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Cultura e Literatura

Africana e Indígena
Claudia Amorim
Mariana Paladino

2010
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por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

A524 Amorim, Claudia ; Paladino, Mariana / Cultura e literatura africana e


Indígena. / — Curitiba : IESDE Brasil S.A., 2010.
180 p.

ISBN: 978-85-387-0965-7

1. Literatura africana 2. Cultura africana 3. Indígenas – Cultura


4. Literatura Africana (Português) – História e Crítica I. Título II. Paladino,
Mariana.

CDD 896

Capa: IESDE Brasil S.A.


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Claudia Amorim

Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Ja-


neiro (UERJ). Mestre em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Especialista em Literatura Portuguesa pela UFRJ. Graduada em
Letras Português – Literaturas de Língua Portuguesa pela UFRJ.

Mariana Paladino

Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia


Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/UFRJ).
Mestre em Antropologia Social pelo PPGAS/UFRJ. Licenciada em Antropologia
pela Universidad Nacional de La Plata, Argentina.

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Sumário
A África lusófona: um pouco de história........................... 11
Breve panorama histórico da África lusófona.................................................................. 12
A colonização das ilhas do Atlântico e da Costa Africana........................................... 14
O Império Colonial Português nas ilhas e nas terras africanas.................................. 14
A independência dos cinco países africanos lusófonos............................................... 16

Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos


e na Guiné-Bissau...................................................................... 29
Cabo Verde: história, cultura e literatura............................................................................ 31
São Tomé e Príncipe: história, cultura e literatura.......................................................... 34
Guiné-Bissau: história, cultura e literatura........................................................................ 37

Cultura e literatura em Angola............................................. 45


Angola: história, cultura e literatura.................................................................................... 46

Cultura e literatura em Moçambique . .............................. 59


Moçambique: história, cultura e literatura........................................................................ 61

África lusófona e Brasil: laços e letras................................. 77


Os africanos no Brasil: um pouco de história................................................................... 77
Estudos afro-brasileiros na contemporaneidade........................................................... 90

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História e historiografia indígena......................................101
O sistema colonial e missionário (1549–1755)..............................................................102
O Diretório dos Índios e o retorno da ação missionária (1755–1910) . ................108
O Regime tutelar (1910–1988) ...........................................................................................110
As imagens sobre os índios nos séculos XVIII, XIX e XX..............................................114
Visões indígenas do contato................................................................................................115

Situação contemporânea dos povos indígenas...........123


Quem são e quantos são os povos indígenas hoje no Brasil ..................................123
Diversidade linguística e cultural.......................................................................................128
Formas de organização social e parentesco...................................................................132
Economias indígenas..............................................................................................................133
Religiões indígenas..................................................................................................................134

Demandas, conquistas e projetos


do movimento indígena.......................................................143
Lutas do movimento indígena............................................................................................143
Conquistas legais ....................................................................................................................146
O avanço no processo de escolarização dos povos indígenas................................149
Escritores e literatura indígena ..........................................................................................152
Artistas e cineastas indígenas..............................................................................................154

Gabarito......................................................................................165

Referências.................................................................................173

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Apresentação

Muito bem-vindos aos estudos de cultura, história e literatura africana e indíge-


na. Esses estudos visam proporcionar a vocês, alunos dos cursos de graduação em
Letras, sólidos subsídios para o conhecimento das culturas e literaturas africanas de
língua portuguesa e da cultura, história e literatura indígena, a fim de que esses co-
nhecimentos ampliem a compreensão da diversidade da cultura brasileira na qual
nos inserimos.
Além disso, a obrigatoriedade de abordar nos currículos das escolas públicas
e privadas conteúdos da África e dos descendentes de africanos no Brasil (Lei
10.639/2003) e da história indígena e a cultura desses povos (Lei 11.465/2005)
propiciou a demanda por esses conhecimentos. Também a homologação do
Acordo Ortográfico, que unificou a grafia do português, estimulou uma aproxi-
mação entre as culturas irmãs de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique
e São Tomé e Príncipe, que constituem a África de língua portuguesa, e o Brasil.
Resumir em alguns capítulos a cultura e a literatura de cada um dos países afri-
canos de língua portuguesa e a cultura, a história e a literatura indígena no Brasil
não foi tarefa fácil. No primeiro caso devido à necessidade de nos remetermos à
história e à cultura secular dos países africanos referidos. No segundo caso, pela
diversidade de formas de vida, cultura e organização social dos povos indígenas
existentes hoje no país, o que torna complexa a composição de um quadro geral.
Privilegiamos em primeiro lugar as informações históricas para, em segui-
da, focalizarmos a cultura e a literatura africana e indígena, uma vez que sem um
conhecimento prévio da história dos povos da África de língua portuguesa, dos
povos indígenas e de como os portugueses, nos séculos XV e XVI, provocaram essa
ligação entre regiões tão distantes, por meio das navegações, qualquer estudo que
estabeleça associações entre essas culturas não será completo. No caso dos indíge-
nas também se privilegiou a compreensão dos processos de mudança ocorridos
a partir da Constituição de 1988, quando o Estado reconheceu sua condição de
povos e o direito à posse dos territórios tradicionalmente ocupados por eles. Decor-
rente desses processos situa-se a produção de uma literatura indígena que procura
expressar, por meio da escrita, uma diversidade de conhecimentos e relatos orais,
de modo que possam ser conhecidos pela sociedade não indígena.
Assim, com o intuito de facilitar as informações, dividimos o conteúdo deste
curso em 8 capítulos, dedicando os cinco primeiros aos estudos da história, da cul-
tura e da literatura dos cinco países africanos de língua portuguesa, os chamados
Palop (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), e os 3 capítulos restantes
para os estudos sobre a história, a cultura e os modos de vida contemporâneos
dos povos indígenas no Brasil.
Esperamos, então, que vocês façam uma boa leitura dos capítulos que ora
se apresentam e descubram, nesses estudos, a presença africana e indígena ao
longo da história do Brasil e a relevância atual que suas culturas possuem, enri-
quecendo a diversidade de nosso país.

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A África lusófona: um pouco de história
Claudia Amorim
O objetivo deste capítulo é apresentar um breve panorama da ocupa-
ção portuguesa, na África, que se iniciou na segunda década do século XV
(1415), com a conquista da cidade de Ceuta, no Marrocos, e se finalizou
na segunda metade do século XX, com a independência dos cinco países
africanos colonizados pelos portugueses.

Durante esses cinco séculos de ocupação portuguesa na África, a cul-


tura do colonizador se misturou, ainda que timidamente, com a do coloni-
zado, malgrado os esforços dos europeus em impor a cultura dominante.
Antes da chegada do europeu na África, quase nada se sabia sobre o modo
de vida ou sobre a organização dos grupos étnicos que lá viviam, porém
é inegável que a cultura secular e ágrafa desses povos permaneceu e se
difundiu por outros territórios ocupados pela nação lusa, como o Brasil,
por exemplo, que recebeu um grande número de escravos provenientes
da África, especialmente do Congo, da Guiné e de Angola (grupo étnico
banto) e da Nigéria, Daomé e Costa do Marfim (grupo étnico sudanês).

No Brasil colonial, a cultura portuguesa do colonizador, a cultura africana e


a cultura indígena foram os pilares da constituição do caráter brasileiro, ainda
que o colonizador europeu, branco, tenha subjugado o negro e o índio e suas
culturas não cristãs e, por isso, naquela época, consideradas “inferiores”.

Contemporaneamente, os laços culturais que aproximam a cultura bra-


sileira da África lusófona são inúmeros e passam, entre outras coisas, pela
música, pelas crenças religiosas, pela culinária e pela literatura que se ex-
pressa em português.

Assim, para falarmos da cultura e da literatura africana, e de seus inegáveis


laços com o Brasil, precisamos voltar no tempo e observar que, sem os empre-
endimentos marítimos dos portugueses que os levaram a algumas regiões da
África, e também ao nosso território, essa história seria bem diferente.

Comecemos, então, por estudar a África lusófona, ou seja, a África dos


cinco países que falam hoje o português (Cabo Verde, São Tomé e Prín-
cipe, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique), focalizando primeiramente a
chegada do português a essas regiões.
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A África lusófona: um pouco de história

Breve panorama
histórico da África lusófona
No ano de 1415, os portugueses tomaram dos mouros, em apenas um dia de
combate, a cidade de Ceuta, no Marrocos. Essa importante vitória da cristanda-
de sobre os “infiéis”, já nos primórdios do Renascimento, guarda um significado
simbólico também por ter sido exatamente de Ceuta que Tarik e o seu exército
de 7 mil berberes partiram no ano de 711 para invadir a Península Ibérica, per-
manecendo na Península durante sete séculos.
Para além do espírito cruzadístico dessa empreitada, a conquista de Ceuta
foi o primeiro passo do caminho que levou os navegadores portugueses da Pe-
nínsula Ibérica ao Extremo Oriente e ao Brasil no final do século XV e início do
século XVI.
A cidade de Ceuta era o ponto de chegada das rotas comerciais oriundas
do sul da Berbéria (nome com que os europeus designaram, até o século XIX, a
região que hoje compreende o Marrocos, a Argélia, a Tunísia e a Líbia – o atual
Magreb com exceção do Egito), e das caravanas com o ouro proveniente da
Guiné. Essas riquezas encontradas em Ceuta fizeram com que os portugueses
adivinhassem que havia outras maiores espalhadas em alguns pontos do con-
tinente africano. Na intenção de dominar esse comércio, ao mesmo tempo em
que buscava contato com um suposto soberano cristão na África – Preste João
das Índias1 –, a política de expansão portuguesa adotou a exploração da África
em detrimento da ocupação de territórios ao longo do Mediterrâneo.
Assim, a expansão portuguesa teve início no norte da África, seguiu para o sul
ao longo da costa ocidental africana, alcançando as ilhas do Atlântico e depois
avançou pela costa oriental do continente africano ao longo do Oceano Índico,
em direção ao Oriente e ao Extremo-Oriente, chegando finalmente à região do
Atlântico Sul com a colonização do Brasil.
O desejo de lutar contra os mouros e de alargar o império de Cristo entre os
povos não cristãos vai se misturando, pouco a pouco, a perspectivas economica-
mente mais enriquecedoras. A exploração da Costa Africana onde os navegantes
encontraram pimenta malagueta, canela e outras especiarias, além do marfim e
do ouro, se mostrava bastante lucrativa. Assim, novas expedições se organiza-
ram pelos mares já navegáveis da Costa ocidental e oriental da África, marcando
um período da história conhecido como Descobrimentos Portugueses.
O mapa a seguir indica os territórios ocupados pelos portugueses e a rota das
navegações portuguesas a partir de 1415 até meados do século XVI.
1
Nos séculos XV e XVI corria uma lenda na Europa de que havia um rei cristão no Oriente, cujo nome era Preste João das Índias, e acreditava-se
que seu reino, que não se sabia precisar exatamente onde ficava, mas que se pensava ser na África, poderia ser aliado europeu para a exploração do
caminho marítimo para as Índias. A Coroa Portuguesa, a partir dos relatos de viajantes e peregrinos, tentou encontrar o reino de Preste João com
o desejo de fazer possíveis alianças.

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Fonte disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wikiImp%C3%A9rioPortugu%C3%AAs>.

Territórios ocupados pelos portugueses e rota das navegações lusas nos séculos XV e XVI. Observe que o território português na América é delimita-
do pelo Tratado de Tordesilhas12, assinado em 1494 entre Portugal e Espanha.
2
O tratado de Tordesilhas, assinado pelas Coroas de Portugal e da Espanha, em 1494 para dividir as terras descobertas, ou a descobrir, por amabas as Coroas, delimitava uma linha imaginária a 370 léguas a oeste das linhas
de Cabo Verde. As terras a oeste desse meridiano pertenciam à Espanha e as terras a lesta dessa linha seriam portuguesas.

13
A África lusófona: um pouco de história
A África lusófona: um pouco de história

A colonização das ilhas


do Atlântico e da Costa Africana
Nos anos seguintes à tomada de Ceuta, os navegadores portugueses empre-
enderam seu movimento para o sul, chegando em 1418 à ilha de Porto Santo,
em 1419 à Ilha da Madeira, em 1427 aos Açores, em 1460 às ilhas de Cabo Verde
e em 1470 às ilhas de São Tomé e Príncipe, todas desabitadas. Nos primeiros
arquipélagos – Porto Santo, Madeira e Açores – o clima favorecia a ocupação e
o trabalho na terra, e ali se estabeleceram, então, as primeiras colônias de po-
voamento. Nos demais arquipélagos – Cabo Verde e São Tomé e Príncipe –, os
portugueses fundaram colônias de plantação, não se preocupando com o povo-
amento da região.

Nas terras continentais, no ano de 1446, os portugueses alcançaram a Guiné-


-Bissau (a que colonizaram com o nome de Guiné Portuguesa), em 1483 che-
garam à região que hoje se conhece como Angola e, após a viagem de Barto-
lomeu Dias, que venceu o Cabo das Tormentas (renomeado para Cabo da Boa
Esperança, devido ao sucesso da empreitada), Vasco da Gama pôde preparar sua
armada para uma viagem até a Índia. Em 1488, Gama partiu da Praia do Restelo
em Lisboa, onde está atualmente a Torre de Belém, avançando para o sul até
alcançar o Oceano Índico. Antes que o propósito de sua viagem se concluísse, as
caravelas portuguesas aportaram em Moçambique no ano de 1489.

Em cada lugar em que as caravelas portuguesas aportavam, um padrão de


pedra com as armas e o brasão português era fincado. O padrão simbolizava a
posse oficial do território. Essa medida da Coroa Portuguesa visava a desencora-
jar intrusos e reforçar o senhorio sobre as terras ocupadas.

O Império Colonial Português


nas ilhas e nas terras africanas
A extensão do Império Português no Oriente e no Extremo Oriente obrigou
a Coroa Portuguesa à fragmentação das possessões portuguesas na África. O
alto custo da manutenção em algumas cidades do Marrocos fez com que a
Coroa abandonasse essa região. Os gastos numerosos com a defesa da Costa
da África, especialmente com os ataques de corsários e comerciantes de outros
países europeus, enfraqueceram a Coroa Portuguesa. Porém, mesmo com esses

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A África lusófona: um pouco de história

revezes, nos séculos seguintes, o Império Colonial Português se sustentou e as


colônias portuguesas na África continuaram a ser sistematicamente exploradas.
Para garantir as terras na África, a Coroa Portuguesa concedia as terras, por um
período de tempo limitado (cerca de três gerações), aos colonos que desejassem
explorá-las. Ao fim desse período, a concessão deveria ser renovada. Os colonos
tinham como tarefa defender os interesses portugueses nas terras do além-mar
e pagar por essa concessão com o produto dos territórios que lhes eram confia-
dos. No entanto, gradativamente, o mundo dos senhores ia se misturando com
o dos africanos e indianos locais, alterando as relações de poder.

Nesse período, outro “negócio” começou a ganhar força – o tráfico negreiro.


Por volta de 1648, os portugueses ocuparam os locais estratégicos no comércio
de escravos, que se tornou indispensável a todas as colônias da América. A eco-
nomia de plantação – especialmente na América – demandava uma maior ex-
portação de escravos africanos que se tornou sistemática. Entre os anos de 1502
e 1860, 9,5 milhões de africanos foram deportados para o continente americano,
e no século XVIII, com a descoberta do ouro em Minas Gerais e a necessidade de
extraí-lo, muitos negros da região de Angola foram enviados ao Brasil.

A Guiné Portuguesa foi inicialmente a principal fornecedora de mão de obra


escrava para o continente americano, sendo depois substituída por Angola, país
que manteve essa posição até o século XVIII. Nos fins desse mesmo século e du-
rante o século XIX a região do Golfo da Guiné3 ocupou a supremacia do tráfico
negreiro, que havia sido de Angola no século anterior, e a feitoria de São Jorge da
Mina4, em Gana, foi o principal porto de escoamento de escravos para a América.

O início do século XIX trouxe mudanças significativas para a situação da África


portuguesa. Com a independência do Brasil, em 1822, Portugal se viu pressio-
nado a enfrentar as demais potências europeias para assegurar seus “direitos”
sobre os territórios africanos ocupados.

Pressionado pela política europeia, Portugal extingue o tráfico negreiro no


Império em 1842, e em 1869 declara o fim da escravidão, embora esse tráfico
continuasse a ser feito durante os anos seguintes. Nas colônias, a política de ex-
ploração das riquezas tinha seguimento e, para tanto, Portugal precisou instituir
uma legislação trabalhista que obrigava o nativo ao trabalho forçado nas planta-
ções de algodão ou nas obras públicas.

3
Golfo da Guiné é uma reentrância próxima às Ilhas de São Tomé e Príncipe e compreende o litoral da Costa do Marfim, Gana, Togo, Benim, Nigéria,
Camarões, Guiné Equatorial e a parte norte do Gabão.
4
A feitoria de São Jorge da Mina, em Gana, é a construção europeia mais antiga ao sul do deserto do Saara.

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Paralelamente às pressões externas, ao longo do século XIX, a vida nos ter-


ritórios africanos mudava lentamente. A essa altura, uma população mestiça e
burguesa, ainda que em número reduzido, vai se formando nas colônias do ultra-
mar, reivindicando melhores condições para essas terras. Aparecem os primeiros
assimilados, nome pelo qual eram identificados os descendentes de portugue-
ses, geralmente mestiços, nascidos na África, que recebiam uma educação mais
formal. Nessa época, alguns poucos jornais circulavam pelas mais importantes
cidades da África portuguesa, instaurando a necessidade de uma educação nas
regiões mais importantes do ultramar.

As demais nações europeias, interessadas em repartir a África, pressionaram


Portugal a abrir mão de alguns de seus territórios. Na Conferência de Berlim,
de 1885, Portugal perdeu o Congo e teve que se contentar com o enclave de
Cabinda, região próxima a Angola. No entanto, apesar desse recuo, Portugal é,
no fim do século XIX, senhor de dois milhões de quilômetros quadradros no
território africano.

A independência dos
cinco países africanos lusófonos
A Guerra Colonial durou treze anos – de 1961 a 1974 – e pôs fim à ocupação
portuguesa no território africano. Essa guerra ficou conhecida, ainda, entre os
portugueses, como Guerra do Ultramar ou Guerra da África. Entre os povos dos
territórios ocupados duas denominações foram adotadas: Guerra de Libertação
Nacional e Guerra pela Independência.

Ao longo desses cinco séculos de domínio português nas colônias da África,


houve muitas tentativas de resistência dos povos locais, mas a supremacia bélica
dos portugueses, aliada às disputas políticas entre as diversas etnias das regi-
ões ocupadas, favoreceram o domínio lusitano, dando lugar ao Império Colonial
Português que abrangia não só territórios na África, mas também na América do
Sul, com o Brasil, e, ainda, na Índia e na Ásia.

Como afirma Kabengele Munanga (1986), quando os primeiros europeus


desembarcaram nas terras africanas, encontraram estados organizados politica-
mente, mas essa organização não foi capaz de reverter a ocupação europeia,
pois o desenvolvimento técnico dos estados africanos, incluída a tecnologia de
guerra, era inferior ao dos portugueses.

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A República Portuguesa
e o golpe militar de 1926
No início do século XX, a situação das colônias africanas lusófonas não se al-
terou muito em relação ao século anterior. Segundo Enders (1997, p. 69), para
“Portugal, como para as outras potências europeias, a colonização supõe a con-
quista, o desenvolvimento de uma economia de exportação e a submissão da
mão de obra indígena para o trabalho e para o imposto”. Com isso, o trabalho
de exploração das terras africanas, sem nenhum investimento econômico, conti-
nuou e se agravou com o início das duas grandes guerras mundiais.

A curta vida da República Portuguesa, que surgiu em 1910 e foi derrubada


pelo golpe militar de 1926, põe fim às pretensões dos republicanos, inauguran-
do um longo período ditatorial marcado por perseguições de toda ordem, re-
trocesso político e econômico, com reflexos graves nas colônias do ultramar. Em
1928, Antônio de Oliveira Salazar – um professor de Coimbra – foi convidado a
assumir a Pasta das Finanças do país e a partir dessa data inaugurou-se um pe-
ríodo difícil da história de Portugal. É o início da ditadura salazarista, nome pelo
qual ficou conhecido o regime ditatorial em Portugal, que teve início em 1926 e
só terminou em 1974, com a Revolução dos Cravos.

Como observa José Paulo Netto (1986, p. 18), durante a ditadura salazarista
“[...] um projeto econômico-social se integra organicamente à repressão antipo-
pular e antidemocrática. Trata-se, explícita e nitidamente, do projeto fascista do
grande capital, de que Salazar se fez um funcionário coerente, lúcido e pertinaz”.

Entre 1929 e 1933, Salazar acumulou os Ministérios das Finanças e das Colô-
nias, e com mão de ferro tomou medidas duras contra a enfraquecida oposição.
Em 1932, instaurou o Ato Colonial, que instituiu o trabalho forçado para os na-
tivos das colônias, obrigando a população negra a servir por um determinado
período de sua vida ao Estado ou a um patrão europeu. Esse Ato Colonial era, na
verdade, uma reedição do trabalho forçado instituído no século XIX pela Coroa
Portuguesa aos nativos dos territórios africanos ocupados. Além disso, a dita-
dura salazarista criou a polícia política portuguesa – PVDE (Polícia de Vigilância
e Defesa do Estado), mais tarde conhecida como PIDE (Polícia Internacional de
Defesa do Estado), que também teve sua área de atuação nas colônias do ultra-
mar, especialmente nos anos 1960 quando se inicia um movimento de grande
revolta nas colônias contra a política da Metrópole.

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Além do trabalho forçado nas colônias africanas, instituído pelo Ato Colonial,
o regime português continuou a explorar vorazmente suas riquezas, especial-
mente algodão, cana-de-açúcar, café, petróleo, entre outros produtos. Os lucros
obtidos com essa exploração eram revertidos para a Metrópole, ao passo que as
colônias amargavam uma situação de penúria e ausência de perspectiva.

O descontentamento com essa política de exploração aumentou visivelmen-


te na década de 1950 e, durante essa mesma época, disseminaram-se na África
as ideias do Movimento da Negritude, criado em 1934, em Paris, por um grupo de
poetas e intelectuais negros. O Movimento da Negritude defendia uma revolu-
ção na linguagem e na literatura, a fim de reverter o sentido pejorativo da pala-
vra negro e dela extrair um sentido positivo. Em 1939, o poeta negro martinica-
no Aimé Césaire o utilizou pela primeira vez em um trecho do ”Cahier d’un Retour
au Pays Natal” (Caderno de um Regresso ao País Natal), poema que se tornou a
obra fundadora da Negritude. Inspirados pela luta dos negros norte-americanos,
que combatia a discriminação racial e a intolerância, os adeptos do Movimento
da Negritude defendiam o respeito à diferença e a valorização das características
próprias da cultura negra.

Nesse ínterim, a situação de alguns dos territórios africanos colonizados


por franceses ou ingleses, por exemplo, ganhava outro estatuto. Alguns novos
países independentes surgiam na África acelerando o processo de descoloniza-
ção. Todas essas lutas eram estimuladas pela ação do Movimento da Negritude
que defendia a valorização dos negros e da sua cultura e pelas lutas dos negros
norte-americanos contra o racismo.

Desse modo, a grande insatisfação com a política salazarista para as colô-


nias, a disseminação das ideias do Movimento da Negritude, a luta dos negros
norte-americanos contra o racismo e a independência de países africanos co-
lonizados pela França e pela Inglaterra foram os propulsores dos movimentos
independentistas nas “províncias ultramarinas” portuguesas.

A criação dos movimentos pela


independência das colônias na África Portuguesa
Na esteira desses acontecimentos, em meados da década de 1950, surgia,
na Guiné Portuguesa, o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné
e Cabo Verde), cujo líder era Amílcar Cabral, e em Angola o MPLA (Movimento

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A África lusófona: um pouco de história

Popular de Libertação de Angola), sob a liderança do poeta Agostinho Neto. Na


década seguinte, em 1962, um ano após o início da guerra pela independência
em Angola, surgia em Moçambique a FRELIMO (Frente Nacional de Libertação
de Moçambique), sob o comando de Eduardo Mondlane.

Todos esses movimentos africanos pela independência têm entre seus líde-
res escritores, poetas, jornalistas e outros intelectuais, muitos dos quais antigos
estudantes da Casa do Estudante do Império (CEI), em Lisboa – (havia uma em
Coimbra também). Essas casas funcionavam como um ponto de reunião de
jovens estudantes oriundos de vários territórios do ultramar, especialmente dos
países africanos, e especificamente a CEI de Lisboa acabou se tornando um local
estratégico e decisivo para a tomada de consciência e organização dos jovens
estudantes africanos, em sua maioria angolanos, que se aliaram aos estudantes
e intelectuais portugueses contrários ao regime fascista. Centro de articulação
política e resistência, a CEI de Lisboa também funcionou como um espaço para
o surgimento de uma literatura de valorização das raízes africanas.

Como observa Manuel Ferreira (1977, p. 34):


A partir do início da década de 1960 a vida literária (e cultural, de certo modo) de Angola
só poderá ser apreendida na totalidade se estivermos atentos ao que se desenrola na Casa
dos Estudantes do Império, em Lisboa. Aliás também em Coimbra onde tiveram lugar várias
iniciativas, a partir da década de 1950. A Casa dos Estudantes do Império transforma-se no
centro aglutinador dos estudantes e intelectuais africanos. Mas a predominância da sua
composição é angolana, como predominantemente angolana é a sua atividade editorial.

Na entrada dos anos 1960, a situação nas colônias portuguesas do ultramar


se torna mais difícil, forçando-as à luta armada pela conquista da independência.
Nesse momento, à exceção de São Tomé e Príncipe e de Cabo Verde, cuja contri-
buição para os movimentos de independência consistiu em enviar guerrilheiros
para engrossarem a luta armada das outras colônias, Angola, Guiné Portuguesa
e Moçambique iniciam sua guerra pela independência.

O movimento armado é deflagrado em Angola quando no norte do país um


grupo de agricultores protesta violentamente contra a política de plantação com-
pulsiva de algodão, queimando armazéns de algodão e escorraçando os compra-
dores. O regime salazarista responde à revolta com violência e como reação a isso,
em fevereiro de 1961, em Luanda, capital de Angola, um grupo organizado do
MPLA toma de assalto a prisão da cidade para libertar os líderes do movimento.
Munidos de catanas5 e algumas poucas armas automáticas, o movimento não
logra bons resultados e a repressão que a ele se segue é extremamente dura.

5
Catana é um tipo de facão usado para cortar mato.

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A África lusófona: um pouco de história

Em razão desses acontecimentos, alguns antigos colonos e brancos que


haviam chegado recentemente a Angola conseguem permissão do regime para
invadir os bairros nos quais moravam os negros (os musseques) e ali atacar qual-
quer um que considerassem suspeito. Desse episódio resultaram muitas mortes,
em sua maioria de jovens assimilados – que são justamente aqueles que se
aculturaram, deixando suas raízes negras para frequentar as escolas de brancos.
Reagindo a essa matança, os movimentos organizados em Angola respondem
com a luta armada que irá se disseminar também por outras regiões da chamada
África lusófona como a Guiné Portuguesa (1963) e Moçambique (1964). É o início
da Guerra Colonial.

