Você está na página 1de 17

Introdução

Pirkê Avót significa, literalmente, capítulos de Avót. E o que


significa Avót? Trata-se de uma seção, de um tratado do grande
compêndio da lei e do saber judaicos, a Mishná.

Para o leitor que não esteja totalmente familiarizado com a Mishná,


talvez seja melhor começar com uma descrição introdutória deste
clássico milenar da literatura rabínica.

É crença fundamental do judaísmo histórico que a Torá nos foi dada


no Sinai: o imortal Moisés recebeu-a do Todo-Poderoso, ensinou-nos
sua mensagem e entregou-a a nós, seu povo. A Torá era constituída
por duas partes: a primeira delas, o Pentateuco, ou os Cinco Livros de
Moisés, que chamamos de Torá shebichtav, a Torá escrita. A segunda
parte era a Torá shebealpe, a Torá oral, que continha explicações,
interpretações e ensinamentos da Torá escrita. A Torá shebeal pê não
deveria ser escrita: era ensinada oralmente, como um complemento
da Torá escrita.1

Moisés ensinou o sagrado Livro da Torá, acompanhado por suas


interpretações, a seu discípulo Josué. Este então ensinou-a aos
Anciãos e eles, por sua vez, ensinaram-na a outros. Tudo o que era
transmitido oralmente deveria ser repetido e repassado muitas vezes,
assegurando-se assim que nada seria esquecido. Esta prática recebeu
o nome de Mishná, palavra que significa um conjunto de ensina-
mentos e instruções

A Mishná tornou-se nossa Tradição Oral, transmitida pelos mestres


aos alunos, de geração em geração. Desde o início era proibido
compilar por escrito2 qualquer parte desta Tradição Oral, por dois
motivos. Primeiro, para que mestres e alunos se empenhassem a
fundo, sempre por muitas horas, de modo a assegurar que tudo fosse
perfeitamente lembrado e minuciosamente compre-endido. Há uma
descrição do que supostamente ocorre em algumas salas de aula nas
universidades, que diz que “os apontamentos (escritos) do professor
tornam-se os apontamentos (escritos) dos alunos, sem passar pelas
mentes de nenhum deles.” Com a Tradição Oral isto não podia
ocorrer, pois não havia apontamentos escritos. Eles somente existiam
na mente, na memória, no entendi-mento dos sábios e dos eruditos.

Em segundo lugar, temia-se que, se a Torá oral viesse a ser transcrita,


as pessoas passariam a pensar nela como parte integrante da Torá
shebichtav e começariam a tratá-la como tal. Isto produziria uma
grave distorção, já que ambas são de natureza e caráter
completamente diferentes, e desta maneira devem ser encaradas
dentro das normas do judaísmo.
Há cerca de mil e setecentos anos, porém, Rabi Iehudá Hanassí (“o
Príncipe”, presidente do Bêt Din, o Grande Tribunal e, portanto, chefe
de seu povo) deu-se conta de que sob as condições turbulentas da
época, não era mais possível para professores e alunos estudar e
memorizar adequadamente a grande Tradição Oral. Pelo bem ou pelo
mal, como se diz, ela deveria ser transcrita – antes que fosse
completamente esquecida. Várias gerações mais tarde, Rabi
Iochanan e Resh Lakish vieram a possuir até mesmo um volume
escrito de Agadot, com ensinamentos e exposições homiléticas, que
costumavam estudar aos sábados. Como justificativa, citavam um
versículo das Escrituras Sagradas3 que apoiava sua prática, e
afirmavam a necessidade de se ter a Tradição Oral por escrito “em
vez de permitir que a Torá fosse esquecida pelo povo de Israel”.4 Para
eles, a Torá shebealpe havia se tornado o próprio alicerce da Torá
escrita.5

Como dissemos, Rabi Iehudá Hanassí foi o primeiro (mas de modo


algum o último) a violar deliberadamente a proibição da transcrição
da Tradição Oral, de modo que “esta Torá não fosse esquecida por seu
povo”. Sua obra original chamou-se Mishná, e é estudada em nossos
dias. (As gerações posteriores discutiram a Mishná e seus próprios
comentários e interpretações deram origem à Guemará. Ambas as
obras, a Mishná e a Guemará, formam o Talmud.)

Já nas Escrituras, a palavra Mishná tem um significado diferente:


mishnê lamélech6, ou “o segundo em comando”, aquele que vem logo
abaixo do rei, um vice-rei que serve como ajudante. A partir desta
acepção, a Torá escrita seria a “primeira”, a principal herança divina,
e a Mishná, a “segunda em comando”, aquela que acompanha a “pri-
meira” para servi-la através dos comentários e explicações que
contém

A Mishná está dividida em seis seções, ou ordens7. A quarta seção,


Nezikim, embora trate principalmente de danos e compensações,
procedimentos judiciais e direito penal, inclui também Avót , um
tratado sobre valores éticos e conduta moral. Vale a pena nos
perguntarmos por que.

Um dos sábios do Talmud diz: “Aquele que deseja tornar-se um


chassíd piedoso e benevolente, que observe as leis de Nezikim”,
assegurando-se assim em não prejudicar a outros, ou deixando de
efetuar um pagamento devido. Mas outro sábio vai mais longe:
“Aquele que deseja tornar-se um chassid piedoso e benevolente, que
observe os ensinamentos de Avót.”8 Isto significa que cuidar para não
prejudicar a outros ou ressarcir danos causados não é suficiente. Para
ser um chassíd, bondoso aos olhos de Deus e dos outros seres
humanos, deve-se conhecer e seguir as sábias instruções e
orientações contidas em Avót, um tratado pequeno em tamanho e
vasto em seu conteúdo de percepções e ensinamentos.
Explica-se assim a inclusão de Avót em Nezikim: depois de aprendida
a prática referente às questões de perdas e danos, a dedicação as
suas lições traria o próximo estágio de crescimento e
desenvolvimento do caráter através da Torá.

* *

O nome Avót significa, literalmente, “pais”, e pode parecer intrigante


porque este termo dá nome ao tratado. O Rei Salomão disse: “Escuta,
meu filho, a instrução (Mussár) de teu pai.” 9 No curso de nossa
história, a palavra Mussár teve várias conotações, mas deriva,
basicamente, da mesma raiz da palavra messorá, que significa
tradição, ou ensinamentos transmitidos de mente para mente, de
coração a coração. Escutar o Mussár do “pai” implica aceitar os
ensinamentos mais tradicionais transmitidos por nossos sábios de
abençoada memória, ensinamentos que passam de geração a
geração desde o Sinai. Este seria o significado do termo Avót.

