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Capítulo 1 - Mishná 18
Raban Shimon ben Gamliel diz: O mundo existe graças a três coisas: a
verdade, a justiça e a paz; pois foi dito: “Que a verdade, a justiça e a paz
reinem nas vossas portas.” 111a
Em que sentido este dizer difere do anterior (Mishná 2), que declarava que o mundo mantém-se sobre
três coisas: a Torá, o serviço Divino e a beneficência? (Torá, avodá e guemilut chassadim). Observe que,
em vez da palavra omed, manter-se, na passagem anterior, temos caiám, existir. A primeira passagem
descreve os três valores que constituem o propósito da existência do mundo: o mundo foi criado para que
Torá, avodá e guemilut chassadim venham a ser realidades na vida humana. O mesmo mundo pode
existir, ser mantido e preservado somente se as condições de verdade, justiça e paz prevalecerem.
Outras interpretações foram apresentadas, encarando esta Mishná como complemento da anterior:
Tendo vivido em época posterior ao Segundo Templo, quando a avodá, no sentido clássico de culto com
sacrifício, não era mais possível, Raban Shimon ben Gamliel sugere-nos substitutos que encontram-se
disponíveis para o lugar das oferendas em sacrifício.
Quando praticamos justiça e sustentamos a Lei estamos, de fato, aprendendo as lições de chatát, a
oferenda de pecado, e asham, a oferenda de culpa, que refletem responsabilidade moral e castigo justo.
Oferendas que eram trazidas como donativos livres ou cumprimento de uma promessa, nedarim e
nedavót, nos ensinam a inviolabilidade de uma palavra, uma promessa, qualquer expressão da verdade. E
se uma pessoa cultivar a paz irá, assim, exemplificar o simbolismo de sheleamim, a oferenda de paz, e
todá, a oferenda de ação de graças.
Portanto, diz Raban Shimon ben Gamliel, se desejarmos hoje cumprir o ditado original de Shimon, o
Justo, devemos praticar a justiça, a verdade e a paz; elas irão substituir as oferendas perdidas da avodá
original.
Podemos também dizer que este ensinamento sugere as qualidades específicas com as quais deve-se
observar os caminhos da Torá, avodá e guemilut chassadim. Nosso estudo da Torá deve ser verdadeiro;
suas conclusões devem estar de acordo com a lei, e deve haver um interesse sincero pela paz. Nosso culto
deve ser sincero; nossas orações devem estar corretas, do ponto de vista da Halachá, e devem obter
harmonia entre o ser humano e seu Criador. Do mesmo modo, nossos atos de bondade devem ser
verdadeiros e feitos com sinceridade; devem ser consistentes com nossas obrigações legais e devem ter a
intenção de semear a paz entre o homem e seu semelhante.
Estes três conceitos de justiça, verdade e paz também são fundamentais no processo judicial. Primeiro
precisamos determinar a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade. Não podemos nos basear
em conjecturas ou na imaginação. Como Isaías relata a respeito do Messias: “Não julgará pela visão de
seus olhos, nem decidirá pelo que escutarem seus ouvidos, mas com justiça julgará ao pobre, e decidirá
com eqüidade pelos fracos da terra.”112 A aparência e a realidade são freqüentemente duas coisas distintas.
O juiz deve ser capaz de enxergar além da superfície e determinar quais são os fatos do caso.
Em segundo lugar, a corte deve aplicar a lei objetiva e imparcialmente. Amiúde, a lei pode correr
contra o que aparecem ser os fatos. No Talmud, Rabi Shimon ben Shatach conta: “Que eu veja a
consolação de Sião com tanta certeza como eu vi alguém perseguindo outra pessoa, com a espada na mão.
O outro correu para uma ruína e o perseguidor atrás dele. Eu os segui, apenas para encontrar o
perseguidor com a espada em sua mão, o sangue escorrendo, e o outro agonizando. Eu disse ao homem: –
Ó iníquo, quem o matou? Certamente, fui eu ou você. Mas o que devo fazer com você quando o teu
destino não está em minhas mãos? Pois a Torá disse: ‘Por depoimento de duas testemunhas, ou de três
testemunhas, será morto aquele que deve morrer; não será morto por depoimento de uma testemunha.’ 113
É melhor deixar a cargo d’Aquele que conhece todos os pensamentos o exato castigo para este homem. E
antes que o homem pudesse fazer um movimento sequer, uma serpente venenosa o mordeu, e ele caiu
morto.”113a
Rabi Shimon estava tão absolutamente certo de que o perseguidor havia matado a vítima e contudo só
havia evidência circunstancial. A lei judaica exige o depoimento de pelo menos duas testemunhas que
tenham realmente visto o crime, para que uma pessoa suspeita seja condenada. A lei tem de ser absoluta
para garantir que evidências circunstancias nunca condenem um inocente.