A Guerra Colonial durou 13 anos em Angola (1961–1974), 11 anos na


Guiné (1963–1974) e 10 anos em Moçambique (1964–1974). Durante essa
época, cerca de 800 mil jovens portugueses foram mobilizados para a guerra
na África, onde permaneceriam em média 29 meses, ou seja, quase 10% da
população portuguesa e 90% da juventude masculina da época estiveram
diretamente envolvidas com os conflitos na África. Do lado africano, a mo-
bilização do contingente masculino foi massiva. Muitos se envolveram na
guerra por motivações político-ideológicas, outros se aliaram às guerrilhas
aliciados pelas necessidades que se criaram em razão especialmente da falta
de mantimentos. Essa guerra também propiciou que, em Portugal, as forças
contrárias ao regime Salazar/Caetano6 se unissem aos oficiais – especialmen-
te tenentes e capitães – do Movimento das Forças Armadas (MFA), que inicia-
ram na madrugada do dia 25 de abril de 1974 uma revolução para derrubar o
regime ditatorial e por fim à guerra na África. Esse movimento ficou conheci-
do como Revolução dos Cravos.

A guerra na África marcou o início do fim do Império Colonial Português e


foi um dos fatores que propiciou a queda da ditadura salazarista. No entanto,
um legado cultural, para além da língua portuguesa – oficialmente adota-
da pelos países africanos já independentes, consolidou-se nos cinco países
do PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa). Certos traços da
cultura portuguesa e a adoção e o uso da língua portuguesa nesses países,
ainda que modificada e enriquecida pelas diversas línguas locais, são exem-
plos de como a cultura portuguesa enraizou-se nos territórios africanos an-
teriormente ocupados.
6
Marcello Caetano (1906–1980) substituiu, em 1968, Antônio de Oliveira Salazar (1889–1970) que ocupava o cargo de Presidente do Conselho
de Ministros em Portugal. Caetano, embora menos rigoroso que Salazar, levou adiante a política salazarista até o fim da ditadura em 25 de abril
de 1974, quando o Movimento das Forças Armadas Portuguesas, apoiado pelas forças progressistas da sociedade portuguesa, pôs fim à longa
ditadura que vigorava desde 1926 em Portugal.

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A África lusófona: um pouco de história

Texto complementar
O poema que você vai ler, do santomense Francisco José Tenreiro (1921–
1963), trata da saga africana, que se inicia com a chegada dos europeus à
África. É interessante notar que, ao contrário da epopeia camoniana, Os
Lusíadas (1572), de Luís Vaz de Camões, a façanha heroica aqui abordada
não é a façanha lusa, mas a façanha heroica dos negros que buscaram re-
sistir à dominação branca, porém acabaram sendo levados como escravos
para outras terras. O poema mostra, ainda, a saga do negro nessas terras,
lutando para fazer existir a sua cultura e termina evocando-o à luta pela
dignidade com novas armas, novas azagaias 1.

Epopeia
(TENREIRO, Francisco José in ANDRADE, 1975, p. 137-139)
Não mais a África
da vida livre
e dos gritos agudos de azagaia!
Não mais a África
de rios tumultuosos
– veias entumecidas dum corpo em sangue!

Os brancos abriram clareiras


a tiros de carabina.
Nas clareiras fogos
arroxeando a noite tropical.

Fogos!
Milhões de fogos
num terreno em brasa!

1
Azagaia é uma espécie de lança curta usada pelos africanos, especialmente na África do Sul.

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A África lusófona: um pouco de história

Noite de grande lua


e um cântico subindo
do porão do navio.
O som das grilhetas
marcando o compasso!

Noite de grande lua


e destino ignorado!...
Foste o homem perdido
em terras estranhas!...

No Brasil
ganhaste calo nas costas
nas vastas plantações do café!
No norte
foste o homem enrodilhado
nas vastas plantações do fumo!

Na calma do descanso nocturno


só a saudade da terra
que ficou do outro lado...
– só as canções bem soluçadas –
dum ritmo estranho!...

Os homens do norte
ficaram rasgando
ventres e cavalos
aos homens do sul!

Os homens do norte
estavam cheios
dos ideais maiores

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A África lusófona: um pouco de história

tão grandes
que tudo foi um despropósito!...

Os homens do norte
os mais lúcidos e cheios de ideais
deram-te do que era teu
um pedaço para viveres...
Libéria! Libéria

Ah!
Os homens nas ruas da Libéria
são dollars americanos
ritmicamente deslizando...

Quando cantas nos cabarés


fazendo brilhar o marfim da tua boca
é a África que está chegando!

Quando nas Olimpíadas


corres veloz
é a África que está chegando!

Segue em frente
irmão!
Que a tua música
seja o ritmo de uma conquista!
E que o teu ritmo
seja a cadência de uma vida nova!

... para que a tua gargalhada


de novo venha estraçalhar os ares
como gritos de azagaia!

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A África lusófona: um pouco de história

Dicas de estudo
 História da África Lusófona, de Armelle Enders, Editorial Inquérito.

Essa obra da historiadora francesa Armelle Enders, da Universidade Paris-


IV- Sorbonne, aborda a história da África de língua portuguesa, focalizando
desde a chegada dos portugueses a Ceuta até o fim do Império Colonial
Português com a saída dos portugueses da África, após o fim da Guerra
Colonial.

 Negritude: usos e sentidos, de Kabengele Munanga, Editora Ática.

Essa obra do antropólogo Kabengele Munanga, professor titular da Facul-


dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, nascido no Zaire, é
bastante interessante para quem quer iniciar seus estudos sobre cultura
negra e negritude.

 Capitães de Abril. Direção: Maria de Medeiros. Elenco: Stefano Accorsi, Ma-


ria de Medeiros, Joaquim de Almeida, Frédéric Pierrot. Lusomundo Audio-
visuais S.A., 2000.

Esse filme, dirigido pela portuguesa Maria de Medeiros, ilustra bem o


momento em que, ao som de “Grândola, Vila Morena”, é deflagrado em
Portugal o movimento de revolta dos capitães das forças armadas contra
os rumos da política de Marcello Caetano na África. Esse movimento, que
depois ficou conhecido como Revolução dos Cravos, devolveu a liberdade
política ao país que viveu sob a ditadura desde 1926 até o dia 25 de abril
de 1974.

Estudos literários
1. Em 1415, a conquista da cidade de Ceuta, no Marrocos, foi estratégica para a
empreitada portuguesa pelos mares do ocidente. Por que motivos partiram
os portugueses até Ceuta? E por que quando lá chegaram abandonaram a
ideia da ocupação dos territórios ao longo do Mar Mediterrâneo?

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2. Como se desenvolveu a política de exploração das colônias na África?

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A África lusófona: um pouco de história

3. Qual a importância dos encontros de jovens estudantes na Casa do Estudan-


te do Império?

4. Quais foram os fatores que desencadearam a luta dos povos africanos das
colônias contra o regime fascista de Salazar?

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A África lusófona: um pouco de história

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Cultura e literatura nos arquipélagos
lusófonos e na Guiné-Bissau

Claudia Amorim
O objetivo deste capítulo é apresentar as características históricas,
culturais e literárias de dois arquipélagos, Cabo Verde e São Tomé e Prín-
cipe, e da Guiné-Bissau, territórios africanos colonizados por Portugal
no século XV e tornados independentes a partir de 1975. Após a inde-
pendência, essas três ex-colônias portuguesas adotaram oficialmente
a língua portuguesa, mas quase todos os cidadãos desses países falam,
paralelamente ao português, um crioulo1 como língua materna.

Os arquipélagos de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, assim


como a Guiné-Bissau (que foi colonizada com o nome de Guiné Portu-
guesa), localizam-se na Costa Ocidental da África e foram descobertos
pelos portugueses no século XV. A partir dessa época, fizeram parte
do chamado Império Colonial Português até 1975, quando a Revolu-
ção dos Cravos, ocorrida em Portugal, pôs fim ao domínio imperial dos
portugueses na África.

Essa Revolução foi consequência, entre outras coisas, da Guerra Co-


lonial que desde 1961 mobilizou três das colônias africanas portugue-
sas – Angola, Guiné Portuguesa e Moçambique – contra a ditadura de
Antônio de Oliveira Salazar e Marcello Caetano2. Os arquipélagos de
Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe não participaram diretamente
dos conflitos armados, tentando por via diplomática sua independên-
cia. No entanto, muitos cabo-verdianos e santomenses se deslocaram
até os territórios em guerra no continente africano para reforçar a luta
dos povos locais pela independência.

1
O crioulo é a língua materna das regiões colonizadas e é uma língua que evoluiu do pidgin, uma espécie de sistema verbal com que
dois povos não usuários de um idioma comum se comunicam. O pidgin nasce geralmente da necessidade de uma comunicação comer-
cial e, quando alcança a condição de língua materna de um grupo de indivíduos, ele se torna um crioulo.
2
Antônio de Oliveira Salazar assumiu em Portugal a Pasta das Finanças e das Colônias em 1928, dois anos após o golpe militar que
derrubou a República, e deixou o cargo de Presidente do Conselho de Ministros somente em 1968, sendo substituído nessa função por
Marcello Caetano que ficou no posto até a Revolução dos Cravos, ocorrida no dia 25 de abril de 1975.

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Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau

A seguir, no mapa da África, podemos visualizar esses territórios e perce-


ber como foram estratégicos às naus portuguesas avançando pelo Oceano
Atlântico em direção ao sul.

MAPA POLÍTICO DA ÁFRICA

IESDE Brasil S.A. Adaptado.


Escala gráfica aproximada

0 420Km

Fonte: Temática Cartografia.

Nos séculos seguintes, a Coroa Portuguesa explorou os territórios ocupados


de modo mais ou menos similar. Mas, cada um desses territórios apresentou
também as suas particularidades.

Para conhecer-nos melhor essas três ex-colônias portuguesas na África, pas-


semos a focalizar cada uma delas, começando, em primeiro lugar, a mostrar as
características históricas, culturais e literárias do arquipélago de Cabo Verde, em

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Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau

segundo lugar, as do arquipélago de São Tomé e Príncipe e, finalmente, focalizare-


mos a história, a cultura e a literatura da Guiné-Bissau, antiga Guiné Portuguesa.

Cabo Verde: história, cultura e literatura


Para começarmos a conhecer Cabo Verde, segue o mapa das dez ilhas que
compõem esse arquipélago.

MAPA DE CABO VERDE

IESDE Brasil S.A. Adaptado.

Escala gráfica aproximada

0 40 Km

Fonte: Temática Cartografia.

O arquipélago de Cabo Verde, composto por um conjunto de dez ilhas – Ilha


de Santo Antão, Ilha de São Vicente, Ilha de Santa Luzia, Ilha de São Nicolau,
Ilha do Sal, Ilha da Boa Vista, Ilha do Maio, Ilha de São Tiago, Ilha do Fogo, Ilha
Brava –, numa extensão de 4 033 quilômetros quadrados, foi descoberto pelos
portugueses por volta do ano de 14603 e, na época, todas as suas ilhas estavam

3
A data de 1460 é controversa, embora seja adotada por muitos historiadores portugueses como Antônio Sérgio, por exemplo. Para outros estu-
diosos, como Armelle Enders, os portugueses aportaram nas ilhas de Cabo Verde entre 1456 e 1462.

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Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau

desabitadas. Dispersos pelas ilhas, a estimativa é de que o arquipélago contenha


em 2009 aproximadamente 423 263 habitantes, segundo a página oficial do Go-
verno de Cabo Verde4.

Quando os europeus lá aportaram, perceberam que o clima da região favo-


recia a agricultura e, por conta da exploração agrícola, iniciaram o processo de
colonização das ilhas através do sistema de capitanias hereditárias. Porém, se
nos Açores e na Madeira a colonização foi feita por imigrantes vindos de Portu-
gal, nas ilhas de Cabo Verde o povoamento se realizou com os negros trazidos
do continente africano, especialmente da Guiné. Os africanos trazidos do con-
tinente destinavam-se especialmente às plantações de algodão. Artesãos afri-
canos também foram trazidos da África para ensinar aos demais as técnicas de
tecelagem. Logo, uma “indústria têxtil”, alimentada pela mão de obra africana,
tornou-se capaz de se perpetuar de modo autônomo.

A produção têxtil que teve lugar nas ilhas de Cabo Verde era de grande impor-
tância para a Metrópole. Segundo Birmingham (2003, p. 29), Portugal tinha quase
tanta falta de têxteis como tinha de trigo. Nas ilhas foram estabelecidas plantações
de algodão para tecer e tingir. Porém, logo um outro negócio concorria com a
produção de algodão nas ilhas: a plantação de cana-de-açúcar, que também teve
lugar no arquipélago de São Tomé e Príncipe e depois se estendeu ao Brasil.

Paralelamente a essa produção, nos séculos seguintes, as ilhas de Cabo Verde


ocuparam posição estratégica nas rotas de caravelas de Portugal ao Brasil e ao
restante da África. As ilhas serviam de entreposto comercial e de aprovisiona-
mento para as naus de passagem.

Com a entrada dos africanos nas ilhas de Cabo Verde, a mestiçagem tornou-se
comum e formou-se nas ilhas uma população de cabo-verdianos descendente
de portugueses e africanos. Essa miscigenação também resultou na criação de
uma língua crioula que se enraizou em Cabo Verde. Hoje, a língua oficial desse
país é o português, no entanto, o crioulo cabo-verdiano é usualmente falado
pela população, paralelamente ao português.

Durante os séculos de exploração colonial, a situação nas ilhas não se modifi-


cou. No entanto, nos fins do século XIX, já é possível assistir nas ilhas a uma tímida
manifestação cultural. A publicação do romance O Escravo, do português José Eva-
risto de Almeida, habitante durante muitos anos do arquipélago, é vista por alguns
como o marco inicial da literatura de ficção de Cabo Verde. Alguns escritores que
se destacaram nesse período foram Pedro Cardoso e Eugénio Tavares.

Porém, é com a revista Claridade, lançada em 1936 por intelectuais cabo-ver-


dianos em sua maioria mestiços, que se pode falar de uma literatura de ruptura.
4
A página oficial do Governo de Cabo Verde encontra-se disponível no endereço: <www.governo.cv>.
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Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau

Com o lançamento dessa revista nas ilhas de Cabo Verde inicia-se o primeiro
movimento cultural-literário nativista da África lusófona. Entre os nomes impor-
tantes desse movimento destacam-se Baltasar Lopes da Silva, Jorge Barbosa,
Manuel Lopes, entre outros.

O movimento da revista Claridade reivindicava o respeito aos valores cabo-


verdianos, a valorização da língua crioula e uma sociedade cabo-verdiana bioló-
gica e naturalmente híbrida em sua formação. No campo literário, os poetas rei-
vindicavam uma literatura nascida do próprio húmus, com uma poesia telúrica e
social de raiz e de renovação estética.

O nativismo do movimento que lançou a revista Claridade também se mani-


festou nos modelos aos quais os poetas vão seguir. Abandonando a referência
literária e cultural do colonizador português, os “claridosos” vão buscar na lite-
ratura brasileira com Manuel Bandeira, Jorge Amado, José Lins do Rego, entre
outros, as identidades possíveis, especialmente no que diz respeito à cultura
mestiça que Cabo Verde e Brasil apresentam e que é resultante de um percurso
histórico marcado pelo processo de colonização.

Manuel Lopes, um dos fundadores da revista Claridade, já afirmara que era ne-
cessário fincar os pés na terra para escrever e pensar naquilo que os pés pisavam.
Essa consciência para com a terra não dispensará um cuidado com a renovação
estética. A geração da Claridade tinha o propósito de “fincar os pés na terra” para
representar a imagem mais próxima da realidade antropológica, social e cultural
crioula. Essa imagem se configuraria a partir de uma ruptura literária com rela-
ção a tudo que anteriormente havia sido feito.

Alguns críticos consideram a existência de três fases na literatura cabo-verdia-


na. A primeira seria constituída dos nativistas (geração pré-claridosa), a segunda
seria formada pela geração em torno da revista Claridade (geração claridosa) e,
finalmente, a terceira, chamada de pós-claridosa, constituída pelos escritores e
poetas que iniciaram sua atuação por volta de 1960 e que até a presente data
continuam a produzir.

Em fins da década de 1950 até meados de 1960, a poesia cabo-verdiana in-


tensificou a associação entre a cabo-verdianidade e a negritude. Nesse tempo,
as ideias do Movimento da Negritude, criado na década de 1930 por Aimé Césai-
re (Martinica/Antilhas), Léopold Sédar Senghor (Senegal) e Léon Damas (Guiana
Francesa), que preconizava a valorização do negro e da negritude, já haviam se
disseminado também pela África de língua portuguesa.

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Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau

Nos anos seguintes, a literatura cabo-verdiana sublinhou a sua insularidade,


caracterizada pelas imagens do mar e de um modo de ser próprio dos povos
das ilhas. Além disso, enveredou, no campo da ficção, por caminhos próprios,
inspirada pelo realismo mágico. Dina Salústio é um dos nomes dessa nova feição
da literatura cabo-verdiana e sua obra nos permite conhecer um pouco mais do
modus vivendi dos homens e mulheres do arquipélago.

São Tomé e Príncipe:


história, cultura e literatura
Para melhor conhecer o arquipélago de São Tomé e Príncipe, segue abaixo
um mapa de suas duas ilhas principais e das ilhotas que lhes são próximas.

MAPA DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE

IESDE Brasil S.A. Adaptado.

Escala gráfica aproximada

0 40 Km

Fonte: Temática Cartografia.

O arquipélago de São Tomé e Príncipe, localizado no Golfo da Guiné, é forma-


do por duas ilhas principais: Ilha de São Tomé e Ilha de Príncipe (ilhas vulcânicas)
e por alguns ilhéus, alguns dos quais desabitados. O arquipélago contava, em
2005, segundo a página oficial do Governo de São Tomé e Príncipe5, com uma
5
A página oficial do Governo de São Tomé e Príncipe encontra-se disponível no endereço: <www.gov.st>.

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Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau

população de aproximadamente 169 000 habitantes distribuídos em uma área


de mais ou menos 1 001 quilômetros quadrados. Essas ilhas eram desabitadas
quando os portugueses lá aportaram em fins de 1470 ou início de 1471.

A condição favorável do solo e a chuva abundante propiciaram a introdu-


ção da plantação de cana-de-açúcar no arquipélago e, para empreender essa
plantação, em 1493 teve início o povoamento do arquipélago com portugueses
oriundos da Ilha da Madeira e degradados vindos da Metrópole. Na “indústria”
açucareira, a mão de obra foi trazida dos reinos vizinhos da Guiné, do Benin, do
Gabão e do Congo. Nesse arquipélago, a plantação da cana-de-açúcar prospe-
rou e o negócio com o açúcar foi estendido para outras colônias portuguesas,
especialmente para o Nordeste do Brasil.

Em razão da necessidade de mão de obra escrava, muitos negros do con-


tinente foram levados às ilhas desse arquipélago. Segundo Enders (1997), por
volta de 1560, São Tomé tinha cerca de 4 000 habitantes, sendo que a metade
deles era composta de escravos. Por conta da escassez de mulheres brancas nas
ilhas, africanas escravizadas foram levadas para São Tomé e Príncipe para ge-
rarem filhos dos portugueses que lá viviam, a fim de povoarem o território. Os
filhos gerados dessa união receberam carta de alforria e mais tarde se tornaram
os forros (corruptela de alforros), um dos grupos étnicos mais representativos na
região.

No entanto, a produção de cana-de-açúcar no Brasil, mais produtiva que a do


arquipélago africano, e as constantes revoltas dos negros nas ilhas propiciaram
um decréscimo na produção açucareira. Essa decadência da economia das ilhas
acabou por transformá-las em entrepostos do “comércio” de escravos.

Somente no século XIX, com as pressões externas pela extinção do tráfico


negreiro, Portugal investiu em outro tipo de produção nas ilhas, incentivando
nelas o cultivo do café e do cacau.

No início do século XX, a situação político-econômica do arquipélago de São


Tomé e Príncipe não diferiu muito da que se encontrava em Cabo Verde ou na
Guiné Portuguesa. À exceção de Cabo Verde, em cuja ilha de São Nicolau há
um Liceu desde o ano de 1866, as demais colônias não têm como propiciar aos
jovens uma escolarização. No entanto, o discurso colonial valorizava a política de
assimilação, cobrando da população das colônias comportamentos europeus e
o uso da língua portuguesa em detrimento do crioulo. O índice de analfabetis-
mo era grande nas três regiões e a pobreza grassava nas colônias, pois a explora-
ção das matérias-primas não as beneficiava.

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Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau

O arquipélago de São Tomé e Príncipe não ficou imune aos movimentos de


valorização da cultura negra, especialmente em meados do século XX, quando
os jovens da Casa dos Estudantes do Império6 divulgaram as ideias do Movimen-
to da Negritude.

Assim como nas outras colônias de Portugal, a difusão das ideias do Movi-
mento da Negritude, a insatisfação dos santomenses com as péssimas condi-
ções de vida no arquipélago e a repressão política da ditadura salazarista, exten-
siva às colônias, desencadearam a formação do Movimento pela Libertação de
São Tomé e Príncipe (MLSTP) que, por vias diplomáticas, conseguiu negociar a
independência do arquipélago em fins de 1974.

Mesmo em terreno adverso, uma prática jornalística e uma literatura nativista


começam a ganhar força na primeira metade do século XX. O mais importante
nome na literatura desse momento é o de Francisco José Tenreiro (1921–1963).

Natural de São Tomé, o poeta Francisco José Tenreiro, filho de um administra-


dor português com uma africana, ganha visibilidade em Lisboa como professor
universitário e organiza em 1953 com Mário Pinto de Andrade, poeta e militante
angolano, a primeira antologia de poesia africana. O Caderno da Poesia Negra de
Expressão Portuguesa7, publicado na Metrópole e nas colônias, reuniu uma série
de poemas em que se observava a valorização da terra africana e do negro.

Após a morte de Tenreiro, Alda do Espírito Santo, Maria Manuela Margarido e


Tomaz Medeiros, todos ex-estudantes da CEI de Lisboa, são alguns dos escritores
que revitalizam a literatura santomense.

A poesia de Alda do Espírito Santo tem um lugar especial entre as demais.


Em sua poesia se inscreve a afirmação identitária santomense, pois em sua obra
é notável sua forte ligação com a história de seu país, deixando um legado ine-
gável aos poetas santomenses mais jovens. Entre esses mais novos, destaca-se
Conceição Lima que também desenha em suas obras as questões abordadas por
Alda do Espírito Santo, mas vivendo uma outra época, a poesia de Conceição
Lima adquire um viés de crítica ao contexto em que a poesia emerge.

6
A Casa do Estudante do Império (CEI) de Lisboa reunia por volta dos anos 1950 um grupo de jovens estudantes oriundos de todos os territórios
colonizados pelos portugueses, em sua maioria da África. Na Casa, os estudantes se organizaram politicamente contra a política portuguesa na
África e também escreveram poemas e outros textos literários que estabeleceram as bases de uma nova literatura que buscava explicitar a situação
do negro nas colônias, utilizando formas poéticas que valorizassem a africanidade também na língua.
7
Note-se que o título da coletânea organizada por Tenreiro e Andrade remete à conhecida obra de Aimé Césaire Cahier d’un Retour au Pays Natal
(Caderno de um Regresso ao País Natal) no qual Césaire usou pela primeira vez o termo negritude.

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Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau

Guiné-Bissau: história, cultura e literatura


Para localizarmos a Guiné-Bissau na África de língua portuguesa, vejamos o
seu mapa a seguir.

MAPA DA GUINÉ-BISSAU

IESDE Brasil S.A. Adaptado.


Escala gráfica aproximada

0 38 Km

Fonte: Temática Cartografia.

O território da Guiné-Bissau, no ocidente da África, com suas fronteiras atuais


tem hoje aproximadamente 36 125 quilômetros quadrados e em 2005, segundo
a página oficial do Governo da Guiné-Bissau8, possuía cerca de 1 442 029 ha-
bitantes. Porém, antes da chegada dos portugueses, a Guiné-Bissau era parte
de uma extensa região conhecida como Terra da Guiné, pertencente ao Reino
de Mali. Em 1446, os portugueses aportaram na região e a nomearam Guiné
Portuguesa. Embora o litoral da região tenha sido explorado desde essa época,
somente em 1630 estabeleceu-se no território a Capitania Geral da Guiné Portu-
guesa, que visava à administração da região, embora a Guiné Portuguesa conti-
nuasse administrativamente ligada às ilhas de Cabo Verde.
8
A página oficial do Governo da Guiné-Bissau encontra-se disponível no endereço: <www.guineabissau-government.com>.

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Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau

Em 1697, devido à ameaça de ocupação da região, especialmente por parte


dos franceses e ingleses, a Coroa Portuguesa fundou nessa região uma vila,
Bissau, que cresceu e se constituiu num importante posto fornecedor de escra-
vos, especialmente para o continente americano nos séculos seguintes.

Porém, no século XIX, com a abolição da escravatura, a Guiné Portugue-


sa, sem qualquer recurso para sobrevivência material, passou por uma crise
econômica e para sair dela investiu na produção de novas culturas como a da
borracha e a da mancarra (amendoim).

As condições extremamente pobres da região fizeram com que os povos


locais se rebelassem contra o governo português que reagiu imediatamente,
enviando militares à Guiné para sufocar as revoltas populares. Para inibir os
conflitos, o governo português incentivou a exploração agrícola da região por
parte de colonos portugueses ou de seus descendentes que iniciaram a pro-
dução da mancarra.

Já no início do século XX, as forças coloniais reprimiram fortemente as re-


beliões locais e objetivavam eliminar os africanos mais combativos, impor o
pagamento de impostos à administração colonial e controlar os recursos eco-
nômicos no território.

Em meados do século XX, a Guiné Portuguesa amargou uma situação de


extrema pobreza, com um grande índice de analfabetos. Nessa mesma época,
as ideias independentistas se difundiram especialmente nos meios urbanos.
A difusão dessas ideias e a independência de outros países da África, colo-
nizados por outras nações europeias, estimularam a fundação, em 1956, do
Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), criado por
Amílcar Cabral (1924–1973). Em suas constantes viagens a Cabo Verde, Guiné e
Portugal, onde se graduou em Agronomia, Amílcar Cabral tomou contato com
os poetas, escritores e estudantes dos outros países africanos colonizados por
Portugal. Desse contato, nascerá mais adiante um processo de luta dos países
africanos lusófonos pela independência.

Devido às condições socioculturais da Guiné-Bissau, a literatura guineense


só floresceu muito tardiamente em relação às literaturas das outras colônias
portuguesas na África. O fato de a Guiné ser basicamente uma colônia de ex-
ploração e também o fato de ter ficado, por um longo período, administrati-
vamente atrelada ao governo geral da colônia de Cabo Verde foram decisivos

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Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau

para que não houvesse, mesmo na capital Bissau, as condições necessárias


para uma produção literária e artística.

