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A Filosofia e os Valores da Essência Humana

Luciano Gomes dos Santos

luguago@ig.com.br

A filosofia foi definida por Platão e Aristóteles como a ciência dos primeiros princípios ou
das causas primeiras. Nesta perspectiva, a filosofia procura investigar os primeiros princípios
e as causas primeiras da origem de todas as coisas. A reflexão filosófica tem por intuito atingir
a essência dos seres, visando compreender sua finalidade e seu modo de ser no universo. O
objetivo do presente artigo é investigar a essência dos valores humanos. Analisar
reflexivamente que valores podem ser considerados como parte da condição humana,
enquanto percepção sobre o seu próprio ser e as consequências que decorrem destes valores
para o ser humano.

O ser humano não nasce pronto para a vida, mas todo o seu existir no mundo se constitui num
projeto a ser elaborado e vivido, como objetivo de dar sentido a sua existência inacabada.
Nesta ótica, procura-se investigar a filosofia e os valores da essência humana. A filosofia
como reflexão da condição humana no mundo se constitui como capaz de analisar os valores
da essência humana.

O que é valor? No período clássico da filosofia grega a palavra valor não despertou nenhum
problema filosófico. O conceito valor era utilizado para “indicar utilidade ou o preço de bens
materiais” (ABBAGNANO, 2000, p. 989). A noção filosófica de valor está relacionada por
um lado “aquilo que é bom, útil, positivo; e, por outro lado, à de prescrição, ou seja, de algo
que deve ser realizado” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 187).

O ser humano possui naturalmente valores inerentes ao seu ser? Os valores são construções
humanas? Pode-se definir um conjunto de valores da essência humana? Como entender a
noção de valores da essência humana no contexto atual do mundo globalizado? O filósofo
Nietzsche afirmava que o valor da essência humana é a vida. No ser humano, a vida se
constitui seu valor absoluto. A natureza humana é dotada de valores em sua essência enquanto
percepção humana como consciência valorativa do seu próprio ser. Nesta ótica, afirma-se que
“os valores são, pois, criações humanas, e só existem e se realizam no homem e pelo homem”
(VÁSQUEZ, 2001, p. 146).

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O ser humano atribui valor a si mesmo, aos objetos e aos seres da ordem natural e aos objetos
fabricados visando utilidade em sua vida, seja na ordem material ou simbólica. O homem é
ser valorativo. Ele é produtor de valor. Os valores estabelecidos servem de referência para
guiar sua existência no mundo, considerando sua subjetividade e suas relações com o contexto
social. As escolhas da vida e suas decisões são tomadas com base nos valores que
acreditamos. Por isso, a importância de pensar sobre os valores da essência humana.

O uso filosófico do termo valor só começa a ser utilizado quando seu significado é
generalizado para indicar qualquer objeto de preferência ou de escolha. Este fato se evidencia
com os filósofos estoicos que introduziram o termo no domínio da ética e chamaram de valor
os objetos de escolha moral. Isso porque eles entendiam o bem em sentido subjetivo, podendo
assim considerar os bens e suas relações hierárquicas como objetos de preferência ou de
escolha. Por valor em geral, entenderam “qualquer contribuição para uma vida segundo a
razão” (DIÓGENES apud ABBAGNANO, 2000, p. 989).

Para o filósofo romano Cícero o valor seria “o que está em conformidade com a natureza ou é
digno de escolha” (CÍCERO apud ABBAGNANO, 2000, p. 989). Nesta perspectiva, o valor
como o que está em “conformidade com a natureza” seria a virtude; o valor como “digno de
escolha” seriam os bens a que se deve dar preferência, como talento, arte, progresso, entre as
coisas do espírito; saúde, força, beleza entre as do corpo; riqueza, fama, nobreza, entre as
coisas externas. Aqui se encontra a compreensão de valor em três perspectivas: o valor como
preferência, o valor como manifestação do espírito e o valor como referência às coisas
externas.