Tanto a Verdade quanto a Lei, porém, devem servir ao interesse da Paz: paz em nosso meio ambiente
social e harmonia entre os judeus e o seu Pai no Céu.
Depois que o Todo-Poderoso criara as terras secas, Sua próxima ordem foi: “Produza a terra ervas;
deshe.”114 Se você quiser, as três letras da palavra deshe são os respectivos começos de din, shalom e emet
– justiça, paz e verdade. Isto sugere portanto que, se este mundo recém-criado desejava perdurar, deveria
produzir primeiro deshe: justiça, paz e verdade. Na verdade, nossos sábios declaram que o juiz que
profere uma sentença baseado na verdade e na justiça converte-se – por assim dizer – em sócio do
Santíssimo, bendito seja, na obra da criação.115
Esta interpretação pode continuar sendo verdadeira para outro aspecto da palavra deshe. O rei David,
em seu Salmo 23, disse: “Far-me-á repousar em pastos (deshe) verdejantes.”116 Isto poderia significar: o
Todo-Poderoso me concedeu o privilégio de descansar em um ambiente de justiça, paz e verdade.
Esta Mishná conclui com um texto comprobatório dos profetas: “Que a verdade, a justiça e a paz
reinem nas vossas portas”. A palavra “portas” aqui significa um símbolo da cultura e civilização humanas.
Se você deseja continuar tendo “portas”, ou seja, que a civilização perdure, você precisa ter verdade, lei e
paz. Estas são as condições necessárias e suficientes para o homem manter relações inteligentes e
significativas com o seu próximo. Estes são os alicerces da sociedade. Sem eles, as boas e viáveis
relações entre os seres humanos tornam-se impossíveis.
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Capítulo 1 - Mishná 2
Shimon, o Justo, foi dos últimos participantes da Grande Assembleia. Ele
costumava dizer: “O mundo se mantém sobre três coisas: a Torá, o
serviço Divino e a beneficência.”
A frase “Ele costumava dizer” repete-se com frequência em todo o Pirkê Avót. Obviamente, estes
sábios diziam também muitas outras coisas. Devemos, entretanto, compreender esta frase no sentido de
que o ensinamento por ela exposto estava constantemente nos lábios do sábio que a pronunciou e era
fundamental em sua visão do mundo. Rabi Iehudá Hanassí, o compilador da Mishná, não se limitou a
registrar para a posteridade os pronunciamentos casuais dos rabinos, mas escolheu o que era, em essência,
o credo ou lema particular de cada um deles: os dizeres que demonstravam seu caráter e perspectiva de
vida.
Compreendendo que os judeus estavam sendo dispersos por cantos distantes do mundo civilizado,
Shimon, o Justo, desejava prover seu povo com a chave para uma ampla compreensão do judaísmo, que
pudesse conduzi-lo a sua plena observância. Em um meio ambiente estranho, muitos judeus estariam pela
primeira vez saindo de “seu mundo” e iriam precisar conhecer os limites exteriores e a configuração geral
do judaísmo dentro das novas fronteiras em que iriam viver. Eis porque este grande sábio enfatiza que os
três pilares sobre os quais o mundo do judaísmo se mantém são: aTorá, o estudo e cumprimento
da Torá; avodá, servir a Deus; guemilut chassadim, a bondade do ser humano em suas ações em benefício
de seus semelhantes.
Esta caracterização tripla do judaísmo está contida na famosa oração das Grandes Festas: “A
penitência, a oração e a caridade evitam a severidade do decreto.” A penitência é possível somente onde o
conhecimento da Torá produz um sentimento de culpa; a oração é, naturalmente, o serviço do coração
(também chamado de avodá em hebraico); e a caridade é a implementação de guemilut chassadim.
