apocalipse 16, “todos os reis
da terra,” isto é, ambos, norte e sul (Daniel 11), unidos pela
primeira vez em uma batalha de implicações espirituais. O
objetivo mútuo deles é o trono de Deus, o reino de Deus. Enquanto
isto pode parecer um pequeno absurdo para alguns, um olhar para
o que está acontecendo no mundo nestes dias deve nos convencer
da verdade desta profecia.
Já ninguém mais acredita no reino de Deus. Muitos tratam,
com condescendência esta esperança dos primeiros cristãos, a
verdadeira essência do cristianismo.16 Muitos cristãos tem hoje
integrado em suas crenças, ideologias humanistas e materialistas.
Em lugar de olhar para a cidade de ouro que está por vir, eles
trabalham e constroem aqui e agora. O foco foi trocado para a
empresa humana. Hoje religião segue os passos da tendência de
justiça social e existencialista, amor e felicidade, e deixa Deus de
fora. Encontramos isso na teologia da libertação dos países
subdesenvolvidos do mundo, e no sonho de Teilhard Chardin, que
promete “cantar amanhã.” É também a dialética de Bultmann, que
limita a espera do reino de Deus para a experiência da existência
individual, assim eliminando Deus da arena histórica. Tais
teologias já não definem o reino de Deus em termos de realidade
histórica. Preferimos os termos mais elegantes da evolução,
progresso, e esclarecimento. Fé se torna mais realista. A igreja
nunca esteve tão envolvida com política como hoje. Desde a queda
do comunismo, a voz da igreja tem novamente se tornado audível
nos países do leste europeu. Do mesmo modo o extremismo da ala
direita do Ocidente capitalista tenta combinar religião com
política.
177
Traços da mesma mentalidade aparecem no mundo
islâmico. Movimentos extremistas proliferam em todo lugar,
inclusive no Marrocos, Tunísia, Iraque, Líbano, Arábia Saudita,
Turquia, Algéria e Egito. O Islã extremista está intensamente
interessado com o poder político e eventualmente mira para o
domínio mundial.
Tem até sido mostrado no estado de Israel, revelando-se na
influência da yeshivoth de New York e nos rabinos Lubavitch na
política de Israel. Partidos religiosos políticos tem exercido grande
influência em Israel, para exasperação dos sabras ateus jovens.
Um conceito similar permeia os vários movimentos da
Nova Era que exalta a humanidade a um status Dino. “e sereis
como Deus” (Gên. 3:5), disse Satanás. A antiga tentação que
incendiou através das primeiras páginas da Bíblia de novo seduz
massas modernas. Como uma onda periódica, ela arrasta milhares
de homens e mulheres em seu seio.
O rei do norte reúne juntos, todos os movimentos religiosos
que de algum modo exercem poder político sob a capa de boas
intenções, assim como todas as organizações que promovem o céu
na terra, enquanto sepultam toda esperança de um reino celestial.
Desenvolvimentos políticos recentes confirmam a profecia
de Daniel muito bem. Os líderes mundiais enfrentam o desafio de
fundir seus poderes em uma “Nova Ordem Mundial,” um
desenvolvimento que, dificilmente, alguém poderia ter imaginado
alguns anos passados. Aconteceu tudo tão rápido! A indestrutível
cortina de ferro caiu. O coração do comunismo não é senão uma
lembrança. A antiga utopia de Babel tem revivido, e unidade é de
novo uma possibilidade. Tudo o que precisamos é um líder, aceito
por todos, e ser leal, independente de nações julgadas muito
poderosas.
A batalha descrita pelo profeta não se refere diretamente ao
moderno estado de Israel. O Templo não mais existe. Alguns
pintam o Armagedom na Palestina cercada por árabes sedentos de
sangue. À primeira vista, parece muito bíblico! Poderia até ser
feito um filme sobre isso! Mas o Armagedom não tem nada a ver
com o moderno Israel. Armagedom é nossa batalha. É a luta entre
duas mentalidades, duas concepções de felicidade e religião. Por
um lado, nós dependemos dEle para salvação e felicidade. É a
esperança no reino do céu. Por outro lado é a ilusão de nossa auto-
178
suficiência, nosso poder de construir um mundo de paz e
felicidade. A batalha é tão velha quanto o mundo. Dos ramos
sedutores da árvore do Éden ele tem se espalhado pelas sucessivas
eras até o presente. É a batalha de cada pessoa no momento da
decisão de voltar para Deus. A batalha do Armagedom vai atingir
seu pior estágio nos últimos dias quando, no meio das multidões
inflamadas com sua fé no deus concreto da carne, o povo de Deus
vai se agarrar à esperança no Deus invisível. O verdadeiro campo
de batalha é o mundo inteiro.