A imprensa também chegou muito tarde à Guiné. Os jornais oficiais só apa-


receram na região por volta de 1880, sendo que nas outras colônias africanas
já havia uma circulação de jornais desde 1843.

Os primeiros textos produzidos em território guineense tiveram lugar na


primeira metade do século XX. Em 1930, é editado o primeiro jornal dirigi-
do por um guineense. Trata-se de O Comércio da Guiné, editado por Juvenal
Cabral, pai de Amílcar Cabral.

Entre os escritores e poetas, Fausto Duarte se destacou como romancista


e Maria Archer como poetisa. João Augusto Silva, ganhador de um prêmio li-
terário no período colonial, e Fernanda Castro são com Fausto Duarte e Maria
Archer os nomes mais importantes da literatura guineense que, nesse período,
não se afasta muito da referência portuguesa.

Vale destacar ainda nesse período a produção de Marcelino Marques de


Barros que em sua obra Cantos, Canções e Parábolas reúne um grupo de contos e
canções guineenses tradicionais e populares, valorizando a cultura da região.

Depois de 1945, surge na Guiné uma literatura de combate que denun-


ciava a dominação e a miséria a que os negros estavam submetidos em suas
terras e os incitava à libertação e à valorização da cultura negra. Entre os
escritores dessa época, destacam-se Vasco Cabral, António Baticã Ferreira e
Amílcar Cabral.

Após a independência da Guiné, a literatura guineense ganha novo vigor.


Nessa época, surge um grupo de jovens poetas, cujas obras manifestam um ca-
ráter social, focalizando a defesa da liberdade, a questão da identidade nacio-
nal, entre outras coisas. Agnelo Regalla, António Soares Lopes (Tony Tcheca),
José Carlos Schwart, Francisco Conduto de Pina e Félix Sigá são alguns dos
autores mais significativos desse período.

Na década de 1990, novos autores se somam ao grupo atuante da Guiné-


-Bissau, já independente, e uma escrita de cunho mais intimista se desenha
nesse momento. Entre os autores desse período destacam-se Helder Proença,
Tony Tcheca, Carlos Vieira e Odete Semedo. A utilização da língua crioula na
literatura ganha força e valoriza a cultura mestiça do arquipélago.
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Texto complementar
O poema a seguir, de Kaoberdiano Dambará, pseudônimo poético do
poeta e advogado cabo-verdiano Felisberto Vieira Lopes, foi escrito em
crioulo, e conclama os negros a lutarem pela justiça na África. Ao lado do
poema em crioulo, incluímos a versão em português extraída do livro Na
Noite Grávida de Punhais. Antologia temática da poesia africana, organizado
pelo poeta e escritor angolano Mário Pinto de Andrade.

Ora dja tchiga Chegou a hora


Kaoberdiano Dambará Kaoberdiano Dambará
Labanta bo anda fidjo d’Afrika Ergue-te e caminha filho de África
Labanta negro, obi gritu’ l Pobo: Ergue-te negro escuta o clamor do povo:
Afrika, Djustissa, Liberdadi África, Justiça, Liberdade.

Obi gritu’l Povo na Sistensia, na Escuta o gritar do povo clamando na


[funko, [Assistência Pública, no funco1,
na simiteri, na lugar sem tchuba, nos cemitérios, nos campos sem chuva,
na bariga torsedo di fomi nos ventres torcidos de fome.

Dexa bo funko, dexa bo mai, bo Abandona funco, mãe, irmão tudo


[armun, toma consciência, sobe para as
dexa tudo, pega na kunsiensia bo [montanhas,
[subi monti: finca os pés na terra, pega em armas.
finka pé na tchom bo pega
[n’arma. Brande o ferro no cimo dos montes,
com fome ou abundância, guerra ou
Brandi fero riba’ l monti, [paz,
ko fomi o ko fartura, ko guerra o luta p’la liberdade da tua terra!
[ko paz,
luta pa liberdadi’l bo tera!

1
Funco é uma espécie de habitação de formato cônico, construída com a utilização de folha de sisal, bananeira ou colmo.

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Dicas de estudo
 Literaturas Africanas de Expressão Português, de Pires Laranjeira, Editora
Universidade Aberta.

Esse livro é uma obra primordial para o estudo das literaturas africanas
dos países lusófonos, pois o autor analisa as literaturas de Cabo Verde, São
Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, desde a expressão
de uma literatura nativista até a contemporaneidade. Na obra, há ainda
os estudos de duas especialistas em literaturas africanas lusófonas: Elsa
Rodrigues dos Santos e Inocência Mata.

 Na Noite Grávida de Punhais. Antologia temática da poesia africana, organi-


zado por Mário Pinto de Andrade, Editora Sá da Costa.

Essa antologia reúne a lírica de alguns dos mais representativos poetas


dos países africanos lusófonos e apresenta ainda uma pequena biografia
sobre cada um deles.

Estudos literários
1. De que maneira podemos afirmar que o lançamento da revista Claridade,
em 1936, em Cabo Verde, inaugura uma nova fase na literatura africana
de língua portuguesa e na literatura cabo-verdiana?

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Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos e na Guiné-Bissau

2. Na primeira metade do século XX, a literatura santomense ganha visibi-


lidade pela ação do seu maior representante nesse período – Francisco
José Tenreiro. Qual foi o importante gesto de Tenreiro em prol da litera-
tura em sua época?

3. Caracterize a produção literária guineense posterior à independência do


país.

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Cultura e literatura em Angola

Claudia Amorim
O objetivo deste capítulo é apresentar as características históricas, culturais
e literárias de Angola, país cujos limites foram estabelecidos após a chegada
à região do navegador português Diogo Cão por volta de 1483. Com a vinda
do colonizador branco, o território foi demarcado e as diversas etnias que
viviam na região estiveram sob o jugo português até a independência do país
em 1975. Mesmo após a independência, o país adotou oficialmente a língua
portuguesa1, no entanto, em Angola, existem muitos dialetos e línguas locais,
entre as quais se destacam o umbundo, falado pelo grupo Ovimbundu (parte
central do país); o quicongo, falado pelos Bacongo, ao norte; e o chokwe-lunda
e o kioko-lunda, ambos correntes no nordeste do país. Há ainda o quimbundo,
falado pelos Mbundos, Mbakas, Ndongos e Mbondos, grupos aparentados,
que habitam o litoral de Luanda e arredores até o Rio Cuanza.

No século XX, a luta armada pela independência das colônias portuguesas


na África começou em 1961, em Angola, e depois se disseminou pela Guiné
Portuguesa (atual Guiné-Bissau) em 1963 e chegou a Moçambique em 1964.
Os arquipélagos de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, que juntamente com
os três primeiros territórios aqui citados constituem a chamada África Portu-
guesa, engrossaram a luta armada iniciada no continente, enviando guerri-
lheiros para as regiões em conflito. Em Angola, a guerra foi mais longa e durou
exatamente 13 anos.

De todas as colônias portuguesas na África, Angola foi a que mais recebeu


atenção de Portugal. Essa atenção foi bastante perniciosa, pois do seu territó-
rio muitas riquezas foram extraídas, os povos locais foram submetidos à escra-
vidão e à diáspora até o século XIX, quando Portugal, por pressões externas,
foi obrigado a extinguir o tráfico negreiro e a escravidão. Em contrapartida,
a colônia portuguesa mais extensa na África foi a que recebeu um número
maior de colonos e sua capital, Luanda, acabou por apresentar no século XIX
um estatuto que as outras cidades das colônias portuguesas não possuíam.
1
Kwame Appiah (1997, p. 20) observa que, mesmo “[...] depois de uma brutal história colonial e de quase duas décadas de contínua
resistência armada, a descolonização da África Portuguesa, em meados dos anos 1970, deixou atrás de si uma elite que redigiu as leis
e a literatura africanas em português”. Segundo o estudioso, tal fato se deu pela necessidade de os escritores usarem a língua europeia
em seus ofícios sob pena de, em isso não acontecendo, serem vistos como particularistas. Além disso, o uso da língua portuguesa unia
as diferentes etnias na difícil tarefa da construção nacional, o que se configuraria quase impossível, caso os inúmeros grupos étnicos
usassem, Este material
ao invés é parte
de uma língua comum,integrante doorigem.
as suas línguas de acervo do IESDE BRASIL S.A.,
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Cultura e literatura em Angola

No século XX, após a conquista da independência, Angola convocou eleições


gerais e com a vitória do candidato do MPLA (Movimento Popular de Libertação
de Angola), o país enfrentou, por cerca de duas décadas, uma guerra interna
entre os diversos grupos que rivalizavam pelo comando do país.

Para melhor conhecer essa ex-colônia portuguesa, será necessário primeira-


mente visualizar sua localização e extensão no continente africano.

MAPA POLÍTICO DA ÁFRICA

IESDE Brasil S.A. Adaptado.

Escala gráfica aproximada

0 420 Km

Fonte: Temática Cartografia.

Angola: história, cultura e literatura


O território de Angola, no sudoeste da África, possui aproximadamente 1 246 700
quilômetros quadrados e contava, em 2004, segundo a página oficial do Governo

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Cultura e literatura em Angola

de Angola, com cerca de 14 767 655 habitantes2. Foi a mais extensa das colônias
portuguesas na África e fazia parte de uma antiga região conhecida no século
XV como Reino do Congo, quando os portugueses lá chegaram. O nome Angola
é oriundo da palavra banto ngola, nome com que se designava o governante de
uma região que se localiza hoje a leste da capital Luanda.

A história da colonização de Angola começa em 1483, quando Diogo Cão, um


navegador a serviço da Coroa Portuguesa, chegou à foz do Rio Zaire (o segundo
maior rio da África), situado no Reino do Congo, e fixou no local um padrão de
pedra com o brasão português. O Reino do Congo era uma extensa região que
compreendia os atuais territórios da República do Congo, Cabinda, República
Democrática do Congo, o centro-sul do Gabão e o noroeste de Angola.

No Reino do Congo havia um chefe local, denominado Mani Congo, que gover-
nava os diversos grupos étnicos bantos da região, especialmente os Bacongo. Após
o contato com os portugueses, o monarca, Mani Congo, converteu-se ao catolicismo
e a capital do reino, Mbanza Congo, recebeu o nome de São Salvador do Congo.

O Reino do Congo era uma região com grandes mercados regionais, nos quais
se comercializavam produtos como sal, metais, tecidos e derivados de animais por
meio de escambo ou através de uma moeda local – uma concha (nzimbu), coleta-
da na região de Luanda.

Com a chegada dos portugueses, o comércio regional se intensificou. E a


Coroa Portuguesa visava nesse comércio o controle das minas e o negócio com
escravos que, aliás, foi um dos mais rentáveis para Portugal. A colônia de Angola
forneceu um grande número de escravos para a América durante o século XVIII.

A região apresentou também inúmeras revoltas contra a invasão portuguesa,


todas reprimidas pelo poderio bélico europeu. A primeira rebelião de que se
tem notícia ocorreu em 1491 e foi liderada por Panzo-a-Nginga, que se recusou a
receber o batismo e não aceitou as novas leis impostas pelos missionários e con-
quistadores portugueses. A mais conhecida resistência ao domínio português,
porém, foi a da rainha Jinga, que, no século XVII, resistiu ao domínio europeu,
comandando os povos da região contra os invasores, com o auxílio também de
holandeses.

Após a perda do Brasil no início do século XIX, Angola se tornou a colônia


portuguesa mais importante para o reino português do ponto de vista econômi-
co. A atenção dispensada pela Metrópole à maior colônia portuguesa na África

2
A página oficial do Governo de Angola encontra-se disponível no endereço: <www.info-angola.com>.

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Cultura e literatura em Angola

resultou, apesar da intensa exploração das riquezas, em importantes mu-


danças sociais no território, verificáveis, sobretudo, na capital Luanda. Nessa
época, a sociedade angolana já apresenta uma elite local, constituída por
funcionários públicos, juristas, jornalistas e alguns pequenos comerciantes,
quase todos mestiços.
A população europeia que no último quartel do século XIX habitou a cidade era essencialmente
constituída, diz-nos o historiador Júlio de Castro Lopo, por africanistas de permanência
incerta no território, aventureiros, colonos forçadamente amarrados por necessidades
econômicas e contrariedades diversas à vida colonial, missionários e clérigos, militares e
degredados. Numericamente inferior – um censo de 1889 dá-nos conta de 5 000 europeus
para 23 000 africanos –, [...], o português, dado o reduzido número de mulheres de sua raça [...]
aproximou-se intimamente do agregado africano, com o qual se cruzou e constituiu família,
determinando uma sociedade em que o mestiço, no declinar do século, gozou duma certa
relevância. (ERVEDOSA, 1979, p. 23-24)

Com a crescente expansão da indústria europeia durante o século XIX, Portugal,


por pressões externas, especialmente de países como a Inglaterra, se viu obrigado
a extinguir o tráfico negreiro em todas as colônias ultramarinas. Ainda sob pressão
estrangeira, o país estabeleceu uma data limite, 1878, para extinguir a escravatura.
No entanto, mesmo com essas medidas, uma forma de escravatura persistia nas
colônias africanas de língua portuguesa sob a forma de trabalho forçado.

Durante o século XIX, as colônias de Angola e São Tomé e Príncipe sustenta-


ram a economia da Metrópole, fornecendo importantes produtos tropicais como
o café e o cacau, que se transformaram em dividendos para a Coroa Portuguesa,
uma vez que ela exportava esses produtos para outros países europeus.

A importância de Angola para Portugal resultou necessariamente em algumas


modificações na vida da colônia, especialmente na capital Luanda. Assim, na se-
gunda metade do século XIX, Angola já possuía um pequeno grupo de africanos
que frequentava as poucas escolas criadas na região. Com essa medida, Portugal
pretendia investir em uma “ação civilizadora”, tornando o africano um assimilado3.

A existência desse grupo de africanos escolarizados e descendentes, em


geral, de portugueses, possibilitou o incremento de atividades jornalísticas na
capital de Angola. Na segunda metade do século XIX, alguns jornais circulavam
pela região, como O Echo de Angola e o Jornal de Loanda, fundado por Alfredo
Troni, que já marca a transição de um jornalismo colonial para um jornalismo
que evidenciava as questões africanas.

No campo literário, Joaquim Dias Cordeiro da Matta, colaborador dos jornais


da época, aponta a necessidade de se perceber a diferença cultural em relação
3
Assimilado era o termo usado para designar primeiramente os descendentes das grandes famílias crioulas do século XIX que estudavam em
escolas católicas – responsáveis pela educação formal – e eram apadrinhados por brancos da elite colonial.

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Cultura e literatura em Angola

ao colonizador e valorizar a cultura africana. Assim, Cordeiro da Matta escreve


seus poemas incluindo palavras em quimbundo. Além disso, o escritor preparou
uma gramática da língua quimbundo e um dicionário quimbundo-português.

No que diz respeito à prosa, de modo similar ao que acontece com a poesia,
no século XIX, alguns escritores angolanos, sensíveis ao “sentimento nacional”,
buscam uma escrita que procura se descolar da ficção portuguesa. Um dos gran-
des romancistas desse período foi Alfredo Troni que procurou introduzir em suas
obras palavras de origem angolana.

Essas primeiras manifestações jornalísticas e literárias em Angola, reivindi-


cando as questões da terra, foram significativas, porém, no quadro geral, a colô-
nia vivia uma precária situação de analfabetismo, por exemplo, que se prolon-
gou até a primeira metade do século XX. Essa situação se repetia drasticamente
nas outras colônias que Portugal possuía na África. Como destaca Enders (1997,
p. 89): “Em 1950, a população africana da Guiné tem 99% de analfabetos, a de
Angola 97%, a de Moçambique 98%. É verdade que, na mesma época, a taxa de
analfabetismo na Metrópole eleva-se a 44%”.

Malgrado as dificuldades, na primeira metade do século XX, Assis Júnior e


Castro Soromenho, esse último moçambicano de nascimento e angolano de vi-
vência, assinalaram o arranque da ficção angolana. E com Castro Soromenho,
observa-se uma profunda mudança no romance angolano.

Sofrendo significativas mudanças durante a primeira metade do século XX, a


sociedade angolana, por volta dos anos 1950, apresentava uma geração de estu-
dantes angolanos, geralmente mestiços, que deixava o país para formalizar seus
estudos nas universidades portuguesas. Nessa época, o contato dos estudantes
angolanos com estudantes portugueses, brasileiros e com estudantes de outros
países africanos de língua portuguesa foi decisivo para o despertar da consciên-
cia política e cultural dos jovens angolanos.

A partir de 1950, novos caminhos político-literários se desenham em Angola.


Como afirma Laura Cavalcante Padilha (2007, p. 17–18):
A segunda metade do século XX vê acirrar-se em Angola um movimento de problematização
e resistência cultural pelo qual se procura reafirmar a diferença da angolanidade por tanto
tempo marginalizada pelos aparatos ideológicos do colonizador e, naquele momento histórico,
pensada como um absoluto. Nesse movimento mais amplo, cabe às produções literárias
o papel fundamental de difundir e sedimentar essa busca de alteridade na cena simbólica
angolana. Articula-se, então, uma fala literária que tenta superar a fragmentação do dilacerado
corpo nacional, restabelecendo-se, assim, não uma unidade perdida, já que esta nunca existiu,
mas uma espécie de unificação em torno de ideais comuns que movessem a engrenagem da
história em outro sentido.

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Cultura e literatura em Angola

Animados também pelas ideias do Movimento da Negritude – que na década


de 1960 se engajava “[...] na missão pela libertação das colônias africanas” (BERND,
1988, p. 30) – e pelos poemas dos grandes nomes do Movimento, como Aimé
Césaire (Martinica), Léopold Sédar Senghor (Senegal) e Léon Damas (Guiana
Francesa), alguns jovens angolanos se organizaram e criaram o Movimento dos
Novos Intelectuais de Angola, e em 1951 foi publicada a revista Mensagem – A
Voz dos Naturais de Angola, que pretendia ser o veículo de uma mensagem lite-
rária e ideológica.

Nessa mesma época em Angola, publicava-se a Antologia dos Novos Poetas de


Angola, coletânea poética na qual colaboraram Viriato da Cruz, António Jacinto,
Lília da Fonseca entre outros. Essa antologia constituiu um “[...] impulso do Mo-
vimento dos Novos Intelectuais de Angola, criado em 1948, que tinha por lema:
‘Vamos descobrir Angola!’” (FERREIRA, 1977, p. 18).

Paralelamente às movimentações literárias de valorização de uma escrita


angolana, inicia-se em Angola um movimento político pela independência, ins-
pirado na iniciativa dos intelectuais cabo-verdianos e guineenses que, com o
poeta Amílcar Cabral, haviam fundado o Partido Africano pela Independência da
Guiné e de Cabo Verde (PAIGC). Nos moldes do PAIGC, é criado por intelectuais
e poetas angolanos o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que
será decisivo, mais tarde, para a deflagração da luta armada na colônia.

A criação desses partidos na África lusófona é inspirada por sua vez nas lutas
pela independência engendradas por países da África, colonizados outrora por
outros países europeus como a França e a Inglaterra.

Desde a sua criação, o MPLA recebe pronta adesão do poeta Agostinho Neto,
na época preso em Lisboa, por conta de sua luta contra a ditadura salazarista.
Preso de 1955 a 1957 pela Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) em
Portugal, onde estudava Medicina, Agostinho Neto é escolhido, no ano em que
sai da prisão, o Prisioneiro Político do Ano pela Anistia Internacional. Sua liber-
dade, ainda no período ditatorial, é consequência, entre outras ações, da cam-
panha internacional que se articulou, sob a liderança de Jean-Paul Sartre, para a
anistia dos presos políticos. Após a independência do país, em 11 de novembro
de 1975, Agostinho Neto foi eleito o primeiro presidente do país.

A década de 1960 foi para Angola um tempo de muitos problemas na área


da criação literária e da cultura em geral. A repressão se torna mais forte.
Além do fechamento da Casa do Estudante do Império, o governo salaza-
rista proíbe a circulação da revista angolana Mensagem e são amordaçadas
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Cultura e literatura em Angola

as Edições Imbondeiro4, que seriam responsáveis, entre outras publicações,


pela edição da Antologia Poética Angolana (1963). Além disso, escritores e
intelectuais angolanos são perseguidos, presos e exilados.

Enquanto a ditadura salazarista em Portugal cerceava a liberdade e perseguia


os intelectuais de esquerda no seu país, nas colônias a repressão contínua e a
atuação da PIDE tornavam insustentável a articulação política e literária dos inte-
lectuais. No início dos anos 1960, a situação colonial se agrava em todas as colô-
nias, abrindo caminho para a luta armada, o que se efetiva no início de 1961 em
Angola, quando colonos algodoeiros queimam plantações de algodão no norte
do país em protesto contra a política econômica portuguesa para as colônias.

Em represália a essa atitude, o governo de Salazar age rapidamente, envian-


do soldados para Angola a fim de reprimir energicamente a revolta. Após a ação
do governo português, membros do MPLA invadem a prisão de Luanda para
libertar prisioneiros políticos detidos pela PIDE. Estoura a Guerra Colonial que se
estende depois às colônias da Guiné-Bissau (1963) e Moçambique (1964).

A guerra pela independência durou 13 anos em Angola e, como nas outras


colônias, resultou em muitas mortes e mutilações tanto do lado português
quanto do lado africano, sendo que as perdas do lado africano foram significati-
vamente maiores.

A guerra nas colônias, a crise financeira portuguesa e a ausência de apoio


internacional aceleram a queda do regime fascista português que se dá no dia
25 de abril de 1974, com o levante dos jovens oficiais (tenentes e capitães do
Movimento das Forças Armadas).

Com a queda da ditadura em Portugal, abriu-se o caminho para a indepen-


dência dos países africanos colonizados por Portugal, o que ocorre logo a seguir.
Porém, em 1975, conquistada a independência, Angola vive um curto período
de paz para, logo em seguida, mergulhar em outra guerra. Os conflitos no país
passam a evidenciar a disputa pelo poder, travada pelas duas principais forças
políticas que se formaram durante a luta pela independência: o Movimento Po-
pular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência
Total de Angola (UNITA). Logo após o processo de independência, a ala de Agos-
tinho Neto do MPLA ganha as eleições, mas acaba formando com a UNITA um
governo de coalizão que fracassa em seguida. Em 1976, a UNITA trava uma luta
4
A revista Mensagem, cuja aparição data de 1951, foi um importante órgão de cultura que deu visibilidade a vários escritores angolanos como
António Jacinto, Mário Pinto de Andrade, Humberto Sylvan, Viriato Cruz, entre outros, e estabeleceu as bases literárias da angolanidade. As ecléticas
Edições Imbondeiro, editadas e dirigidas por Garibaldino de Andrade e Leonel Cosme, entre os anos 1960–1965, resultaram da iniciativa cultural
de escritores e artistas africanos que viviam em Lisboa, na Casa dos Estudantes do Império, e marcaram o aparecimento de um discurso nacional
na literatura de Angola.

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Cultura e literatura em Angola

com o governo de Angola, cujos integrantes eram em sua maioria do MPLA, e


tem início a guerra civil, que durou até 2002, com a morte de Jonas Savimbi, líder
da UNITA. Nesse ano, os comandantes das Forças Armadas de Angola e os guer-
rilheiros da UNITA assinaram um Acordo de Paz que prometia o fim da guerra e o
respeito aos termos de um Acordo anterior, firmado em 1994, mas abandonado
nos anos seguintes.

Após a independência de Angola, mesmo com as lutas internas no país, a


literatura alcança repercussão internacional e surgem muitas obras relaciona-
das à experiência da luta armada. Escritores como Mendes de Carvalho, Manuel
Pacavira, Manuel Rui, entre outros, trazem para a literatura textos produzidos,
inclusive, na prisão em Tarrafal (Cabo Verde). Pepetela, que foi membro do MPLA
e tornou-se, após a vitória do seu partido, vice-ministro da educação em Angola,
consagra-se na literatura com uma obra que tematiza a guerra pela independên-
cia, mas também se reporta à história e à cultura ancestral de Angola.

Entre os grandes romancistas e poetas angolanos representativos desse pe-


ríodo, destacam-se: Agostinho Neto, Luandino Vieira, Orlando Távora (António
Jacinto), Mário Pinto de Andrade, Hélder Neto, Ernesto Lara Filho, Lília da Fon-
seca, António Cardoso, Costa Andrade, Arnaldo Santos e Artur Carlos Maurício
Pestana dos Santos (Pepetela).

O primeiro romance de Pepetela foi Muana Puó (1978), mas é com Mayombe
(1980), escrito nos anos da guerra pela independência, que chamou atenção da
crítica, exatamente no mesmo ano em que ganhava o Prêmio Nacional Angola-
no de Literatura.

Além de Mayombe (1980) e Muana Puó (1978), escrito em 1969, Pepetela es-
creveu mais um romance durante a Guerra Colonial. Trata-se de As Aventuras de
Ngunga, escrito e publicado em 1973. Esse texto, porém, tinha, a princípio, uma
destinação não literária5.

Pepetela continuou publicando especialmente romances durante as déca-


das seguintes. Entre as suas principais obras, destacam-se: Yaka (1984), Lueji, o
Nascimento de um Império (1990) A Geração da Utopia (1992), O Desejo de Kianda
(1995), Parábola do Cágado Velho (1996), A Gloriosa Família, o Tempo dos Flamen-
gos (1997), Jaime Bunda, o Agente Secreto (2001), Predadores (2005). Em 1997, foi
agraciado com o Prêmio Camões, pelo conjunto de sua obra.

5
As Aventuras de Ngunga, escrito por Pepetela em 1973, em plena guerra pela independência, foi feito inicialmente para ser uma cartilha de for-
mação do guerrilheiro, sendo editado pelos órgãos de cultura do MPLA. No entanto, ao finalizar o livro, Pepetela percebeu que o texto final havia
ultrapassado o didatismo a que se propunha.

52 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,


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Cultura e literatura em Angola

O fato é que escritores e poetas angolanos, vivendo o processo de descolo-


nização, produziram e ainda produzem escritas que retomam as tradições cultu-
rais angolanas, as estórias africanas predominantemente ágrafas, valorizando o
processo de “griotização”6 na produção narrativa. É através da literatura oral afri-
cana que ocorre a transmissão de conhecimentos de uma geração para outra e
essa transmissão oral de estórias (oratura7) foi, durante muitos anos, considerada
de menor valor. A valorização dessa literatura oral tem lugar ainda nas décadas
de 1950/1960, antes da independência, quando poetas angolanos tematizaram
em suas obras, entre outras coisas, as memórias ancestrais veiculadas pela lite-
ratura oral, pelos griots.

Outro importante escritor angolano é Luandino Vieira, cuja produção literária


se torna conhecida a partir de 1957, com a revista Cultura. Nascido em Portu-
gal, José Mateus Vieira da Graça foi levado ainda criança para Angola com os
pais colonos. Morando nos bairros populares de Luanda, o jovem José Mateus
identificou-se tanto com o lugar que, ao iniciar-se na literatura, adotou o nome
Luandino Vieira a fim de homenagear a cidade em que viveu. O escritor, que
ficou 11 anos na prisão por conta de suas atitudes anticolonialistas, escreveu
ainda no cárcere o livro de contos Luuanda (1964) em que adota uma linguagem
africanizada para refletir o bilinguismo da capital de Angola, onde a população
fala o português e o quimbundo.