A importância deste ensinamento para o judeu moderno reside na sua chamada à integridade e ao
equilíbrio. Encontramos, frequentemente, pessoas que alardeiam a dimensão de suas contribuições para
caridade e proclamam: “Enquanto eu praticar a caridade e mantiver um coração generoso, posso ignorar
os princípios de Torá eAvodá.” Existe também aquela pessoa adepta da tese segundo a qual, contanto que
ela vá fiel e diariamente à sinagoga, está dispensada de doar para caridade. O que Shimon, o Justo, nos
faz recordar é que cada um de nós tem a obrigação de ser um judeu na íntegra, comprometendo-se
totalmente com a Torá, a avodá e a guemilut chassadim.
Na oração citada das Grandes Festas, o Machzor reproduz três palavras acerca dos três temas da frase.
São elas: tsom, jejum; col, voz e mamón, dinheiro; estes são sinônimos aproximados ou associados a
penitência, oração e caridade, respectivamente. Contudo, estas três palavras, têm pela guematria o mesmo
valor numérico e deste ponto de vista são equivalentes, pois as letras de cada um deles somam 136. Dois
quaisquer deles somam, portanto, 272, e os três juntos totalizam 408.
Com isto em mente, podemos oferecer uma interpretação interessante do versículo: – “o homem de
instintos irracionais (báar) não sabe, e o tolo não compreende isto (zot)”.30 O valor numérico de báar é
272, e o de zot é 408! Substituindo estes múltiplos de 136 pelos termos de nossa tríade – penitência,
oração e caridade – demonstramos o que acabamos de afirmar. Estamos familiarizados com o homem que
não sabe, báar – 272, o qual ignora dois dos três princípios requeridos. E conhecemos inclusive o tolo que
não compreende zot – 408, todos os três pilares do judaísmo. Há pessoas que pensam que, permanecendo
fiéis a somente um aspecto do judaísmo, estão cumprindo suas obrigações. Mas certamente isto é tolice!
Podemos estender este enfoque e ir ainda mais além, interpretando de modo semelhante o versículo:
“Com isto (bezot) virá Aarão à santidade.”30a Somente com os “408” – com o total dos três componentes,
o Cohen Gadol, o Sumo Sacerdote entrará no santuário, no Iom Kipúr. Caso ele se aproxime do Todo-
Poderoso com somente uma parte da totalidade do judaísmo, ele não pode representar adequadamente o
seu povo. Qualquer coisa a menos do que o judaísmo integral é um judaísmo truncado, uma versão não
equilibrada.
O judaísmo, em certo sentido, lembra um tripé. Retire um dos pés de apoio e a estrutura desabará. Se a
pessoa for erudita mas não observante, se for caridosa mas não disposta à oração, então ela não poderá
experimentar uma vida religiosa plena. Esta religiosidade incompleta está fadada a ter um equilíbrio
instável e desmoronar.
O propósito da Torá em nossa vida diária é a de nos elevar a um plano superior. Mediante o seu estudo
podemos ampliar nossos conhecimentos, nossos horizontes mentais, e estender as fronteiras de nossa
compreensão. A avodá comanda o nosso relacionamento com Deus. Ela faz com que estejamos
constantemente cientes da presença do Todo-Poderoso e da nossa dependência d’Ele. Guemilut
Chassadimregulamenta nosso relacionamento com nossos semelhantes. Nesta área, nos é ensinado o
significado da justiça, retidão e compaixão. Nela, aprendemos a amar nosso semelhante como a nós
mesmos.
Quando o judeu se envolve nestas três atividades, ele está, na verdade, envolvendo todos os níveis do
seu ser no culto a Deus. Ele está pensando, falando e praticando o judaísmo. Para a Torá, a mente; o
pensamento do processo intelectual é fundamental. Na avodá, a fala; expressão é o elemento principal.
Na guemilut chassadim, o feito; a ação que é importante.
Estes três aspectos do judaísmo foram, na verdade, desenvolvidos pela primeira vez pelos três
patriarcas: Abrahão, Isaac e Jacob. Cada um deles, em virtude de seu próprio temperamento,
circunstâncias individuais e predileção pessoal, trilhou um caminho distinto do culto a Deus. Abrahão é o
grande exemplo de chassadim: ele era sempre bondoso, alimentava os famintos e implorou pela salvação
de Sodoma. A Isaac nós encontramos “passeando (rezando) no campo.” 31 De fato, Isaac é quem atinge o
grau mais elevado de avodá ao converter-se na oferenda para o altar. Somos informados de que Jacob
“habitava em tendas”32 e estudou por muitos anos nas academias de Shem e Ever. 32a Ele é o estudante de
antigas tradições, o estudioso daTorá. Combine as percepções dos patriarcas: funda os conceitos de Deus
de Abrahão, Deus de Isaac e Deus de Jacob. Reúna os modos particulares de cada um e você terá o
judaísmo equilibrado, total: Torá, avodá e guemilut chassadim.
