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PRINCIPIOS HERMENEUTICOS JUDAICOS

Para passar da oralidade para a escrita, essa tradição demonstrou ser


necessário ter em sua estrutura dois aspectos fundamentais: uma memória
religiosa e as chaves da interpretação.

Por "memória religiosa" consideramos as tradições rituais


relacionadas à Bíblia que não são mencionadas claramente nos
versículos. De fato, algumas coisas são sempre lembradas, como por
exemplo, os sinais característicos dos animais permitidos ou não permitidos
para os sacrifícios. Outras considerações permaneceram totalmente ignoradas
por essa memória.

Por "chaves de interpretação" consideramos um conjunto de regras


de interpretação que permitem deduzir novas leis, religiosas e sociais, a
partir do Pentateuco. O Talmud conservou treze regras hermenêuticas,
como por exemplo, princípios de analogia, a influência do contexto. A partir
delas o mestre podia construir toda uma lógica que considerava desde
implicações no campo dos ritos e da filosofia, sempre sob a condição de
permanecer coerente com elas mesmas e com o espírito da Bíblia. São as
múltiplas interpretações que dariam forma ao surgimento de diferentes escolas.

Talmude
O Talmude (em hebraico: ‫ַּת ְלמּוד‬, transl. ṯaləmūḏ cujo significado é
estudo) é uma coletânea de livros sagrados dos judeus, um registro das
discussões rabínicas que pertencem à lei, ética, costumes e história do
judaísmo. É um texto central para o judaísmo rabínico.
O Talmude tem dois componentes: a Mishná, o primeiro compêndio
escrito da Lei Oral judaica; e o Guemará, uma discussão da Mishná e
dos escritos tanaíticos que frequentemente abordam outros tópicos.
O Mishná foi redigida pelos mestres tanaítas (Tannaim), termo que
deriva da palavra hebraica que significa "ensinar" ou "transmitir uma tradição".
Os tanaítas viveram entre o século I e o século III d.C. A primeira codificação é
atribuída ao Aquiba (50 d.C. – 130 d.C.), e uma segunda, ao Rabi
Meir (entre 130 d.C. e 160 d.C.), ambas as versões tendo sido escritas no
atual idioma aramaico, ainda em uso no interior da Síria.
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A Mishná
As agitações políticas e a ocupação romana forçaram essa atitude de
por escrito", os ensinamentos orais. Esse trabalho não foi resultado de uma
única geração, mas uma lenta compilação de comentários que eram divulgados
há séculos. Esse período de efervescência intensa intelectual começou com o
retorno da Babilônia (em torno de 500 a. J. C.)
O primeiro período que estendeu por cento e cinquenta anos foi o
período dos soferim ou "escribas", que foram os intermediários entre os
profetas e os doutores da lei propriamente ditos. O último personagem
conhecido dessa série foi o grande sacerdote Simão, o Justo, contemporâneo
de Alexandre, o Grande. Esse sábio abriu a era dos Doutores que, julgando a
Bíblia definitivamente acabada e completa na sua forma, nela viram
perfeitamente um campo de investigação religiosa vastíssimo e substituíram o
título de soferim por outro mais modesto: chonim "professores" ou "choné
halakha" "professores da lei" ou então conhecidos na sua fórmula "tanaim"[2].

Se os escribas eram de certa forma os continuadores da Bíblia, os


doutores foram os seus comentadores, um pouco parecidos com os sábios
anciãos dos gregos que depois de Pitágoras se tornaram os amantes das
sabedoria. Os doutores eles mesmos passaram dos
conhecidos hakhamim "sábios" para serem agora os "talmidé hakhamim", os
"alunos dos sábios".

As fundações dessa obra foram erguidas pelo célebre Hillel, chamado "o
Ancião" ou o "Babilônio", patriarca e presidente do grande tribunal rabínico de
Jerusalém, mais ou menos trinta anos antes do cristianismo surgir. Precursor
da exegese do Talmud, autor das primeiras regras de interpretação bíblica, ele
mereceu ser chamado de o Segundo Esdras e de Restaurador da Torah. Essa
Mishná de Hillel foi depois enriquecida pelo Rabbi Akiba. Entre os seus
discípulos, citamos Rabbi Meir que fundou uma famosa escola em Tiberíades e
a quem se atribui a maioria dos textos anônimos da Mishná.