ESTRUTURA DE DANIEL 11
Introdução (verso 1)
Um relance ao primeiro ano de Dario o Medo (cf. 9:1).
I.O Conflito Persa-Grego (versos 1-4)
1. Três reinos persas.
2. Quatro reis valiosos contra a Grécia (Artaxerxes).
3.Um rei poderoso (Alexandre); divisão em quatro reinos
(Período Helenista)
II.O Conflito Norte-Sul (versos 5-39)
A Sul ataca o Norte (versos 5-8)
B Norte ataca o Sul (versos 9, 10)
C Sul ataca o Norte (versos 11, 12)
A1 Norte ataca o Sul (versos 13-25a)
B1 Sul ataca o Norte (versos 25b-27)
C1 Norte ataca o Sul (versos 28-39)
III.O “Tempo do Fim” (versos 4-45)
A Sul ataca o Norte (verso 40a)
B Norte ataca o Sul (versos 40b, 41)
A1 Norte ataca o Sul (versos 42, 43a)
B1 Sul se alia com o Norte contra o
“monte santo”. Vitória vem do alto. Fim
do Norte.
1
.Alguns comentaristas incluem o nome de Smerdis, o impostor (521), uma
sugestão do Neoplatonista Porfírio, emprestada recentemente por E. J. Bickerman, Four
Strange Books of the Bible: Jonah, Daniel, Koheleth, Esther (New York: 1967), pp. 117
ff. Escolhemos omiti-lo por diversas razões: 1. Ele reinou menos de um ano (sete meses);
2. Ele foi um impostor originário da Media, e a profecia fala de reis Persas. 3. É bem
provável que ele nunca existiu e foi só um rumor planejado por Dario para justificar sua
179
ascensão ao trono. Herodotus teria aceitado e registrado a versão oficial. Isaac Asimov se
refere a isso como talvez “um daqueles casos onde uma grande mentira foi impingida na
história” (The Near East: 10,000 Years of History [Boston: 1968)], p. 125). De fato,
numerosos comentaristas negligenciaram Smerdis (Ver L. F. Hartman e A. A. Di Lella,
The Book of Daniel, Anchor Bible, [Garden City, 1978], p. 288)
2
. Tal como Ibn Ezra, Ralbag, Ibn Yachiah, Malbim, etc. Ver também Rosh
Hashanah 2b.
3
. Boniface and Marechal, Histoire: Orient-Grèce, p. 99; cf. pp.198, 199. Ver
também o testemunho dos historiadores gregos Thucydides (em History of the
Peloponesian War); Diodorus of Sicily 11, 71, 74, 77; Herodotus 6. 106.
4
. Algumas versões usam a palavra “descendentes,” uma transliteração da
palavra feminina aharith (aqui “depois,” como “descendente”). Esta palavra (aharith)
não é, contudo, usada na forma plural na Bíblia (ver Sal. 37-38; 109:13; Prov. 21-21; Ecl.
7:8, Eze. 23:25).
5
. Ver Lacocque, The Book of Daniel, p. 61, e Delcor, Le Livre de Daniel, p.
220; cf. tambem, Rashi e Ibn Ezra em Miqraoth Gdoloth..
6.
Nossa aproximação permanece pela linha tradicional de interpretação. Do
Neoplatonista anti-cristão Porfírio (300 EC, ver apêndice) até hoje, criticas racionais tem
lido esta passagem como se referindo à guerra entre os Selêucidas (rei do norte) e os
Ptolomeus (rei do sul) que enfureceu até o reino de Antíoco Epifânio (versos 21-45).