É justamente esta noção de equilíbrio que distingue o judaísmo de outras religiões. Outros sistemas de
crença parecem ter se concentrado em apenas um dos três conceitos básicos, de forma desproporcional
em relação aos outros. Uma, com sua ênfase no amor de auto-abnegação, parece, em certo sentido, ter
adotado guemilut chassadim. Outra, com sua ênfase na oração constante, parece ter adotado avodá. Uma
terceira parece enfatizar excessivamente a relação mística do ser humano com o Um que tudo abarca, ao
ponto de perder a sua própria individualidade. Só no judaísmo o homem está totalmente engajado num
programa de vida abrangente e equilibrado.
Ao estudar esta máxima de Shimon, o Justo, devemos não somente aprender os três princípios, mas,
também, observar a seqüência precisa em que eles ocorrem. ATorá vem primeiro. Devemos começar
estudando a Torá, a fim de saber exatamente o que o Todo-Poderoso nos ensinaria e o que Ele solicitaria
de nós. Só então poderemos saber por que e como servir a Deus e estaremos prontos para a avodá.
Fica claro, então, que a primazia da Torá é lógica e também cronológica. A Torá é sempre o pré-
requisito e um ingrediente vital de ambos, avodá e guemilut chassadim. Se você deseja servir a Deus mas
ignora a Torá, não pode apreciar a Divindade ou saber como procurar o Todo-Poderoso. Quanto
mais Torá você tiver adquirido, mais consciente estará da reverência que devemos ao Senhor do
Universo, diante de Quem oramos. Para uma avodá verdadeiramente profunda, você precisa antes
conhecer aTorá.
A Torá também deve preparar o caminho para o verdadeiro guemilut chassadim. O exercício de
bondade não é somente a expressão de emoções sentimentais. A Torádeve orientar-nos a respeito do
objeto e medida adequados de tais emoções. As Escrituras nos contam a respeito da injunção Divina para
o rei Saul matar até o último amalequita. 33 Em um gesto de bondade, Saul perdoou a Agag, seu rei.
Durante este intervalo de suspensão da sentença, Agag gerou descendência, da qual proveio Haman, o
malvado agaguita do Livro de Ester, que quase conseguiu aniquilar o povo judeu. Assim, a piedade mal
orientada, a bondade não temperada pela Torá, pode levar às mais cruéis conseqüências.
Este conceito de centralidade e primazia da Torá é refletido na interpretação que aMishná dá para o
relato bíblico da luta entre Jacob e o anjo: refere-se ao anjo como à encarnação do mal, o espírito protetor
de Esaú.33a Rabi Elchanan Wasserman fez uma pergunta simples: Por que este protetor de Esaú não atacou
Abrahão, o primeiro judeu, ou Isaac, o filho do primeiro judeu, eliminando assim as forças do bem assim
que apareceram? A resposta de Rabi Wasserman é esta: de acordo com nossa explicação anterior de que
os patriarcas foram os primeiros exemplos dos conceitos deTorá, avodá e guemilut chassadim, Abrahão
representava a bondade e a caridade. Isto não incomodou o espírito protetor de Esaú. A filantropia sozinha
é inofensiva. Só com a caridade, com pessoas que são judias somente em virtude da filantropia, você não
pode construir uma nação ou perpetuar um povo. Não há nada de distintivo acerca de atos de bondade.
Sem nada além da bondade, os judeus desintegrar-se-ão; a semente de Abrahão desaparecerá. O espírito
de Esaú ainda não via motivo para atacar. Quando Isaac apareceu, e com ele os conceitos de oração e
culto, o espírito de Esaú também não se perturbou. Os serviços da sinagoga por si sós não estabelecem
um povo judeu. Que Isaac fique de pé na sinagoga e reze. Seus filhos podem ser induzidos a perambular
pelas ruas e procurar seu prazer em outro lugar. Os adultos podem ter suas sinagogas e orar. Em uma
geração ou duas, tudo será esquecido. De fato, não foi esta a política do governo russo: permitir que
algumas sinagogas permanecessem abertas, mas proibir o ensino do judaísmo?
