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IDENTIDADE E ESTRATÉGIA
NA FORMAÇÃO DO MOVIMENTO
1
AMBIENTALISTA BRASILEIRO
Angela Alonso,
Valeriano Costa e
Débora Maciel
RESUMO
A partir de uma síntese conceitual entre as teorias do
Processo Político e dos Novos Movimentos Sociais, o artigo analisa as dimensões estratégicas e simbólicas do proces-
so de formação do movimento ambientalista brasileiro. Argumenta-se que três estruturas de oportunidades políticas
— o processo de Redemocratização, a Assembléia Constituinte e a Rio-92 — deram os parâmetros para que grupos de
ativistas ambientalistas se constituíssem e enfrentassem dilemas comuns relativos a seus frames e estratégias de mobi-
lização, constituindo, ao longo desse processo, uma identidade compartilhada.
PALAVRAS-CHAVE: movimento ambientalista; estrutura de
oportunidade política; identidade coletiva; estratégias de mobilização.
SUMMARY
Relying on a conceptual synthesis provided by the Political
Process and New Social Movement theories, this article analyses the strategic and symbolic dimensions of the
Brazilian environmental movement’s formation process. The authors argue that three political opportunity structures
— Redemocratization, Constituent Assembly and Rio 92 — provided the parameters for environmental groups to
arise and face common dilemmas regarding their frames and mobilizing strategies. Through this process, a shared
identity came about.
KEYWORDS: Brazilian environmental movement; political opportunity
structure; collective identity; mobilizing strategy.
[1] Este artigo é uma versão resu- Em julho de 1982, às margens das cataratas de Foz
mida de “The formation of the Brazi-
lian environmental movement”,
do Iguaçu, em Guaíra, 3 mil pessoas participaram de um quarup em
publicada no IDS Working Paper, n. protesto contra a construção da hidrelétrica de Itaipu,que ameaçava o
259, em novembro de 2005, e resulta
do projeto Trajetórias dos Ativistas
Parque Nacional de Sete Quedas:“Ao som melancólico e compassado
Ambientalistas Brasileiros, desen- de um tambor, levando uma muda de árvore e uma bandeira branca
volvida no Cebrap entre abril de 2003
e dezembro de 2004, no âmbito do
com uma pétala ao centro, em forma de lágrima, além da faixa ‘Sete
Development Research Centre on Quedas Viverá’,os manifestantes fizeram sete paradas durante o per-
Citizenship da Universidade de Sus-
sex, que junto com The William and
curso”2.Organizado por uma coalizão de pequenos grupos ambienta-
Flora Hewlett Foundation financiou listas de diversas regiões do país, o Quarup Adeus Sete-Quedas
a pesquisa. Agradecemos os comen-
incluiu atos políticos e culturais ao longo de três dias.
Itaipu era uma das obras magnas do plano desenvolvimentista tários de Ian Scoones, Lisa Thomp-
levado a cabo pelos governos militares. Ao contestá-la, os ativistas son e Peter Houtzager e o auxílio de
nossa assistente de pesquisa, Adria-
ambientalistas contestavam,em decorrência,o próprio regime autori- na dos Santos.
tário.O episódio revela,pois,a conexão do movimento ambientalista
[2] O Estado de S. Paulo,25/7/1982.
em suas origens com o movimento pela Redemocratização. Embora
essa característica seja saliente em vários eventos contemporâneos ao
Adeus Sete Quedas,a vasta literatura sobre movimentos sociais que se
constituiu no Brasil durante o ciclo de protestos da Redemocratiza-
ção, inspirada no marxismo, privilegiou os movimentos populares e
deu pouca atenção ao ativismo ambientalista, mais restrito à classe
média. O processo de formação e a dinâmica interna do movimento
ambientalista brasileiro motivaram poucas análises sistemáticas,res-
tringindo-se,na maior parte,a estudos de caso3. [3] Caso, respectivamente, de Vio-
la, Eduardo. “Movimento ecológico e
Assim como as mobilizações coletivas estimularam a proliferação heterogeneidade política”. Lua Nova,
dos estudos, o arrefecimento delas, concluída a Redemocratização, v. 3, n. 4, São Paulo, Cedec, abr.-jun.