Na linguagem da Mishná, porém, o plural Avót e o singular Av têm,


freqüentemente, significados distintos. Em termos como av melachá10
(o trabalho principal), av hatumá11 (fonte original, direta, de impureza
ritual), Avót nezikín12 (principais tipos danos) e binian av13 (o
estabelecimento de uma classe ou norma principal), a palavra av
denota a fonte primeira, aquela da qual derivam as classificações e
leis secundárias. Neste sentido, o título Avót informa que esta
pequena obra contém os princípios fundamentais da ética, aqueles
que norteiam nossa vida diária, princípios dos quais podemos inferir
muitas coisas. Este conjunto de ensinamentos, talvez a própria
essência do judaísmo, realmente forma a base de nossa conduta, e é
“pai” de uma série de diferentes códigos éticos e filosofias.

Ao mesmo tempo, é muito provável que Avót denote os “pais” do


judaísmo: iluminados como Hilel e Shamai, Rabi Akiva e Rabi Tarfon,
entre outros – cerca de sessenta sábios no total, cuja sabedoria e os
ensinamentos são apresentados ao longo dos capítulos deste
trabalho.14 Estes sábios seriam nossos “pais”, nossos patriarcas
rabínicos na moral e na ética, assim como Abrahão, Isaac e Jacob são
nossos Avót na Bíblia.

Na época dos gueoním14a tornou-se costume nas academias da


Babilônia recitar e estudar um capítulo de Avót aos sábados de tarde,
após o serviço de Minchá, como ressalta Rabi Amram Gaon (século IX
e. c.) em seu sidur. Os gueonim conheciam uma tradição segundo a
qual Moisés havia passado para seu descanso eterno num Shabat à
tarde, nesse horário.15 Por esta razão, eles, os gueonim, incluíram os
três versículos de Tsidcatchá Tsédec – “Tua retidão é uma retidão
eterna...” – como uma oração de justificativa e aceitação da morte de
Moisés.16 E tornou-se um costume acompanhar o serviço de Minchá
com um capítulo de Avót para lembrá-lo, já que começa com o seu
nome: “Moisés recebeu a Torá...”17 . Rabi Paltoi Gaon (século IX e. c.)
deu outro motivo: O Talmud ensina que “quando um sábio morre,
todas as casas de estudo e culto de sua cidade devem cessar suas
atividades.”18 Isto sugere que, em lembrança ao falecimento de
Moisés, seria adequado não se dedicar a um estudo intensivo e
concentrado do Talmud mas, sim, aprender e rever Avót, mais fácil
por natureza.19

Das academias da Babilônia, o costume se difundiu para as


comunidades judaicas de Ashkenaz, a França e a Alemanha de mais
de 900 anos atrás, e verificamos que é mencionado pelo Rabi
Abraham ben Natan de Lunel (ibn Iarchi; século XII, e.c.) em seu Sefer
Haman’hig.20 Em Col Bo, uma obra anônima do século XIV, podemos
ler que o costume variava entre as diversas comunidades: algumas
estudavam Pirkê Avót apenas no período entre as festas de Pêssach e
Shavuót; em outras, os capítulos eram abordados em períodos
diferentes, ou, então, durante o ano todo.21 No Sidur Avodát Yisrael,
por exemplo, publicado em Redelheim, em 1868, o autor, dr.
Seligmann Baer, enumera nada menos do que três costumes
diferentes, praticados em comunidades alemãs.

Na Mishná propriamente dita, são apenas cinco os capítulos de Avót.


Mas, uma vez que são seis os sábados entre Pêssach e Shavuót,
aparentemente por esta razão foi acrescentado um sexto capítulo,
ainda na época dos gueonim, quando Rav Amram Gaon falou de
“Avót e Kinian Torá”. Este capítulo adicional, Kinian Torá –
literalmente, a aquisição da Torá – é uma beraitá, material muito
semelhante a uma parte da Mishná não incluída originalmente na
compilação feita por Rabi Iehudá Hanassí.

Desde tempos imemoriais, é costume, nas comunidades judaicas da


Europa Oriental, recitarmos e estudarmos Avót desde o Shabat
posterior a Pêssach até aquele anterior a Rosh Hashaná, perfazendo
um total de quinze sábados. Em cada um dos doze primeiros,
estudamos um capítulo; em cada um dos últimos três, estudamos
dois capítulos. Como a palavra hebraica para capítulo é pérec,
“capítulos” seriam perakim, e “capítulos de” seriam Pirkê. Assim, a
obra passou a chamar-se Pirkê Avót, ou simplesmente, Pérec.

* *

Não é acidente nem coincidência que a época observada para este


estudo seja, originalmente, aquela entre Pêssach e Shavuót. Em
Pêssach celebramos nossa libertação da escravidão no Egito, e
partimos rumo à santidade, rumo à Torá. Não estávamos prontos,
porém, para receber a Torá de imediato. Somente semanas mais
tarde, já ao pé do Monte Sinai, é que pudemos recebê-la – e isto, nós
celebramos em Shavuót. Na linguagem simbólica dos sábios, em
Pêssach assumimos o compromisso de “nos casarmos com a Torá”;
em Shavuót, este “casamento” espiritual acontece, através do pacto
eterno e irrevogável, da aliança com o Todo-Poderoso e Sua Torá.
Como se sabe, o tempo de noivado, de compromisso, serve, na vida
real, para que os noivos conheçam melhor um ao outro, preparando-
se para a vida em comum. O mesmo acontece entre Pêssach e
Shavuót. À medida que “contamos os dias”, observando a Sefirát
haOmer e esperando receber novamente a Torá do Sinai, nos
preparamos através do estudo de Avót. É ele que nos dará uma idéia
da grandeza, da maravilha e da profundidade da Torá, esta “noiva”
espiritual única que vamos receber. A importância de Avót é tão
grande que, sabe-se, a seguinte observação partiu de um erudito
não-judeu: “Para se conhecer os ideais da ética e da devoção
rabínicas, nenhuma outra fonte facilmente acessível pode equiparar-
se a Avót.”22

Eu também acredito que não seja mera coincidência iniciarmos o


estudo de Pérek na primavera,22a quando a natureza renova o grande
ciclo da vida. É na primavera que as forças cálidas, vitais à
regeneração, começam a se agitar e a fluir. Também o homem sente
dentro de si o despertar de poderosos impulsos instintivos. Por isso é
tão importante que ele ouça, exatamente nesta época do ano, as
palavras de nossos chachamim. São elas que o ensinarão a superar a
tentação e a paixão, desenvolvendo sua força de vontade e
controlando suas ações. Pirkê Avót oferece Mussár, a instrução que
nasce da Torá, e nos mostra como lidar com as vigorosas
manifestações que chegam com a primavera.

Ainda assim, podemos nos perguntar se precisamos realmente desta


instrução especial. Temos o Shulchan Arúch, um elaborado código de
leis que define o bem e o mal, o justo e o injusto, em todas as
circunstâncias práticas. E a própria passagem da Mishná que
recitamos antes de cada capítulo de Avót proclama: “Todo o povo de
Israel tem uma porção no mundo vindouro.”23 Por que devemos, então
ter este Mussár especial, este ensinamento corretivo?