Conquistada a independência, a liberdade de expressão e os novos rumos


do país encorajavam os escritores angolanos a buscar novas formas expressivas
para um conteúdo menos panfletário. A produção literária amadurecia e cultiva-
vam-se novas formas de expressão.

Além de Pepetela, que talvez seja o escritor angolano de maior visibilidade


fora de Angola, e Luandino Vieira, cuja obra também ultrapassou as fronteiras da
nação angolana, há outros nomes igualmente importantes na literatura angola-
na contemporânea como Paula Tavares, Manuel Rui, Ruy Duarte de Carvalho, Bo-
aventura Cardoso, João Maimona, Adriano Botelho de Vasconcelos, Agostinho
Mendes de Carvalho (Uanhenga Xitu – o nome quimbundo do autor), José Luís
Mendonça, João Melo, José Eduardo Agualusa, entre outros.

As décadas de 1980 e 1990 foram bastante produtivas para a ficção angola-


na que enveredou pelo caminho da reformulação da história a partir da ficção.
6
O griot era o contador tradicional de histórias africanas na África. Além da literatura oral (oratura), o griot detinha as funções de poeta, cantor e
músico e, muitas vezes, exercia nos grupos sociais funções mágicas.
7
Nessas culturas de predomínio oral, oratura compreende o emprego de provérbios, adivinhas, lendas e estórias transmitidas por meio de métodos
mnemônicos que se utilizam de repetições ritmadas, a fim de perpetuar a memória coletiva através dos tempos e de gerações.

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Cultura e literatura em Angola

Como produção literária nessa linha de revisão da história, temos, por exem-
plo, José Eduardo Agualusa com A Conjura (1989), Henrique Abranches com
Misericórdia para o Reino do Kongo (1996) e Pepetela com A Gloriosa Família, o
Tempo dos Flamengos (1997).

Assim, a literatura pós-colonial vem se renovando em termos de conteúdo,


enveredando por caminhos imaginativos e reinventado novas formas de escrita
pela via do experimentalismo. Os novos escritores utilizam a língua portuguesa,
mas continuam igualmente a expressar-se literariamente nas diversas línguas
locais, especialmente quando enfatizam a oratura em suas obras.

Texto complementar

O fragmento abaixo, intitulado Invocação, é o preâmbulo do romance Pa-


rábola do Cágado Velho, publicado, em 1996, pelo escritor angolano Artur
Carlos Maurício Pestana dos Santos, mais conhecido pela alcunha de Pepe-
tela que quer dizer pestana, em umbundo, uma das muitas línguas faladas
em Angola.

O texto Invocação é naturalmente uma das lendas populares da gênese


do mundo e dos homens.

Invocação
(PEPETELA, 1998, p. 9)

Suku-Nzambi criou aquele mundo. Aquele e outros, todos os mundos.

Suku-Nzambi, cansado, se pôs a dormir. E os homens saíram da Grande


Mãe Serpente, a que engole a própria cauda.

Feti, o primeiro, no Centro foi gerado pela serpente de água e da água


saiu. Nambalisita, no Sul, do ovo saiu, partindo a própria casca. Namutu e
Samutu, os dois gêmeos de sexo diferente, pais dos homens do país lunda,
da serpente mãe directamente saíram.

A obra de Suku-Nzambi estava completa. Mas nunca se interessou por


ela. E a obra de Suku-Nzambi parecia esquecida de viver.

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Cultura e literatura em Angola

Até hoje os homens, parados, atônitos, estão à espera de Suku-Nzambi.


Aprenderão um dia a viver? Ou aquilo que vão fazendo, gerar filhos e mais filhos,
produzir comida para os outros, se matarem por desígnios insondáveis, sempre
à espera da palavra salvadora de Suku-Nzambi, aquilo mesmo é a vida?

Dicas de estudo
 Entre a Voz e a Letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século
XX, de Laura Cavalcante Padilha, EdUFF e Pallas Editora.

O livro da pesquisadora Laura Cavalcante Padilha é parte de sua tese de


doutorado, defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no ano
de 1988. Passados vinte anos, o estudo de Laura Padilha revela-se ainda
atual pelo amplo levantamento que faz da cultura e literatura angolana.
Embora o foco de sua análise crítica esteja no século XX, a autora analisa
o processo de formação literária da então colônia portuguesa no século
XIX, época em que começam a circular os jornais e aparecem as primeiras
manifestações de uma literatura produzida em Angola.

 As Aventuras de Ngunga, de Pepetela, Editora Dom Quixote.

O livro de Pepetela é uma ficção que fala dos encontros e desencontros do


jovem Ngunga que, ao ficar órfão em meio à guerra de Angola contra Por-
tugal, circula pelo seu país que luta pela independência, aderindo depois
à luta armada. Ngunga representa o jovem em processo de formação que,
mesmo entusiasmado com a luta, não perde o poder de crítica diante do
comportamento antirrevolucionário de alguns líderes.

 Visitar o site: <www.uea-angola.org>.

Este é o site oficial da União dos Escritores Angolanos (UEA) e oferece


informações acerca da produção literária do país e da produção cultural
como um todo, entrevistas com escritores angolanos, além de diversos
ensaios de pesquisadores e estudiosos brasileiros e estrangeiros sobre a
produção literária angolana.

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Cultura e literatura em Angola

Estudos literários
1. Segundo Kwame Appiah, por quais motivos os angolanos, após a indepen-
dência do país, adotaram oficialmente, em Angola, a língua portuguesa se a
região comporta inúmeras línguas e dialetos?

2. A importância que Angola assumiu para Portugal durante o século XIX foi
prejudicial pelo aspecto econômico, porém foi benéfica em relação a algu-
mas mudanças que se operaram no país, especialmente na capital Luanda.
Explique o porquê disso.

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Cultura e literatura em Angola

3. De que maneira surge o MPLA em Angola e qual a importância dos intelec-


tuais nesse processo?

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Cultura e literatura em Moçambique

Claudia Amorim
O propósito deste capítulo é apresentar as características históricas,
culturais e literárias de Moçambique, país em cujo território os portugue-
ses aportaram em 1498, e que conquistou a independência somente em
1975. Após o processo de independência, Moçambique adotou oficial-
mente a língua portuguesa, embora atualmente ela seja falada por apenas
10% da população do país.

A história de Moçambique encontra-se registrada em documentos


desde o século X, quando um viajante árabe relatou haver no território
uma importante atividade comercial entre algumas nações da região do
Golfo Pérsico e os negros das terras de Sofala. As terras de Sofala incluíam
grande parte da Costa Norte e centro do atual Moçambique.

No final do século XV, com o avanço das naus portuguesas pela Costa
Oriental da África, a região foi objeto de atenção da Coroa de Portugal, por
conta especialmente do comércio do ouro já existente no território. Os
portugueses edificaram na região duas fortalezas: uma em 1505 em Sofala
e a segunda, em 1507, na Ilha de Moçambique. Quando os portugueses
aportaram em Moçambique, os árabes já estavam há muito no território
e haviam fundado entrepostos comerciais na região. Além da de Sofala,
referida desde o século X, havia os entrepostos Quelimane, Angoche e a
da Ilha de Moçambique.

Durante os cinco séculos que permaneceram no local, os portugueses


encontraram muita resistência por parte dos povos da região e essa ocu-
pação não foi de modo algum pacífica. No entanto, o comércio do ouro e
do marfim e mais tarde o comércio de escravos faziam valer para a Coroa
Portuguesa a empreitada.

No século XX, porém, Moçambique travou contra Portugal, seguindo o


exemplo de Angola e da Guiné Portuguesa (atual Guiné-Bissau), uma luta
pela independência. Após a conquista da independência, Moçambique
mergulhou em uma guerra interna que durou cerca de 16 anos e arrasou

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Cultura e literatura em Moçambique

o já combalido país, destruindo sua precária infraestrutura, sem contar o número de


mortos resultante de uma disputa pelo poder impetrada pelas frentes que lutaram
pela independência da nação.
Em 1992, com a assinatura do Acordo Geral de Paz entre o Governo da Frente
de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e a Resistência Nacional de Moçambique
(RENAMO) – os dois principais movimentos políticos do país –, a guerra chegou ao
fim, mas o saldo desse conflito bélico foi extremamente nocivo para a jovem nação.
Para melhor conhecermos Moçambique, uma das cinco ex-colônias portugue-
sas na África, será necessário primeiramente visualizar sua localização e extensão no
continente africano.

MAPA POLÍTICO DA ÁFRICA

IESDE Brasil S.A. Adaptado.

Escala gráfica aproximada

0 420 Km

Fonte: Temática Cartografia.

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Cultura e literatura em Moçambique

Moçambique: história, cultura e literatura


O território de Moçambique, na Costa Oriental da África, possui uma área
de 799 380 quilômetros quadrados e uma população de aproximadamente
20 366 795, distribuída entre as províncias de Cabo Delgado, Niassa, Nampu-
la (norte do país), Tete, Zambézia, Manica, Sofala (centro) e Inhambane, Gaza,
Maputo (sul do país).

Após a independência, em 1975, o país adotou oficialmente o português


como idioma, embora existam muitas línguas nacionais como o cicopi, cinyan-
ja, cinyungwe, cisenga, cishona, ciyao, echuwabo, ekoti, elomwe, gitonga, ma-
conde (ou shimakonde), kimwani, macua (ou emakhuwa), memane,  suaíli (ou
kiswahili), suazi (ou swazi), xichanga, xironga, xitswa e zulu. A realidade cultural
de Moçambique é um exemplo de variedade etno-linguística. Salinas Portugal
(1999), citando um estudo recente, fala da existência de nove grupos bantos na
região que representam 99% da população moçambicana e que, sem dúvida,
têm alguma das línguas desse grupo como língua materna (primeira língua).

Antes da chegada dos portugueses à região de Moçambique, havia um im-


portante reino no local que administrava a extração de ouro e cobre das minas
da região. Era o Reino do Monomopata. Esse reino ocupava a região do Zimbáue,
estendendo-se até a costa de Sofala e Moçambique. Na Ilha de Moçambique1
havia um xeque árabe, cujo nome era Mussa Ben Mbiki ou Mussa A’l Bik, que deu
origem ao nome da Ilha (Moçambique) em que aportaram os portugueses e,
depois, à região na Costa Oriental da África colonizada pelos lusos.

O Reino do Monomotapa é considerado, para arqueólogos e historiadores, um


dos mais interessantes exemplos da cultura africana, e tornou-se conhecido para
os europeus através das viagens portuguesas pela Costa Oriental da África.

No início do século XVI, a Coroa Portuguesa viu a importância da ocupação


do litoral de Moçambique como ponto estratégico de apoio para as viagens
à Índia. Com o estabelecimento do comércio com a Índia, a Ilha de Moçambi-
que tornou-se um dos lugares de ancoragem para as naus que se perdiam ou
ficavam danificadas pela longa viagem impetrada pelos navegantes. Na Ilha
de Moçambique, muitas vezes as naus aportavam para aguardar a monção

1
A Ilha de Moçambique é uma cidade insular, que se liga ao continente atualmente por uma ponte de cerca de 3 quilômetros de comprimento. A
ilha situa-se junto à Província de Nampula, localizada no norte do país, e foi a primeira capital de Moçambique. Em 1996, a UNESCO (Organização
das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) elegeu-a Patrimônio Mundial da Humanidade, pela rica história e pelo seu interessante patri-
mônio arquitetônico.

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Cultura e literatura em Moçambique

(tempo favorável) para seguir viagem. Por conta dessas necessidades, a Coroa
Portuguesa construiu na Ilha de Moçambique uma fortaleza e um hospital.

A Ilha de Moçambique foi a primeira cidade importante da região, antes da


instituição de Lourenço Marques como capital durante o período colonial, e
para ela confluíram diferentes povos, anteriormente à dominação portuguesa.
É possível verificar, não só na arquitetura, nas manifestações artísticas locais, a
influência dos vários povos que habitaram a ilha, como também na constituição
física de seus habitantes. Pela ilha passaram e estabeleceram-se árabes, persas,
indianos e chineses, além dos portugueses. Ainda hoje se encontram a mesquita
e o minarete árabes, um templo islâmico, além de igrejas católicas e templos
hindus. Segundo os biógrafos do poeta português Luís de Camões, também o
poeta teria vivido por dois anos na ilha, depois de ter deixado Goa (Índia) em seu
regresso a Portugal. Dizem os biógrafos e historiadores que, durante sua estadia
na ilha, Camões trabalhou em sua epopeia, Os Lusíadas (1572), refazendo alguns
versos.

Após a construção da fortaleza da Ilha de Moçambique em 1507 e da de Sofala,


ocorrida dois anos antes, os portugueses iniciaram movimentos de reconhecimen-
to do interior da região, onde estabeleceram duas feitorias: Sena (1530) e Quelima-
ne (1544). O escopo de adentrar o território já não era simplesmente o controle do
escoamento do ouro, mas o de dominar o acesso às zonas que o produziam.

A essa fase de incursão para o interior com fins comerciais, que será conheci-
da mais tarde como fase de ouro, seguiram-se duas fases de grande exploração
mercantil: a fase do marfim e a fase dos escravos. O marfim e os escravos saíam
da região através das feitorias2 e prazos3 da Coroa. Os prazos eram uma espécie
de feudo com atividade comercial dirigidos por senhores locais. Embora fossem
autônomos em relação às autoridades portuguesas, os senhores dos prazos rei-
navam sobre terras supostamente portuguesas e deviam à Coroa o pagamento
de um foro. As feitorias e os prazos constituíram a forma inicial da colonização
portuguesa em Moçambique.

No entanto, na primeira metade do século XIX, Moçambique não é mais do


que um conjunto de feitorias isoladas e a autoridade portuguesa se restringe
às aldeias onde havia alguns poucos funcionários portugueses ou mestiços mal
remunerados, militares e representantes da administração das alfândegas que
2
FEITORIA (2004): agência de companhia comercial nos portos das colônias, onde se armazenavam e se negociavam mercadorias, servindo também
como fortificação primitiva, provida de uns tantos soldados e armamentos, para a defesa da colônia contra a intromissão de aventureiros.
3
Segundo Enders (1997), diferentemente das feitorias, chefiadas por portugueses, alguns dos prazos em Moçambique tornaram-se mais afri-
canos que portugueses. Os senhores dos prazos eram em sua maioria mestiços que oscilavam entre a fidelidade à Coroa e a dissidência. Alguns
dos prazos, abastecido de armas, eram o braço armado da Coroa, outros acabaram se transformando em principados guerreiros e ameaçavam o
domínio português na região.

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Cultura e literatura em Moçambique

buscavam exercer o controle do comércio na colônia que já apresentava um de-


ficit orçamentário significativo.

A exploração comercial continuava, mas o “comércio” negreiro já sofria res-


trições. Porém, mesmo com a abolição oficial da escravatura em 1836, muitos
negros da região de Moçambique continuaram a ser levados para outras re­giões.
Na Ilha de Moçambique, onde desde o século XVII havia muitos negreiros4 esta-
belecidos, esse negócio já não era mais tão lucrativo, especialmente após a inde-
pendência do Brasil. Durante o período áureo do tráfico negreiro, os negros do
Zambeze e de Moçambique foram levados especialmente para as ilhas Mascare-
nhas e Madagáscar, para a região do Golfo Pérsico, para o Brasil e para Cuba. Os
negros capturados em Moçambique eram principalmente da etnia banto e os
que vieram para o Brasil desembarcaram, em sua maioria, em Pernambuco, Minas
Gerais e no Rio de Janeiro.

A exploração do território transcorreu continuamente, porém, foi somente


em 1885, quando as principais potências europeias, na Conferência de Berlim,
decidiram partilhar a África, que os portugueses, desistindo de seu intento de
tomar posse do território intermediário entre Moçambique e Angola a fim de es-
tabelecer uma comunicação por terra entre as duas colônias5, resolveram ocupar
militarmente o território moçambicano e instituir na região uma administração
colonial que defendesse suas fronteiras ante a ameaça das intenções de ocupa-
ção dos outros países europeus.

Por conta da incapacidade de ocupar completamente o território, Portugal


arrendou sua soberania sobre vastas extensões territoriais cedendo-as a gran-
des companhias. A Companhia de Moçambique e a Companhia de Niassa, as
duas maiores em Moçambique, dedicaram-se a uma economia baseada em
plantações no norte do país e no tráfego de mão de obra para países vizinhos.
As províncias de Inhambane, Gaza e Maputo (parte sul de Moçambique) ficaram
sobre a administração direta de Portugal e a economia da região se pautou na
exportação de mão de obra para as minas da África do Sul e na instituição do
transporte ferro-portuário pelo porto de Lourenço Marques (atual Maputo).

Mesmo com todas essas dificuldades há, no século XIX, em Moçambique,


uma imprensa incipiente e ligada às questões coloniais. Em 1857, circula o pe-
riódico Boletim Oficial do Governo Geral da Província de Moçambique, convertido
praticamente um século depois (1951) no Boletim Oficial da Colônia de Moçam-
4
Negreiro é nome com que se designava o traficante de escravos.
5
Foram as explorações territoriais de Serpa Pinto (1878–1879) que deram à Coroa Portuguesa a ideia de se tentar, com a união das colônias de
Angola e Moçambique, estabelecer na região um império único transafricano, mas a intenção portuguesa foi obstruída pela Coroa Britânica.

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bique. Outras publicações circularam durante o século XIX, mas nenhuma delas
verdadeiramente importante do ponto de vista literário, como O Progresso (1877–
1881), O Gato (1880), O Vigilante (1882), Clamor Africano (1892), entre outros.

As publicações de maior relevância só ocorreram no século XX. Em 1909, os


irmãos José e João Albasini fundam O Africano e em 1918 fundam ainda O Brado
Africano. Esse último, na década de 1950, adquire grande importância cultural
por reunir em seus suplementos literários a contribuição de Virgílio Lemos, Fon-
seca Amaral, Rui Noronha, Noêmia de Sousa, entre outros.

Assim, algumas mudanças do ponto de vista da cultura e da estrutura social


se fazem sentir apenas no início do século XX, quando Moçambique deixa de
ser somente uma colônia de exploração para constituir também, pelo menos no
centro e no sul, uma colônia de povoamento. A colônia e especialmente a sua
capital, Lourenço Marques6, ou a Pérola do Índico, como ficou conhecida entre
os portugueses, a partir dessa época, modificava-se sensivelmente e o norte
do país, zona mais rural, ia se diferenciando cada vez mais do sul (zona mais
urbanizada).

Desse modo, é somente no século XX, diferentemente do que acontecera em


Angola7, que se pode falar de uma literatura com características moçambicanas,
de uma moçambicanidade. Como sublinha Francisco Salinas Portugal (1999),
segundo todos os críticos, João Albasini (1925) com a obra O Livro da Dor, será
o precursor de uma moçambicanidade literária na poesia. Da mesma maneira
que, na prosa, Godido e Outros Contos, de João Dias, antecipa uma literatura pró-
pria de Moçambique. Rui de Noronha (1909–1943) é um outro poeta da primeira
metade do século XX que apresentou, segundo Ferreira (1977), uma certa sen-
sibilidade aos valores africanos, ao sofrimento e à injustiça sofrida pelos negros
em sua labuta cotidiana.

Após a Segunda Guerra Mundial, sem dúvida já se pode falar de um período


de formação da literatura moçambicana. Para Pires Laranjeira (1995), a poetisa
Noêmia de Sousa é um importante nome desse período de formação. Com o seu
Sangue Negro “[...] caderno policopiado que circulou, numa espécie de viagem
iniciática e clandestina de Moçambique a Portugal, passando por Angola” (POR-
TUGAL, 1999, p. 92), Noêmia de Sousa fala da mulher negra para além da denún-
cia, fugindo dos estereótipos da cultura/literatura colonial X cultura/literatura
local, além de usar estilemas oralizantes, tão importantes na tradição cultural
dos países africanos.
6
Após a independência do país, a capital da época da colonização portuguesa, Lourenço Marques, recebeu o nome de Maputo.
7
Em Angola já existe no fim do século XIX uma tímida produção literária que busca a valorização dos traços da cultura local.

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Cultura e literatura em Moçambique

Além de temas que tratavam da condição do negro e da negritude, a litera-


tura produzida em Moçambique incorporava os aspectos da tradição cultural
africana, como a oratura8 que resgata a dimensão “griótica”9 do texto africano.
Segundo Francisco Salinas Portugal (1999, p. 35), “[...] nas literaturas africanas
(não só as de língua portuguesa) encontramos um uso extraordinário dos recur-
sos da oralidade como técnica singularizante destas literaturas”.

Outros escritores importantes dessa época são: Fonseca Amaral, Orlando


Mendes, Virgílio de Lemos, Rui Guerra, Alberto Lacerda, Reinaldo Ferreira, Domin-
gos de Azevedo, Augusto dos Santos Abranches, Cordeiro de Brito, Rui Knopfli e
José Craveirinha, esse último, sem dúvida, o poeta nacional por excelência.

A década de 1950 foi decisiva para todas as colônias portuguesas na África.


Foi um período em que a condição dos povos africanos alcançou dimensão mun-
dial. Muitas colônias iniciaram seu processo de independência, conquistando-a
seguidamente, em especial as colônias francesas e inglesas. As lutas dos negros
norte-americanos contra o racismo nos Estados Unidos da América ganharam
o mundo e escritores negros, especialmente poetas, divulgam em suas obras a
cultura negra. Além disso, há uma ampla difusão das ideias do Movimento da Ne-
gritude, criado em fins da década de 1930 por Aimé Césaire, Leopold Senghor e
Leon Damas. Na esteira dessa efervescência política e cultural da década de 1950,
as movimentações pela independência ganham força na chamada África negra.

Somando-se a isso, a situação nas colônias se agrava diante da política dita-


torial de Salazar. A exemplo do que acontecera em Angola, Salazar institui o tra-
balho forçado em Moçambique, com a introdução das colheitas mercantis como
o algodão e o arroz, obrigando todos os homens acima de 15 anos a trabalhar
nas plantações públicas ou de propriedade dos grandes colonialistas durante a
metade do ano. Em 1960, em Moçambique, mais de 800 mil pessoas eram sub-
metidas ao regime de trabalho forçado nas obras públicas e nas plantações de
algodão. As manifestações contra o regime salazarista cresceram nas colônias,
mas foram duramente reprimidas. Abria-se o espaço para a criação de movimen-
tos nacionalistas, impulsionados pelo apoio dos países vizinhos.

Em meados de 1950, organizou-se o PAIGC (Partido Africano pela Indepen-


dência da Guiné e de Cabo Verde), liderado por Amílcar Cabral, em Cabo Verde,
e o MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola), com o apoio do
poeta angolano Agostinho Neto, preso pelo regime salazarista na Ilha de Tarrafal
(Açores). Muitos dos membros desses movimentos são poetas e intelectuais afri-
8
Nessas culturas de predomínio oral, oratura compreende o emprego de provérbios, adivinhas, lendas e estórias transmitidas por meio de méto-
dos mnemônicos que se utilizam de repetições ritmadas, a fim de perpetuar a memória coletiva através dos tempos e de gerações.
9
Griótica é um neologismo oriundo da palavra griot. O griot era o contador tradicional de histórias na África. Além da literatura oral (oratura), o griot
detinha as funções de poeta, cantor e músico e, muitas vezes, exercia nos grupos sociais funções mágicas.
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Cultura e literatura em Moçambique

canos que participaram ativamente do processo de luta armada que teve início
em 1961 em Angola e se disseminou também pelas colônias da Guiné Portugue-
sa e por Moçambique.

Em 1962, quando a Guerra Colonial já havia iniciado em Angola, foi criada,


em Moçambique, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), dirigida
por Eduardo Chivambo Mondlane. Dois anos mais tarde, Moçambique aderiu à
luta armada contra Portugal e essa guerra se estendeu até 1974, quando em Por-
tugal a Revolução dos Cravos derrubou o regime de Antônio de Oliveira Salazar/
Marcello Caetano10 que havia dirigido com mão de ferro não só o país, mas todas
as “províncias do ultramar”.

Eduardo Mondlane acabou sendo assassinado em 1969, e Samora Machel,


que o sucedeu na presidência da FRELIMO, proclamou a independência de Mo-
çambique a 25 de junho de 1975, após dez anos de guerra.

Do início da guerra de libertação até a independência, a literatura moçambi-


cana ampliava sua existência. Apareceram os prosistas que foram uma espécie
de divisor de águas na literatura do país. Os poetas e escritores da geração ante-
rior continuaram a produzir, mas a ficção ganhou força com autores como Luís
Bernardo Honwana, Orlando Mendes e, em 1971, são publicados os cadernos
Caliban (1971/1972) que só tiveram três números, e foram dirigidos por Garaba-
to Dias (pseudônimo de Antônio Quadros) e Rui Knopfli. Nesses números cola-
boraram diferentes autores moçambicanos e portugueses como Eugénio Lisboa,
Jorge de Sena, Jorge Viegas, Glória de Sant’Ana, Craveirinha, Orlando Mendes,
Rui Nogar, Herberto Hélder, Fernando Assis Pacheco, entre outros. Nesses cader-
nos já se encontrava uma vocação cosmopolita e já se encontrava uma comple-
xidade na abordagem das relações sociais em Moçambique.

Com a independência podemos falar de uma consolidação da literatura mo-


çambicana, uma vez que os escritores e poetas moçambicanos tematizaram outros
temas além da questão do negro e da negritude. Nesse período destacam-se o
poeta Rui Nogar, Ungulani Ba Ka Khosa, Hélder Muteia, Pedro Chissano, Juvenal Bu-
cuane e Mia Couto, este último estreia na literatura em 1986, com o livro de contos
Vozes Anoitecidas. Mia Couto é hoje um dos autores mais conhecidos da literatura
moçambicana especialmente pela inovação da língua portuguesa que promove
em sua prosa medularmente lírica, tendo inclusive sido publicado em diversos
países e ampliado assim as fronteiras da língua portuguesa. Outros nomes no ce-

10
A Revolução dos Cravos, ocorrida a 25 de abril de 1974, pôs fim ao regime salazarista, assim conhecido pelo fato de Antônio de Oliveira Salazar ter
permanecido à frente do governo ditatorial desde 1928, quando assume a pasta das finanças e dos assuntos do ultramar. Em 1968, quando Salazar
está muito doente, é substituído na função por Marcelo Caetano que dará continuidade à política salazarista até a derrocada da ditadura em 1974.

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Cultura e literatura em Moçambique

nário da literatura moçambicana atual são Luís Carlos Patraquim, Nelson Saúte,
Eduardo White, Armando Artur, Filimone Meigos e Paulina Chiziane

No início dos anos 1980, porém, Moçambique independente viveu um confli-


to armado entre as forças da RENAMO e da FRELIMO. Esse conflito deixou muitos
saldos negativos no país já combalido pela guerra pela independência travada
contra Portugal, além de uma grande quantidade de óbitos durante os 16 anos
de luta civil. Em 1992, a FRELIMO e a RENAMO assinaram um Acordo Geral de Paz
que pôs fim à guerra civil. Em 1994, houve eleições multipartidárias ganhas pela
FRELIMO que se tornou um dos partidos mais importantes de Moçambique na
atualidade.