1987, e de Antuniassi, Maria Helena.
esvaziou essa agenda de pesquisa.Na verdade,a institucionalização de Movimento ambientalista em São Paulo:
vários movimentos sociais, sob forma de associações formais ou de análise sociológica de um movimento
social urbano.São Paulo:Ceru,1989.
partidos políticos, foi interpretada negativamente por boa parte da
literatura, como sinal de desmobilização ou cooptação. Esse juízo foi
contrastado, na virada dos anos 1980 para os 1990, por estudos que
demonstraram que o aparente declínio dos movimentos sociais podia
ser explicado pela dinâmica de sua interação com o Estado e pelos dile-
mas daí decorrentes acerca de estratégias,ou então pelo próprio cará-
ter fluido dos movimentos, com os picos e baixas de mobilização, [4] Argumentos presentes, respec-
tivamente, em Cardoso, Ruth. “A tra-
típico dos ciclos de protesto4. jetória dos movimentos sociais”. In:
Contudo,nos anos 1990,a literatura não seguiu essas pistas.Com Dagnino, Evelina (org.). Anos 90:
política e sociedade no Brasil. São
a crise do marxismo e a incorporação da Teoria dos Novos Movimentos Paulo: Brasiliense, 1994; Boschi,
Sociais, as análises se deslocaram dos movimentos sociais populares Renato Raul.A arte da associação. Polí-
tica de base e democracia no Brasil. Rio
para movimentos “pós-materiais”,vistos como os novos agentes cole- de Janeiro: Iuperj, 1987, e Ottmann,
tivos da mudança social e política.Ganhou relevo a dimensão cultural e Götz. “Movimentos sociais urbanos
e democracia no Brasil. Uma aborda-
simbólica das mobilizações,sobretudo a formação de identidades cole- gem cognitiva”.Novos Estudos Cebrap,
tivas5.Foi então que a questão ambiental vingou como objeto de estu- n.41,mar 1995.
dos no Brasil — conjugada a temas como mulheres,negros e homosse- [5] Alvarez, Sônia, Dagnino, Eve-
xuais.Entretanto,simultaneamente,sob a égide de reformulações dos lina e Escobar,Arturo (orgs.).Cultura
e política nos movimentos sociais latino-
conceitos de “sociedade civil” e de “esfera pública”,os próprios estudos americanos. Novas leituras. Belo Hori-
sobre movimentos sociais perderam fôlego, sendo substituídos por zonte:Editora UFMG,2000.
análises sobre o associativismo e a participação da sociedade civil em [6] Por exemplo, Dagnino, Evelina
fóruns deliberativos e na prestação de serviços ao Estado6. As análises (org.).Sociedade civil e espaços públicos
no Brasil.São Paulo:Paz e Terra,1994.
sobre a questão ambiental seguiram esse rumo7, deixando de lado o
problema da constituição de um movimento social ambientalista. [7] Alonso, Angela e Costa, Vale-
riano. “Ciências sociais e meio
É justamente essa questão que motiva este artigo. Procuramos ambiente no Brasil: um balanço
reconstituir o processo de formação do movimento ambientalista bra- bibliográfico”. BIB - Revista Brasileira
de Informações Bibliográficas em Ciên-
sileiro seguindo a tendência de combinação das duas principais tradi- cias Sociais, Anpocs, n. 53, 2002, pp.
ções de explicação na área,a Teoria dos Novos Movimentos Sociais e a 35-78.