A resposta é que o Shulchan Arúch, um código de leis sobre o certo e


o errado, não é suficiente. Nossa meta não é simplesmente observar
a Lei, embora isto seja importante e fundamental. O objetivo final da
Torá é transformar o espírito humano, o caráter de cada um de nós
em algo belo e divino. David, o salmista, suplicou ao Todo-Poderoso:
“Guarda minha alma, pois sou um chassíd.”24 No sentido clássico,
chassíd é o termo que define uma pessoa de profunda bondade e
devoção. Mencionamos anteriormente a receita de um sábio: “Aquele
que deseja tornar-se um chassíd, que observe as leis de Nezikín”, as
leis que tratam de perdas e danos.25 Em outras palavras, deve-se
aprender da Torá como evitar causar prejuízos e como pagar adequa-
damente o mal que possa fazer. Mas, para outro de nossos sábios,
isto não é suficiente. Seu conselho para se chegar a ser um chassíd é
“...que observe os ensinamentos de Avót”.25 O conhecimento e a
observância estrita da Lei não é tudo. O verdadeiro chassíd é aquele
cuja profunda devoção eleva-o acima do sentido estrito da Lei. Se ele
tiver a mínima dúvida de que possa estar enganado, ou de que sua
queixa potencial é duvidosa, preferirá dar a seu companheiro o
benefício da dúvida a fazer uso de seus direitos legais. O verdadeiro
chassíd é aquele que superou sua natureza aquisitiva e olha mais
além para enxergar o espírito da Lei.

Se você deseja atingir este nível de caridade e devoção e, assim,


tornar-se um chassíd, os ensinamentos de Avót lhe são essenciais.

* *

Muito bem. Os comentários anteriores explicam porque temos Pirkê


Avót. Mas, por que tantas idéias, interpretações e explicações são
geradas por Avót? Não bastaria uma boa leitura do texto, seja em
hebraico, seja numa boa tradução? Esta leitura não seria suficiente
para a compreensão e a inspiração?

A resposta é sim, mas apenas em parte. Na visão profética de


Jeremias, o Todo-Poderoso compara Sua palavra com “um martelo que
despedaça a rocha.” 26 E o Talmud comenta: “Tal qual a rocha que se
parte em muitos fragmentos sob o golpe do martelo, assim cada
palavra do Santíssimo, bendito seja, foi dividida em setenta
expressões”27 – uma multiplicidade de significados e interpretações.28
Assim como a rocha se despedaça sob o golpe do martelo, diz
novamente o Talmud, “um versículo das Escrituras Sagradas pode
admitir muitos signi-ficados”.29 Portanto, o Midrash diz, simplesmente,
que “A Torá tem setenta aspectos.”30

A linguagem da Torá, tanto sob a forma escrita quanto sob a forma


oral, é multi-facetada: tem profundidades e níveis de significado
insuspeitos. Se você tomar o “sentido literal”, tomando-a apenas
superficialmente, não verá o esplendor e a glória que oculta.

Em nossa literatura antiga de comentário e misticismo, toma-se a


palavra PaRDeS para indicar quatro abordagens da Torá, quatro
formas de explorar e extrair seus tesouros de significado. Com as
quatro letras da palavra PaRDeS começam as palavras Peshat,
Rémez, Derash e Sod, respectivamente. Peshat, o primeiro, seria o
sentido literal, puro e simples do texto. Com Rémez, seguimos a
estrutura sintática e gramatical de um versículo, levando em conta
que certas palavras possuem um significado simbólico, ou metafórico.
O Derash simplesmente omite a estrutura sintática de um versículo e
até mesmo ignora seu contexto, percorrendo a Torá em busca de
significados apontados pela alusão e associação. Finalmente, temos o
Sod, a leitura mais íntima e profunda de um texto, geralmente
seguindo a concepção mística da Cabalá, e atingindo um grau de
profundidade do significado que vai muito além dos anteriores.

Não é por coincidência que PaRDeS, a palavra formada pelas iniciais


das quatro palavras citadas no parágrafo acima, signifique,
literalmente, horta ou jardim. Esta tradução simboliza a exuberante
riqueza de pensamento e inspiração que pode surgir dos textos
sagrados, se soubermos como cultivá-los e como colher os frutos
mais difíceis de alcançar.

Podemos dizer que também não foge ao normal a suposição de que


um texto tenha diferentes níveis de leitura e aspectos distintos
quanto ao seu significado. Considere uma simples tonelada de
carvão, por exemplo. Para uma pessoa comum, ela significa
exatamente isto – 1000 quilos de combustível negro. Este tipo de
compreensão seria Peshat. Para uma pessoa com inclinação religiosa,
o carvão poderia representar uma expressão da Providência Divina:
ao criar Seu mundo, o Todo-Poderoso dispôs que uma substância se
formasse durante um grande lapso de tempo, de modo que os seres
humanos pudessem ter calor e uma fonte de energia. Esta é a
abordagem de Rémez.

Uma terceira pessoa, mais dotada, poderia descobrir certas


propriedades químicas no carvão que possibilitariam convertê-lo em
gás, substância mais fácil de armazenar em tanques e transportar
para locais distantes, onde ele se faz necessário. Esta mesma pessoa
pode ainda aprofundar-se nas pesquisas e aprender como converter
o carvão em nylon, um produto com inúmeras utilidades na vida
prática. Agora, pare e pense na imensa distância que separa um
punhado de carvão de um metro de fibra sintética! Não obstante,
pode-se demonstrar que um leva ao outro. Esta abordagem é análoga
ao Derash.

Finalmente, surge um físico que se dedica a estudar a estrutura


atômica do carvão. Ao provocar a fissão nuclear, ele libera uma parte
da tremenda energia potencial contida no mineral. Este fenômeno é
comparável ao Sod. Aos olhos de uma pessoa comum, o poder da
fissão nuclear parece absolutamente misterioso, além de sua
compreensão. Apenas um grande cientista, com um vasto
conhecimento técnico e pleno domínio dos mais sofisticados instru-
mentos pode extrair a energia latente da substância. Analogamente,
só os grandes eruditos, aqueles iniciados na sabedoria da Cabalá,
podem inferir os surpreendentes significados ocultos que se
encontram latentes e insuspeitos nas palavras da Torá.

É através da linguagem que procuramos compartilhar idéias e


pensamentos. Mas as palavras e as orações são somente sinais e
símbolos dos pensamentos. Os conteúdos abstratos e fugazes que
ocupam nossas mentes são intangíveis: não podem ser tocados,
capturados ou retidos. Ao usar palavras, fazemos uma tentativa
inadequada de transmitir nossas noções, intenções e percepções. Mas
sempre há algum matiz de significado, algum resquício inefável que
não pode ser traduzido em palavras para alcançar, assim, a mente do
outro.
Isto pode ser melhor assimilado se imaginarmos a verdade como um
poliedro, a figura geométrica de várias faces. O observador jamais
consegue ver todas as faces do poliedro ao mesmo tempo, não
importa a posição que tome. É preciso que ele se desloque e se
coloque em várias posições para conseguir enxergar todas as faces
da figura – ou da verdade.