Quando o espírito do mal, porém, viu Jacob estudando a Torá, ele percebeu que isto significava a
eternidade. Com a Torá, o judaísmo tinha futuro. Com Torá, com escolas diurnas, com ieshivót, você
pode assegurar uma nova geração e construir um povo eterno! O espírito de Esaú achou necessário atacar
somente a Jacob.
E assim, enquanto o judaísmo e o judeu requerem todos os três componentes –Torá, avodá e guemilut
chassadim – a Torá permanece como fundamental e preeminente.
Estudar a Torá é uma mitsvá específica da própria Torá, pela qual somos todos responsáveis.
O Talmud relata que uma das perguntas a serem feitas à alma do ser humano no mundo vindouro será:
“Caváta itim latorá?” – Você estabeleceu tempo para a Torá?” 34 Você dedicou duas ou mais noites por
semana para o estudo? Você passou as tardes de Shabat com um exemplar da Torá? É verdade que você
está ocupado e tem outras preocupações. Mas não poderia “roubar” (Cavatá também pode ter este
significado)35 um pouco de tempo da sua vida social e de negócios para dedicá-lo ao estudo da Torá?
As palavras hebraicas “Caváta itim latorá?” poderiam ser traduzidas ao pé da letra como: “Você fixou
tempos para a Torá?” Com demasiada freqüência ouvimos a reclamação: a Torá deve ajustar-se aos
tempos atuais. Muitos sustentam que a Torá e seus ensinamentos devem ser modelados e modificados
para atender às condições modernas e ajustar-se aos dias de hoje. O propósito do judaísmo, porém, é
exatamente o oposto. É nossa esperança modelar os tempos à Torá; transformar nosso meio ambiente até
que ele se ajuste aos ensinamentos Divinos; elevar as condições predominantes ao nível da Torá em vez
de abaixar os ensinamentos de Deus aos padrões atuais. Esta é a pergunta que nos será feita no mundo
vindouro: “Você adaptou os tempos para que estes se ajustem à Torá?”
Neste espírito podemos talvez interpretar o evento registrado no segundo livro de Samuel acerca de
como a Arca Sagrada, que fora anteriormente capturada pelos filisteus, voltou para os
israelitas.36 Transportada sobre uma carroça puxada por bois, a Arca foi logo escoltada por uma grande
multidão em júbilo. De repente, os bois tropeçaram. Uza, temendo pela Arca, agarrou-a, tentando evitar
que tombasse e ao fazê-lo foi fulminado e caiu morto.
O rabino Kook (z”l) foi indagado certa vez por que Uza mereceu tal punição. Ele respondeu com uma
observação notável: O erro de Uza foi não enxergar a causa do problema. Os bois escorregaram e
tropeçaram. Por que não tentar mantê-los firmes? Por que por as mãos na arca? O problema era com os
bois, não com a Arca Sagrada!
Esta linha de raciocínio é bastante sugestiva. De fato, um número demasiado grande de nossos líderes
tentou resolver os problemas do judaísmo deitando as mãos irrefletidamente naquilo que é sagrado para
Israel sem primeiro determinar realisticamente as verdadeiras causas dos problemas. Alguns grupos
sancionaram o ato de dirigir durante o Shabat, misturar homens e mulheres durante as orações, e um
serviço religioso abreviado, numa tentativa de trazer as pessoas em massa para a sinagoga. Adiantou?
Nosso povo voltou-se em massa para os serviços agora que estas comodidades foram instituídas? Não
havia nada de errado com a Arca; o problema era com os bois. A questão não é de maior ou menor
conveniência, mas de que, para a maior parte de nosso povo, a oração genuína tornou-se uma arte perdida.
A necessidade de comungar com Deus encontra-se enterrada debaixo de camadas de atividades triviais, as
quais distraem a atenção e estão subordinadas ao direito constitucional da “busca da felicidade”. Uza pôs
as mãos na Arca quando o problema estava com aqueles que a transportavam. Esta é a falácia trágica,
embora bem-intencionada, dos nossos tempos.
O “culto a Deus” que todos nós podemos praticar é a oração. Por meio desta experiência, o ser
humano pode comungar com o Todo-Poderoso, sentir verdadeiramente a presença de Deus, e elevar sua
alma aos mais altos níveis da espiritualidade. O veículo para obter tudo isto é o texto de nossas orações:
estas são as palavras sagradas dos profetas e dos salmos, dentro das quais foi vertida uma riqueza
inexaurível de significado e inspiração.