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[14] Gamson, Willian. “The social pretações comuns,laços afetivos,lealdades comunitárias e o sentimento
psychology of collective action”. In: de pertencimento a grupos se constroem14. Nesse processo, emergem
Mueller, Carol McClurg e Morris,
Aldon D. (eds.). Frontiers in Social identidades coletivas,isto é,“percepções de distinção,fronteiras e inte-
Movement Theory. New Haven / Lon- resses de grupo,alguma coisa próxima a uma comunidade”15.
dres:Yale University Press,1992.
Diferentes gêneros de experiência social e política conferem, por-
[15] Jasper,James.The art of moral pro- tanto, feições particulares a cada grupo e definem distintos estilos de
test. Culture, biography, and creativity in
social movements.Chicago:The Univer- ativismo.No nosso caso,identidades ambientalistas emergiram a par-
sity of Chicago Press,1997,p.86. tir de quatro contextos de micromobilização.
Nas origens do ativismo ambientalista no Brasil está um grupo de
perfil estritamente conservacionista:a Fundação Brasileira para Con-
servação da Natureza (FBCN), fundada em 1958 no Rio de Janeiro.
Seus membros eram,sobretudo,engenheiros agrônomos e cientistas
naturais, trabalhando na burocracia estatal e envolvidos com a ques-
tão ambiental por razões profissionais. A situação de funcionários
públicos dos membros da FBCN deu-lhe desde sempre a feição de um
grupo de interesse, procurando influir diretamente sobre as decisões
de Estado, por meio de lobby, em detrimento de mobilizações públi-
cas.Antes e durante o regime autoritário,essa estratégia foi bem-suce-
dida: a FBCN influenciou a criação de leis, órgãos e políticas ambien-
[16] Por exemplo,nos Conselho Flo- tais e seus membros ascenderam aos cargos de direção na área16.Nesse
restal Federal, Serviço Florestal do
Ministério da Agricultura, Parque sentido,a trajetória de seus membros se confunde com a montagem da
Nacional de Conservação de Itatiaia, própria burocracia ambiental brasileira, dando à FBCN um caráter
Museu Nacional, Departamento de
Pesquisas Florestais e Conservação paraestatal até a década de 1970.
da Natureza do IBDF (Urban,2001). Ao longo dos anos 1970 foram surgindo grupos que começaram a
dar conotações mais políticas à questão ambiental.
A Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan),
fundada em 1971,em Porto Alegre,é,na origem,muito similar à FBCN.
Também formada por pesquisadores de ciências naturais com inte-
resse profissional no tema e muitos deles com contato prévio com
associações conservacionistas locais. Como a FBCN, a Agapan se
engajou na constituição da burocracia ambiental,influenciando a for-
mulação de legislação e a implementação de políticas públicas
[17] Bones,Elmar & Hasse,Geraldo. ambientais,mas em nível estadual17.Todavia,a Agapan se diferenciava
Pioneiros da ecologia. Breve história do
movimento ambientalista no Rio
da FBCN no uso de estratégias de mobilização,especialmente campa-
Grande do Sul. Porto Alegre: Já Edito- nhas de difusão de informação,palestras e formas simbólicas de mani-
res,2002.
festação.Por meio delas,a Agapan atraiu jovens ativistas da seara estu-
dantil e foi progressivamente se aproximando do movimento pela
Redemocratização.
O Movimento Arte e Pensamento Ecológico (Mape) surgiu em
São Paulo,em 1973,formado por artistas plásticos,escritores e jorna-
listas vinculados aos movimentos contra-culturais e preocupados
com a poluição urbana. O Mape se apropriou de estratégias expressi-
vas e simbólicas dos novos movimentos sociais europeus e recorreu
especialmente à linguagem artística como forma de expressão,organi-
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[27] Evento típico dessa campanha trito Federal27.A outra grande coalizão no mesmo estilo foi a Campa-
foi um ato público em São Paulo em 15 nha contra a Utilização de Energia Nuclear, pouco mais tarde, em
de janeiro de 1979,que atraiu cerca de
1,5 mil pessoas e gerou uma “Carta 1980, nas quais se engajaram as mesmas associações da campanha
Aberta à Nação Brasileira”, contra a anterior, adensadas agora de associações ambientalistas menores
internacionalização da Amazônia, e
em defesa da preservação do estilo de recém-surgidas — como a Oikos (1982) e o Grupo Seiva de Ecologia
vida das comunidades tradicionais (1980). O assunto atraiu um espectro maior de aliados dentre os
que lá viviam.