Exegetas conservadores tem mantido esta interpretação do conflito entre os Ptolomeus e
Selêucidas e de Antioco Epifânio mas tem aplicado-o a diferentes seções do texto. De
acordo com eles, só os versos de 5-13 aludem ao conflito entre os Ptolomeus e
Selêucidas, enquanto os versos 14-30 apontariam tanto a Roma como a Antioco Epifanio.
Versos 31-39 tem em mente o poder descrito em Daniel 8 como o chifre pequeno, e os
versos 40-45 se aplicaria então tanto a Turquia como ao papado (F.D. Nichol, ed., The
Seventh-day Adventist Bible Commentary, rev.ed. [Washington, D.C.:1979)], vol. 4 pp.
868, 869, 876, 877; cf. William H. Shea, Selected Studies on Prophetic Interpretation,
Daniel and Revelation Committee Series [Lincoln, Neb: 1982], vol. 1, pp. 44-55). Em
qualquer caso, o problema permanece sem solução. A grande diversidade de
interpretações em relação a esta passagem testemunha de um estado geral de confusão, e
de soluções de caráter inconclusivo. Assim para a interpretação espiritual e escatológica
defendida em nosso comentário, elas são confirmadas pelas origens confiáveis como C.
F. Keil, Biblical Commentary of the Book os Daniel, Commentary on the Old Testament
(Grand rapids: re-impresso 1991), vol 9, p. 421; E. B. Pusey, Daniel the Profet (New
York: 1885), p. 136; e estão implicitamente apoiadas por Ellen G. White (ver
Testimonies for the Church [Mountain View, Calif.: Pacific Press Pub. Assn., 1948], vol.
9, pp. 14-16).
7
. Ver Jer. 3:19; Eze. 20:6, 15; cf. Zac. 7:14; Sal. 106:24.
8
. O contexto imediato do verso 28 sugere que o rei do norte é o sujeito do
verbo “retornar” (shuv). O verso precedente (27) menciona dois reis, já implicando que o
rei do norte estava ao lado do rei do sul. No próximo verso (29) o verbo “retornar”
(shuv), que está relacionado ao rei do norte, faz eco ao verbo “retornar” (shuv) no verso
28. é por que o rei do norte esta retornando para casa que seu ataque no rei do sul é
descrito como um “retorno.”
9
. Uma figura de linguagem tecnicamente chamada um “merismus.”
10
.Ver também Isa. 43:6, 7: I Cron. 26:17; Sal. 107:3; Ecle. 1:6; Cant. 4:16, etc.
As crônicas do Antigo Egito usam a mesma linguagem para se referir a Artaxerxes como
o “rei do sul e do norte.” Isto é, rei do mundo inteiro (Robert William Rogers, A History
of Ancient Persia: From Its Earliest Beginnings to the Death of Alexander the Great
[New York: 1929], p. 176).
11
. Ver também II Reis 18:21; Jer. 2:18; etc.
180
12
. Ver Lacocque, P. 166.
13
. Cf. Isa. 11:14 e Jer. 25:21, onde os três países aparecem na mesma ordem
como um modo de sugerir movimentos do sul para o norte no mesmo contexto de uma
campanha militar.
14
. Ver Num. 34:6, 12.
15
. Ver Isa. 2:2; Sal. 68:17; 132:13; etc.
16
. Ver Mat. 9:35; Marc. 1:14; Luc. 4:43; 8:1, Atos 1:3: 8:12; Col. 4:11; etc.
181
Capítulo 12
A VITÓRIA DE JERUSALÉM
182
a B (Dan. 7:9, 10, 26), a cena do juízo e a abertura dos livros.
“Naquele tempo” (Dan. 12:1b) também introduz esta seção.
A1 (Dan. 12:4-12), que se refere ao chifre pequeno,
corresponde no capítulo 7 a A (Dan. 7:8, 25), que também fala do
chifre pequeno. As alusões aos dois capítulos, 7 e 8 se referem ao
chifre pequeno. A ligação ao capítulo 7 ocorre na menção do “um
tempo, tempos e metade de um tempo” (Dan. 12:7; cf. 7:25). A
alusão ao capítulo 8 aparece (1) na aparência do mesmo ser
celestial que pede a mesma questão: “quanto tempo?” (Dan. 12:6;
cf. 8:13); (2) o mesmo feito do chifre pequeno, niphlaoth em
Daniel 8:24 (traduzido por “destruirá terrivelmente”) e pelaoth em
Daniel 12:6 (traduzido por “destas maravilhas”); e (3) a mesma
abolição do sacrifício diário (Dan. 12:11, 12; cf. 8:11, 13). A
expressão “tu, porém, Daniel” (Dan.12:4) introduz a terceira
seção.