Os reflexos da guerra pela liberdade e da guerra civil que se instaurou no país


logo após a independência ainda se fazem sentir na sociedade moçambicana.
Além disso, a estrutura econômica colonial deixou um legado negativo na or-
ganização do novo país. Há assimetria entre o norte (zona mais rural e menos
desenvolvida) e o sul (que conheceu um relativo desenvolvimento).

Além disso, o endividamento externo do país, as calamidades naturais e as


conjunturas regional e internacional desfavoráveis obrigaram o governo de Mo-
çambique a adotar mudanças radicais em sua política. Felizmente, Moçambique
tem crescido relativamente nos últimos anos e há investimentos tanto internos
quanto externos na agroindústria, na agricultura, no turismo, na pesca e na
mineração.

Apesar desse potencial econômico que o país vem demonstrando aos poucos,
há em Moçambique muitas pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza e o
país foi considerado um dos dez mais pobres do mundo. Continuam a existir os
bairros de cimento e de caniço, como na época colonial. O combate à pobreza
vem sendo a prioridade dos últimos governos, mas as iniciativas governamen-
tais ainda não operaram mudanças profundas nesse campo.

Texto complementar
O conto a seguir, intitulado “O embondeiro1 que sonhava pássaros”, in-
tegra, juntamente com outros contos, o livro Cada Homem é uma Raça, de
Mia Couto. A obra foi publicada em 1988, e o autor nos mostra nesse conto
1
Embondeiro é o nome utilizado em Moçambique e em Portugal para designar o baobá, uma árvore considerada sagrada para a cultura
de Moçambique.

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o conflito entre a cultura dos colonos portugueses e a cultura dos moçam-


bicanos. A estória ocorre antes da Guerra Colonial e, consequentemente, da
independência de Moçambique. No conto observa-se o quanto a intolerân-
cia e o desrespeito à cultura local conduziram os colonos portugueses a uma
situação tensa com os povos locais, que desembocaria mais tarde em um
conflito bélico entre portugueses e moçambicanos, que durou cerca de 10
anos. Com relação à estética literária, observa-se no conto a maneira como o
autor recria a língua portuguesa a partir da expressão oral, valorizando nessa
recriação a poesia presente na oralidade que, segundo o próprio autor, se
encontra também na obra do brasileiro João Guimarães Rosa que influen-
ciou sua maneira de escrever.

O embondeiro que sonhava pássaros


(COUTO, 1988, p. 59-71)

Pássaros, todos os que no chão desconhecem morada. Esse homem sempre


vai ficar de sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar do escuro.
Em verdade, seu astro não era o Sol. Nem seu país não era a Vida. Talvez, por
causa disso, ele habitasse com cautela de um estranho. O vendedor de pássa-
ros não tinha sequer o abrigo de um nome. Chamavam-lhe o passarinheiro.

Todas as manhãs ele passava nos bairros dos brancos carregando suas
enormes gaiolas. Ele mesmo fabricava aquelas jaulas, de tão leve material
que nem pareciam servir de prisão. Parecia eram gaiolas aladas, voláteis.
Dentro delas, os pássaros esvoavam suas cores repentinas. À volta do vende-
deiro, era uma nuvem de pios, tantos que faziam mexer as janelas. [...]

E os meninos inundavam as ruas. As alegrias se intercambiavam: a gritaria


das aves e o chilreio das crianças. O homem puxava de uma muska2 e harmo-
nicava sonâmbulas melodias. O mundo inteiro se fabulava.

Por trás das cortinas, os colonos reprovavam aqueles abusos. Ensinavam


suspeitas aos seus pequenos filhos – aquele preto quem era? Alguém conhe-
cia recomendações dele? Quem autorizara aqueles pés descalços a sujarem
o bairro? Não, não e não. O negro que voltasse ao seu devido lugar. Contudo,
os pássaros tão encantantes que são – insistiam os meninos. Os pais se agra-
vavam: estava dito.
2
Muska é uma espécie de gaita de boca.

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Mas aquela ordem pouco seria desempenhada. Mais que todos, um


menino desobedecia, dedicando-se ao misterioso passarinheiro. Era Tiago,
criança sonhadeira, sem outra habilidade senão perseguir fantasias. Des-
pertava cedo, colava-se aos vidros, aguardando a chegada do vendedor. O
homem despontava, e Tiago descia a escada, trinta degraus em cinco saltos.
Descalço, atravessava o bairro, desaparecendo junto com a mancha da pas-
sarada. O sol findava e o menino sem regressar. Em casa de Tiago se poliam
as lástimas: – Descalço, como eles.

O pai ambicionava o castigo. Só a brandura materna aliviava a chegada


do miúdo, em plena noite. O pai reclamava nem que fosse esboço de expli-
cação: – Foste a casa dele? Mas esse vagabundo tem casa?

A residência dele era um embondeiro, o vago buraco do tronco. Tiago


contava: aquela era uma árvore muito sagrada, Deus a plantara de cabeça
para baixo.

– Vejam só o que o preto anda a meter na cabeça desta criança. O pai se


dirigia à esposa, encomendando-lhes as culpas. O menino prosseguia: é ver-
dade, mãe. Aquela árvore é capaz de grandes tristezas. Os mais velhos dizem
que o embondeiro, em desespero, se suicida por via das chamas. Sem nin-
guém pôr fogo. É verdade, mãe. – Disparate – suavizava a senhora.

E retirava o filho do alcance paterno. O homem então se decidia a sair,


juntar as suas raivas com os demais colonos. No clube, eles todos se aclama-
vam: era preciso acabar com as visitas do passarinheiro. [...].

No dia seguinte, o vendedor repetiu a sua alegre invasão. Afinal, os colonos


ainda que hesitaram: aquele negro trazia aves de belezas jamais vistas. [...].

Os portugueses se interrogavam: onde desencantava ele tão maravilho-


sas criaturas? Onde, se eles tinham já desbravado os mais extensos matos?

O vendedor se segredava, respondendo um riso. Os senhores receavam as


suas próprias suspeições – teria aquele negro direito a ingressar num mundo
onde eles careciam de acesso? Mas logo se aprontavam a diminuir-lhe os
méritos: o tipo dormia nas árvores, em plena passarada. Eles se igualam aos
bichos silvestres, se concluíam.

Fosse por desdenho dos grandes ou por glória dos pequenos, a verdade
é que, aos pouco-poucos, o passarinheiro foi virando assunto no bairro do

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cimento. Sua presença foi enchendo durações, insuspeitos vazios. Conforme


dele se comprava, as casas mais se repletavam de doces cantos. Aquela música
se estranhava nos moradores, mostrando que aquele bairro não pertencia
àquela terra. Afinal, os pássaros desautenticavam os residentes, estrangeiran-
do-lhes? Ou culpado seria aquele negro, sacana, que se arrogava a existir, ig-
norante dos seus deveres de raça? O comerciante devia saber que seus passos
descalços não cabiam naquelas ruas. Os brancos se inquietavam com aquela
desobediência, acusando o tempo. Sentiam ciúmes do passado, a arrumação
das criaturas pela sua aparência. O vendedor, assim sobremisso, adiantava o
mundo de outras compreensões. Até os meninos, por graça de sua sedução,
se esqueciam do comportamento. Eles se tornavam mais filhos da rua que da
casa. O passarinheiro se adentrara mesmo nos devaneios deles. [...].

Os pais lhes queriam fechar o sonho, sua pequena e infinita alma. Surgiu
o mando: a rua vos está proibida, vocês não saem mais. Correram-se as corti-
nas, as casas fecharam suas pálpebras.

Parecia a ordem já governava. Foi quando surgiram as ocorrências. Portas e


janelas se abriam sozinhas, móveis apareciam revirados, gavetas trocadas. [...]

No somado das ocorrências, um geral alvoroço se instalou no bairro. Os


colonos se reuniram para labutar uma decisão. Se juntaram em casa do pai
de Tiago. O menino iludiu a cama, ficou na porta escutando as graves amea-
ças. Nem esperou escutar a sentença. Lançou-se pelo mato, rumo ao embon-
deiro. O velho lá estava ajeitando-se no calor de uma fogueira.

– Eles vêm aí, vêm-te buscar. Tiago ofegava. O vendedor não se desor-
denou: que já sabia, estava à espera. O menino se esforçava, nunca aquele
homem lhe tivera tanto valor. – Foge, ainda dá tempo.

Mas o vendedor se confortava, em sonolentidão. Sereno, entrou no tronco


e ali se ademorou. Quando saiu já vinha gravatado, de fato mesungueiro. De
novo, se sentou, limpando as areias por baixo. Depois, ficou varandeando,
retocando o horizonte. – Vai, menino. É noite.

Tiago deixou-se. Espreitava o passarinheiro, aguardando o seu gesto. Ao


menos, o velho fosse como o rio: parado mas movente. Enquanto não. O vende-
deiro se guardava mais em lenda que em realidade. – E por que vestiste o fato?

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Explicou: ele é que era natural, rebento daquela terra. Devia de saber re-
ceber os visitantes. Lhe competia o respeito, deveres de anfitrião. – Agora,
você vai, volta na tua casa. [...].

Barulhosos, os colonos foram chegando. Cercaram o lugar. O miúdo fugiu,


escondeu-se, ficou à espreita. Ele viu o passarinheiro levantar-se, saudando
os visitantes. Logo procederam pancadas, chambocos, pontapés. O velho pa-
recia nem sofrer, vegetável, não fora o sangue. Amarram-lhe os pulsos, em-
purraram-lhe no caminho escuro. Os colonos foram atrás deixando o menino
sozinho com a noite. A criança se hesitava, passo atrás, passo adiante. Então,
foi então: as flores do embondeiro tombaram, pareciam astros de feltro. No
chão, suas brancas pétalas, uma a uma, se avermelharam.

O menino, de pronto se decidiu. Lançou-se nos matos, no encalço da co-


mitiva. Ele seguia as vozes, se entendendo que levavam o passarinheiro para
o calabouço. Quando se ensombrou por trás do muro, no próximo da prisão,
Tiago sufocava. Valia a pena rezar? Se, em volta, o mundo se despojara das
belezas. E, no céu, tal igual o embondeiro, já nenhuma estrela envaidecia.

A voz do passarinheiro lhe chegava, vinda de além-grades. Agora, podia


ver o rosto de seu amigo, o quanto sangue lhe cobria. Interroguem o gajo,
espremam-no bem. Era ordem dos colonos, antes de se retirarem. O guarda
continenciou-se, obediente. Mas nem ele sabia que segredos devia arrancar
do velho. [...].

– Peço licença de tocar. É uma música da sua terra, patrão. O passarinheiro


ajeitou a harmônica, tentou soprar. Mas recuou da intenção com um esgar.
– Me bateram muito-muito na boca. É muita pena, senão havia de tocar.

O polícia lhe desconfiou. A gaita-de-beiços foi lançada pela janela, caindo


junto do esconderijo de Tiago. Ele apanhou o instrumento, juntou seus bo-
cados. Aqueles pedaços se semelhavam sua alma, carecida de mão que lhe
fizesse inteira. O menino se enroscou, aquecido em sua própria redondura. En-
quanto embarcava no sono levou a muska à boca e tocou como se fizesse o
seu embalo. Dentro, quem sabe, o passarinheiro escutasse aquele conforto?

Acordou num chilreio. Os pássaros! Mais de infinitos, cobriam toda a es-


quadra. Nem o mundo, em seu universal tamanho, era suficiente poleiro.

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Tiago se acercou da cela, vigiou o calabouço. As portas estavam abertas, a


prisão deserta. O vendedor não deixara nem rasto, o lugar restava amnésico.
Gritou pelo velho, responderam os pássaros.

Decidiu voltar à árvore. Outro paradeiro para ele já não existia. Nem rua
nem casa: só o ventre do embondeiro. Enquanto caminhava, as aves lhe se-
guiam, em cortejo de piação, por cima do céu. Chegou à residência do passa-
rinheiro, olhou o chão coberto de pétalas. Já vermelhas não estavam, regres-
sadas ao branco originário. Entrou no tronco, guardou-se na distância de um
tempo. Valia a pena esperar pelo velho? No certo, ele se esfumara, fugido dos
brancos. No enquanto, ele voltou a soprar na muska. Foi-se embalando no
ritmo, deixando de escutar o mundo lá fora. Se guardasse a devida atenção,
ele teria notado a chegada das muitas vozes.

– O sacana do preto está dentro da árvore. Os passos da vingança cerca-


vam o embondeiro, pisando as flores. – É o gajo mais a gaita. Toca, cabrão,
que já danças!

As tochas se chegaram ao tronco, o fogo namorou as velhas cascas.


Dentro, o menino desatara um sonho: seus cabelos se figuravam pequenitas
folhas, pernas e braços se madeiravam. Os dedos, lenhosos, minhocavam a
terra. O menino transitava de reino: arvorejado, em estado de consentida
impossibilidade. E do sonâmbulo embondeiro subiam as mãos do passari-
nheiro. Tocavam as flores, as corolas se envolucravam: nasciam espantosos
pássaros e soltavam-se, petalados, sobre a crista das chamas. As chamas?
De onde chegavam elas, excedendo a lonjura do sonho? Foi quando Tiago
sentiu a ferida das labaredas, a sedução da cinza. Então, o menino, aprendiz
da seiva, se emigrou inteiro para suas recentes raízes.

Dicas de estudo
 Cada Homem é uma Raça, de Mia Couto, Editora Nova Fronteira.

Esse livro de contos, publicado por Mia Couto em 1988, foi editado no Bra-
sil pela Nova Fronteira e é um exemplário bem significativo da temática e
do estilo desse autor que já se consagrou como um dos nomes mais im-
portantes da literatura moçambicana e, consequentemente, da literatura
contemporânea em língua portuguesa.

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 A Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge, Editora Record.

Esse romance narra a história de Evita Lopo, noiva de um oficial português


que o acompanha quando ele vai a serviço até Moçambique, casando-se
com ele na cidade da Beira. Enquanto espera pelo retorno do marido, que
está em missão militar no interior do país, Evita – que permanece todo o
tempo na cidade onde os conflitos bélicos são menos visíveis – vai toman-
do consciência das atrocidades que se cometem em nome da necessida-
de de se defender as “províncias ultramarinas”, fazendo com que a perso-
nagem comece a questionar as atitudes do marido e dos demais oficiais
portugueses em Moçambique.

 A Magia das Letras Africanas, de Carmen Lúcia Tindó R. Secco, Editora ABE
Graph E Barroso.

O livro da pesquisadora e professora adjunta da UFRJ, Carmen Lúcia Tin-


dó R. Secco, traz uma série de ensaios interessantes sobre as literaturas
moçambicana e angolana, além de uma sólida e abrangente bibliografia
acerca do tema.

Estudos literários
1. O processo de formação da literatura nos países africanos lusófonos foi di-
ferente em cada região, apresentando cada uma das literaturas a sua espe-
cificidade. Em que época podemos dizer que a literatura moçambicana de-
monstrou a busca pela moçambicanidade?

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Cultura e literatura em Moçambique

2. Para Pires Laranjeira, Noêmia de Sousa é um importante nome do período de


formação da literatura moçambicana. Por quê?

3. Quando se pode falar, de fato, de uma consolidação da literatura moçambi-


cana?

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África lusófona e Brasil: laços e letras

Claudia Amorim
O objetivo deste capítulo é apresentar as diferentes culturas da África
lusófona e do Brasil, destacando o que a cultura de Angola, Cabo Verde,
Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Moçambique – os cinco países dos
Palop1 – têm em comum com a cultura brasileira, para além da língua de
expressão.

A identidade entre essas diferentes culturas e povos começa com a his-


tória da colonização de seus territórios pelos portugueses que, desde o
início do século XV, tornaram-se os pioneiros na exploração do continente
africano, no qual se acreditava haver muitas riquezas, especialmente ouro
e especiarias. Para operar essa exploração do continente, e a conversão
dos “infiéis” ao cristianismo, a Coroa Portuguesa, apoiada pela Igreja Ca-
tólica local e pela de Roma, deu início a uma das maiores aventuras do
homem em sua história, que foi o domínio dos mares e a consequente
descoberta de terras cuja existência apenas se supunha ou daquelas cuja
existência era totalmente ignorada.

Os africanos no Brasil:
um pouco de história
A história do negro no Brasil remete, antes de tudo, à história da diás-
pora dos povos africanos que, antes da chegada dos europeus à África, ha-
bitavam esse continente. Além dos portugueses – os primeiros europeus
a ocuparem o continente africano – outros povos da Europa ali chegaram,
como ingleses, franceses e alemães, por exemplo. Com a chegada do euro-
peu à África, começa a diáspora negra com o tráfico de negros que viriam
a formar a mão de obra do trabalho agrícola do continente americano.
1
Palop é a sigla de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa.

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África lusófona e Brasil: laços e letras

Assim, a diáspora negra para o território brasileiro se liga ao momento em


que os portugueses, em 1415, tomaram dos mouros a cidade de Ceuta, no norte
da África, e perceberam que estavam diante de uma localidade na qual desem-
bocavam ricas mercadorias oriundas de outras regiões do continente africano. A
tomada de Ceuta foi um ponto estratégico para que os portugueses apontassem
as naus em direção ao Atlântico Sul para ladear o continente africano seguindo
sempre em direção ao extremo sul do continente, cuja ultrapassagem abriria ca-
minho para a Índia, onde se encontravam as especiarias que os europeus tanto
cobiçavam.

É certo que no início do século XV esses objetivos ainda não estavam comple-
tamente delineados para a Coroa Portuguesa, ou para os nobres e comerciantes
interessados no empreendimento atlântico. No entanto, a conquista de Ceuta
e depois a de Tânger, no Marrocos, foram os atos fundadores do avanço para o
mar que modificaria definitivamente a história da humanidade. Podemos dizer
que, com as viagens marítimas do século XV e XVI, iniciou-se verdadeiramente
o conhecimento e o domínio das terras e mares do nosso planeta. Iniciou-se a
globalização.

Porém, a história da África, antes da chegada do europeu, ainda se mostra


obscura, pelo fato de os povos africanos serem, nessa época, diversos e quase
todos ágrafos. Os primeiros relatos acerca do continente foram feitos por árabes
e posteriormente por europeus.

Sabe-se que o continente africano, no século XV, contava com diferentes


grupos étnicos mais ou menos isolados que ocupavam relativamente uma pe-
quena parte do imenso território continental. Os povos que ali viviam possuíam
uma organização social e econômica similar, baseada em graus de parentes-
co. Havia sociedades patriarcais e algumas matriarcais. Os laços parentais que
uniam os membros de um grupo proporcionavam a valorização da memória do
grupo, a sua ancestralidade e, consequentemente, a reverência aos mais velhos
do grupo.

Porém, nem todas as sociedades africanas gozavam da mesma estrutura.


Havia na África grandes reinos, como o Reino de Mali e o do Congo, e uma série
de aldeias e vilas menores nas quais seus habitantes, unidos por laços de paren-
tesco, partilhavam naturalmente das mesmas crenças. Diferentemente desses,
que habitavam um território comum, havia ainda grupos nômades que transi-
tavam pelo continente, por oportunidades de negócios ou obrigados pelas cir-
cunstâncias climáticas, por exemplo.

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A expansão de alguns desses reinos, a migração de alguns povos e a tentativa


de controle de certas regiões próximas a rios ou postos comerciais geravam con-
flitos entre os diferentes povos e ainda a dominação de um povo sobre outro.

Aproveitando-se de uma escravidão doméstica2 que existia na África antes


da chegada do europeu, uma vez que após alguns conflitos os povos vencidos
eram feitos prisioneiros e escravos domésticos, os portugueses viram nesse sis-
tema a possibilidade de operar um diferente negócio: o comércio de escravos.

Porém, antes dos europeus, os árabes, que haviam se estabelecido em algu-


mas regiões da África por volta do século VIII, já haviam adotado o sistema escra-
vista utilizando o escravo como moeda de troca. Segundo Albuquerque e Fraga
Filho (2006, p. 15),
[...] desde que os árabes ocuparam o Egito e o norte da África, entre o fim do século VII e
metade do século VIII, a escravidão doméstica, de pequena escala, passou a conviver com o
comércio mais intenso de escravos. A escravidão africana foi transformada significativamente
com a ofensiva dos muçulmanos. Os árabes organizaram e desenvolveram o tráfico de escravos
como empreendimento comercial de grande escala na África. Não se tratava mais de alguns
poucos nativos, mas de centena deles a serem trocados e vendidos, tanto dentro da própria
África quanto no mundo árabe e, posteriormente, no tráfico transatlântico para as Américas,
inclusive para o Brasil.

Com a chegada dos primeiros europeus ao continente africano, operou-se


a forma de escravismo estabelecida pelos árabes. Quanto mais os portugueses
avançavam pela Costa Ocidental da África, e o ouro cobiçado não era encon-
trado, mais essa falta era compensada com os produtos comerciáveis da África,
especialmente o marfim e a pimenta.

Logo, os portugueses construíram, em 1445, uma feitoria na ilha de Arguim3,


que serviria de entreposto comercial para o comércio das especiarias com os
africanos, e posteriormente ao comércio de escravos. À medida que o comér-
cio escravista começava a ser lucrativo para os portugueses, o infortúnio crescia
para o continente africano. A presença dos portugueses no litoral da costa da
Guiné reforçou o poder dos chefes africanos dispostos a guerrear contra povos
inimigos com o objetivo de fazê-los cativos e adquirir lucros com isso4. A guerra
entre os povos na África produzia o cativo e o comércio com os portugueses
distribuía o escravo.

2
Conforme sustenta Silva (2002), a escravidão doméstica na África consistia em se aprisionar os vencidos nas guerras étnicas para aproveitar sua
mão de obra no trabalho agrícola. A terra era abundante, mas muitas vezes faltava mão de obra e nesse tipo de cativeiro aproveitavam-se também
mulheres e crianças. A fertilidade das mulheres garantia a ampliação do grupo e elas se tornavam concubinas de seus senhores e geravam filhos
que iam gradativamente perdendo a condição servil e sendo incorporados à linhagem do senhor.
3
A Feitoria de Arguim, na Ilha de Arguim, serviu de modelo para a construção de outros entrepostos comerciais como a Feitoria de São Jorge da
Mina, na cidade de Elmina (República do Gana).
4
Segundo Albuquerque e Fraga Filho (2006) há uma estimativa de que 75% das pessoas vendidas nas Américas como escravos foram vítimas de
guerras entre os diversos povos africanos.

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Para criar uma certa estrutura para o comércio de escravos e desencorajar a


abordagem de outros europeus, os portugueses construíram fortalezas ao longo
dos territórios ocupados no litoral da África. Uma das mais importantes fortale-
zas foi o castelo de São Jorge da Mina, construído em 1482, onde atualmente é
a República do Gana, de onde partiram para a América, entre 1500 e 1535, cerca
de 10 a 12 mil escravos.

O tráfico de escravos para as Américas modificou completamente o mapa da


África. Os reinos que forneciam prisioneiros escravos para os portugueses co-
nheceram o apogeu nos séculos XVII e XVIII. Muitos desses reinos, como o Reino
Iorubá5, que se dedicava à agricultura e tecelagem como os famosos panos da
Costa6, acabaram praticamente abandonando essas atividades para enfatizar
o tráfico negreiro. Como havia várias cidades iorubanas na região do golfo de
Benin envolvidas nesse negócio, a região ficou conhecida como a Costa dos Es-
cravos. Os iorubás da região faziam prisioneiros de guerra de escravos e os tro-
cavam por mercadorias como, por exemplo, o fumo de rolo, produzido na Bahia.
A procura pelo fumo de rolo, muito apreciado na região, fez dos brasileiros os
principais compradores de escravos.

O tráfico de escravos foi uma atividade permanente entre os séculos XVI e XIX.
Durante esse período, estima-se que mais de 11 milhões de homens, mulheres e
crianças foram transportados da África para as Américas em grandes navios ne-
greiros (também conhecidos como tumbeiros)7. Desse total, cerca de 4 milhões
desembarcaram em portos brasileiros e eles pertenciam, principalmente, a dois
grandes grupos étnicos: os sudaneses (oriundos da Nigéria, Daomé8 e Costa do
Marfim) e os bantos (oriundos do Congo, Angola e Moçambique). Os bantos foram
destinados especialmente a Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro9, enquan-
to que os sudaneses foram levados, em sua maioria, para a Bahia10. Também da
5
De acordo com alguns estudiosos, alguns povos vizinhos que habitavam o sudoeste da Nigéria e o sudeste da República do Benin, por falarem
variações do mesmo idioma e compartilharem as mesmas crenças sobre a origem, foram identificados pelos missionários europeus como perten-
centes ao reino Iorubá.
6
O pano da costa era uma indumentária usada no Brasil por mulheres africanas ou descendentes, especialmente na Bahia e no Rio de Janeiro. O
nome provavelmente se deve ao fato de esse tipo de pano ser encontrado na região da Costa do Marfim, de onde foram trazidos muitos escravos
para o Brasil, ou ainda ao fato de esse pano retangular ser usado jogado por sobre os ombros e as costas. Ainda hoje é usado na composição da
roupa das baianas.
7
Conforme observam Albuquerque e Fraga Filho (2006) essa cifra não inclui aqueles que não resistiam à travessia atlântica feita em péssimas
condições nos navios negreiros e acabavam morrendo no caminho. Assim, se explica também o porquê de os navios negreiros serem também
conhecidos pelo nome de tumbeiros, uma vez que o número de mortos nas travessias era bastante grande.
8
Daomé situava-se na época onde agora é a República do Benin.
9
No Rio de Janeiro, os escravos que chegavam nos navios negreiros desembarcavam na região portuária denominada Valongo e eram levados para
os postos comerciais que se situavam no alto do Morro da Conceição, localizado na Praça Mauá.
10
A Coroa Portuguesa procurou sempre que possível misturar escravos de diferentes regiões e etnias para dificultar-lhes a concentração e a co-
municação, uma vez que os grupos étnicos falavam línguas diferentes. Contudo, nem sempre foi possível, pois os traficantes de escravos por vezes
tinha de transportar uma mesma região os escravos capturados.

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região da Guiné – cuja vila de Bissau se tornaria um importante entreposto de


escravos – foram trazidos muitos negros para o território brasileiro.

Para melhor situarmos esses espaços de onde foram levados milhões de afri-
canos incluímos a seguir um mapa político da África com sua respectiva divisão
territorial.

MAPA POLÍTICO DA ÁFRICA

IESDE Brasil S.A. Adaptado.

Escala gráfica aproximada

0 420 Km

Fonte: Temática Cartografia.

Esse violento deslocamento do nativo da África para outras terras constituiu a


maior diáspora da história da humanidade. Esse triste episódio uniu para sempre
a história do Brasil, território da América onde os portugueses também haviam
chegado, à história da África. A extensa colônia portuguesa na América, devido
à exploração agrícola, necessitava de mão de obra permanente. A escravidão
de indígenas não prosseguia como se esperava. Muitos índios cativos e escra-

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vizados acabavam morrendo dizimados por doenças trazidas pelo colonizador,


além disso, muitos índios, resistindo à escravidão, fugiam para áreas de difícil
acesso aos portugueses, o que tornava a sua captura um investimento muito
alto. Assim, a migração transatlântica forçada tornou-se a principal garantia de
trabalho escravo nas terras brasileiras. No entanto, também os africanos que so-
breviviam à travessia dos mares, já em terra brasileira, devido aos maus-tratos e
às péssimas condições de vida, morriam cedo ou fugiam para os quilombos11.