A redação definitiva da Mishná é atribuída a Rabbi Juda o Príncipe


(Yehouda HaNassi), chamado também de "nosso santo Rabbi" ou somente de
Rabbi, por excelência, mas muitos consideram que essa compilação se
estendeu até à metade do século III. A divisão da Mishná se dá em seis partes,
ou ordens, assim divididas:

1 – As Sementes: as leis religiosas e sociais ligadas à Terra de Israel (10


tratados);

2 – Os Compromissos: as festas (12 tratados).


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3 – As Mulheres: a legislação da família (casamento, divórcio, herança – 7


tratados).

4 – Danos: a responsabilidade civil, os tribunais, os testemunhos, as penas e


condenações (10 tratados).

5 – Sobre as coisas sagradas: as leis do Templo e dos sacrifícios (11 tratados)

6 – Purezas: as leis sobre o puro e o impuro (12 tratados).

O conjunto dos tratados da Mishná se apresenta como uma série de pequenos


textos, distribuídos em capítulos que vão desenvolvendo sobre as diferentes
interpretações dos mestres. A apresentação é breve e transparece sempre o
desejo de ir logo ao essencial, como que a análise estivesse sob alguma
espécie de pressão da situação econômica e religiosa.

A Tradição Oral

Aquele que crê no judaísmo afirma que paralelamente ao texto escrito,


Moisés recebeu um comentário oral que transmitido de Mestre a aluno. Texto
escrito e comentários orais tinham estatutos diferentes como nos revela o
Talmud: "As palavras escritas tu não transmitirás oralmente, as palavras orais
tu não transmitirás por escrito". A primeira regra afirmava que a palavra
divina se tornou um livro que nunca deveria ser exposto de cor, mas lido
aos fiéis nos seus exatos manuscritos e de forma correta. Quanto à
tradição oral que reunia antigos comentários e as interpretações mais
recentes, os desenvolvimentos da jurisprudência e os ensinamentos
morais, tinham na segunda regra um caráter mais relativo e mais
dinâmico também.

Os rabinos queriam mesmo manter a dialética da interpretação oral, mas


sempre tinham a preocupação de não igualar proposta alguma com o texto
divino. Acrescentemos ainda que nesse tempo ainda não havia a imprensa,
muitíssimos ensinamentos eram depositados na memória, faculdade esta
importante no seu exercício e tão necessária.

A Vocalização

O alfabeto hebraico se formou originalmente de vinte e duas consoantes,


sem nenhuma vogal; o pergaminho do Pentateuco, portanto, não foi nunca
escrito vocalizado. Essa particularidade permite ler uma palavra de diferentes
maneiras. Se essa característica é considerada uma bênção para alguns, para
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outros pode ser fonte de erro na leitura em público. Esse foi o mérito dos
chamados Massoretas em resolver essa delicada questão.

Quem foram os Massoretas? Da raiz massor "transmitir" (de onde vem a


palavra emissário), eles designam as escolas de escribas que vocalizaram o
texto bíblico. Se os escribas na época de Esdras, como funcionários
conscientes contaram o número de letras da Bíblia, identificando as palavras
desaparecidas ou os grafismos particulares (algumas letras são
propositalmente escritas maiores do que outras, ou menores do que outras), os
Massoretas inventaram como colocar as vogais nas palavras. Esse trabalho
exigiu paciência, inteligência e bom senso, porque dependendo da vocalização
é que se dependia todo o sentido do versículo e portanto toda a mensagem
bíblica. Esses massoretas eram na verdade eruditos judeus que, na Idade
Média, se dedicaram à tarefa de estabelecer a forma do texto da Bíblia
Hebraica e transmitir esse texto do modo mais exato possível, vocalizando um
texto consonantal (o acréscimo de sinais vocálicos).

Vejamos como exemplo o versículo dois do Capítulo II do livro do


Eclesiastes, os Massoretas vocalizaram a palavra méhollal "insensato"
contrariamente ao Talmud (Tratado Shabat 30b) que lia méhoullal "louvável".
Para poderem ter tanta autonomia e liberdade e serem respeitados pelos
talmudistas, isso nos forçaria a admitir que os Massoretas estavam muito
próximos ao período de encerramento do Talmud, podendo até mesmo serem
contemporâneos a ele.