Na conclusão do capítulo (verso 13), a expressão “tu,
porém” envolve tanto Daniel (“tu, porém”) como toda a
humanidade.
II. O Juízo
Mas a cortina não desce na tragédia. O livro de Daniel vê
um “tempo de angústia” através da perspectiva da esperança
divina.
185
Depois do tempo de angústia vivido pelo exílio, o profeta
Jeremias prevê o retorno e a salvação de Israel: “É tempo de
angústia para Jacó; todavia, há de ser livre dela.” (Jer. 30:7).
Jesus prediz a vinda do Filho do homem: “Logo depois da
tribulação daqueles dias... então aparecerá no céu o sinal do Filho
do homem” (Mat. 242:29, 30).
Do mesmo modo, em Daniel 12 a salvação, que vem do
alto, interrompe a angústia: “mas naquele tempo livrar-se-á o teu
povo, todo aquele que for achado escrito no livro.” (verso 1).
Como no capítulo 7, o capítulo 12 coloca a vinda de Michael (o
filho do homem) em um contexto de juízo. Então, também os
livros são abertos (Dan. 12:1; cf. 7:10). Mas no capítulo 12 o juízo
se expande além das cenas celestiais do capítulo 7. Agora
testemunhamos, seus efeitos na terra, de como Deus toma medidas
concretas para lidar com o mal. Agora entendemos que todas as
coisas que já ocorreram foram significantes, que cada evento teve
implicações. Tudo foi registrado e agora está sendo avaliado. O
juízo separa o sábio do mau, vida da morte. Somente uma
mudança radical pode esclarecer o caminho para uma nova vida. E
somente a erradicação da morte vai tornar possível esta nova vida.
O juízo é cósmico e definitivo. A salvação vai atingir tudo e vai
ocorrer em um momento definitivo na história. “muitos dos que
dormem no pó da terra ressuscitarão... Os que forem sábios, pois,
resplandecerão como o fulgor do firmamento... como as estrelas
sempre e eternamente” (Dan. 12:2, 3).
É preciso coragem para aceitar isso. Salvação implica
morte. Para ser ressuscitado, precisamos primeiro morrer. Mas a
recompensa é real, palpável, e não apenas algum tipo de
imortalidade etérea.
A esperança bíblica vai além da esperança humana. Não é
suficiente fazer vagas promessas de um mundo melhor, fundado na
força de vontade humana. Particularmente, aponta para um mundo
no qual as estrelas brilharão eternamente. De fato, a realidade da
imortalidade da alma será mais gloriosa do que podemos ousar
imaginar: “As coisas que olhos não viram, nem ouvidos ouviram,
nem penetraram o coração do homem, são as que Deus preparou
para os que o amam” ( I Cor. 2:9).
186
III. Quanto Tempo?
Mas, por agora, do fundo de nossa escuridão, podemos
apenas ansiar: “Quanto tempo?” A questão é expressa duas vezes
no livro, uma vez por Daniel, e uma vez pelo anjo. Daniel 12
responde a isso apresentando três períodos de tempo. O primeiro já
é familiar para nós: “um tempo, tempos e metade de um tempo”
(verso 7). É o período mencionado no capítulo 7, durante o qual o
chifre pequeno exerceria seu poder opressivo e vai durar até 1798.
Até Daniel permanece perplexo. “Não entendi” (Dan. 12:8). Ele
quer saber mais sobre o tempo do fim: “Senhor meu, qual será o
fim destas coisas?”
Os próximos dois períodos cobrem aproximadamente o
mesmo espaço de tempo (1290 dias e 1335 dias) e estão
relacionadas com o primeiro período (1260 dias). Como os 1260
dias, os 1290 e 1355 dias deve ser entendido em termos de anos.