Para o filósofo Immanuel Kant no século XVIII o bem foi identificado como valor em geral.
Em sua perspectiva, “cada um chama de bem aquilo que aprecia e aprova, isto é, aquilo que
há um valor objetivo” (KANT apud ABBAGNANO, 2000, p. 990). O valor está relacionado
tudo àquilo que é objetivo para o ser humano; o que é perceptível na realidade como
objetividade, ou seja, o que existe e aí está presente diante de nossa condição racional.

Ao investigar os valores da essência humana é fundamental se perguntar pelo homem. O que


é o homem? Como se dá sua constituição física, intelectual e moral? Quais diferenças existem
entre o ser humano e os animais? O ser humano é um ser que busca constantemente o sentido
da vida. Nisso reside sua grandeza, e também a possibilidade de ruína. Sinal de grandeza
porque somente o homem, em nosso universo, é capaz de interrogar-se a respeito do
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significado da existência. Os animais executam funções e movimentos pré-finalizados, mas
não se propõem a questão do destino de sua presença no mundo. O homem se coloca a
caminho na busca de sentido e de compreensão do seu ser no cosmos que habita.

O ser humano é projeto a ser constituído no mundo. Ao nascer ele se apresenta em infinitas
possibilidades de ser no mundo. A sua constituição física, intelectual e moral vai depender de
seu contexto familiar e cultural em que está inserido, considerando a base material para
sustento de sua existência e o processo educacional para o seu desenvolvimento moral e
intelectual.

O homem é animal, porém animal metafísico, ou seja, ele pergunta pelo sentido da vida e foi
capaz em seu processo evolutivo acumular conhecimento e transmitir conhecimento de
geração em geração. O ser humano possui uma série de comportamentos semelhantes aos dos
animais (ex.: o ato de procriar, mamar, et.), mas por outro lado, ele deve aprender ao longo de
seu desenvolvimento diversos conhecimentos, habilidades e informações para viver em
sociedade. Esta tese demonstra que o ser humano não nasce pré-defino para a vida, salvo os
instintos de sobrevivência. A sua vida é construção entre o biológico e o social.

Tendo por base as questões anteriores que valores podem ser reconhecidos como parte da
essência humana? O primeiro grande valor é a própria vida. Ela deve ser reconhecida como
valor inviolável e inalienável. A vida não se reduz à propriedade alheia, ela não pode ser
banalizada ou comercializada. A vida humana é fecunda, possui múltiplas dimensões. É
necessário cultivar a defender a vida, e deve-se evitar riscos e afugentar ameaças. A
leviandade pode expor a vida a ruínas. A vida humana exige decisão e vigilância. Pode-se
danificar a vida pela imprudência.

Quem reconhece o valor da vida não pode degradá-la. Vida é existência pessoal. Por isso, é
preciso manter a vida limpa. A vida contaminada pela injustiça, pelo vício, pela imoralidade,
pela corrupção, pela deslealdade e pela traição, é vida bastarda. Vida suja só poderá atuar se
tiver a coragem de limpar o rosto. A vida deve ser transparente, lúcida, coerente, fraterna,
solidária. A vida autêntica não pode enganar, não pode trapacear. A vida deve ser a morada da
verdade. A falsidade envergonha a vida. Mas a vida resoluta há de manter-se sempre na
retidão, ainda que a tenha de atravessar angústias e sofrimentos (ARDUINI, 2007, p.09).

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A racionalidade é outro grande valor da essência humana. Ela é nossa característica
fundamental que nos separa dos outros animais. A racionalidade é valor que possibilita aos
homens pensar o seu próprio pensamento, analisar a sua vida e seus atos. Ela permite ao
homem gerar vida e tecnologias. A racionalidade deve ser cuidada, pois do contrário ela
poderá produzir monstros como o fundamentalismo, o dogmatismo, a violência e a guerra.

Outro valor da essência humana é a liberdade. Ela é ponto de partida e funda o existir
humano (ARDUINI, 1989, p. 26). A liberdade é originante do ser pessoal e social. Ela não
consiste apenas em escolher entre alternativas peexistentes. É potencialidade criadora. Propõe
o inédito. Determina rumos futuros e ensaia novas formas de vida. Existe liberdade porque há
coisas a serem escolhidas, mas também existem coisas porque houve liberdade que as
escolheu para serem. Daí a decisiva tarefa que a ação livre poderá desempenhar no mundo.
Nesta perspectiva, a liberdade é o espaço antropológico onde o homem se autodestina como
participante do processo histórico.