As escolas dos Massoretas se desenvolveram sobretudo em Tiberíades


em torno do século X e XII. Os mais famosos dos Vocalizadores foi Aarão Ben
Moisés Ben –Acher que viveu em torno do ano 1000. Ele ofereceu a versão
vocalizada oficial do texto bíblico, e recebeu mais tarde a aprovação total de
Maimônides (1135-1204).

A Crítica Bíblica

Mesmo que a Bíblia tenha sido escrita em Hebraico (em raras


passagens também em aramaico ou a dos caldeus), o especialista constatou
uma heterogeneidade da linguagem: algumas contradições, variações de estilo,
de vocabulário, de espírito. A exegese rabínica não ignorou essas questões e
tentou responder do seu modo. Mantendo a diferença entre autores e
redatores, o ortodoxo poderia encontrar um equilíbrio entre a sua fé e a
abordagem científica.
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Autores e Redatores
O Talmud ensina:
"Moisés escreveu seu livro, as profecias de Balaão e Jó. Josué escreveu
seu livro e os oito últimos versículos do Deuteronômio (a morte de Moisés).
Samuel escreveu seu livro, Juízes e Rute. Davi escreveu os Salmos... Jeremias
escreveu seu livro, Reis e Lamentações. O Rei Ezequias e seu conselho
escreveram Isaías, Provérbios e o Cântico dos Cânticos. Os homens da
Grande Assembléia escreveram Ezequiel, os doze profetas "menores", Daniel
e Ester. Esdras escreveu seu livro e Crônicas".
Esse texto é interessante porque ele distingue o autor do redator.
Também o Cântico dos Cânticos está vinculado ao Rei Salomão (em torno de
980-931), mas sua forma final foi atribuída à Ezequias (716-688).

Ketouvim ou Escritos

Esta parte igualmente traduzida como os "Hagiógrafos" contêm textos


históricos: Rute, Lamentações de Jeremias, Ester, Daniel, Esdras, Neemias,
Crônicas; e também textos poéticos, litúrgicos ou éticos: Salmos, Cântico dos
Cânticos, Jó, Provérbios, o Eclesiastes.

A tradição sinagogal explica essa repartição da Bíblia em três livros


pelos três níveis proféticos que os inspiram. A Torah corresponde em nível
profético superior (Moisés), os Neviim em nível profético inferior, os Ketouvim
em nível de espírito de Santidade.

Se somarmos aos cinco livros do Pentateuco, os oito livros dos Profetas


(os doze "menores" eram considerados como uma única obra) e os 11 livros
dos Escritos (Esdras e Neemias formam uma única obra) nos alcançamos o
número de 24 livros canonizados, reconhecidos como textos inspirados e cuja
mensagem diz respeito a todas as gerações de Israel. Embora alguns livros
foram colocados no índex, como o são os livros de Judite, Macabeus, Baruc,
Sabedoria de Salomão, o Eclesiástico, Tobias, os acréscimos feitos no rolo de
Ester. As Igrejas católica e ortodoxa, no entanto integraram esses textos no
seu cânon pessoal.

Neviim ou Profetas

Esse segundo livro, o maior da Bíblia, se apresenta em duas partes


distintas: uma parte histórica judaica seguida de oráculos proféticos.
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A parte histórica compreende:

Josué: a instalação dos Hebreus sobre a terra de Canaã.

Juízes: a vida das tribos diante do surgimento de um poder político


central.

1 e 2 Samuel: o último juiz. Início da realeza de Israel: Antes Saul,


depois Davi.

Reis (1 e 2): a história da realeza: Davi, Salomão e a construção do


Templo de Jerusalém, o Cisma (Reino do Norte e Reino do Sul). Fidelidade e
infidelidade dos reis diante de Deus. A ação dos Profetas. Esse livro termina
com a descrição da destruição do Templo.

A segunda parte dos Neviim é formada por oráculos dos três grandes
profetas: Isaías, Jeremias e Ezequiel, e dos outros doze "menores" (assim
chamados por causa dos poucos capítulos que contém). A tradição judaica os
chama simplesmente "os doze"[1]: Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas,
Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias.