Os quilombos foram locais de resistência dos escravos refugiados e eles abri-


gavam uma comunidade com leis e costumes próprios. O mais famoso desses
quilombos foi o dos Palmares, assim chamado por se situar em um local com
muitas palmeiras. O Quilombo dos Palmares, cuja extensa localização abran-
gia parte do atual estado de Alagoas e parte do atual estado de Pernambuco,
chegou a abrigar, por volta de 1670, cerca de 50 mil escravos refugiados.

Em Palmares, os refugiados sobreviviam da cultura do milho, da mandioca,


do feijão e das bananeiras. A terra era fértil e cada uma das três entradas da
longa extensão do Quilombo dos Palmares era vigiada por cerca de 200 guer-
reiros. No Quilombo, também eram guardadas armas e munições para garantir
a luta pela liberdade. Ganga-Zumba era o rei dos quilombolas e, após sua morte,
Zumbi, seu sobrinho e sucessor, foi consagrado rei dos Palmares.

O comércio negreiro sempre alimentava as mortes ou as fugas de africanos


trazendo outros escravos que lhes substituíam no trabalho. Especialmente du-
rante o século XVIII e princípio do XIX, a região de Angola foi a principal exporta-
dora de escravos para o Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do
Sul. Na segunda década do século XIX, com a investida inglesa contra o tráfico
negreiro, os comerciantes de escravos foram buscar cativos na Costa Oriental da
África (sul da Tanzânia, norte de Moçambique, Malauí e nordeste da Zâmbia)12.
Os escravos oriundos desses territórios eram denominados “moçambiques”.

Durante um bom tempo, a escravidão indígena e a escravidão do africano


alimentaram a economia da colônia portuguesa na América. Logo, porém a es-
cravidão africana ultrapassa em cifras a escravidão indígena.
Mas antes de investir maciçamente no tráfico africano, os colonos portugueses recorreram à
exploração do trabalho dos povos indígenas que habitavam a Costa Brasileira. A escravidão foi
um tipo de trabalho forçado também imposto às populações nativas. O índio escravizado era
chamado de ‘negro da terra’, distinguindo-o assim do ‘negro da guiné’, como era identificado o
escravo africano nos séculos XVI e XVII. Com o aumento da demanda por trabalho no corte do
11
Quilombo, palavra que se origina do quimbundo kilombo e que significa, em primeiro lugar, acampamento, arraial, e em segundo, feira, mercado,
era o nome que se dava ao local que servia de refúgio ao escravo que fugia do senhor. Entre os séculos XVII e XVIII, centenas de quilombos surgiram
no Brasil e os negros que ali se refugiavam recebiam o nome de quilombolas.
12
Confira essas localidades no mapa do continente africano.

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pau-brasil e depois nos engenhos, os colonizadores passaram a organizar expedições com o


objetivo de capturar índios que habitavam em locais distantes da Costa. Através das chamadas
‘guerras justas’, comunidades indígenas que resistiram à conversão do catolicismo foram
submetidas à escravidão. Por volta da segunda metade do século XVI, a oferta de escravos
indígenas começou a declinar e os africanos começaram a chegar em maior quantidade para
substituí-los. (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 40)

À medida que a escravização do negro ultrapassou a do índio, o tráfico ne-


greiro deixou de ser apenas um entre os negócios do ultramar pelos portugue-
ses para se tornar a atividade mais rentável do Atlântico Sul, já que esse negócio
gerava impostos para a Coroa Portuguesa e dízimos para a Igreja Católica.

Domínio público.

Desembarque de Escravos Negros Vindos da África. Rugendas. Biblioteca Municipal.

Os traficantes de escravos que forneciam mão de obra para a região Nordes-


te do Brasil foram buscar, entre meados do século XVIII até o fim do tráfico em
1850, nativos escravizados na região do golfo de Benin (sudoeste da atual Nigé-
ria). Dessa região vieram os jejes, bornus, tapas, nagôs, entre outros, e aqui foram
designados minas.

Com a proibição do tráfico, em 1850, por pressões da Inglaterra que deseja-


va expandir para outros países sua tecnologia industrial, o tráfico de escravos
começou a declinar, mas não desapareceu por completo. Até antes dessa data,
esse negócio no Brasil havia feito alguns negociantes muito ricos que, inclusive,
participavam dos governos das cidades e das províncias.

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O tráfico de escravos também se justificava perante a Igreja que via nessa


atividade uma possibilidade de evangelizar os “infiéis” africanos. Para a Igreja
Católica, a salvação das almas dos africanos pagãos se faria no Brasil católico.
Assim, o discurso religioso justificava essa atividade como uma cruzada contra a
“barbárie” africana.

Durante o século XIX, importantes acontecimentos no Brasil e em Portugal


propiciaram mudanças profundas no sistema escravista até a sua extinção no
fim do mesmo século. No contexto brasileiro, antes que esses acontecimentos
viessem à tona, a população escrava era, em algumas localidades, maior que a
população livre. Segundo observam Albuquerque e Fraga Filho (2006, p. 66):
No início do século XIX, o Brasil tinha uma população de 3 818 000 pessoas, das quais 1 930
000 eram escravas [...]. Até meados daquele século, quando foi abolido o tráfico, a maior parte
dos escravos era nascida na África. Para se ter uma ideia, os africanos representavam 63% da
população de Salvador. No Rio de Janeiro, os nascidos na África constituíam cerca de 70%.

Com a independência do Brasil, em 1822, o grande desafio da elite econômi-


ca da época era promover o desenvolvimento, mas garantindo a manutenção
da escravidão, sem a qual não haveria produção agrícola. Nessa época, o perfil
da sociedade brasileira era claramente escravista e racista, uma vez que, mesmo
os negros que conseguiam alforria ou eram libertos, ou ainda os mestiços, eram
considerados inferiores aos brancos nascidos em Portugal ou no Brasil.

No entanto, a condição do negro escravo começa a ganhar amplitude. Por


pressão da Inglaterra, o Brasil também se vê obrigado a atenuar as leis da escra-
vidão. Em 1823, em um pronunciamento à Assembleia Nacional Constituinte,
José Bonifácio de Andrada e Silva declara que a escravidão é um “cancro mortal
que ameaçava os fundamentos da nação”. Em 1850, proibiu-se o tráfico negreiro
e os últimos desembarques de escravos ocorreram por volta de 1856. Em 1871,
promulgou-se a Lei do Ventre Livre que concedia a liberdade a todos os filhos
de escravos nascidos a partir daquela data, em 1877, com a Lei dos Sexagená-
rios, ficavam libertos os escravos com mais de 60 anos e, finalmente, em 1888,
assinou-se a Lei Áurea, que libertava todos os escravos do Brasil.

Concomitante à pressão externa e ao interesse dos abolicionistas (homens


letrados, intelectuais, escritores, políticos etc.) em abolir a escravidão, os escra-
vos desde muito lutavam, como podiam, pela liberdade. Obviamente, algu-
mas dessas lutas tiveram grande alcance e exerceram pressão também sobre
os acontecimentos que desembocaram na Lei Áurea. Entre os mais conhecidos
movimentos de escravos em prol da liberdade dos cativos está a Revolta dos
Malês, ocorrida na Bahia em 1835, a Revolta da Cabanagem, no Norte do Brasil,

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entre 1835–1840, as reivindicações dos negros farroupilhas no Rio Grande do Sul


que, entre 1835–1845, lutaram ao lado de Bento Gonçalves e conquistaram sua
liberdade na República do Piratini, entre outras.

Também a literatura do jovem país independente expressou as condições da


escravidão. Bernardo Guimarães (1825–1884), romancista brasileiro, publicou em
1875, o romance A Escrava Isaura. Nesse famoso romance, a mestiça Isaura, filha
de pai branco e mãe negra, ainda que quase branca, é uma escrava criada na casa
grande com educação e cuidados. Assediada pelo filho do Comendador, não con-
segue a liberdade desejada em razão da morte dos antigos donos da fazenda. O
pai quer comprar-lhe a alforria, mas o filho do Comendador, herdeiro dos bens,
não permite. Isaura foge com o pai e em Recife conhece um jovem rico que por
ela se apaixona. A condição de escrava, porém, vem à tona e Leôncio, o seu dono,
vai resgatá-la em Recife. Álvaro, apaixonado, tenta comprar a liberdade de Isaura e
só o consegue quando, investigando a situação de Leôncio, descobre que ele está
falido. Comprando seus bens, resgata Isaura de um casamento forçado com um
camponês por ordem de Leôncio. Em desespero, Leôncio se mata.

Através desse enredo romântico, descortina-se a situação do escravo, ainda


que Isaura, como heroína do romance, fugisse completamente ao padrão da es-
crava da casa grande do Brasil Colônia. Outros escritores do século XIX também
foram importantes para a divulgação e questionamento da condição do escravo.
Entre esses, destacam-se o poeta baiano Castro Alves (1847–1871), o romancis-
ta carioca Lima Barreto (1881–1922), o poeta catarinense João da Cruz e Sousa
(1861–1898), o maior poeta simbolista brasileiro. Embora tenham produzido
suas obras no fim do século XIX, quando a escravidão já estava extinta por lei,
esses escritores ainda demonstraram através da literatura o quanto havia por
fazer para se atenuar a condição do homem escravo ou do negro livre, mas so-
cialmente discriminado em razão de sua cor e de sua pobreza.

Outro nome de grande importância na literatura brasileira do século XIX foi


Joaquim Maria Machado de Assis (1839–1908), um dos maiores romancistas em
língua portuguesa. Nascido no Rio de Janeiro, filho de um mulato e de uma aço-
riana, e neto de escravos alforriados, Machado de Assis foi um escritor atento
à condição do homem no cotidiano dos meios urbanos do fim do século XIX.
Usando da ironia, o escritor tecia uma crítica fina e lúcida à hipocrisia da socie-
dade brasileira finissecular.

Apesar de suas péssimas condições de vida antes da abolição da escravidão


(os escravos viviam em senzalas, recebiam castigos corporais no pelourinho,

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eram acorrentados, passavam fome etc.) ou mesmo depois dela, uma vez al-
forriados, os negros não tinham onde ficar, nem do que viver, o que gerou um
grande número de indigentes que começou a ocupar as zonas mais afastadas
da cidade ou os morros nos quais construíram míseros casebres. O fato é que os
africanos e seus descendentes foram também construtores da cultura brasileira,
conforme atestam Albuquerque e Fraga Filho (2006, p. 43):
Foi na condição de escravos que africanos e seus descendentes chegaram aos locais mais
remotos da colônia. Mas apesar da escravidão, os africanos foram atores culturais importantes
e influenciaram profundamente as formas de viver e de sentir das populações com que
passaram a interagir no Novo Mundo. Os europeus os trouxeram para trabalhar e servir nas
grandes plantações e nas cidades, mas eles e seus descendentes fizeram muito mais do
que plantar, explorar as minas e produzir riquezas materiais. Os africanos para aqui trazidos
como escravos tiveram um papel civilizador, foram um elemento ativo, criador, visto que
transmitiram à sociedade em formação elementos valiosos da sua cultura. Muitas das práticas
da criação de gado eram de origem africana. A mineração do ferro no Brasil foi aprendida dos
africanos. Com eles a língua portuguesa não apenas incorporou novas palavras, como ganhou
maior espontaneidade e leveza. Enfim, podemos afirmar que o tráfico fora feito para escravizar
africanos, mas terminou também africanizando o Brasil.

Identidades e diferenças entre as culturas


do Brasil e dos países africanos lusófonos
O Brasil africanizado naturalmente guarda uma grande identidade com os
países africanos que foram colonizados por Portugal. Os africanos que duran-
te três séculos e meio foram trazidos como escravos para o Brasil, embora de
regiões distintas da África, acabaram fortalecendo sua cultura como forma
de resistência. Segundo Silva (2003, p. 158), a “[...] importação continuada de
escravos fazia com que a África reinjetasse permanentemente a sua gente e,
com ela, os seus valores no Brasil”.

Se isso se observava com maior evidência nos meios urbanos, também se


fazia notar no Brasil rural. Nas grandes cidades como Rio de Janeiro, Salvador,
Recife e São Luís encontramos escravos agrupados em esquinas à espera de
quem contratasse os seus serviços. E os agrupamentos se faziam por alguns
serem aparentados, pela proximidade linguística ou porque tinham chegado
no mesmo navio. Assim, encontramos os grupos nagôs, jejes, cabindas, an-
golas e moçambiques, identidades criadas pelos africanos no Brasil.

Como observa Silva (2003, p. 158), nesses “[...] pontos de encontros, e nos
pátios que prolongavam as cozinhas, e nas senzalas, e nos esconderijos das

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matas, os escravos tentavam refazer como podiam os liames sociais violen-


tamente partidos”.

Assim, preservar as tradições e a cultura era uma condição de sobrevivên-


cia e, graças a isso, a cultura africana se propagou pelo Brasil na música, na
culinária, na religião ritualística, na língua, no vestuário etc.

Em alguns casos, o africano justapôs ou superpôs as suas manifestações


culturais às que provinham da Europa. Mas podemos dizer que, em alguns
casos, ele também se apropriou sem quase nada alterar das formas europeias.
No entanto, de modo geral, houve uma miscigenação dos costumes e valores
dos africanos, com os dos europeus e dos ameríndios na organização da vida
cotidiana de homens e mulheres descendentes dos primeiros africanos.

De acordo com Silva (2003, p. 163):


Dessas justaposições, recriações, somas e misturas, há evidências por todo lado. Nas urbes
brasileiras, a cidade africana se incrusta na europeia. Na música popular, embaralham-se
instrumentos africanos e europeus. Alguém lembraria igualmente a confluência de ritos
religiosos do candomblé com os da Igreja Católica – por exemplo, na festa do Senhor do
Bonfim, a lavagem da igreja, na qual se repete uma cerimônia, com mulheres a levar à
cabeça jarras de água com flores, para a purificação de um sítio ritual, que se processa no
sul da República do Benin.

Um dos mais marcantes traços da cultura africana no Brasil diz respeito às


práticas religiosas trazidas pelos africanos. Até o século XVIII, a palavra calun-
du, originária da palavra kilundu em umbundo (uma das línguas de Angola),
significava divindade e era bastante usada pelos africanos e seus descenden-
tes. A primeira referência escrita à palavra candomblé (também originária de
Angola) é do início do século XIX e o termo designa oração.

As manifestações religiosas do Sudeste do Brasil – mais precisamente do


Rio de Janeiro e de São Paulo – originam-se da região do centro-sul da África,
onde se situa atualmente o território de Angola. No Nordeste do Brasil, os
povos diversos originários do reino de Daomé (atual República do Benin),
conhecidos como jejes na Bahia e minas no Maranhão, cultuavam deuses di-
versos que eles chamavam voduns. Já os povos do reino Iorubá, na Bahia – os
nagôs – cultuavam os orixás.

Nos terreiros de candomblé nagô, os deuses de partes distintas da África


eram igualmente cultuados. Segundo Albuquerque e Fraga Filho (2006,
p. 104), entre os vários deuses cultuados, temos “Oxossi, do reino de Ketu,
Xangô de Oió, Oxum de Oxogbô e assim por diante. Por isso que se diz que a
religiosidade africana foi reinventada no Brasil”.

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Mas não foram só os ritos próprios da África que vieram com os escravos.
Africanos islamizados, devido à presença árabe no continente, também chega-
ram ao Brasil em grandes navios negreiros. Os muçulmanos eram reduzidos no
Rio de Janeiro, mas em Salvador e no Recôncavo Baiano eram numerosos. De
acordo com Albuquerque e Fraga Filho (2006, p. 106) por serem “[...] adeptos de
uma religião militante, os muçulmanos organizaram na Bahia algumas rebeliões
escravas, sendo a de 1835 a mais conhecida. Por isso, ao longo do século XIX, foi
o grupo religioso mais perseguido pelas forças policiais”.
Iniciado no catolicismo na África ou no Brasil, o escravo africano ou crioulo dotou a religião dos
portugueses de ingredientes de tradições religiosas africanas, especialmente música e dança.
Era um catolicismo cheio de festas, de muita comida e bebida, de intimidades com santos,
tal qual a relação dos africanos com seus orixás, voduns e outras divindades. As promessas
de santos, pagas com missas, tinham função semelhante às oferendas que acompanhavam
pedidos feitos aos deuses e outras entidades espirituais africanas. Para homenagear santos de
sua devoção, os negros organizavam grandes festas nas suas irmandades. Daí porque muitos
escravos africanos se aproximaram do catolicismo sem que fossem forçados pelos senhores.
(ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 106)

Nas irmandades, os africanos tinham oportunidade de conviver com outros


africanos, preservando sua cultura e nesses lugares o sagrado e o profano se
mesclavam, de modo que nessas festas traços da cultura africana se juntavam
ao catolicismo.

Outra forte contribuição da cultura africana no Brasil liga-se às festas carnava-


lescas. Com a colonização portuguesa, o carnaval que havia no Brasil era o entru-
do (um desfile de foliões), porém, com a presença da cultura africana, essas festas
se modificaram paulatinamente com a incorporação, por exemplo, de tambores,
chocalhos e ganzás, instrumentos muito usados por negros em suas festas.

No Rio de Janeiro, o carnaval ganharia outra dimensão com a criação das es-
colas de samba no início do século XX. Com músicos e sambistas, quase sempre
negros e oriundos das localidades mais pobres da cidade, o samba ganhava as
ruas e logo seria alçado ao patamar de grande festa popular da cultura brasi-
leira. As primeiras organizações de sambistas surgiram no Estácio, nos morros
do centro da cidade e na Mangueira. As escolas de samba eram inicialmente
agremiações de caráter assistencial e festivo. No entanto, elas foram aos poucos
conquistando espaço na cultura nacional e na indústria de entretenimento. Pau-
latinamente, começaram também a modificar sua estrutura: os ranchos carnava-
lescos – como eram chamados os desfiles dos passistas – ganharam uma nova
roupagem com a cadência rítmica do samba e das coreografias e com a incorpo-
ração de enredos com temas nacionais.

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O samba13, expressão musical própria da cultura brasileira, também exibe


suas raízes africanas pela apresentação de uma batida sincopada de origem cla-
ramente africana. Na Bahia, o samba de roda existente desde o século XIX mostra
a influência africana com a inclusão de palmas e cantos que marcam o ritmo de
quem dança no interior da roda. No Rio de Janeiro, o samba surgia na casa das
tias baianas da Praça Onze e nos morros cariocas e falava do cotidiano difícil
das pessoas mais pobres em meio à vida urbana. O samba com seus diferentes
acentos regionais (samba baiano, carioca, paulista etc.) acabou se tornando a
expressão musical de maior relevo da cultura do Brasil, sempre acompanhado
de uma expressão corporal rítmica.

Também em outras manifestações populares festivas e religiosas encontra-se


a presença africana. Em Pernambuco, por exemplo, havia surgido o maracatu,
uma dança de batuque africana com influências também indígenas e portugue-
sas. Conhecida como nação maracatu, essa manifestação cultural relaciona-se
claramente à coroação do rei do Congo, uma cerimônia já existente no século
XVIII em Minas, Pernambuco, Bahia e outros estados do Brasil, e naturalmente
trazida pelos escravos oriundos dessa região da África.

Outra contribuição da cultura africana para a formação da cultura no Brasil foi


a incorporação da capoeira como elemento da cultura brasileira. Inicialmente,
a capoeira era praticada na metade do século XIX pelos escravos libertos que
usavam essa luta, em que entra em cena a agilidade corporal, para se defender
dos adversários. Além disso, os capoeiristas usavam muitas vezes uma navalha
manejada com destreza em meio aos golpes com o corpo. Aos olhos da polícia e
das classes dominantes, os capoeiristas eram gente vadia e perigosa que deveria
ser vigiada de perto.

Na década de 1930, a capoeira praticada em Salvador, em rodas orientadas


pelo mestre Bimba, deu um novo estatuto para essa luta que deixava paulati-
namente de ser vista como uma luta de desordeiros para se impor como uma
prática desportiva.

A palavra capoeira significa mata rasteira e faz referência às áreas do interior


do Brasil onde há esse tipo de mata, ou seja, a palavra se liga naturalmente aos
locais vizinhos às grandes propriedades rurais de base escravocrata, na qual os
escravos exercitavam essa luta.

A música, os cultos afro-brasileiros, o carnaval, a capoeira são alguns dos


exemplos em que podemos perceber a contribuição da cultura africana, trazi-
13
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a palavra samba é de origem quimbunda (uma das línguas de Angola) e originalmente
significa umbigada – uma espécie de dança ritmada em que os dançarinos batem-se com as barrigas.

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da pelos escravos, para a formação de uma cultura nacional brasileira. Assim, é


inegável que incontáveis laços (históricos, culturais, religiosos etc.) unem o Brasil
à África e, especialmente, à África de língua oficial portuguesa, de onde foram
trazidos muitos escravos para o Brasil. Certamente, ainda há muito que se falar
sobre essas culturas tão próximas, porém, não seria possível abordar aqui todos
os traços que nos unem enquanto brasileiros aos nossos irmãos africanos.

Estudos afro-brasileiros na contemporaneidade


A história da África e dos africanos é ainda hoje pouco presente nos currícu-
los universitários e secundários. Além disso, os primeiros estudos sobre a África
subsaariana enfocavam a história dos povos e suas respectivas culturas a partir
da chegada do europeu ao continente e tal prática perdurou por longo tempo.

Somente no início dos anos 1960, na Universidade de Cambridge, foi publi-


cada a revista The Journal of African History cujos artigos mostravam que a África
podia ser investigada com técnicas e procedimentos semelhantes aos aplicados
aos povos da Antiguidade mediterrânica e da Idade Média europeia. Essa obra,
juntamente com a de Basil Davidson, Old Africa Rediscovered (1959) acabaram
proporcionando outro rumo aos estudos sobre a África ao enfatizarem que nesse
continente, “[...] muito antes da chegada dos europeus, não haviam faltado nem
evolução nem mudanças sociais, nem invenções nem movimento” (SILVA, 2003,
p. 230).

Porém, antes dessas importantes publicações, mais precisamente em 1954,


J. C. de Graft-Johnson, um intelectual nascido na Costa do Ouro, o país que foi o
primeiro a se tornar independente com o nome de República do Gana, escreveu
African Glory: the story of vanished negro civilizations, obra na qual a história da
África subsaariana também é investigada antes da chegada dos europeus.

Entre os intelectuais brasileiros, observa-se que já no século XIX alguns intér-


pretes do Brasil como Raimundo Nina Rodrigues, Sílvio Romero, Arthur Ramos,
passando por alguns do século XX como Gilberto Freyre, Florestan Fernandes
etc. buscaram entender e divulgar ideias sobre a África brasileira e o negro.

Contemporaneamente, algumas obras atribuem a devida importância à his-


tória dos africanos e de seu continente, assim como buscam mostrar as ligações
entre o Brasil e a África. Falamos das obras de autores como João José Reis, Al-
berto da Costa e Silva, Kwame A. Appiah, Luiz Felipe de Alencastro, Pierre Verger,
Jaime Rodrigues, entre outros.
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Além desses estudiosos, várias entidades, organizações não governamentais,


centros de cultura etc., foram criados nos últimos anos objetivando resgatar a
cultura negra, a história da África, dos africanos no Brasil e sua importante contri-
buição na formação da cultura brasileira, como a Fundação Palmares, o Instituto
Casa da Cultura Afro-Brasileira, agremiações festivas como o Olodum etc.

Texto complementar
O poema “Navio negreiro” do poeta baiano Castro Alves (1847-1871),
representante do Romantismo brasileiro, foi escrito quando o poeta tinha
apenas 22 anos de idade, ou seja, em 1869, quando já não havia mais o tráfi-
co negreiro no Brasil. No entanto, a condição do negro escravizado e arranca-
do da sua terra natal sensibilizou o poeta e as imagens fortes de seu poema
nos dão conta do horror e crueldade a que os africanos acorrentados eram
submetidos nessas viagens que duravam cerca de três meses. Alguns desses
navios podiam suportar um carregamento de cerca de 500 escravos, muitos
dos quais morriam antes de chegar em terra firme por conta especialmente
da fome e da sede, das doenças que se disseminavam nos porões com pés-
simas condições de higiene, por conta dos maus-tratos ou ainda por todos
esses fatores.

Navio negreiro
(ALVES, 1980, p. 74-83)
‘Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar – doirada borboleta –
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.
‘Stamos em pleno mar. Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias
– Constelações do líquido tesouro...
‘Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,

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Azuis, dourados, plácidos, sublimes...


Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?...
‘Stamos em pleno mar... Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...
Donde vem?... Onde vai?... Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste Saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.
Bem feliz quem ali pode nest’hora
Sentir deste painel a majestade!...
Embaixo — o mar... em cima — o firmamento
E no mar e no céu – a imensidade!
Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! Como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!
Homens do mar! Ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!
Esperai! Esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia...
Orquestra – é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
[...]
III
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais, inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu ali... que quadro de amarguras!
Que canto funeral!... Que tétricas figuras!...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

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IV
Era um sonho dantesco... O tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças... mas nuas, espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Se o velho arqueja... se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!...”
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...

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Qual um sonho dantesco as sombras voam!...


Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...
V
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?... Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa!
Musa libérrima, audaz!...
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão...

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África lusófona e Brasil: laços e letras

São mulheres desgraçadas,


Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N’alma – lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram – crianças lindas,
Viveram – moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus...
...Adeus, ó choça do monte,
...Adeus, palmeiras da fonte!...
...Adeus, amores... adeus!...
Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó...
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p’ra não mais s’erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d’amplidão...

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África lusófona e Brasil: laços e letras

Hoje... o porão negro, fundo,


Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm’lo de maldade,
Nem são livres p’ra... morrer...
Prende-os a mesma corrente
– Férrea, lúgubre serpente –
Nas roscas da escravidão.
E assim roubados à morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoite... Irrisão!...
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...
VI
[...]
Fatalidade atroz que a mente esmaga!...
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga,

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Como um íris no pélago profundo!...


Mas é infâmia demais!... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

Dicas de estudo
 Uma História do Negro no Brasil, de Wlamyra R. de Albuquerque e Walter
Fraga Filho, Editora Centro de Estudos Afro-Orientais e Fundação Cultural
Palmares.

Esse livro, editado pela Fundação Cultural Palmares, traz uma ampla pes-
quisa sobre a história do negro no Brasil desde a chegada dos primeiros
africanos escravizados, passando pelas lutas e resistências negras até as
organizações que hoje resgatam a africanidade na cultura brasileira. O li-
vro traz imagens e fotos que ilustram o texto bastante didático e cuidado-
so de seus autores.

 Os Condenados da Terra, de Fanon Frantz, Editora Civilização Brasileira.