O rabino Chaim de Volozhin, discípulo do Gaon de Vilna, destaca que a oração tem uma função
transcendental de proporções cósmicas: unir o mundo inferior com o mundo superior. Naquele misterioso
reino do ser essencial que engloba a estrutura espiritual do universo, há considerações que exigem um
relacionamento dinâmico entre o nosso mundo de aparência e o mundo do puro ser. A Torá é o canal
mediante o qual o movimento tem lugar do Céu para a Terra. Na oração, dá-se o movimento inverso: as
aspirações humanas elevam as esferas inferiores em direção à superior.
Se esta é a função vital da oração e se seus componentes são os pronunciamentos inspirados dos
nossos profetas, quão presunçoso deve ser qualquer grupo de pessoas, levadas pela superficialidade
literal, por um lado, e cânones do racionalismo novecentista do outro, para cancelar, distorcer e alterar
arbitrariamente nossas orações tradicionais!
Os três pilares de Shimon, o Justo, que sustentam o mundo, podem ser concebidos em um sentido
ainda mais amplo. A sociedade civilizada como um todo apóia-se no seu sistema educacional, suas
instituições religiosas e suas formas políticas. A Torá, em uma visão ampla, corresponderia, por analogia,
a toda a gama de ensinamento e escolaridade em nossos colégios, faculdades e universidades. Se estas
não cumprirem com sua responsabilidade de iluminar e enobrecer, mas em vez disto ficarem infectadas
com políticas de admissão discriminatórias, fanatismo racial e obscurantismo, então a sociedade não se
poderá manter.
Por extensão, avodá sugere, de modo genérico, o papel vital de todos os componentes da religião
institucional. Se estes abandonarem sua tarefa de apontar o caminho para o culto a Deus e da vida ética, e
em vez disto se subordinarem ao Estado e servirem como ferramenta para interesses particulares, então,
na realidade, a própria sociedade estará ameaçada.
Guemilut chassadim, que abrange a área do relacionamento dos seres humanos uns com os outros,
sugere a importância dos direitos humanos, da liberdade política e dos procedimentos judiciais justos. Se
o estado se converter em um deus; se o governo, em vez de servir ao povo, escravizar o povo; se a
corrupção infiltrar-se nos serviços públicos – então, de fato, a civilização como um todo estará em perigo.
Mais ainda, estes três valores e funções não só sustentam o mundo por serem essenciais para o
funcionamento adequado da sociedade; eles também justificam o mundo, dando-lhe um objetivo e um
significado.
“A propriedade da clemência ... é abençoada duas vezes: ela abençoa a quem dá e a quem
recebe.”37 Lowell sugeriu o mesmo conceito quando escreveu: “A dádiva sem o doador é
nua.”37a Emerson disse que “O único presente é uma parte de ti mesmo.” 37bPortanto, guemilut
chassadim tem uma palavra no plural: é um ato com conseqüência dupla.
De modo similar, Salomão exorta: “Sejam tuas roupas sempre brancas” – querendo dizer que o
comportamento deve ser sempre o adequado; “e não te falte óleo (shemen) na tua cabeça.”39 Aqui,
novamente, o conselho pode referir-se ao nosso trio. A palavra hebraica shemen consiste de três letras (as
vogais são omitidas) que são precisamente as primeiras letras das palavras Shulchan, mitá e ner. Como
mostramos acima, elas simbolizam guemilut chassadim, avodá e Torá, respectivamente.
Finalmente, nossos três princípios estão provavelmente implícitos no lamento de Jeremias: “Enlutados
estão os caminhos para Sião porque ninguém vem para a solene assembléia; todos seus portões estão
desolados. Seus sacerdotes suspiram (de nostalgia).” 40 Durante as festividades de peregrinação, quando
todo Israel vinha ao Templo, havia uma grande distribuição de presentes e caridade. Daí, o profeta
lamenta a descontinuidade de guemilut chassadim. Os “portões” de Sião eram o local de reunião dos
juízes e anciãos. Portanto, o profeta também está enlutado pela perda daTorá e do estudo. Finalmente, o
sacerdote, o guardião do Templo, que oficiava o serviço do sacrifício, soluça pela destruição do templo,
construído para a avodá.
Resumindo o significado de nossa calamidade nacional, o profeta Jeremias diz, com efeito: Nosso
mundo judaico desabou; Torá, avodá e guemilut chassadim não são mais praticados.
Reciprocamente, se quisermos reconstruir nosso mundo, reavivemos e mais uma vez desenvolvamos
uma vida dedicada à Torá, avodá e guemilut chassadim.