Entre todos os profetas que se ergueram na sociedade hebraica


somente esses quinze foram canonizados.

A Torah ou Pentateuco

Traduzida numa forma muito restritiva como "Lei", a Torah é mais ainda
"o Ensinamento" (da mesma raiz temos igualmente yore = a chuva do início da
estação e more (feminino morah) = aquele que ensina) ou também entendida
como a "direção". Esse termo pode também designar um específico
ensinamento, uma modalidade legal – confira o livro de Números capítulo 6,
versículo 21 – Nm 6,21 – do que o conjunto do Pentateuco.

Uma tradição rabínica afirma que a Torah não foi escrita no tempo de
Moisés, mas que ela já existia antes da criação do mundo e que Deus a
contemplava, como um arquiteto consultando seu plano, antes de criar o
Universo. Mesmo que esse gênero literário relembre sempre um comentário
filosófico, ele traduz ao menos a fé do judeu na eternidade dessa palavra
transcrita, e a correspondência entre a realidade de nosso mundo e a vontade
divina.

O Pentateuco está escrito num pergaminho. Nas sinagogas, ele é


colocado num armário no fundo chamado "arca da santidade". A maioria dos
lugares de culto possuem numerosos rolos, mas trata-se de a cada vez, ler-se
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o mesmo texto. A Torah se apresenta como um longo texto histórico que vai
desde a criação do mundo até à morte de Moisés. No interior desse texto,
encontramos a Legislação de Israel expressada nos 613 mandamentos
ou mitsvot (no singular mitsvá).

Os nomes e os grandes temas do Pentateuco são:

 Gênesis (Bereshit): a criação do mundo, o paraíso e a falta de Adão e


Eva, o assassinato de Abel por Caim, o dilúvio e a arca de Noé, a torre
de Babel, os patriarcas Abraão, Isaac e Jacó, a descida dos Hebreus ao
Egito.
 Êxodo (Shemot): a escravidão dos Hebreus no Egito, a vocação de
Moisés, a saída do Egito, o nascimento do povo de Israel, a travessia do
Mar Vermelho, os Dez Mandamentos, as primeiras leis sociais e
religiosas, a queda do bezerro de ouro, o perdão e a construção do
Tabernáculo ou do Templo ambulante.
 Levítico (Vayikra): as leis do Templo (sacrifícios, regras sobre a pureza e
a impureza, lei dos sacerdotes), leis sociais e religiosas.
 Números (Bamidbar): a enumeração dos filhos de Israel, os conflitos
internos, os combates de Israel, as leis sociais e religiosas.
 Deuteronômio (Devarim): o testamento de Moisés, a memória da Aliança
e dos acontecimentos importantes dos Hebreus, as últimas leis.

A Tradição Escrita

O judaísmo conheceu duas grandes tradições complementares, uma


tradição escrita: a Bíblia e uma tradição oral cuja obra principal é o Talmud.
Comecemos pela tradição escrita. O judeu crente fundamenta sua fé em três
grandes livros: a Torah (ou Pentateuco), os Neviim (ou Profetas),
os Ketouvim (ou Escritos). Essas três obras, designadas pelas suas iniciais em
hebraico TaNaKH, formam a Bíblia Hebraica.

O Mérito e a Aliança

Para o Hebreu cada ser humano possui seu próprio estado natural,
resultado de sua educação, fruto do seu ambiente social, familiar, de suas
qualidades intelectuais e afetivas, psíquicas etc. Esse estado natural ou
profano é o marco zero da sua caminhada ética, que somente Deus, que
"sonda os rins e os corações" pode conhecer. Se em determinado tempo
oferecido a uma pessoa, ela realiza um esforço moral (diante do seu próximo)
ou um esforço religioso (diante de Deus) a distância "matemática" entre o
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estado natural inicial e o resultado do esforço de santidade, oferecem a ele o


"mérito" ou zékhout.