Essa obra já clássica nos estudos sobre a luta anticolonial e sobre os ne-
gros em geral, de autoria do martinicano Fanon Frantz, resultou de seu
testemunho como médico psiquiatra do exército francês na Argélia. Publi-
cada em 1961, a obra valoriza as lutas revolucionárias por uma sociedade
melhor.

 Site: Fundação Cultural Palmares <www.palmares.gov.br>.

A Fundação Cultural Palmares, fundada em 1992, é uma entidade pública


vinculada ao Ministério da Cultura e tem como objetivo resgatar a história
dos negros no Brasil. O site contém ações governamentais em prol desse
resgate, contém vários artigos sobre o negro, a negritude, a consciência
negra, entre outros dados históricos e culturais sobre os negros no Brasil,
além de um dicionário de expressões afro-brasileiras.

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África lusófona e Brasil: laços e letras

 Quilombo (1984). Direção Cacá Diegues. 119 minutos. Elenco: Antônio


Pompeo, Zezé Motta, Vera Fischer, Maurício do Valle, Grande Otelo, Daniel
Filho, Jofre Soares.

O filme de Cacá Diegues narra a história do Quilombo dos Palmares, uma


república de escravos fugidos no século XVII, mostrando o cotidiano dos
quilombolas refugiados e sua luta por manter sua república livre até sua
destruição final.

Estudos literários
1. Quando os portugueses aportaram na África, havia dois tipos de escravidão
no continente: uma existente entre os povos nativos e outra introduzida pe-
los árabes. Explique a diferença entre cada uma dessas práticas.

2. Em que consistiam os quilombos? Qual a sua importância para a preserva-


ção dos valores africanos?

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África lusófona e Brasil: laços e letras

3. Por que podemos dizer que os cultos religiosos africanos foram reinventados
no Brasil? De que maneira podemos falar de um sincretismo entre as religi-
ões no Brasil?

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História e historiografia indígena

Mariana Paladino
Este capítulo tem como objetivo fornecer informações básicas e instru-
mentos de análise para a compreensão da presença indígena ao longo da
história do Brasil.

A reconstrução dessa presença não é fácil, já que as sociedades que


habitaram o território que veio a se tornar o Brasil eram fundamental-
mente orais e não deixaram fontes escritas. Têm sido os relatos dos co-
lonizadores e dos missionários dos séculos XVI, XVII e XVIII, dos viajantes
e naturalistas do século XIX e dos etnólogos do século XX e XXI que nos
proporcionam fontes para a compreensão da história indígena. Contu-
do esses escritos – principalmente dos primeiros séculos da coloniza-
ção – devem ser lidos com cuidado e devemos considerar os contextos
em que foram produzidos e as imagens vigentes neles sobre os índios.
Assim, por exemplo, algumas crônicas oferecem imagens fantasiosas
dos povos indígenas, ora idealizando-os como inocentes e puros, ora
desumanizando-os ao apresentá-los como bárbaros e antropófagos. As
evidências arqueológicas são um bom complemento para contrastar
aquelas fontes. Outra abordagem riquíssima é a da própria perspectiva
dos povos indígenas contemporâneos que nos apresentam, a partir de
sua memória, transmitida por tradição oral – através de mitos e diversas
formas de narrativas –, sua interpretação da história.

Nesta aula nos centraremos na história indígena pós-contato, iniciada


com a chegada dos portugueses no ano 1500. Cabe aclarar que se trata de
um panorama geral, que deveria ser complementado por histórias locais,
que deem conta da complexidade e diversidade dos acontecimentos e
das especificidades históricas e culturais dos povos em contato.

Vamos começar estudando como foram considerados e tratados os in-


dígenas no sistema colonial e missionário, depois analisaremos o período
do Diretório dos Índios e o retorno da ação missionária (1755–1910), para
terminar estudaremos o regime tutelar estabelecido com a criação da Re-
pública. Ainda abordaremos as representações e imagens sobre os índios
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História e historiografia indígena

vigentes nos séculos XVIII até XX, que explicam em grande parte as políticas e
legislações existentes. Por fim, abordaremos as formas com que os povos indí-
genas percebem e explicam o contato com os brancos, chamando a atenção
para o fato de que – contra a ideia de que se tratariam de sociedades estáticas
– eles foram e são sujeitos ativos da história.

O sistema colonial e missionário (1549–1755)


A presença humana nas terras baixas da América do Sul remonta há 12 mil
anos. As evidências arqueológicas mais recentes dão conta que não apenas
existiram neste território formas de organização social simples, mas também
se desenvolveram sociedades belicosas, expansionistas e com uma organiza-
ção social complexa (FAUSTO, 2000).

O etnólogo Curt Nimuendaju (1981) estimou, em seu Mapa Etno-Histórico,


a existência de cerca de 1 400 povos indígenas no território que correspondia
ao Brasil do descobrimento. As cifras dessa população, no entanto, não são
seguras. Existem estimativas parciais, que ainda não terminam de compor um
quadro global. As cifras variam entre 1 a 8,5 milhões de habitantes segundo
diferentes estudos. Por exemplo, Rosenblat (1954) estimou um milhão de ha-
bitantes para o Brasil como um todo e Denevan (1976) avaliou em 6,8 milhões
a população aborígine da Amazônia, Brasil Central e Costa Nordeste (apud
CUNHA, 1992, p.14). Apesar das diferenças, essas quantidades esvaziam a
imagem tradicional, consolidada no século XIX, de ser este um território pouco
habitado.

“Descobrimento”, “encontro” ou “conquista”?


Esses três termos mostram formas bem diferenciadas de entender o proces-
so de contato entre população autóctone da América e população europeia.
O “descobrimento” supõe a ideia de que os europeus desembarcaram em uma
terra virgem, deserta e despovoada e que inauguraram com a sua chegada a
história do Brasil. O “encontro” supõe uma relação idílica de paz e intercâmbio
equilibrado. Já a “conquista” chama a atenção para o fato da relação colonial,
de dominação e violência.

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História e historiografia indígena

Descobrimento do Brasil, 1956. Candido Portinari. São Paulo. Óleo sobre cartão: Domínio público.
34,2 x 26cm. Coleção particular.

Existem diferenças entre os autores na forma de avaliar a magnitude da de-


população1. Alguns, como Rosenblat, avaliam que, de 1492 a 1650, a América
perdeu um quarto de sua população; outros, como Dobyns, acham que a depo-
pulação foi da ordem de 95% a 96% (apud CUNHA, 1992).

O primeiro contato das populações indígenas com portugueses remonta ao


ano 1500, quando Cabral encontrou na Costa da Bahia o povo que era chamado
Tupiniquim, pertencente à grande família Tupi e que ocupava quase todo o lito-
ral. Segundo Cunha (1992), durante o primeiro meio século de contato, os índios
foram, sobretudo, parceiros comerciais dos europeus. Estabelecia-se a troca de
mercadorias ou permuta de objetos dos europeus por trabalho indígena (sobre-

1
Este termo refere-se ao declínio populacional dos nativos americanos. Os acadêmicos acreditam que, entre vários fatores, as doenças epidêmicas
foram de longe a maior causa do declínio populacional dos nativos americanos.

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História e historiografia indígena

tudo para a extração do pau-brasil). Quando a colônia se instalou, as relações


alteraram-se, tensionadas pelos interesses em jogo que, do lado europeu, envol-
viam colonos, governo e missionários. A partir de então, os europeus precisaram
de mão de obra para as empresas coloniais (CUNHA, 1992, p. 14).

A taxa de depopulação durante os dois primeiros séculos da colonização foi


brutal. As guerras, as expedições para captura de escravos, as epidemias e a fome
dizimaram os povos indígenas (CUNHA, 1992; FAUSTO, 2000)2.

Os aldeamentos3 e a escravização indígena


Os aldeamentos foram fundamentais para o projeto colonial, pois garanti-
ram a conversão religiosa dos índios, a ocupação e a defesa do território além
de uma constante reserva de mão de obra para o desenvolvimento econômico
da colônia.

Os comportamentos dos povos indígenas foram diversos entre si e até inter-


namente ao próprio grupo: alguns povos – segundo dão conta documentos e
crônicas da época – se aldearam pacificamente. Outros, sem abandonarem seus
territórios ou se aldearem, uniram-se aos portugueses ou a seus inimigos euro-
peus em suas guerras, firmaram tratados de paz e tornaram-se nações aliadas.
O incentivo à obtenção e manutenção de alianças se revelou nos vários títulos
honoríficos e recompensas dados a esses índios aliados4.

Outros ainda resistiram a todo e qualquer tipo de relação com os colonizado-


res, alguns deles foram massacrados e escravizados (PERRONE-MOISÉS, 1992, p.
129). Em alguns casos, os índios recorreram a todo seu aparato bélico para repe-
lir os invasores: flotilhas com centenas de canoas equipadas; guerreiros portan-
do escudos de couro de peixe-boi e propulsores de dardos; setas envenenadas
lançadas das barrancas do rio (FAUSTO, 2000, p. 45).

É importante destacar o caráter estratégico que adquiriu o contato com as po-


pulações autóctones para a ocupação portuguesa poder avançar e se expandir
territorialmente pela América do Sul. Nos primeiros séculos de colonização, várias
2
A política de concentração da população em aldeias praticada por missionários e pelos órgãos oficiais favoreceu as epidemias, como varíola,
sarampo, coqueluche, catapora, difteria, gripe, e peste bubônica. Fausto destaca que em 1562 uma epidemia consumiu em três meses cerca de 30
mil índios na Baía de Todos os Santos. Em 1564, veio a “fome geral”, pois nada se plantara nos anos anteriores (FAUSTO, 2000, p. 70-71).
3
Os aldeamentos são os povoados que os missionários criaram para segregar os índios convertidos. Foram o centro da ação catequética, inicial-
mente dos jesuítas e depois das outras ordens também. Neles eram reduzidos os índios que haviam sobrevivido às guerras ou às epidemias. Nos al-
deamentos jesuíticos os índios eram educados para viver como cristãos. Essa educação significava uma imposição forçada de outra cultura, a cristã.
Os jesuítas valiam-se de aspectos da cultura nativa, especialmente da língua, para se fazerem compreender e se aproximarem dos indígenas.
4
Certos grupos indígenas aliaram-se estrategicamente aos europeus para se contrapor a outros grupos indígenas tradicionalmente inimigos. Por
exemplo, no século XVI, os franceses e os portugueses em guerra aliaram-se, respectivamente, aos Tamoios e aos Tupiniquins, que por sua vez
tinham relações de inimizade antes da chegada dos europeus.

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Coroas disputavam a ocupação de algumas partes do atual Brasil. Só a partir do


Tratado de Madrid, em 1750, a Espanha reconheceu a ocupação territorial alcan-
çada por Portugal. Veremos a seguir um mapa que retrata a representação que
existia sobre a América Meridional em meados do século XVII. Nele se evidencia
que o território denominado Brasil era muito menor do que o atual.

Divulgação Biblioteca Nacional Portuguesa.


L’Amerique Meridionale dressée sur lês observations de Mrs. Del’Academie Royal dês Sciencies
Amsterdam: Chez Pierre Morties. Nicolas Sanson. (1600–1667) 1 carta: com traçados color:
58 x 48cm.

A distinção “índios aliados” e “índios inimigos” redundou numa política e tra-


tamento diferenciados por parte da Coroa Portuguesa. Aos primeiros lhes foi
garantida a liberdade ao longo de toda a colonização. Deles dependeram o sus-
tento (produziam gêneros de primeira necessidade e trabalhavam nas planta-
ções dos colonizadores) e a defesa da colônia (constituindo o grosso dos contin-
gentes de tropas de guerra contra inimigos, tanto indígenas quanto europeus).
A política para esses “índios de pazes”, “índios das aldeias” ou “índios amigos”
sustentou-se nos descimentos, ou seja, nos deslocamentos de povos inteiros que
foram trazidos do interior para junto das povoações portuguesas.

A legislação colonial estabelecia que os descimentos deviam resultar da per-


suasão exercida por tropas lideradas ou acompanhadas por um missionário,

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sem qualquer tipo de violência. A “persuasão” consistia em convencer os “índios


amigos” de que, nas aldeias, teriam posse de suas terras, receberiam bons tratos
e trabalho assalariado. Essa política, que estabelecia a ilegalidade do descimento
baseado na coação, continuou sendo afirmada até o século XVIII. A recomenda-
ção de tratamento bondoso e pacífico para os índios aldeados baseou-se em
razões de ordem religiosa: a conversão só podia ser conseguida com brandura e
se os cristãos dessem aos índios o bom exemplo. Contudo, há vários indícios de
que os índios das aldeias acabaram ficando em situação pior do que os escravos:
sobrecarregados, explorados, mandados de um lado para outro sem que sua
vontade, exigida pelas leis, fosse considerada (PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 121).

Os jesuítas foram responsáveis não apenas pelo “governo espiritual” dos


povos indígenas (catequese), mas também pelo “governo temporal” (a adminis-
tração das aldeias e do trabalho indígena)5. De modo geral, nas aldeias viveram
apenas os índios e os missionários. Só mais tarde, durante a política pombalina6,
que analisaremos mais adiante, incentivou-se a presença de brancos nos aldea-
mentos, com o objetivo de procurar a assimilação dos índios.

Por outro lado, a escravidão foi o destino dos “índios inimigos”. Existiu uma
legislação que falava das “justas razões de direito” para a escravização dos in-
dígenas. Essas razões eram a “guerra justa” e o “resgate”. As causas legítimas
para estabelecer uma guerra contra os índios eram a recusa à conversão da Fé,
a prática de hostilidades contra vassalos e aliados dos portugueses e a quebra
dos pactos celebrados. Outros dois motivos que aparecem nas discussões
dos jesuítas sobre a guerra justa são a salvação das almas e a antropofagia
(PERRONE-MOISÉS, 1992, p.123–124). A escravização que resultava da captura
dos índios inimigos após o término da guerra justa era vista como lícita (Leis
de 20/3/1570 e de 11/11/1595).

É importante destacar que embora muitas das guerras contra os índios es-
tivessem motivadas por interesses econômicos e para as quais eram encontra-
das justificativas a posteriori, elas suscitavam discussões e controvérsias entre
missionários, reis e autoridades militares. Discutia-se acaloradamente acerca dos
fundamentos teológicos e jurídicos da justiça desta prática contra os indígenas,
e a questão preocupava bastante a Coroa, permanecendo um ponto controver-
5
A Lei de 1611 manteve a jurisdição espiritual de jesuítas, mas estabeleceu a criação de um capitão de aldeia para que se encarregasse da admi-
nistração. Porém, a Lei de 9 de abril de 1655 para o Estado do Maranhão e também a Lei de 12 de setembro de 1663 proibiram que se pusessem
capitães nas aldeias, estabelecendo que o governo estivesse em mãos dos missionários e dos chefes indígenas (“principais de sua nação”).
6
O Marquês de Pombal comandou durante 27 anos a política e a economia portuguesa. Ele reorganizou o Estado, protegeu os grandes empresá-
rios, criando as companhias monopolistas de comércio. Combateu tanto os nobres quanto o clero. Em conformidade com uma política de conso-
lidação do domínio português no Brasil, Pombal aplicou o Tratado de Madrid, que ampliava as fronteiras, tanto no Norte quanto no Sul, entrando
em confronto direto com as missões jesuíticas.

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so (CUNHA, 1986, p. 152). A Lei de 30 de agosto de 1609 declarou a liberdade de


todos os índios do Brasil, para coibir as escravizações ilícitas. No entanto, a Lei de
10 de setembro de 1611 restaurou a escravidão dos índios capturados em guerra
justa, mas determinou que esta deveria ser julgada pelo rei. Assim, houve ao
longo de todo o período colonial avanços e recuos na legislação que prescrevia
o cativeiro indígena. Sua extinção formal – mas não real – foi decretada pela Lei
de 6 de junho de 1755.

De meados do século XVII a meados do século XVIII, os jesuítas construíram


um enorme território missionário. Pela sua ligação direta com Roma e pela inde-
pendência financeira que adquiriram, lograram ter uma política independente,
mas entraram em choque ocasionalmente com o governo e regularmente com
os moradores. A causa dos conflitos era principalmente pelo controle do trabalho
indígena nos aldeamentos. Os missionários reuniram povos com culturas e lín-
guas diversas, promovendo sua catequização, o que envolveu o estabelecimento
de novas formas de trabalho, organização social e familiar, padrões de moradia,
práticas de sociabilidade e rituais. Impôs-se o uso da língua geral ou “nheengatu”
como língua franca7 e veículo de homogeneização e se criou um sistema de “au-
toridades nativas”, como mediadores entre os índios e os missionários.

Como vimos, a legislação e a política da Coroa Portuguesa em relação aos


povos indígenas do Brasil colonial diferenciaram os índios aldeados e aliados
dos índios bárbaros e inimigos (PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 129). A questão
da liberdade dos índios ocupou um lugar central num debate que envolveu
as principais forças políticas da colônia: os jesuítas e os colonizadores (cha-
mados, na época, “moradores”). Foram de tal dimensão as dúvidas relativas
à escravidão indígena que Varnhagen (1981, p. 336) atribui o início do incre-
mento da importação de escravos africanos à dificuldade que encontravam
os moradores em legitimar a posse dos índios. Como Perrone-Moisés (1992,
p. 116) destaca,
[...] os jesuítas defendiam princípios religiosos e morais e mantinham os índios aldeados e
sob controle, garantindo a paz na colônia. Os colonos garantiam o rendimento econômico
da colônia, absolutamente vital para Portugal [...] Dividida e pressionada de ambos os lados, a
Coroa teria produzido uma legislação indigenista contraditória, oscilante e hipócrita.

7
Língua franca é uma expressão latina para língua de contato ou língua de relação resultante do contato e comunicação entre grupos ou membros
de grupos linguisticamente distintos. Os jesuítas impuseram o uso do nheengatu como língua franca a partir do vocabulário e pronúncia tupinam-
bás, que foram enquadrados em uma gramática modelada na portuguesa. Em seu auge, chegou a ser a língua dominante no território brasileiro,
utilizada não apenas por índios e jesuítas, mas também como língua corrente de muitos colonos de sangue português. Entretanto, entrou em
declínio a partir do século XVIII, com o aumento da imigração portuguesa, e sofreu duro golpe em 1758 ao ser banida pelo Marquês de Pombal, por
ser associada aos jesuítas, os quais foram expulsos dos territórios dominados por Portugal.

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O Diretório dos Índios e o retorno


da ação missionária (1755–1910)
Em 1755, o Marques de Pombal inicia a reformulação da política colonial por-
tuguesa, promovendo a retirada das missões jesuíticas e subordinando as demais
ordens religiosas ao poder secular8. A partir desse processo, as sedes das missões
foram transformadas em povoados ou vilas, os índios considerados “emancipa-
dos” dos religiosos e subordinados apenas a autoridades laicas. Com uma direti-
va assimilacionista9, a política do Marques de Pombal estimulou os casamentos
interétnicos10, o estabelecimento de colonos entre os índios – quebrando o iso-
lamento que os jesuítas tinham estabelecido nas missões – e também impôs o
uso da língua portuguesa. Com isso, a Coroa pretendeu promover a emergência
de um povo brasileiro “livre”, substrato de um Estado consistente: índios e bran-
cos formariam este povo enquanto os negros continuariam escravos.

O Marquês de Pombal concedeu aos índios uma autonomia total durante


apenas dois anos – de 7 de junho de 1755 a 3 de maio de 1757. Em 1757, Men-
donça Furtado, irmão de Pombal, criou o Diretório dos Índios, argumentando
que os “principais” (chefes nativos) teriam sido mal instruídos pelos padres e que
se mostraram inaptos para o governo de suas povoações. Em consequência, jus-
tificou sua substituição por diretores “[...] enquanto os índios não tiverem capa-
cidade para se governarem” (CUNHA, 1992, p. 147).

Nesse período, começou a vigorar uma retórica mais secular de “civilização”


que se agregou à de catequização. “Civilizar” era, principalmente naquela época,
submeter às leis e obrigar ao trabalho. Mas os índios rejeitavam as formas de
trabalho impostas pelos colonos e fugiam com frequência das aldeias, refugian-
do-se nas matas. Portanto, para impedir essas fugas, o governo favoreceu o es-
tabelecimento de colonos, sobretudo de milicianos e fazendeiros concedendo
sesmarias11 nos territórios indígenas.

8
O “poder secular” se refere ao poder de governo independente de religiões, crenças ou cultos. Utiliza-se como sinônimo de “poder temporal”, que
remete à ideia de duração finita, limitada, em contraposição ao poder “eterno” ou “infinito” da Igreja. Na Idade Média, os bispos detinham poder
religioso e também secular, enquanto reis, príncipes e nobres detinham apenas o poder secular. O surgimento da Idade Moderna se associa à
separação desses dois poderes.
9
O “assimilacionismo” é uma ideologia e uma política voltada a absorver os grupos ou minorias de modo a impor uma hegemonia político-cultural,
fazendo com que aqueles percam suas características distintivas. Para um Estado – como o brasileiro – que começava a ser construído, o assimilacio-
nismo foi percebido como condição para criar valores e sentimentos nacionais, solidez política, paz social e desenvolvimento econômico.
10
O conceito remete ao contato entre etnias diferentes. Os casamentos interétnicos podem se referir à união entre pessoas de povos indígenas
diferentes ou entre um índio e um branco. Ver Pacheco de Oliveira (1988) para uma análise das teorias de contato interétnico.
11
Sesmaria foi um instituto jurídico português que normatizava a distribuição de terras destinadas à produção. O Estado, recém-formado e sem
capacidade para organizar a produção de alimentos, legou a particulares essa função. Esse sistema surgiu em Portugal durante o século XIV, com a
Lei das Sesmarias de 1375, criada para combater a crise agrícola e econômica que atingia o país e a Europa, e que a peste negra agravara. Quando
a conquista do território brasileiro se efetivou a partir de 1530, o Estado português decidiu utilizar o sistema sesmarial no além-mar, com algumas
adaptações. Esse sistema iria garantir a instalação da plantation açucareira na colônia.

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História e historiografia indígena

O aldeamento de índios obedeceu a várias conveniências: não só os tirou


de regiões disputadas por frentes pastoris ou agrícolas, mas os levou também
para onde se precisava de mão de obra, não apenas para os interesses regionais
ou nacionais, mas também os interesses locais de moradores. Para obrigar os
índios ao trabalho, as análises da época afirmavam que se deviam ampliar suas
necessidades e restringir simultaneamente suas possibilidades de satisfazê-las,
diminuir seu território e confiná-los de tal maneira que não pudessem mais sub-
sistir com suas atividades tradicionais. Foi promovida a dependência dos indíge-
nas de mercadorias, como instrumentos de ferro, roupas e outros artigos, para
estimulá-los ao trabalho e ao comércio. Assim, durante este período, o trabalho
indígena continuou sendo disputado, como vinha acontecendo nos séculos an-
teriores, pelos particulares e pelo Estado.

Em 1798, a partir das irregularidades e abusos dos diretores, revogou-se o


Diretório Pombalino pela Carta Régia de 25 de julho e com isso os índios alde-
ados foram emancipados. Ao mesmo tempo, aos índios que seguiam sendo in-
dependentes, não aldeados, foi imposta a tutela por parte de particulares que
conseguissem contratá-los para servi-los, com obrigação de educá-los. Ao juiz
de órfãos coube a tarefa, a partir de 1789, de zelar para que os contratos fossem
honrados, os índios pagos, batizados e educados.

Em 1808, D. João VI, recém chegado ao Brasil, desencadeou uma guerra ofen-
siva contra os Botocudos, para liberar para a colonização o vale do Rio Doce no
Espírito Santo e os campos de Guarapuava, no Paraná. A declaração de guerra
justa legalizou, uma vez mais, a escravização dos índios. Como afirma Cunha
(1992, p. 146):
Numa retórica característica do início do século XIX, vem expressa em termos pedagógicos: a
escravidão temporária dos índios, dobrando-os à agricultura e aos ofícios mecânicos, deveria
fazer-lhes perder sua “atrocidade” e, sujeitando-os ao trabalho como os sujeitava às leis, elevá-
-los a uma condição propriamente social, isto é, humana.

Com a independência do Brasil, em 1822, debateu-se a necessidade de uma


política indigenista. No período que antecedeu a primeira Constituição brasilei-
ra, se apresentaram nada menos que cinco projetos de deputados, sendo apro-
vado o de José Bonifácio: “Apontamentos para a civilização dos índios bravos
do Império do Brasil”, em 18 de junho de 1823. No entanto, não foi incorporado
ao projeto constitucional. A Assembleia Constituinte se limitou a declarar de
competência das províncias a promoção de missões e catequese dos índios. Dis-
solvida a Constituinte por D. Pedro I, nossa primeira Constituição nem sequer
menciona a existência dos índios (CUNHA, 1992, p. 138).

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A partir de então, se estabeleceu um vazio legal para a questão indígena até


1845, quando se decreta o “Regulamento acerca das Missões de catequese e ci-
vilização dos índios” (Decreto 426, de 24 de julho de 1845), e se impõe novamen-
te o aldeamento e o governo das missões, mas entendida como uma transição
para a assimilação completa dos índios.

Desde meados do século XIX, a questão indígena deixou de ser essencialmen-


te uma questão de mão de obra para se tornar uma questão de terras (CUNHA,
1992, p. 16). O Império tratou de alargar os espaços transitáveis e apropriáveis.
Apesar de reconhecer o direito legítimo dos índios à posse das terras, utilizou
toda sorte de subterfúgios para ocupá-las. Dizia-se, por exemplo, que os índios
eram errantes, que não se apegavam ao território, que não tinham a noção de
propriedade. A Lei de Terras de 1850 estabeleceu uma política agressiva em rela-
ção às terras das aldeias. Extinguiram-se aldeias sob o pretexto de que os índios
se achavam “confundidos com a massa da população” e reverteram-se suas terras
ao Império e depois às províncias, que as repassaram aos municípios que por sua
vez as venderam a particulares. Assim, fechou-se um processo de expropriação e
redução da terra indígena iniciada no século XVI.

A mão de obra indígena tornou-se – para o governo e os poderes locais – uma


alternativa transitória diante da possibilidade de contar com outras populações tra-
balhadoras, como a dos escravos africanos ou a dos colonos mestiços. Foi o caso do
que aconteceu, por exemplo, com a extração da borracha na Amazônia ocidental,
que passou a ser explorada por trabalhadores nordestinos (CUNHA, 1992, p. 134).

Os missionários foram reintroduzidos no Brasil na década de 1840, mas fica-


ram estritamente a serviço do Estado, para que se desenvolvessem como assis-
tentes religiosos e educacionais dos administradores. Porém, pela carência de
diretores de índios minimamente preparados, foi frequente a situação de missio-
nários exercerem cumulativamente os cargos de diretores de índios12.

O Regime tutelar (1910–1988)


No início do século XX, houve um movimento de opinião, sobretudo levado
a cabo no Rio de Janeiro e em São Paulo, a respeito do futuro dos índios e da
colonização do país. Os positivistas ortodoxos participaram ativamente do
debate. Cândido Rondon, um militar imbuído do ideário positivista, que tinha
sido designado como chefe da comissão que construiu a linha telegráfica de
12
Em 1843 o Império iniciou uma política de importação de capuchinhos italianos, que iriam preencher boa parte dos postos de direção das
aldeias. Eles foram distribuídos segundo os projetos do Governo, sem contar com a autonomia que tiveram os missionários jesuítas no século XVII.