Depois disso, o modo como os 1290 dias e os 1335 dias
estão relacionados coloca-os na mesma perspectiva, a segunda
prolonga a primeira. “E desde o tempo em que o holocausto
contínuo for tirado, e for e estabelecida a abominação desoladora,
haverá mil duzentos e noventa dias. Bem-aventurado é o que
espera e chega aos mil trezentos e trinta e cinco dias” (Dan. 12:11,
12).
Se os 1290 dias e os 1335 dias têm o mesmo ponto de
partida (quando o sacrifício diário e abolido), o primeiro período
terminaria depois dos 1290 dias, enquanto o outro continuaria até
completar 1335 dias. O destino final é 1335 dias. O último período
mencionado ocorre em resposta à questão: “Quanto tempo?”
(verso 6; cf. verso 8). Lembramos esta questão do capítulo 8. A
mesma palavra hebraica, ad matay, aparece no mesmo contexto de
“coisas espantosas” (pelaoth, 8:13, 24), e do diálogo entre os dois
seres (verso 13; cf. 12:6). Finalmente o ser, que declara a questão,
não é outro senão o sumo-sacerdote oficiante no Kippur, um dos
temas chave do capítulo 8. De fato, as duas visões falam do
mesmo evento. Os 1335 dias e as 2300 tardes e manhãs respondem
a mesma questão, “Quanto tempo?” e conseqüentemente nos
conduz ao mesmo tempo do fim, isto é 1844.
Na visão das 2300 tardes e manhãs, Daniel entende o
período de tempo, começando em 1844, como o Kippur celestial,
durante o qual Deus julga a raça humana e prepara o reino por vir.
187
Então na visão de 1335 dias, Daniel vê o mesmo período de
tempo, só que ele agora está olhando para a terra, para a pessoa
que nela “atingiu o fim” e cuja alegria está em esperar: “Bem-
aventurado é o que espera” (Dan. 12:12). O período do tempo
começando em 1844, não é só um tempo de cumprimento, mas de
aguardar e de ter esperança. Do mesmo modo, os israelitas
esperariam com esperança durante o festival de Kippur, como
colocado pelo famoso De Profundis:3 “Aguardo no Senhor; minha
alma o aguarda, e espera na sua palavra. A minha alma anseia pelo
Senhor, mais do que os guardas pelo romper da manha... Espera, ó
Israel, no Senhor!” (Sal. 130:5-7).
Agora é possível, pelo numero 1335 dado, finalmente,
resolver o enigma que tanto tinha perturbado o profeta, e checar
duplamente a data de 1844. Todas as peças do quebra-cabeça estão
agora à nossa disposição. Vamos, agora, rever nossas conclusões.
Com 1844 sendo o ponto final dos 1335 dias nós podemos calcular
o ponto de partida dos 1335 dias simplesmente pela subtração de
1335 de 1843 ( e não de 1844, o qual incluiria o ano em curso). A
resposta é 508 EC, que confirma nossa data de 1798 como o ponto
final dos 1290 dias (508 mais 1290, igual 1798). De acordo com
nossa passagem, 508 é então o tempo da abolição do sacrifício
diário, limpando o caminho para a “abominação desoladora” (Dan.
12:11). Os dois eventos não são os mesmos. O primeiro pavimenta
o caminho para o segundo. Literalmente o texto diz que o
sacrifício diário está abolido “para” estabelecer em seu lugar a
“abominação desoladora” (verso 11; cf. 11:31). No livro de Daniel
a expressão técnica “abominação desoladora” designa o poder
opressivo (Dan. 8:11, 13, 9: 27; cf. Mat. 24:15; Mar. 13:14). De
acordo com o profeta, a opressão duraria então um “tempo, tempos
e metade de um tempo,” isto é, 1260 dias-anos. O período coberto
pelos 1260 anos terminou em 1798. Seu ponto de partida é então o
ano de 538 (1798, menos 1260, igual a 538). Nós já temos
encontrado a data de 508, 538, e 1798 no capítulo 7 de nosso
comentário. Em 508 a igreja medieval reforçou seu status político
com o auxílio de Clovis, rei da França (481-511) que eliminou as
tribos dos Arianos, que tiveram sua sobrevivência ameaçada. Dai
para frente “o papado pode proceder livremente para assegurar sua
influência política.”4
188
Mas não foi antes de 538 que o imperador Justiniano (527-
565) removeu definitivamente o tratado Ariano. Como profetizado
por Daniel, o aparecimento do chifre pequeno dependeu da queda
de diversos reinos deixados para trás pelo Império Romano.