Zekhout vem de zakh que significa "purificado", utilizado, por exemplo,


quando se refere ao azeite de oliva. O mérito é o grau de "pureza" do ser
natural no seu esforço pela santidade. Para o Hebreu, esse valor é
fundamental. Depois de Abraão, o mérito justifica a posteriori a criação. Com
certeza, Deus permanece o Misericordioso, mas o homem pode se tornar
também pelo seu esforço pessoal um verdadeiro parceiro adulto, e não uma
criança passiva e dócil. É nesse sentido que se deve entender a "Aliança", o
encontro entre dois parceiros livres, e frágeis um sem o outro.

O Mundo Futuro

O fato de que a Bíblia não fale nada sobre o mundo futuro, nem sobre o
mundo das almas, nem sobre Paraíso ou Inferno não interfere me nada para o
Hebreu, pelo contrário, o ajuda. Saber que existe um universo paralelo seria
contrário ao seu serviço divino. Em nenhum momento, os profetas avançaram
o tema falando de uma retribuição ou punição no outro mundo, pois para eles,
já tendo contribuído para a construção da morada divina sobre a terra, não
esperaram outra sequer recompensa, por menor que ela fosse. "A retribuição
da boa ação é a boa ação ela mesma", ressoará no Talmud. Quanto ao mundo
futuro, Moisés já tinha proibido toda especulação sobre, esses segredos
pertencem a Deus (Deuteronômio 29, 28) e o Sheol permanecia o lugar aberto
para essa "questão".

À luz da arqueologia, pode-se até mesmo dizer que o Hebreu quis


romper com o Egito e a sua religião. Aprofundando o conhecimento dessa
grande civilização, percebe-se a quão longe a Torah quis verdadeiramente
convidar o Hebreu "a sair do Egito". Essa foi a intuição de Maimônides que
pensou que todo decreto bíblico (hok) não justificado por um acontecimento
histórico, nada mais era que o oposto de uma regra religiosa egípcia, e mais
ainda pagã (o Egito era considerado o arquétipo do paganismo). As proibições
de misturar numa mesma roupa lã e linho, de não cozinhar o cabrito no leite de
sua mãe, ou os sacrifícios, revelam uma preocupação de servir a Deus aqui e
agora sem outra alegria ou bem-aventurança do que aquela produzida deste
cumprimento. Alguns documentos descobertos em Ougarit (Líbano) fazem
menção de um rito de sacrifício à deusa Tanith, que consistia em cozinhar um
cabrito no leite de sua mã].
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Para o Egito, a vida autêntica era a vida após a morte ao lado de Osíris.
E é por isso que mumificavam os corpos, para impedir a putrefação,
embelezavam as sepulturas, construindo câmaras mortuárias adequadas e
suntuosas. O Hebreu, por sua longa servidão e pelos seus contínuos
sofrimentos, tinha já entendido que primeiro é preciso se ocupar da realidade
terrestre, aliviar o fardo do pobre, amar seu próximo e aquele "seu distante"
como a si mesmo, e construir sim uma cidade de justiça e de igualdade neste
mundo. Sem dúvida, essas construções fantasmagóricas de um paraíso
luxuosíssimo ou de inferno em chamas teriam feito sorrir os autênticos filhos
de Abraão. Mesmo que a questão da imortalidade da alma entendida no seu
sentido teológico não tivesse sido abordada pelo Hebreu, este, no entanto
estava convencido de que Deus realizará o milagre da ressurreição dos mortos.
Tal seria a maneira de afirma a vitória da vida e do seu triunfo do bem sobre o
mal.

A liberdade como espaço de escolhas

Dentro desse sentido ocorre a classificação de que o profano se torna o


espaço da liberdade entre a impureza e a morte, e a santidade e a vida. Então,
o vocabulário é redefinido: o bem (tov) e o mal (ra) acontecem no plano ético.
Fazer o bem significa oferecer mais vida ao outro, ser portador de bênção e
fazer o mal significa o contrário. Se foram revelados por Deus, o bem e o mal
não podem ser relativizados em determinada sociedade ou em uma cultura
específica, mas adquirem um caráter absoluto, categórico e universal. Somente
os ritos e as formas de invocar a Deus é que mudam. Esse é o sentido da
pergunta de Deus a Adão: "Onde estás?", passar do estado do homem natural
ao estado do homem de santidade, se afastando da impureza.