Por esta razão, pela multiplicidade inerente ao conteúdo, torna-se tão


inadequada a leitura simples de um texto referente à Torá. O mesmo
acontece com uma tradução literal desse texto. Para tentar chegar às
alturas, precisamos sondar as profundezas do pensamento de nossos
eruditos e mestres. Seus ensinamentos, brindados pela luz da Di-
vindade, nos trazem a versão oral da Torá em seus inúmeros níveis de
significado.

Todas as afirmações em Pirkê Avót têm uma infinidade de explicações


e conotações distintas. Em seus comentários, gerações posteriores de
eruditos encontraram ricas nuances de significado em cada
expressão. Para compreendermos e apreciarmos a riqueza espiritual,
o tesouro que constitui Avót, devemos buscar os diferentes aspectos
de significado em cada uma de suas passagens.

Este é precisamente o objetivo do trabalho que você tem nas mãos.


Nele, cada passagem de Pirkê Avót é interpretada e explicada
demoradamente de diversas maneiras, para que a compreensão se
dê da forma mais completa possível.

* *

Vivemos numa época em que o Mussár, o ensinamento ético, é


considerado ultrapassado; uma época em que o castigo, a
advertência e a crítica moral construtiva são considerados de mau
gosto, onde o auto-questionamento e a busca do aperfeiçoamento
religioso são vistos como ofensivos. Nos vemos aceitando
passivamente um princípio basicamente anglo-saxônico: “Cuide de
seus próprios assuntos.” Ou, “se vir alguém fazendo algo errado, não
interfira; isto não lhe diz respeito.”

Nada poderia ser mais contrário à abordagem judaica. “Todos os


judeus são responsáveis uns pelos outros”: Esta é nossa regra
fundamental e primeira, enunciada e repetida no Talmud e no
Midrash.31 Na visão eterna, infinita da Torá, o povo judeu é uma
unidade orgânica. Todas as suas partes, divisões e integrantes, são
responsáveis uns pelos outros. O que afeta a um judeu, afeta a todos.
Rejeitamos o cinismo impiedoso e cruel de Caim, que pergunta:
“Acaso sou eu o guardião de meu irmão?” 32

Se nosso propósito fundamental na travessia da vida é buscar o


desenvolvimento e o crescimento pessoal através da ética e da
moral, é vital que possamos aprender -- e ensinar – Mussár. Somente
assim chegaremos a alcançar, ao lado de nossos irmãos judeus, o
aperfeiçoamento de nossa espiritualidade. É obrigação de cada um
apontar a um vizinho um possível erro de conduta, ajudando-o a
evitar o pecado e suas trágicas conseqüências.

Nas Escrituras Sagradas lemos: “Quando encontrares o boi de teu


inimigo ou seu asno, perdido, devolvê-lo-ás”.33 Mesmo que o
proprietário deste animal seja seu inimigo, é obrigatório, segundo a
Lei, que você o resgate e que o devolva. “Hashev teshivenu lo”, diz a
Torá, literal-mente repetindo o verbo: “devolver devolvê-lo-ás para
ele”. Segundo os sábios do Talmud e do Midrash, isto significa que
mesmo que o animal continue escapando, mesmo que isto aconteça
quatro, cinco vezes, você deve sempre devolvê-lo ao dono, ainda que
este mantenha com você uma relação de inimizade.

Vamos supor que, em vez do animal de propriedade de um inimigo,


você encontrasse perdido algo ainda mais valioso, desta vez
pertencente a um amigo. Certamente, não mediria esforços para
devolver o bem ao seu dono. E se fosse o próprio amigo aquele a se
perder pelos caminhos sinuosos da vida? Quão maior não deveria ser
sua preocupação, sua profunda obrigação, a de fazê-lo voltar à trilha
correta?

Nossos profetas nos lembram que temos a obrigação de vestir aquele


que está nu.35 Considerando que somos todos filhos de um mesmo Pai
e que, na condição de seres humanos, possuímos a mesma dignidade
inata, pois fomos criados à Sua imagem, temos esta obrigação para
com qualquer membro da família humana que seja demasiado pobre
para vestir-se por seus próprios meios.

Pelo mesmo princípio, se encontrarmos alguém desprovido de direção


e de fundamentos religiosos, alguém empobrecido, despojado de uma
percepção superior, não temos a obrigação de “vesti-lo” com nossas
mitzvót? Quando sua alma se encontrar em julgamento, diante do
Criador, ele estará despido de realizações espirituais – a menos que
lhe ofereçamos ajuda e orientação agora. Nós certamente
compartilharemos de sua culpa, se não o ajudarmos a adquirir as
preciosas vestimentas do espírito, confeccionadas com os fios das
boas ações e da fé inabalável.

Devemos nos desfazer da fria indiferença que nasce do egoísmo e da


insensibilidade. Vamos adotar, em seu lugar, a conduta judaica de
responsabilidade para com nosso próximo e de profunda preocupação
em relação ao nosso povo. Desta forma, retornaremos ao Mussár, a
sabedoria e ciência moral que devemos aprender e ensinar.

* *

Ao publicar este trabalho, não procurei ser original. Procurei, sim,


apresentar o Mussár que recebi de meus guias e mentores, as “boas
palavras” que me imbuíram de um forte reconhecimento e apreciação
da nossa herança espiritual.

Fui muito afortunado por aprender o Mussár em toda a sua pureza


com os mais inspirados e iluminados mestres, rabinos e autoridades
de nossa época. Tive ainda o privilégio de transmitir esta “boa
doutrina” em conferências anuais sobre Pirkê Avót durante os últimos
quarenta anos.

O presente trabalho está sendo publicado com base nestas


conferências, na esperança de transmitir este Mussár, esta “boa
doutrina”, a um número cada vez maior e mais receptivo de leitores.
Se ele servir para transmitir alguns de nossos princípios e valores
mais caros, as verdades da ética e da moral que temos acalentado e
valorizado como tesouros desde o Sinai, ficarei agradecido à
Providência misericordiosa pelo zechut, o privilégio que me foi
conferido.

Capítulo 1 - Mishná 18
Raban Shimon ben Gamliel diz: O mundo existe graças a três coisas: a
verdade, a justiça e a paz; pois foi dito: “Que a verdade, a justiça e a paz
reinem nas vossas portas.” 111a

Em que sentido este dizer difere do anterior (Mishná 2), que declarava que o mundo mantém-se sobre
três coisas: a Torá, o serviço Divino e a beneficência? (Torá, avodá e guemilut chassadim). Observe que,
em vez da palavra omed, manter-se, na passagem anterior, temos caiám, existir. A primeira passagem
descreve os três valores que constituem o propósito da existência do mundo: o mundo foi criado para que
Torá, avodá e guemilut chassadim venham a ser realidades na vida humana. O mesmo mundo pode
existir, ser mantido e preservado somente se as condições de verdade, justiça e paz prevalecerem.