Ser livre é ser responsável. Inúmeras pessoas desejam liberdade, mas não querem
responsabilidade, isto é, responder pelas suas atitudes, escolhas e decisões. A liberdade é valor
da essência humana como consciência do seu ser na história da humanidade e como sujeito
que possui dignidade e deve também respeitar a liberdade alheia. A liberdade não é apenas
uma palavra vazia, mas o modo de ser do ser humano situar-se no mundo e projetar sua
existência. Sem liberdade não é possível comportamento ético e responsável. A liberdade deve
ser proclamada em cada esquina da humanidade, libertando o ser humano de todas as prisões
físicas e psicológicas colocadas como forma de domínio e de manipulação do ser humano.

O filósofo Sócrates afirmava que a alma humana é sua consciência moral e intelectual do ser
humano (REALE; ANTISERI, 2003, p. 91). Nesta perspectiva, a dimensão ética é parte da
essência antropológica, ou seja, o homem possui naturalmente a capacidade de aprender a
virtude ética e vivê-la na relação com seu eu e com a coletividade. O valor da ética
possibilidade a organização social e o reconhecimento da liberdade e da propriedade alheia.
Devemos despertar o valor da ética em nossas existências. A ética se constitui como maravilha
de transformar a nossa condição humana em pessoas responsáveis e livres.

A amizade se constitui outro valor da essência humana. A amizade é uma “inclinação eletiva
recíproca entre duas pessoas morais” (LALANDE, 1999, 52). Os seres humanos estabelecem

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relações de amizades com seus semelhantes. A vida feliz é a vida que se constitui na
experiência da amizade. Aristóteles reconhecia três tipos de amizade: “a que tem por objeto o
prazer; a que tem por objeto o interesse; a que tem por objeto o bem moral” (ARISTÓTELES
apud LALANDE, 1999, 52). Para Aristóteles a amizade mais perfeita seria a que tem por
objeto o bem moral. A amizade não se limitaria ao prazer e ao interesse para estar com o
outro, mas a amizade teria por objetivo o bem moral, o bem viver e conviver em comunidade.

O valor da amizade nos remete ao valor da socialização, pois “ninguém é uma ilha”. O ser
humano não é ser da solidão por natureza, mas somos seres da sociabilidade e da integração
com os nossos semelhantes. Praticar a amizade é descobrir o valor da convivência com a
alteridade, é partilhar da experiência da vida e construir o sentido da existência humana.

Outro valor da essência humana é a dimensão do amor. O amor é sentimento que não se
deixa reduzir ou enquadrar-se em definições, pois o sentimento do amor ultrapassa nossas
meras explicações. Afirma-se que

“no amor somos atingidos por um poder que nos absolve e nos amplia,
atravessa as muralhas do corpo e, qual zéfiro suave ou vendaval impetuoso,
nos compele a vivermos entrelaçados, mais juntos que um esquadrão de
cavalaria, mais unidos que um exército de guerreiros, mais concordes que
uma esquadra de navios” (BUZZI, 1991, p. 85).

O filósofo Hegel afirmava que “a verdadeira essência do amor consiste em abandonar a


consciência de si, no esquecer-se em um outro si mesmo, e todavia no reencontrar-se
verdadeiramente nesse esquecimento” (HEGEL apud BUZZI, 1991, p. 86). Em Hegel há uma
dialética do amor, ou seja, o movimento de sair de si e ir ao encontro do outro e o retorno ao
nosso eu. O amor é encontro e reencontro com a alteridade. O amor não é simplesmente a
química do corpo, mas é algo espiritual que transcende o biológico e nos lança no encontro
com a pessoa amada. O amor é força que invade o nosso ser e nos conduz a realização ou às
vezes a destruição de nossa existência. O amor é paradoxo humano. Ele força às vezes
indomável. O amor é sentimento que deve ser cultivado. Amar-se a si mesmo é ter a
capacidade de amor o outro.