O Adão original, criado a partir do pó, da terra é um animal biológico. Ele


vive graças a um sopro divino que faz dele um "nefesh haya", um "sopro
vivente". Esse homem natural é trabalhado pelos seus desejos, pelas suas
pulsões, pelas suas forças interiores que são divinas. A essa criatura particular
Deus oferece a "Tselem", a "imagem divina", que é a liberdade de fazer o bem.
Adão agora é capaz de ouvir nele mesmo o imperativo moral do Criador: "De
todas as árvores do jardim tu comerás, mas da árvore do conhecimento do
bem e do mal, tu não comerás" (Gn 2,16.17). Por essa lei é que ele aprende a
"se limitar naquilo que lhe é permitido". O fruto não estava envenenado! Por
essa lei o ser humano aprenderá a ser tornar o Ish (homem) do capítulo
seguinte, isto quer dizer, o homem da ética capaz de estar diante da Isha
(mulher) para se tornarem um casal e a sexualidade ser o santuário de Deus.
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Em outras palavras, a questão hebraica da liberdade não trata sobre o


abandono do mundo profano para ir ao mundo divino, mas trata sobre o como
humanizar o divino no mundo profano. Luc Ferry chama isso de reapropriação
do divino pelo humano.

As três "realidades" metafísicas

O monoteísmo ético, que implica a responsabilidade do ser humano


perante a criação, promove uma visão dinâmica do mundo. Diante dos três
estados da física: sólido, líquido e gasoso, o Hebreu que nos chamaremos de
"monoteísmo pragmático" considera também três níveis metafísicos: o profano,
o santo e o impuro.

O profano é chamado na literatura rabínica de hol (areia), e representa a


criação, um estado neutro do real, mas gerado por leis naturais, impostas por
Deus na sua origem. E se é profano expressão dessa vontade divina não existe
possibilidade para um julgamento negativo das realidades terrestres, pois seria
entendido como uma depreciação da obra de Deus. Os céus/ a terra, o corpo/ a
alma, a vida intelectual/ a vida sexual não são binômios contraditórios e
opostos, mas complementares e necessários, na pura lógica dinâmica do
monoteísmo. O profano é divino[1]. O judaísmo jamais partirá dessa visão,
mesmo que tendências extremistas apareçam inevitavelmente no curso dos
séculos.

A "santidade" (kedoucha) significa "separação". A praticidade do Hebreu


favorece que ele separe a santidade divina da santidade terrestre. Quando
Isaías, por exemplo, lembra: "Santo, Santo, Santo o Eterno do cosmos"
(Capítulo 6) isso significa que Deus é totalmente separado, totalmente Outro,
totalmente transcendente. Proclamando que Deus é Santo, nenhuma
informação nos é dada sobre Ele, somente que Ele permanece e sempre
permanecerá inacessível. Matematicamente falando, o atributo de santidade é
representado por um limite infinito.

Mas na vida humana, ao contrário, a santidade não é um estado estável,


mas dinâmico, um esforço de elevação. Essa percepção dinâmica da
santidade. O Talmud ensinará: "Escalamos em santidade, não descemos". A
partir do momento que se considera "lugares santos" ou "tempos santos" como
sacos que contém pérolas, estaremos muito perto de uma heresia panteísta.
Nunca um Hebreu autêntico cometeria tal falta de espírito, a menos que esteja
bem perto do sincretismo.
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Desse modo quando se fala da santificação do dia do Shabat (Sábado),


não se trata de que ele tenha uma textura espiritual particular, mas que a
consciência libertada, "separada", das preocupações da produção econômica,
pode melhor esclarecer o sentido de sua existência, e, portanto, melhor
construir seu templo interior, seu ser. Assim como no episódio da Sarça
Ardente (Livro do Êxodo capítulo 3) Deus exige que Moisés retire suas
sandálias, e não é caso como se traduz geralmente, porque a terra é santa (a
terra nunca é santa, ela é sempre profana), mas porque ela se tornou o lugar
de uma experiência de elevação da consciência. O Templo não é santo em si
mesmo (isso é o que acreditam os panteístas e que tanto condenavam
incansavelmente os profetas). O Templo é o espaço no qual o encontro com a
transcendência é possível.