Outras interpretações foram apresentadas, encarando esta Mishná como complemento da anterior:
Tendo vivido em época posterior ao Segundo Templo, quando a avodá, no sentido clássico de culto com
sacrifício, não era mais possível, Raban Shimon ben Gamliel sugere-nos substitutos que encontram-se
disponíveis para o lugar das oferendas em sacrifício.

Quando praticamos justiça e sustentamos a Lei estamos, de fato, aprendendo as lições de chatát, a
oferenda de pecado, e asham, a oferenda de culpa, que refletem responsabilidade moral e castigo justo.
Oferendas que eram trazidas como donativos livres ou cumprimento de uma promessa, nedarim e
nedavót, nos ensinam a inviolabilidade de uma palavra, uma promessa, qualquer expressão da verdade. E
se uma pessoa cultivar a paz irá, assim, exemplificar o simbolismo de sheleamim, a oferenda de paz, e
todá, a oferenda de ação de graças.

Portanto, diz Raban Shimon ben Gamliel, se desejarmos hoje cumprir o ditado original de Shimon, o
Justo, devemos praticar a justiça, a verdade e a paz; elas irão substituir as oferendas perdidas da avodá
original.
Podemos também dizer que este ensinamento sugere as qualidades específicas com as quais deve-se
observar os caminhos da Torá, avodá e guemilut chassadim. Nosso estudo da Torá deve ser verdadeiro;
suas conclusões devem estar de acordo com a lei, e deve haver um interesse sincero pela paz. Nosso culto
deve ser sincero; nossas orações devem estar corretas, do ponto de vista da Halachá, e devem obter
harmonia entre o ser humano e seu Criador. Do mesmo modo, nossos atos de bondade devem ser
verdadeiros e feitos com sinceridade; devem ser consistentes com nossas obrigações legais e devem ter a
intenção de semear a paz entre o homem e seu semelhante.

Estes três conceitos de justiça, verdade e paz também são fundamentais no processo judicial. Primeiro
precisamos determinar a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade. Não podemos nos basear
em conjecturas ou na imaginação. Como Isaías relata a respeito do Messias: “Não julgará pela visão de
seus olhos, nem decidirá pelo que escutarem seus ouvidos, mas com justiça julgará ao pobre, e decidirá
com eqüidade pelos fracos da terra.”112 A aparência e a realidade são freqüentemente duas coisas distintas.
O juiz deve ser capaz de enxergar além da superfície e determinar quais são os fatos do caso.

Em segundo lugar, a corte deve aplicar a lei objetiva e imparcialmente. Amiúde, a lei pode correr
contra o que aparecem ser os fatos. No Talmud, Rabi Shimon ben Shatach conta: “Que eu veja a
consolação de Sião com tanta certeza como eu vi alguém perseguindo outra pessoa, com a espada na mão.
O outro correu para uma ruína e o perseguidor atrás dele. Eu os segui, apenas para encontrar o
perseguidor com a espada em sua mão, o sangue escorrendo, e o outro agonizando. Eu disse ao homem: –
Ó iníquo, quem o matou? Certamente, fui eu ou você. Mas o que devo fazer com você quando o teu
destino não está em minhas mãos? Pois a Torá disse: ‘Por depoimento de duas testemunhas, ou de três
testemunhas, será morto aquele que deve morrer; não será morto por depoimento de uma testemunha.’ 113
É melhor deixar a cargo d’Aquele que conhece todos os pensamentos o exato castigo para este homem. E
antes que o homem pudesse fazer um movimento sequer, uma serpente venenosa o mordeu, e ele caiu
morto.”113a

Rabi Shimon estava tão absolutamente certo de que o perseguidor havia matado a vítima e contudo só
havia evidência circunstancial. A lei judaica exige o depoimento de pelo menos duas testemunhas que
tenham realmente visto o crime, para que uma pessoa suspeita seja condenada. A lei tem de ser absoluta
para garantir que evidências circunstancias nunca condenem um inocente.

Tanto a Verdade quanto a Lei, porém, devem servir ao interesse da Paz: paz em nosso meio ambiente
social e harmonia entre os judeus e o seu Pai no Céu.

Depois que o Todo-Poderoso criara as terras secas, Sua próxima ordem foi: “Produza a terra ervas;
deshe.”114 Se você quiser, as três letras da palavra deshe são os respectivos começos de din, shalom e emet
– justiça, paz e verdade. Isto sugere portanto que, se este mundo recém-criado desejava perdurar, deveria
produzir primeiro deshe: justiça, paz e verdade. Na verdade, nossos sábios declaram que o juiz que
profere uma sentença baseado na verdade e na justiça converte-se – por assim dizer – em sócio do
Santíssimo, bendito seja, na obra da criação.115

Esta interpretação pode continuar sendo verdadeira para outro aspecto da palavra deshe. O rei David,
em seu Salmo 23, disse: “Far-me-á repousar em pastos (deshe) verdejantes.”116 Isto poderia significar: o
Todo-Poderoso me concedeu o privilégio de descansar em um ambiente de justiça, paz e verdade.

Esta Mishná conclui com um texto comprobatório dos profetas: “Que a verdade, a justiça e a paz
reinem nas vossas portas”. A palavra “portas” aqui significa um símbolo da cultura e civilização humanas.
Se você deseja continuar tendo “portas”, ou seja, que a civilização perdure, você precisa ter verdade, lei e
paz. Estas são as condições necessárias e suficientes para o homem manter relações inteligentes e
significativas com o seu próximo. Estes são os alicerces da sociedade. Sem eles, as boas e viáveis
relações entre os seres humanos tornam-se impossíveis.

___________________________________

111a. Zacarias 8:16.


112. Isaías 11:3-4.
113. Deuteronômio 17:6.
113a. Tosefta, San’hedrin 8, 3; T. B. San’hedrin 37b.
114. Gênesis 1:11.
115. T. B. Shabat 10a.
116. Salmos 23:2.

Capítulo 1 - Mishná 2
Shimon, o Justo, foi dos últimos participantes da Grande Assembleia. Ele
costumava dizer: “O mundo se mantém sobre três coisas: a Torá, o
serviço Divino e a beneficência.”

A frase “Ele costumava dizer” repete-se com frequência em todo o Pirkê Avót. Obviamente, estes
sábios diziam também muitas outras coisas. Devemos, entretanto, compreender esta frase no sentido de
que o ensinamento por ela exposto estava constantemente nos lábios do sábio que a pronunciou e era
fundamental em sua visão do mundo. Rabi Iehudá Hanassí, o compilador da Mishná, não se limitou a
registrar para a posteridade os pronunciamentos casuais dos rabinos, mas escolheu o que era, em essência,
o credo ou lema particular de cada um deles: os dizeres que demonstravam seu caráter e perspectiva de
vida.