membros do movimento pela Redemocratização: movimento estu-
dantil, movimentos sociais populares, movimentos culturais, cien-
[28] A mobilização mais significa- tistas,políticos,artistas e religiosos28.A terceira campanha de articu-
tiva foi a passeata “Enterro das Usi-
nas Atômicas”, em memória das víti-
lação do movimento foi o Adeus Sete Quedas, em 1982, contra a
mas de Hiroshima e em intenção das hidrelétrica de Itaipu. Liderada pelo Mape, a mobilização incluiu a
potenciais vítimas brasileiras, reu-
nindo aproximadamente 1,2 mil pes-
Agapan,a APPN e outras associações menores,como a Seiva de Eco-
soas (Urban, Teresa. Missão quase logia, e o Coletivo Verde (1985), formado por ex-exilados políticos
impossível. Aventuras e desventuras do
movimento ambientalista no Brasil.São
influenciados pela contracultura.
Paulo:Petrópolis,2001). Em todas essas campanhas,a existência de aliados na arena social
e na política favoreceu as primeiras conexões relativamente estáveis
entre grupos antes autônomos, configurando uma rede de ativismo
ambiental. Essas mobilizações tanto motivaram a formação de novas
[29] Em 1985, o país contava com associações ambientalistas29 quanto suscitaram um debate em torno
cerca de 400 grupos ambientais em do melhor formato organizacional para a coalizão emergente.
funcionamento (Viola, Eduardo. “O
movimento ambientalista no Brasil O Mape propôs uma federação ambientalista nacional, articu-
1971-1991: da denúncia à conscienti- lando as várias pequenas associações ambientalistas. Assim surgiu
zação pública para a institucionaliza-
ção e o desenvolvimento sustentá- a Assembléia Permanente de Defesa do Meio Ambiente de São Paulo
vel”. In: Goldenberg, Mirian (ed.). (Apedema), em 1983, visando manter o ativismo no plano da socie-
Ecologia, ciência e política. Rio de
Janeiro:Revan,1992,p.57). dade civil.Já a APPN investiu em aprofundar a articulação da rede de
associações ambientalistas com o MDB.Todavia,os conflitos inter-
nos em torno da partidarização da questão ambiental acabaram por
cindir a associação em pequenos grupos.A Agapan,por sua vez,pro-
curou projetar seu principal ativista,José Lutzenberg,à condição de
liderança nacional. Essa estratégia acabou sendo a mais bem-suce-
dida. Isso porque a Agapan, no frame e nas estratégias de ação, era
transversal ao movimento,abarcando em seu discurso todo o espec-
tro temático do movimento, desde o conservacionismo da FBCN,
até temas urbanos e contraculturais, e todas as estratégias de mobi-
lização,desde os lobbies e acesso à burocracia do Estado dos conser-
vacionistas até manifestações públicas e lúdicas, preferidas pelos
demais grupos. Por essas razões, a Agapan adquiriu centralidade na
rede do ativismo ambientalista da década de 1970 e Lutzenberg tor-
nou-se o broker entre a tradição conservacionista e os novos grupos
socioambientalistas.
Assim, em meados dos anos 1980, estava configurada a primeira
coalizão estável entre grupos de ativistas. As campanhas conjuntas
indicam o estabelecimento de um campo ambiental, com liderança e
agenda própria.Além disso,havia agora um frame dominante.O con-
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