É fundamental o ser humano compreender cada valor de sua essência humana para vivê-la de
forma autêntica e consciente de suas potencialidades. O homem é dotado em sua essência de
diversos valores. Neste texto, deu-se ênfase, a cinco valores: a vida, a racionalidade, a
liberdade, a amizade e o amor.

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Considerando o contexto do mundo globalizado é necessário interpretar estes valores e
perceber a sua dinâmica no contexto pessoal e social. A vida é o primeiro e grande valor da
essência humana. Se de um lado há a progressiva proteção da vida de outro há uma
banalização da vida por meio da violência em nossa sociedade. A vida de modo geral foi
coisificada. Ela tornou-se instrumento de trabalho sem o prazer do ócio. A vida deve ter
espaço para ser vivida e sentida em seu íntimo. A vida floresce onde há respeito, justiça e
cuidado.

A racionalidade é marca da sociedade moderna ocidental pela influência do pensamento do


filósofo René Descartes. A racionalidade como base do conhecimento e afirmação do cogito,
ou seja, do eu pensante. A razão deve ser estimulada para a verdade e superar a cultura do
enlatado, pois não é necessário mais pensar. O ser humano deve apenas executar o que lhe é
oferecido por meio da mídia. A nossa racionalidade é bem informada, mas vejo que a cada dia
ela se atrofia por falta de estímulos criativos. Nesta perspectiva, a filosofia se apresenta como
caminho do estímulo mental e do confronto das ideias, desenvolvendo o senso crítico e a
argumentação dialética.

A liberdade está garantida coletivamente pelo ordenamento jurídico em nossa sociedade. Mas,
se faz necessário a educação para a liberdade. A liberdade não pode ser reduzida à
libertinagem. Ser livre é ser responsável perante a sua vida e da alteridade. A democracia é o
exercício e a educação para a liberdade. Educar-se para liberdade é tornar-se realidade este
valor da essência humana.

O valor da amizade está presente nas relações humanas. No contexto atual, não há mais uma
forma de amizade, mas o ser humano vem constituindo grupos de amizades, conforme os seus
interesses pessoais e necessidades. O ser humano estabelece um grupo de amizade para beber,
jogar, viajar, estudar, etc. A amizade é valor que agrega respeito e participação na vida alheia.
A amizade deve ser estimulada em nossa sociedade como encontro de pessoas e suas histórias.

O amor como valor da essência humana move a humanidade em diversos aspectos: sexo,
amizade e fraternidade. O amor é dinâmica que liberta o ser humano de sua clausura e o
coloca no encontro com a alteridade. Amar é cuidar de si e do outro. A palavra amor foi
banalizada. Importa-se recuperar seu sentido humano e vivê-lo em cada experiência como
amor erótico, da amizade e da comunhão fraterna. Amar é projetar sua vida no outro e deixar
que o outro se projete em seu ser. O amor é encontro mais profundo da alma humana.

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A filosofia é caminho que possibilita pensar e viver os valores da essência humana. Viver
estes valores é experienciar o mais profundo da essência humana. A vida em sua brevidade ou
em sua longevidade pode ser vivida intensa quando se tem consciência da essência de nosso
ser.

Questões para o Pensar Filosófico:

1. Quais os valores que podemos eleger como parte da essência humana?

2. Como estamos vivendo os valores de nossa essência humana?

3. Quais caminhos que podemos utilizar para despertar em nós e na sociedade, de modo geral,
a tomada de consciência e a vivência dos valores de nossa essência humana?

Referência Bibliográfica

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

ARDUINI, Juvenal. Destinação Antropológica. São Paulo: Paulinas, 1989.

_____. Ética responsável e criativa. São Paulo: Paulus, 2007.

BUZZI, Arcângelo R. Filosofia para principiantes – a existência humana no mundo.


Petrópolis (RJ): Vozes, 1991.

LALANDE, Andre. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes,
1999.

MORRA, G. Filosofia para todos. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 2002.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia – filosofia pagã e antiga. Vol. 01,
São Paulo: Paulus, 2003.

ROBINET, Jean-françois. O tempo do pensamento. São Paulo: Paulus, 2004.

VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 21ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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