Compreendendo que os judeus estavam sendo dispersos por cantos distantes do mundo civilizado,
Shimon, o Justo, desejava prover seu povo com a chave para uma ampla compreensão do judaísmo, que
pudesse conduzi-lo a sua plena observância. Em um meio ambiente estranho, muitos judeus estariam pela
primeira vez saindo de “seu mundo” e iriam precisar conhecer os limites exteriores e a configuração geral
do judaísmo dentro das novas fronteiras em que iriam viver. Eis porque este grande sábio enfatiza que os
três pilares sobre os quais o mundo do judaísmo se mantém são: aTorá, o estudo e cumprimento
da Torá; avodá, servir a Deus; guemilut chassadim, a bondade do ser humano em suas ações em benefício
de seus semelhantes.

Esta caracterização tripla do judaísmo está contida na famosa oração das Grandes Festas: “A
penitência, a oração e a caridade evitam a severidade do decreto.” A penitência é possível somente onde o
conhecimento da Torá produz um sentimento de culpa; a oração é, naturalmente, o serviço do coração
(também chamado de avodá em hebraico); e a caridade é a implementação de guemilut chassadim.

A importância deste ensinamento para o judeu moderno reside na sua chamada à integridade e ao
equilíbrio. Encontramos, frequentemente, pessoas que alardeiam a dimensão de suas contribuições para
caridade e proclamam: “Enquanto eu praticar a caridade e mantiver um coração generoso, posso ignorar
os princípios de Torá eAvodá.” Existe também aquela pessoa adepta da tese segundo a qual, contanto que
ela vá fiel e diariamente à sinagoga, está dispensada de doar para caridade. O que Shimon, o Justo, nos
faz recordar é que cada um de nós tem a obrigação de ser um judeu na íntegra, comprometendo-se
totalmente com a Torá, a avodá e a guemilut chassadim.

Na oração citada das Grandes Festas, o Machzor reproduz três palavras acerca dos três temas da frase.
São elas: tsom, jejum; col, voz e mamón, dinheiro; estes são sinônimos aproximados ou associados a
penitência, oração e caridade, respectivamente. Contudo, estas três palavras, têm pela guematria o mesmo
valor numérico e deste ponto de vista são equivalentes, pois as letras de cada um deles somam 136. Dois
quaisquer deles somam, portanto, 272, e os três juntos totalizam 408.

Com isto em mente, podemos oferecer uma interpretação interessante do versículo: – “o homem de
instintos irracionais (báar) não sabe, e o tolo não compreende isto (zot)”.30 O valor numérico de báar é
272, e o de zot é 408! Substituindo estes múltiplos de 136 pelos termos de nossa tríade – penitência,
oração e caridade – demonstramos o que acabamos de afirmar. Estamos familiarizados com o homem que
não sabe, báar – 272, o qual ignora dois dos três princípios requeridos. E conhecemos inclusive o tolo que
não compreende zot – 408, todos os três pilares do judaísmo. Há pessoas que pensam que, permanecendo
fiéis a somente um aspecto do judaísmo, estão cumprindo suas obrigações. Mas certamente isto é tolice!

Podemos estender este enfoque e ir ainda mais além, interpretando de modo semelhante o versículo:
“Com isto (bezot) virá Aarão à santidade.”30a Somente com os “408” – com o total dos três componentes,
o Cohen Gadol, o Sumo Sacerdote entrará no santuário, no Iom Kipúr. Caso ele se aproxime do Todo-
Poderoso com somente uma parte da totalidade do judaísmo, ele não pode representar adequadamente o
seu povo. Qualquer coisa a menos do que o judaísmo integral é um judaísmo truncado, uma versão não
equilibrada.

O judaísmo, em certo sentido, lembra um tripé. Retire um dos pés de apoio e a estrutura desabará. Se a
pessoa for erudita mas não observante, se for caridosa mas não disposta à oração, então ela não poderá
experimentar uma vida religiosa plena. Esta religiosidade incompleta está fadada a ter um equilíbrio
instável e desmoronar.

O propósito da Torá em nossa vida diária é a de nos elevar a um plano superior. Mediante o seu estudo
podemos ampliar nossos conhecimentos, nossos horizontes mentais, e estender as fronteiras de nossa
compreensão. A avodá comanda o nosso relacionamento com Deus. Ela faz com que estejamos
constantemente cientes da presença do Todo-Poderoso e da nossa dependência d’Ele. Guemilut
Chassadimregulamenta nosso relacionamento com nossos semelhantes. Nesta área, nos é ensinado o
significado da justiça, retidão e compaixão. Nela, aprendemos a amar nosso semelhante como a nós
mesmos.

Quando o judeu se envolve nestas três atividades, ele está, na verdade, envolvendo todos os níveis do
seu ser no culto a Deus. Ele está pensando, falando e praticando o judaísmo. Para a Torá, a mente; o
pensamento do processo intelectual é fundamental. Na avodá, a fala; expressão é o elemento principal.
Na guemilut chassadim, o feito; a ação que é importante.

Estes três aspectos do judaísmo foram, na verdade, desenvolvidos pela primeira vez pelos três
patriarcas: Abrahão, Isaac e Jacob. Cada um deles, em virtude de seu próprio temperamento,
circunstâncias individuais e predileção pessoal, trilhou um caminho distinto do culto a Deus. Abrahão é o
grande exemplo de chassadim: ele era sempre bondoso, alimentava os famintos e implorou pela salvação
de Sodoma. A Isaac nós encontramos “passeando (rezando) no campo.” 31 De fato, Isaac é quem atinge o
grau mais elevado de avodá ao converter-se na oferenda para o altar. Somos informados de que Jacob
“habitava em tendas”32 e estudou por muitos anos nas academias de Shem e Ever. 32a Ele é o estudante de
antigas tradições, o estudioso daTorá. Combine as percepções dos patriarcas: funda os conceitos de Deus
de Abrahão, Deus de Isaac e Deus de Jacob. Reúna os modos particulares de cada um e você terá o
judaísmo equilibrado, total: Torá, avodá e guemilut chassadim.

É justamente esta noção de equilíbrio que distingue o judaísmo de outras religiões. Outros sistemas de
crença parecem ter se concentrado em apenas um dos três conceitos básicos, de forma desproporcional
em relação aos outros. Uma, com sua ênfase no amor de auto-abnegação, parece, em certo sentido, ter
adotado guemilut chassadim. Outra, com sua ênfase na oração constante, parece ter adotado avodá. Uma
terceira parece enfatizar excessivamente a relação mística do ser humano com o Um que tudo abarca, ao
ponto de perder a sua própria individualidade. Só no judaísmo o homem está totalmente engajado num
programa de vida abrangente e equilibrado.

Ao estudar esta máxima de Shimon, o Justo, devemos não somente aprender os três princípios, mas,
também, observar a seqüência precisa em que eles ocorrem. ATorá vem primeiro. Devemos começar
estudando a Torá, a fim de saber exatamente o que o Todo-Poderoso nos ensinaria e o que Ele solicitaria
de nós. Só então poderemos saber por que e como servir a Deus e estaremos prontos para a avodá.