Em 1798, com a prisão e deportação do próprio papa,
finalmente é cortado o poder político da igreja medieval.
A data de 1844 é um pouco difícil de elucidar.
Historicamente, não aconteceu muito nela. Não revolução, não
conquistas, nenhum decreto ocorreu. Nem mesmo figura nos
manuais de história. Até mesmo para Daniel não parece ter alguma
significância. O ano de 1844 é caracterizado por um movimento,
tanto multi-confessional como internacional, que se situa
precisamente em uma perspectiva de esperança e aguarda pela
vinda, o “advento” de Deus.5
O historiador John B. McMaster estima que perto de 1
milhão de pessoas fora dos 17 milhões nos Estados Unidos
estiveram envolvidos no movimento.6 É maravilhoso que judeus e
muçulmanos tiveram a mesma febre religiosa. Do lado dos judeus,
o movimento Hassídico da Europa Ocidental pode ter esperado a
vinda do Messias em 5603 (1843/1844). 7 Os muçulmanos Baha’i
chegaram à mesma conclusão. O bab (“a porta,” abrindo para o
iman escondido) apareceu no ano de 1260 da hegira, isto é,
1843/1844.8 Ao mesmo tempo, no mundo secular o movimento
Marxista começou a florescer, chamando por progresso e cantando
esperança em outra melodia. Qualquer que seja a razão, que possa
explicar este fenômeno histórico, é interessante que ele aconteceu
no ritmo da profecia. Foi um sintoma de intenso anseio e espera.
ESTRUTURA DE DANIEL 12
I. A Vinda de Michael (verso 1a)
“Naquele tempo” (verso 1a)
♦ grande príncipe
♦ tempo de tribulação
II. Juizo (versos 1b-3)
“Naquele tempo” (verso 1b)
♦ livros abertos
190
♦ Ressurreição
III.Até Quando? (versos 4-12)
“Tu... Daniel” (verso 4)
♦ um tempo, tempos e metade de um tempo
♦ 1290 dias
♦ 1335 dias
IV. Do esperar para o caminhar (verso 13)
“Tu” (verso 13a)
♦ fim de Daniel
♦ fim dos dias
1
.Ver Josué 21:44; 23:9; Juízes 2:14; I Sam. 6:19, 20; 17:51; II Sam. 1:10; II
reis 10:4; Jer. 40:10; etc.
2
.Ver o endereço por Gordon R. Taylor, Le Jugement Dernier (Calmann Levy,
1970).
3
.Um salmo é recitado durante a liturgia de Kippur (ver “Prayers of Rosh
Hashanah” no Shulkhan Arukh, cap. CIC, p. 582). Parece ter sido desenhada sua
inspiração do próprio festival, como foi indicado pela frase técnica “todos seus pecados”
(cf. Lev. 16:21, 22).
4
.Walter Ullmann, A Short History of the Papacy in the Middle Ages (London:
1972), p. 37. “em direção aos anos 500, uma instituição de incontestável autoridade
emerge... O papa, grande pontífice (summus pontifex), grande sacerdote (summus
sacerdos ), algumas vezes chamado... ‘vicar of Christ’... é considerado de ter uma
reputação de prestigio excepcional” (tradução do autor de Marcel Pacaut, La Papauté dês
origines au concile de Trent [Paris, 1976], p. 44).
5
.Ver Henri Desroche, The Sociology of Hope, trad. Carol Martin-Sperry
(London: 1979), p. 61.
6
.J.B. McMaster, A History of the People of the U.S. From the revolution to the
Civil War (New York, 1920), vol. 7, p. 136.
7
.Machiah Maintenance Jan. 30, 1993.
8
.Ver Josué 21:44; 23:9; Juizes 2:14; I Sam. 6:20; 17:51; II Sam 1:10; II Reis
10:4; Jer. 40:10; etc. C. Cannuyer, Les Bahais, p. 11.
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