O sacerdote ou Cohen não é ontologicamente mais santo do que um


simples fiel de Israel ou do que um pagão das nações. O sacerdote é
santificado, "separado" para uma função religiosa precisa[2]. Deus dirá no
capítulo 19 do Livro do Levítico "Sejam santos, porque Santo Sou Eu o Eterno,
vosso Deus"[3]. Diante do culto da natureza e dos instintos, o Eterno revela um
código civil e religioso que abrange todos os setores da existência, como o
respeito aos pais, a preservação das leis do Shabat, o zelo no cumprimento
dos deveres religiosos, a condenação dos ídolos, sobre o roubo, a mentira, e o
convite a amar seu próximo como a si mesmo. Todos esses atos de vigilância
são considerados "sobrenaturais", pois exigem um esforço de vontade e uma
generosidade gratuita em referência às palavras do Eterno Deus.

Saberá o Hebreu a conter seus instintos para que a vida social seja
possível. Saberá ele "aproveitar" da vida, mas sabendo evitar todo excesso.
Sem abuso de álcool ou de comida, sem sexualidade desenfreada, sem
preguiça paralisante ou de espontaneidade irrefletida. É no caminho real do
"meio", escreveu Maimônides, que o ser humano avança e se eleva na
santidade.

A impureza (toumah) – da raiz timtoum – fechamento é o terceiro


"estado" ligado a uma diminuição, ou melhor, uma supressão da vida, um
confinamento. Se a santidade é uma dinâmica de ascensão, a impureza é um
estado de rebaixamento. Fala-se de um objeto ou de uma pessoa que está
"pura" ou "impura". A fonte da impureza, nomeada em seguida pelo Talmud "o
grande pai da impureza" é a morte, que significa a interrupção da informação e
da consciência de si, a paralisação da progressão moral. A pior das mortes
para a consciência é a de estagnar, de não mais conhecer o movimento que
consiste em receber a informação ou em escolher a vida.
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Para o Hebreu essa noção de impureza não tem alguma conotação


pejorativa e não se traduz por um desprezo. Nem é igualmente sinal de sujeira.
A impureza da mulher, por exemplo, é simplesmente considerado como a
perda do óvulo que, se tivesse sido fecundado, iria gerar um bebê. A
abominação (toeva), de que fala, por exemplo, a Bíblia sobre a zoofilia (sexo
com animais) significa, antes de todo julgamento das pessoas, a entrada de
uma desordem na atividade vital da criação.

Para purificar um objeto ou uma pessoa, é necessário passar pela água


(ablução das mãos, imersão num banho ritual). Na época do Templo, os
sacerdotes praticavam ritos de purificação bem elaborados que não são mais
praticados após a destruição do santuário. A água, símbolo de movimento,
lugar da emergência das primeiras formas de vida animada (Gênesis 1,21)
representa o contrário do fechamento.

O Universalismo Hebraico

A Bíblia explica que o homem foi criado por Deus. Esse ser humano
"macho e fêmea" foi honrado com a outorga da tselem Elohim "a imagem
divina", que é constituída pelas capacidades espirituais que permitem o
exercício da liberdade para controlar sua natureza animal. A humanidade
inteira descende de um casal único. Adão e Eva, para que ninguém possa
dizer: "meu pai é superior ao seu pai". Todas as pessoas possuem, portanto,
essa "imagem divina", quaisquer que sejam as crenças que tenham e qualquer
que seja a sua cultura. A queda do Paraíso ou o pecado da geração do Dilúvio,
nada alterou dessa realidade (Cf. Livro do Gênesis – Gn 9,6). Se a ruptura
aconteceu, essa se deu com a natureza, não com Deus.

Após o Dilúvio, a humanidade recebeu pelo seu intercessor Noé sete leis (leis
noéticas que citaremos mais adiante) que constituem a religião "católica"
(universal) de Israel, e que constituem a moral fundamental de toda sociedade.