Fica claro, então, que a primazia da Torá é lógica e também cronológica. A Torá é sempre o pré-
requisito e um ingrediente vital de ambos, avodá e guemilut chassadim. Se você deseja servir a Deus mas
ignora a Torá, não pode apreciar a Divindade ou saber como procurar o Todo-Poderoso. Quanto
mais Torá você tiver adquirido, mais consciente estará da reverência que devemos ao Senhor do
Universo, diante de Quem oramos. Para uma avodá verdadeiramente profunda, você precisa antes
conhecer aTorá.

A Torá também deve preparar o caminho para o verdadeiro guemilut chassadim. O exercício de
bondade não é somente a expressão de emoções sentimentais. A Torádeve orientar-nos a respeito do
objeto e medida adequados de tais emoções. As Escrituras nos contam a respeito da injunção Divina para
o rei Saul matar até o último amalequita. 33 Em um gesto de bondade, Saul perdoou a Agag, seu rei.
Durante este intervalo de suspensão da sentença, Agag gerou descendência, da qual proveio Haman, o
malvado agaguita do Livro de Ester, que quase conseguiu aniquilar o povo judeu. Assim, a piedade mal
orientada, a bondade não temperada pela Torá, pode levar às mais cruéis conseqüências.

Este conceito de centralidade e primazia da Torá é refletido na interpretação que aMishná dá para o
relato bíblico da luta entre Jacob e o anjo: refere-se ao anjo como à encarnação do mal, o espírito protetor
de Esaú.33a Rabi Elchanan Wasserman fez uma pergunta simples: Por que este protetor de Esaú não atacou
Abrahão, o primeiro judeu, ou Isaac, o filho do primeiro judeu, eliminando assim as forças do bem assim
que apareceram? A resposta de Rabi Wasserman é esta: de acordo com nossa explicação anterior de que
os patriarcas foram os primeiros exemplos dos conceitos deTorá, avodá e guemilut chassadim, Abrahão
representava a bondade e a caridade. Isto não incomodou o espírito protetor de Esaú. A filantropia sozinha
é inofensiva. Só com a caridade, com pessoas que são judias somente em virtude da filantropia, você não
pode construir uma nação ou perpetuar um povo. Não há nada de distintivo acerca de atos de bondade.
Sem nada além da bondade, os judeus desintegrar-se-ão; a semente de Abrahão desaparecerá. O espírito
de Esaú ainda não via motivo para atacar. Quando Isaac apareceu, e com ele os conceitos de oração e
culto, o espírito de Esaú também não se perturbou. Os serviços da sinagoga por si sós não estabelecem
um povo judeu. Que Isaac fique de pé na sinagoga e reze. Seus filhos podem ser induzidos a perambular
pelas ruas e procurar seu prazer em outro lugar. Os adultos podem ter suas sinagogas e orar. Em uma
geração ou duas, tudo será esquecido. De fato, não foi esta a política do governo russo: permitir que
algumas sinagogas permanecessem abertas, mas proibir o ensino do judaísmo?
Quando o espírito do mal, porém, viu Jacob estudando a Torá, ele percebeu que isto significava a
eternidade. Com a Torá, o judaísmo tinha futuro. Com Torá, com escolas diurnas, com ieshivót, você
pode assegurar uma nova geração e construir um povo eterno! O espírito de Esaú achou necessário atacar
somente a Jacob.

E assim, enquanto o judaísmo e o judeu requerem todos os três componentes –Torá, avodá e guemilut
chassadim – a Torá permanece como fundamental e preeminente.

Estudar a Torá é uma mitsvá específica da própria Torá, pela qual somos todos responsáveis.
O Talmud relata que uma das perguntas a serem feitas à alma do ser humano no mundo vindouro será:
“Caváta itim latorá?” – Você estabeleceu tempo para a Torá?” 34 Você dedicou duas ou mais noites por
semana para o estudo? Você passou as tardes de Shabat com um exemplar da Torá? É verdade que você
está ocupado e tem outras preocupações. Mas não poderia “roubar” (Cavatá também pode ter este
significado)35 um pouco de tempo da sua vida social e de negócios para dedicá-lo ao estudo da Torá?

As palavras hebraicas “Caváta itim latorá?” poderiam ser traduzidas ao pé da letra como: “Você fixou
tempos para a Torá?” Com demasiada freqüência ouvimos a reclamação: a Torá deve ajustar-se aos
tempos atuais. Muitos sustentam que a Torá e seus ensinamentos devem ser modelados e modificados
para atender às condições modernas e ajustar-se aos dias de hoje. O propósito do judaísmo, porém, é
exatamente o oposto. É nossa esperança modelar os tempos à Torá; transformar nosso meio ambiente até
que ele se ajuste aos ensinamentos Divinos; elevar as condições predominantes ao nível da Torá em vez
de abaixar os ensinamentos de Deus aos padrões atuais. Esta é a pergunta que nos será feita no mundo
vindouro: “Você adaptou os tempos para que estes se ajustem à Torá?”

Neste espírito podemos talvez interpretar o evento registrado no segundo livro de Samuel acerca de
como a Arca Sagrada, que fora anteriormente capturada pelos filisteus, voltou para os
israelitas.36 Transportada sobre uma carroça puxada por bois, a Arca foi logo escoltada por uma grande
multidão em júbilo. De repente, os bois tropeçaram. Uza, temendo pela Arca, agarrou-a, tentando evitar
que tombasse e ao fazê-lo foi fulminado e caiu morto.

O rabino Kook (z”l) foi indagado certa vez por que Uza mereceu tal punição. Ele respondeu com uma
observação notável: O erro de Uza foi não enxergar a causa do problema. Os bois escorregaram e
tropeçaram. Por que não tentar mantê-los firmes? Por que por as mãos na arca? O problema era com os
bois, não com a Arca Sagrada!

Esta linha de raciocínio é bastante sugestiva. De fato, um número demasiado grande de nossos líderes
tentou resolver os problemas do judaísmo deitando as mãos irrefletidamente naquilo que é sagrado para
Israel sem primeiro determinar realisticamente as verdadeiras causas dos problemas. Alguns grupos
sancionaram o ato de dirigir durante o Shabat, misturar homens e mulheres durante as orações, e um
serviço religioso abreviado, numa tentativa de trazer as pessoas em massa para a sinagoga. Adiantou?
Nosso povo voltou-se em massa para os serviços agora que estas comodidades foram instituídas? Não
havia nada de errado com a Arca; o problema era com os bois. A questão não é de maior ou menor
conveniência, mas de que, para a maior parte de nosso povo, a oração genuína tornou-se uma arte perdida.
A necessidade de comungar com Deus encontra-se enterrada debaixo de camadas de atividades triviais, as
quais distraem a atenção e estão subordinadas ao direito constitucional da “busca da felicidade”. Uza pôs
as mãos na Arca quando o problema estava com aqueles que a transportavam. Esta é a falácia trágica,
embora bem-intencionada, dos nossos tempos.
O “culto a Deus” que todos nós podemos praticar é a oração. Por meio desta experiência, o ser
humano pode comungar com o Todo-Poderoso, sentir verdadeiramente a presença de Deus, e elevar sua
alma aos mais altos níveis da espiritualidade. O veículo para obter tudo isto é o texto de nossas orações:
estas são as palavras sagradas dos profetas e dos salmos, dentro das quais foi vertida uma riqueza
inexaurível de significado e inspiração.

O rabino Chaim de Volozhin, discípulo do Gaon de Vilna, destaca que a oração tem uma função
transcendental de proporções cósmicas: unir o mundo inferior com o mundo superior. Naquele misterioso
reino do ser essencial que engloba a estrutura espiritual do universo, há considerações que exigem um
relacionamento dinâmico entre o nosso mundo de aparência e o mundo do puro ser. A Torá é o canal
mediante o qual o movimento tem lugar do Céu para a Terra. Na oração, dá-se o movimento inverso: as
aspirações humanas elevam as esferas inferiores em direção à superior.

Se esta é a função vital da oração e se seus componentes são os pronunciamentos inspirados dos
nossos profetas, quão presunçoso deve ser qualquer grupo de pessoas, levadas pela superficialidade
literal, por um lado, e cânones do racionalismo novecentista do outro, para cancelar, distorcer e alterar
arbitrariamente nossas orações tradicionais!

Os três pilares de Shimon, o Justo, que sustentam o mundo, podem ser concebidos em um sentido
ainda mais amplo. A sociedade civilizada como um todo apóia-se no seu sistema educacional, suas
instituições religiosas e suas formas políticas. A Torá, em uma visão ampla, corresponderia, por analogia,
a toda a gama de ensinamento e escolaridade em nossos colégios, faculdades e universidades. Se estas
não cumprirem com sua responsabilidade de iluminar e enobrecer, mas em vez disto ficarem infectadas
com políticas de admissão discriminatórias, fanatismo racial e obscurantismo, então a sociedade não se
poderá manter.

Por extensão, avodá sugere, de modo genérico, o papel vital de todos os componentes da religião
institucional. Se estes abandonarem sua tarefa de apontar o caminho para o culto a Deus e da vida ética, e
em vez disto se subordinarem ao Estado e servirem como ferramenta para interesses particulares, então,
na realidade, a própria sociedade estará ameaçada.

Guemilut chassadim, que abrange a área do relacionamento dos seres humanos uns com os outros,
sugere a importância dos direitos humanos, da liberdade política e dos procedimentos judiciais justos. Se
o estado se converter em um deus; se o governo, em vez de servir ao povo, escravizar o povo; se a
corrupção infiltrar-se nos serviços públicos – então, de fato, a civilização como um todo estará em perigo.

Mais ainda, estes três valores e funções não só sustentam o mundo por serem essenciais para o
funcionamento adequado da sociedade; eles também justificam o mundo, dando-lhe um objetivo e um
significado.

Em Eclesiastes (Cohelet), Salomão lamenta-se da “vaidade”, do mais absoluto nada do mundo.


“Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” 36a – ele diz. O mundo é vazio, é um nada, coisa alguma.
Consideremos, momentaneamente, uma criança estudando aritmética. O professor escreve o símbolo para
o zero na lousa e diz à criança que isto significa “nada”. Intrigada, a criança pergunta: – Se este zero
significa nada, para que precisamos dele? O professor explica então que, enquanto ele sozinho nada
significa, se você colocar outro número diante dele, ele torna-se significativo e dá sua própria
contribuição. O mesmo ocorre com os dizeres de Salomão. É verdade, o mundo é vaidade e vazio, mas
ainda precisamos dele e ele ainda pode ser redimido. Vamos acrescentar à “vaidade” do mundo a Torá,
a avodá e a guemilut chassadim, e veremos como este mundo começa a ter sentido e
importância. Torá, avodá e guemilut chassadim mantém o mundo: o santificam, elevam e justificam sua
existência com um propósito sublime.

Incidentalmente, há um pensamento especial envolvido na forma gramatical do termo guemilut


chassadim: diferentemente dos outros dois termos, ele termina no plural. Isto serve para indicar que cada
ato de bondade é, na realidade, um ato com dois aspectos. Você está, de fato, fazendo algo por seu
semelhante, mas também está fazendo algo por si mesmo. Isto foi visto e expresso de forma muito bela
por vários poetas e pensadores. Shakespeare disse:

“A propriedade da clemência ... é abençoada duas vezes: ela abençoa a quem dá e a quem
recebe.”37 Lowell sugeriu o mesmo conceito quando escreveu: “A dádiva sem o doador é
nua.”37a Emerson disse que “O único presente é uma parte de ti mesmo.” 37bPortanto, guemilut
chassadim tem uma palavra no plural: é um ato com conseqüência dupla.

No testamento de Judá, o Príncipe, a seus filhos, encontramos as seguintes instruções estranhas: “A


vela (ner) deve ser deixada acesa em seu lugar; a mesa (shulchan) deve permanecer posta; a cama (mitá)
deve ser arrumada como sempre.”38 Isto pode significar: meu modo de estudar a Torá, simbolizado pela
vela, deve ser mantido. Minha mesa, na qual alimentei os necessitados e fiz atos deguemilut chassadim,
deve preservar plenamente sua finalidade caritativa. A minha cama era para onde eu me recolhia à noite
para poder ter forças para fazer a avodá, o serviço a Deus; meu modo de prestar culto também deve ser
mantido.

De modo similar, Salomão exorta: “Sejam tuas roupas sempre brancas” – querendo dizer que o
comportamento deve ser sempre o adequado; “e não te falte óleo (shemen) na tua cabeça.”39 Aqui,
novamente, o conselho pode referir-se ao nosso trio. A palavra hebraica shemen consiste de três letras (as
vogais são omitidas) que são precisamente as primeiras letras das palavras Shulchan, mitá e ner. Como
mostramos acima, elas simbolizam guemilut chassadim, avodá e Torá, respectivamente.

Finalmente, nossos três princípios estão provavelmente implícitos no lamento de Jeremias: “Enlutados
estão os caminhos para Sião porque ninguém vem para a solene assembléia; todos seus portões estão
desolados. Seus sacerdotes suspiram (de nostalgia).” 40 Durante as festividades de peregrinação, quando
todo Israel vinha ao Templo, havia uma grande distribuição de presentes e caridade. Daí, o profeta
lamenta a descontinuidade de guemilut chassadim. Os “portões” de Sião eram o local de reunião dos
juízes e anciãos. Portanto, o profeta também está enlutado pela perda daTorá e do estudo. Finalmente, o
sacerdote, o guardião do Templo, que oficiava o serviço do sacrifício, soluça pela destruição do templo,
construído para a avodá.

Resumindo o significado de nossa calamidade nacional, o profeta Jeremias diz, com efeito: Nosso
mundo judaico desabou; Torá, avodá e guemilut chassadim não são mais praticados.

Reciprocamente, se quisermos reconstruir nosso mundo, reavivemos e mais uma vez desenvolvamos
uma vida dedicada à Torá, avodá e guemilut chassadim.

Você também pode gostar