A religião de Israel é uma religião universalista e não universal, isto quer


dizer, que ela aceita a diferença religiosa, até mesmo sob o ponto de vista
dogmático. Não se trata se uma tolerância passiva, nem de uma
condescendência desrespeitadora, mas de uma crença fundamental de que
cada povo possui seu próprio brilhantismo e que ele participa a sua maneira do
projeto divino. Quando os profetas repreendiam severamente a idolatria, eles
não consideravam a sua espiritualidade, mas, sobretudo a sua imoralidade. Se
a moral for preservada, o valor imenso da pessoa humana estará garantido,
pois nem a religião e nem a política podem conduzir ao fanatismo e produzir
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injustiça. Todas as pessoas são julgadas com bondade, como foram os


habitantes de grande cidade de Nínive no Livro do Profeta Jonas, que se
arrependeram e deixaram de fazer o mal, sem se converterem ao judaísmo.

Certamente, se uma pessoa não judia expressa o seu desejo de se


reunir ao projeto sacerdotal de Israel (como foram Jetro ou Rute), ela será
recebida com todas as honras, após ter ouvido os avisos habituais sobre suas
futuras responsabilidades. O problema religioso que tem origem nesse
universalismo hebraico é, sobretudo, um problema de educação. Trata-se de
fato de desenvolver todos os recursos espirituais e morais presentes em cada
criança, para que se torne um adulto responsável diante de Deus e de seu
próximo. O problema da Bíblia não trata sobre o problema de Deus, nem o
problema do homem que são ambos tão evidentes, mas trata da questão sobre
o mundo vindouro, que está por vir, não mundo divino, mas autenticamente
humano.

Os eixos principais do Judaísmo - O Credo Bíblico

Os Hebreus têm certa visão própria de mundo, da história, do ser


humano que a análise do texto Bíblico nos revela. Apresentaremos alguns
aspectos que acreditamos ser fundamentais pois deles derivam todo o
pensamento religioso hebraico. Eles completam sobre aquilo que foi dito sobre
"o Profetismo" anteriormente.

Toda religião positiva se fundamenta sobre um Credo. Ela se apoia


sobre uma afirmação que se torna a verdade da sua base. O judaísmo não
escapou também dessa regra. Para ele, essa verdade original, fundante, é a
saída do Egito, data do nascimento do povo de Israel. Se Abraão descobriu o
monoteísmo ético, que marca de modo único a fé e a moral, a saída do Egito
marca o surgimento de uma coletividade que vai colocar aquela descoberta de
Abraão como coluna mestra da sua construção.

Não existe uma solenidade, ou oração que relembre esse acontecimento


fundador, e a fórmula "lembre-se da saída do Egito" é recorrente no ritual. A
saída do Egito é tão importante, que o mês da libertação, o mês de Nissan, se
tornou o primeiro do calendário hebraico[1] (Nissan era o mês das mudanças
de ano nas administrações reais, no período bíblico). Através da celebração da
festa da Páscoa, os judeus se identificavam aos Hebreus, experimentando a
amargura da opressão e expressando o seu reconhecimento ao Libertador
Supremo.
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O coroamento dessa alforria é a promulgação do Decálogo, que conclui


a Aliança (berit) entre Deus e Israel. A partir desse momento, a lei do instinto, a
do mais forte, é substituída pela lei moral, aquela da partilha e do amor entre
todos os seres humanos[2].

Por essa Aliança Israel não é mais um povo produzido pela natureza,
como aqueles que tinham nascido após Babel, mas uma coletividade de
testemunhas (eda), "um reino de sacerdotes": testemunhas de Deus, para que
o próprio Deus seja reconhecido como Pai da humanidade. Israel, portanto não
está preocupado em converter as pessoas ao judaísmo (proselitismo), mas
esforça-se por esclarecer as consciências da sua origem divina.

BIBLIOGRAFIA:

 Ferry, Luc. L'homme-Dieu ou le sens de la vie. Paris: Grasset, 1996.


p.252.
 Haddad, Philippe. Ces hommes qui parlaient – Réflexions sur le
prophétisme. Paris: Éditions Laurens, 1997. p. 271.
 Fischer, Alexander Achilles. O texto do Antigo Testamento. Barueri:
Sociedade Bíblica do Brasil, 2013. p.15.
[2] Estes escribas são chamados de Baalé nikoud "os Vocalizadores",
os "Pontuadores".
 Wikipédia, a enciclopédia livre.

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