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Cuiabá a Rondônia, propôs que fosse criada uma agência indigenista que teria
por finalidades13:

 estabelecer a convivência pacífica com os índios;

 agir para garantir sua sobrevivência física;

 fazer com que adotassem gradualmente hábitos “civilizados”;

 fixá-los à terra;

 contribuir para o povoamento do interior do Brasil;

 poder acessar ou produzir bens econômicos nas terras dos índios;

 usar a força de trabalho indígena para aumentar a produtividade agrícola;

 fortalecer o sentimento indígena de pertencer a uma nação (SOUZA LIMA,


1987, opud PACHECO DE OVILEIRA; FREIRE, 2006, p. 113).

Em 20 de julho de 1910, criou-se – a partir do Decreto 8.072 – a primeira


agência leiga do Estado brasileiro responsável das políticas indigenistas: o Ser-
viço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), que
funcionou, no início, dentro do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio.
Esse serviço ficou com a responsabilidade de prestar assistência tanto aos índios
nômades quanto aos aldeados, passando os indígenas, então, a serem tutelados
pelo Estado. O projeto deste órgão procurou afastar a Igreja Católica da cateque-
se indígena e sustentou-se na finalidade de transformar o índio em um trabalha-
dor nacional (PACHECO DE OLIVEIRA; FREIRE, 2006).

Rondon foi convidado a dirigir o SPILTN devido à competência que tinha


demonstrado no trato com povos indígenas nos trabalhos das Comissões de
Linhas Telegráficas e de suas ideias positivistas convergentes com os projetos de
colonização e povoamentos do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio.
Dirigiu o órgão indigenista até 193014.

Com o objetivo de integrar populações e territórios indígenas, o SPILTN (a


partir de 1918, passou a se chamar apenas SPI) adotou uma organização admi-
nistrativa diferenciada conforme o grau de contato que considerava que os
13
Na época, a República, que estava em processo de constituição, deparou-se com uma série de dificuldades quanto à inclusão de populações
que se viam autossuficientes, e que provocavam, assim, uma descontinuidade política, econômica, e, principalmente, simbólica em relação à ideia
de nação. As alterações na relação Igreja-Estado e o predomínio do positivismo como ideologia que era forte na época, sobretudo nos militares,
influenciou em que a questão indígena se afastara da ideia de catequese e se laicizara a administração dessa população. As ideias positivistas exal-
tavam o papel da ciência e do progresso como forma racional de governo. Para os positivistas ortodoxos devia-se começar pelos povos indígenas
(suposta matéria-prima da pátria) um trabalho “pedagógico” de (re)formação do Brasil (SOUZA LIMA, 1995).
14
Para se aprofundar na história da relação entre o Estado Nacional e os povos indígenas no período republicano e na atuação do Serviço de
Proteção aos Índios ver, Souza Lima (1995).

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índios tinham com a sociedade nacional. Eles eram classificados como: “iso-
lados”, “em contato intermitente”, “em contato permanente” e “integrados”.
Assim, por exemplo, se estabeleceram “postos indígenas de atração” para os
povos que não tinham quase contato com a população branca ou que manti-
nham com ela relações de conflito. Havia também “postos de criação”, onde se
introduziam atividades educacionais voltadas para incentivar a produção eco-
nômica dos índios que já tinham certo contato com a sociedade não indígena.
Planejava-se, de acordo com o grau de sedentarismo que manifestasse cada
grupo indígena, a demarcação de terras maiores ou menores para o desen-
volvimento da produção agrícola15. O objetivo era tornar os índios pequenos
produtores agrícolas, ou seja, “trabalhadores nacionais”. A educação foi vista
como uma ferramenta fundamental de mudança de hábitos e, por isso, foram
criadas escolas dentro dos postos. Nelas se ensinava português e se pratica-
vam rituais cívicos. Também se privilegiou o ensino prático através de oficinas
para o aprendizado de ofícios manuais.

A tutela que exerceu o SPI se caracterizou pela sua ambiguidade: propunha-


-se respeitar as terras e a cultura indígena, mas ao mesmo tempo agia transfe-
rindo índios e liberando territórios indígenas para colonização e impunha uma
pedagogia que alterava o sistema produtivo indígena. Assim, as ações que essa
agência exerceu não devem ser lidas apenas numa dimensão humanitária, nem
entendidas como simples dominação (PACHECO DE OLIVEIRA; FREIRE, 2006).

O SPI foi extinto em 1967 por acusações de genocídio de índios, corrupção e


ineficácia administrativa. Isso coincidiu com a reformulação do aparato estatal
após o golpe de 1964. Foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai), a
partir da Lei 5.371, de 5 de dezembro de 1967. Criada para continuar com o exer-
cício da tutela do Estado sobre os índios, a Funai tem seus princípios baseados
no mesmo paradoxo do SPI: o “ [...] respeito à pessoa do índio e às instituições
e comunidades tribais” e a promoção de “[...] educação de base apropriada do
índio visando sua progressiva integração na sociedade nacional” (PACHECO DE
OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p. 131).

Em 1973, foi sancionada a Lei 6.001, o Estatuto do Índio, que passou a regular
a situação jurídica dos índios e das comunidades indígenas, tanto no que diz
respeito às terras, quanto à educação, à cultura e à saúde. O artigo 65 das Dispo-
sições Gerais estabelecia o prazo de cinco anos para a demarcação de todas as

15
O respeito ao modo de vida dos índios implicou a garantia de posse do território desses povos. Daí a criação do Parque Indígena do Xingu
(1952), que se pensou como um espaço para que os índios não sofressem pressões das frentes de expansão econômica. Contudo, nem todas as
pacificações e a atração de povos indígenas para os postos se levaram a cabo com garantia de terras adequadas, o que causou em alguns casos
intensa depopulação provocada por fome e doenças.

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terras indígenas, prazo não cumprido até hoje. O Estatuto manteve a ideologia
civilizatória, integracionista e protecionista do SPI.
Na década de 1970, no contexto de uma política desenvolvimentista, cria-
ram-se investimentos em infraestrutura e prospecção mineral na Amazônia, e
os índios foram vistos como empecilhos ao progresso. Forçou-se o contato dos
índios isolados para liberar suas terras para diversas empresas, como estradas e
barragens, e realocaram-se os índios segundo os interesses em jogo. As frontei-
ras se militarizaram e os índios passaram a ser considerados riscos à segurança
nacional, por ocuparem territórios próximos a essas regiões e por considerá-los
alvos suscetíveis de invasão ou influência por parte de nações vizinhas.
Neste período, em oposição à política governamental, multiplicaram-se as
organizações não governamentais de apoio aos índios e, no início da década de
1980, pela primeira vez, se organiza um movimento indígena de âmbito nacio-
nal: a União das Nações Indígenas. O conselho Indigenista Missionário (CTMI),
organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), com
uma proposta de evangelização libertadora, teve um papel fundamental nisso.
A mobilização das organizações de apoio aos índios e o próprio movimento
de reivindicação que eles gestaram redundou na conquista de um reconheci-
mento dos direitos indígenas na Constituição de 1988, que abandona por fim a
perspectiva assimilacionista das Constituições anteriores.
A Constituição garante o reconhecimento da organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições indígenas, e os direitos originários sobre as terras
que tradicionalmente ocupam. O artigo 231 detalha o que são essas terras, a
que se destinam e como será o usufruto de suas riquezas. Também rompe com a
herança tutelar originada no Código Civil de 1916, mudando o status dos índios
e permitindo que individualmente ou através de suas organizações ingressem
em juízo para defender direitos e interesses.
Segundo destacam Pacheco de Oliveira e Freire (2006, p. 135–136), a proximi-
dade da reunião internacional sobre meio ambiente, a ECO-92, que foi realizada
no Rio de Janeiro, impulsionou a política de identificação e demarcação de terras
no início dos anos 1990. Como consequência da reunião, iniciou-se o financia-
mento internacional de programas para a proteção da floresta tropical e para a
demarcação das terras indígenas que foram realizadas a partir dos anos 1990.
Com o reconhecimento do direito territorial, o direito à saúde e à educação
bilíngue, intercultural e diferenciada, garantidos pela Constituição de 1988,
abre-se um novo panorama para os povos indígenas do Brasil. Contudo, ainda
falta muito caminho a percorrer para garantir esses direitos na prática.
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As imagens sobre os índios


nos séculos XVIII, XIX e XX
Nos séculos XVIII e XIX, os índios do Brasil foram caracterizados como gente
sem religião sem justiça e sem estado – uma ideia que, elaborada pela filosofia
política, serviu de base ao imaginário sobre o homem natural e o estado de na-
tureza (CUNHA, 1992).

No século XIX, com a influência do romantismo, como movimento artístico,


político e filosófico que se caracterizou como uma visão de mundo contrária ao
racionalismo, exaltou-se o índio como símbolo cultural do Brasil. Construiu-se
o estereótipo do “bom selvagem”, que já circulara entre filósofos e pensadores
iluministas no século anterior. A expressão literária que consagrou a imagem do
índio como expressão de liberdade e independência e como símbolo de nacio-
nalidade se chamou, no Brasil, “indianismo”. A obra mais significativa em prosa
foi a do romancista José de Alencar, com os romances Iracema e O Guarani, en-
quanto Antonio Gonçalves Dias se destacou na poesia.

Aspectos positivos e negativos dos povos indígenas estiveram em confronto


no século XIX, coexistindo visões tutelares e científicas com visões assimilacio-
nistas e românticas (PACHECO DE OLIVEIRA; FREIRE, 2006).

Na segunda metade do século XIX, em pleno auge do evolucionismo, pros-


perou a ideia de que certas sociedades teriam ficado na estaca zero da evolução
e, portanto, seriam como testemunhas vivas do passado das sociedades ociden-
tais. Os índios foram colocados nessa condição.

O fato de que fossem sociedades orais e que permanecessem aparentemen-


te mantendo uma forma de vida “primitiva” fez com que os estudiosos, princi-
palmente os etnólogos das primeiras décadas do século XX, afirmassem que se
tratavam de povos “sem história” ou “sociedades frias”. Pressupunham a ideia de
que estudar o presente dessas sociedades era equivalente a estudar seu passa-
do, já que não haveria diferenças ou mudanças significativas na sua forma de
vida e tradições.

Muitas foram as explicações para compreender e justificar o porquê das so-


ciedades indígenas da Amazônia não teriam desenvolvido formas complexas de
organização social. Alguns estudiosos (principalmente norte-americanos) de-

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fenderam a posição de que aquilo se deveu a limitações ambientais. Ou seja, as


sociedades amazônicas seriam simples devido à pobreza dos solos e ao escasso
potencial agrícola e de proteína animal (MEGGERS, 1977). Outros consideraram
que as sociedades indígenas das Terras Baixas teriam uma rejeição natural pelo
poder, o que determinou a não emergência do Estado (CLASTRES, 1978). Pesqui-
sas arqueológicas recentes (ROOSEVELT, 1992) vieram corroborar o que alguns
cronistas contaram (PORRO, 1992): a Amazônia foi povoada durante longo
tempo por algumas populosas sociedades, que desenvolveram formas comple-
xas de organização, sedentárias e possivelmente estratificadas.

Nos últimos anos vem sendo desenvolvida uma linha de pesquisas de an-
tropologia histórica que privilegia a abordagem dos indígenas como agen-
tes ativos e sujeitos políticos, capazes de serem protagonistas do seu próprio
destino.

Visões indígenas do contato


Se a história e os estudos antropológicos diferenciam e colocam coloniza-
dores de um lado e nativos do outro, para os povos indígenas existem diversas
interpretações dessa alteridade e das formas de se relacionar com os brancos.
Como chama a atenção Cunha (1992, p. 18), a percepção de uma política e de
uma consciência histórica em que os índios são sujeitos e não apenas vítimas
só é nova eventualmente para nós. Para os índios ela parece ser costumeira.
“É significativo que dois eventos fundamentais – a gênese do homem branco
e a iniciativa do contato – sejam frequentemente apreendidos nas sociedades
indígenas como o produto de sua própria ação ou vontade” (CUNHA, 1992,
p. 18). A gênese do homem branco nas mitologias introduz além da alterida-
de, o tema da desigualdade no poder e na tecnologia. O homem branco surge
nos mitos de alguns povos indígenas no mesmo ato de criação dos índios, mas
depois seguem caminhos distintos. Frequentemente também, a desigualdade
tecnológica, o monopólio de ferramentas de ferro e armas de fogo por parte
dos brancos é explicada nos mitos como uma escolha que foi dada aos índios.
Eles poderiam ter escolhido ou se apropriado desses recursos, mas fizeram uma
escolha por outros objetos, próprios de sua atual cultura. Por exemplo, os Krahô
e os Canela, povos falantes de língua Jê, família timbira, habitantes de Tocantins
e Maranhão, contam em seus mitos que quando lhes foi dada a opção pelo seu

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herói cultural, criador de todas as coisas, entre pegar a espingarda e o prato – os


quais tinha colocado um bem perto do outro – e o arco e a cuia – que estavam
mais afastados – preferiram esses últimos.
As sociedades indígenas constroem uma história do mundo em que seus atos
e escolhas tiveram importantes efeitos nas suas formas de vida atual. Os movi-
mentos messiânicos em alguns povos indígenas podem ser entendidos como
uma forma de reatualizar os mitos e reverter escolhas ou fatos anteriormente
vivenciados neles16.

Texto complementar
O discurso a seguir foi registrado pelo missionário Claude d’Abbeville, em
sua História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão. Proferido
diante de um grupo de franceses que, em missão diplomática, tratava de
estabelecer aliança com os povos indígenas da região, teve um grande im-
pacto sobre os presentes.

Registro do discurso de um chefe


Tupinambá no século XVII
“Digo apenas simplesmente o que vi com meus olhos”
Chefe Momboré-uaçu - Aldeia de Essauap,
Maranhão – 1612
(D’ABBEVILLE, 1945, p. 115-116)

Vi a chegada dos peró [portugueses] em Pernambuco e Potiú; e come-


çaram eles como vós, franceses, fazeis agora. De início, os peró não faziam
senão traficar sem pretenderem fixar residência. Nessa época, dormiam li-
vremente com as raparigas, o que nossos companheiros de Pernambuco
reputavam grandemente honroso. Mais tarde, disseram que nós devíamos
acostumar a eles e que precisavam construir fortalezas, para se defenderem,
e edificarem cidades para morarem conosco.

16
Ver a coletânea organizada por Albert e Ramos (2002), para um aprofundamento sobre as formas em que alguns povos indígenas vivenciam a
história e entendem os processos de contato interétnico atravessados.

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E assim parecia que desejavam que constituíssemos uma só nação. Depois,


começaram a dizer que não podiam tomar as raparigas sem mais aquela, que
Deus somente lhes permitia possuí-las por meio do casamento e que eles não
podiam casar sem que elas fossem batizadas. E para isso eram necessários paí
[padres]. Mandaram vir os paí; e estes ergueram cruzes e principiaram a ins-
truir os nossos e a batizá-los. Mais tarde afirmaram que nem eles nem os paí
podiam viver sem escravos para os servirem e por eles trabalharem. E, assim,
se viram os nossos constrangidos a fornecer-lhos. Mas não satisfeitos com os
escravos capturados na guerra, quiseram também os filhos dos nossos e aca-
baram escravizando toda a nação; e com tal tirania e crueldade a trataram,
que os que ficaram livres foram, como nós, forçados a deixar a região.

Assim aconteceu com os franceses. Da primeira vez que viestes aqui, vós
o fizestes somente para traficar. Como os peró, não recusáveis tomar nossas
filhas e nós nos julgávamos felizes quando elas tinham filhos. Nesta época,
não faláveis em aqui vos fixar. Apenas vos contentáveis com visitar-nos uma
vez por ano, permanecendo entre nós somente quatro ou cinco luas. Re-
gressáveis então a vosso país, levando os nossos gêneros para trocá-los com
aquilo de que carecíamos.

Agora já nos falais de vos estabelecerdes aqui, de construirdes fortalezas para


defender-vos contra os vossos inimigos. Para isso, trouxestes um Morubixaba e
vários paí. Em verdade, estamos satisfeitos, mas os peró fizeram o mesmo.

Depois da chegada dos paí, plantastes cruzes como os peró. Começais


agora a instruir e batizar tal qual eles fizeram; dizeis que não podeis tomar
nossas filhas senão por esposas e após terem sido batizadas. O mesmo diziam
os peró. Como estes, vós não queríeis escravos, a princípio; agora os pedis e
quereis como eles no fim. Não creio, entretanto, que tenhais o mesmo fito
que os peró; aliás, isso não me atemoriza, pois velho como estou nada mais
temo. Digo apenas simplesmente o que vi com meus olhos.

Dicas de estudo
 Os Índios antes do Brasil, de Carlos Fausto, Editora Jorge Zahar.

Escrito por um professor de Antropologia da Universidade Federal do Rio de


Janeiro, especialista em povos indígenas, em linguagem acessível a todos,
convida o leitor a descobrir os índios que habitaram o Brasil antes de Cabral.

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História e historiografia indígena

 História dos Índios no Brasil, organizado por Manuela Carneiro Cunha, Edi-
tora Companhia das Letras.

Uma importante compilação de artigos produzidos por antropólogos e


historiadores focaliza diversos períodos da história indígena, desde a si-
tuação dos povos indígenas antes da chegada dos portugueses, as polí-
ticas e legislações do período colonial e do Império até chegar à política
tutelar da República. Os artigos que compõem o livro possuem uma rica
documentação de fontes e imagens e são produto de longas trajetórias de
pesquisa dos autores nessas temáticas.

 Brava Gente Brasileira (Brasil, 2000). Direção de Lúcia Murat.

A ficção se passa no atual Mato Grosso do Sul, quando no final do século


XVIII um grupo de portugueses designados para fazer um levantamento
topográfico na região do Pantanal envolve-se no estupro de índias da tri-
bo Kadiwéu. O filme focaliza o conflito cultural entre brancos (colonizado-
res) e nativos, tendo como tema principal a dificuldade de compreensão
cultural.

 Site do Museu do Índio: <www.museudoindio.org.br>.

Criado por Darcy Ribeiro em 1953, o Museu hoje se descreve como “órgão
científico-cultural da Funai”. O site traz informações sobre o acervo da Bi-
blioteca Marechal Rondon, que é muito rico em documentos textuais e
visuais produzidos pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI).

Estudos literários
1. Que fontes disponíveis existem para o estudo da história indígena? Que ca-
racterísticas elas têm e qual é a importância de considerar as narrativas his-
tóricas produzidas pelos próprios indígenas?

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2. Como se constituíram os aldeamentos? Que importância estratégica eles ti-


veram para os colonos?

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3. Qual era a política para os “índios aliados” e qual era a política para os “índios
inimigos” durante a colônia?

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4. Quais foram os objetivos e princípios que orientaram a primeira agência in-


digenista laica estatal: o Serviço de Proteção aos Índios?

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Situação contemporânea dos povos indígenas

Mariana Paladino
Neste capítulo abordaremos a situação contemporânea dos povos indí-
genas no Brasil. O objetivo é apresentar a heterogeneidade das formas e con-
dições de vida desses povos, a riqueza de suas práticas culturais e de suas
vinculações com o território e o meio ambiente, compreendendo o valor que
elas têm e sua contribuição à diversidade sociocultural de nosso país.

É importante destacar que desenvolveremos um panorama geral das


condições atuais de vida dos povos indígenas brasileiros. Mas deve-se ter
claro que cada grupo indígena ou etnia apresenta diferenças significativas
em relação aos outros grupos indígenas. O índio genérico que os livros
didáticos de antigamente apresentavam não existe. Portanto, compor um
quadro geral se apresenta como um desafio diante da diversidade de cul-
turas, línguas, formas de organização social, sistemas econômicos, cosmo-
logias e rituais que os grupos indígenas expressam.

Também cabe chamar a atenção para o fato de que os povos indígenas


contemporâneos são muito diferentes dos que os portugueses conhe-
ceram na sua chegada. Não apenas no tamanho populacional, mas nas
formas de organização social e visões de mundo houve importantes mu-
danças, muitas delas decorrentes da violência que impuseram os coloniza-
dores. Os povos indígenas, como qualquer grupo humano, são sociedades
dinâmicas. Porém, mantêm e atualizam importantes vínculos ancestrais
com suas tradições e território.

Quem são e quantos são os


povos indígenas hoje no Brasil
A denominação indígena significa, segundo os dicionários de língua
portuguesa, nativo, pessoa natural do lugar ou do país em que habita.

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Situação contemporânea dos povos indígenas

Segundo definição das Nações Unidas, de 1986,


[...] as comunidades, os povos e as nações indígenas são aqueles que, contando com
uma continuidade histórica das sociedades anteriores à invasão e à colonização que foi
desenvolvida em seus territórios, consideram a si mesmos distintos de outros setores da
sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver e a transmitir às gerações futuras
seus territórios ancestrais e sua identidade étnica, com base de sua existência continuada
como povos, em conformidade com seus próprios padrões culturais, as instituições sociais e
os sistemas jurídicos. (apud LUCIANO, 2006a, p. 27)

Apesar de o emprego do termo índio ou indígena ter adquirido, ao longo da


história do Brasil, um sentido pejorativo, sendo associado a um modo de vida
pouco “civilizado” e indolente, o movimento indígena, surgido a partir da década
de 1970, decidiu que era importante manter, aceitar e promover aquela denomi-
nação genérica como uma forma de fortalecer a identidade conjunta e valorizar
o fato de ser originário destas terras, assim como de se unir para lutar por direi-
tos comuns.

No entanto, cada povo ou grupo indígena tem sua própria denominação. Em


geral, tem duas denominações: a autodenominação, ou seja, como o grupo se
chama ou refere a si mesmo, e um nome que lhe foi dado por outros povos,
geralmente vizinhos, a partir de certas características ou imagens que tinham
deles. Por exemplo, os Tikuna se autodenominam Magüta, mas povos do tronco
tupi que conviviam com eles os chamaram de Tikuna1 e assim foi registrado e
divulgado por missionários, nos séculos XVII e XVIII.

Os povos indígenas contemporâneos – ao contrário da imagem de senso


comum que os representa como pequenas e frágeis microssociedades que
vivem isoladas no interior da Floresta Amazônica, sofrendo um inevitável pro-
cesso de aculturação – estão vivendo um processo de fortalecimento cultural e
de conquista de direitos significativos. A partir da década de 1970, com o apoio
de organizações da sociedade civil e de entidades religiosas católicas vincula-
das à vertente da “teologia da libertação”, vêm se organizando e mobilizando
em prol de demandas fundamentais para garantir sua sobrevivência. O Estado
reconheceu várias dessas demandas na Constituição de 1988 e, hoje, muitos
grupos indígenas têm seus territórios demarcados2, têm escolas onde o ensino
é bilíngue e intercultural, postos de saúde com profissionais indígenas e levam
1
O nome próprio dessa etnia é Magüta, que na sua língua significa “povo pescado por Yoi”, o que remete ao seu mito de criação, no qual um dos
seus heróis culturais (Yoi) pesca de um igarapé, utilizando uma isca de macaxeira, os Magüta. Deles descenderam os atuais. O nome Tikuna significa
em língua tupi “nariz preto” e alude ao fato de que esse povo pintava o rosto com jenipapo para expressar sua filiação a determinados clãs.
2
O artigo 25 da Lei 6.001 e o artigo 231 da Constituição estabelecem o reconhecimento do direito dos indígenas às terras por eles habitadas e
faculta ao órgão indigenista (FUNAI) o poder e agilidade necessários para regularizar a situação das terras indígenas. A demarcação constitui a
última etapa do processo de regularização das terras indígenas. O Decreto n⁰ 76.999, de 8 de janeiro de 1976, fixou as normas para a demarcação
dessas terras. O Presidente da Funai designa um antropólogo, um engenheiro e um agrimensor, que inicialmente devem realizar um levantamen-
to de campo e descrever os limites da área. Ver Pacheco de Oliveira (2006) para maiores explicações sobre o processo de demarcação de terras
indígenas.

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a cabo projetos de desenvolvimento sustentável e de proteção do território. Nas


aldeias, os indígenas convivem crescentemente com tecnologia ocidental (rádio,
telefone, televisão, internet), mas simultaneamente opera-se uma valorização e
resgate de rituais, de registro e conservação da memória oral e dos conhecimen-
tos que ela veicula (contos, mitos, conhecimentos medicinais, conhecimentos
artísticos, entre outros).

O crescimento populacional indígena vem sendo significativo nas duas úl-


timas décadas. Ele deve ser entendido principalmente por dois fatores. Por um
lado, como decorrência do crescimento demográfico, que está em torno de
4% ao ano contra 1,6% da população brasileira. Por outro lado, como resultado
dos processos de fortalecimento e reconhecimento da identidade étnica que
os povos indígenas vêm atravessando nas últimas décadas, o que motivou que
muitos começassem a se visibilizar e identificar como tais (LUCIANO, 2006a, p.
20). É importante entender que, em muitas regiões do país, os índios se viram
obrigados – para sobreviver e para evitar a exploração e a carga de preconceitos
vinculados à sua condição – a ocultar e negar sua identidade, deixando para
isso de utilizar sua língua e de praticar seus costumes. Alguns grupos passaram
a se mimetizar com a população camponesa ou cabocla e foram considerados
assimilados ou aculturados. No contexto atual de reconhecimento dos direitos
indígenas, muitos conseguiram reassumir sua identidade. Esse fenômeno se de-
nomina “etnogênese” ou “reetnização” e vem ocorrendo nos últimos anos, prin-
cipalmente na região Nordeste do país.

O antropólogo Darcy Ribeiro, com base em relatórios da antiga agência indi-


genista – o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) – calculou em 1957 a existência
de 143 etnias, com uma população estimada entre 68 100 e 99 700 indivíduos.
Hoje, estimam-se, segundo dados da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do
Instituto Socioambiental (ISA), 220 etnias, com uma população de 325 mil indí-
genas (PACHECO DE OLIVEIRA, 2006, p. 127–128).

As 220 etnias estão distribuídas ao longo de todo o país, somente nos esta-
dos do Piauí e do Rio Grande do Norte a Funai não reconhece presença indígena;
sendo que 162 dessas 220 etnias estão localizadas na Amazônia Legal3. Segundo
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base no censo
de 2000, a quantidade de indígenas ainda é maior. Estima-se um total de 740 mil
e compõem 0,4% da população brasileira.
3
A Amazônia Legal é uma área que engloba nove estados brasileiros pertencentes à Bacia Amazônica e, consequentemente, possuem em seu
território trechos da Floresta Amazônica. Com base em análises estruturais e conjunturais, o governo brasileiro, reunindo regiões de idênticos
problemas econômicos, políticos e sociais e com o intuito de planejar o desenvolvimento social e econômico da região amazônica, instituiu o
conceito de Amazônia Legal. A atual área de abrangência da Amazônia Legal corresponde à totalidade dos estados do Acre, Amapá, Amazonas,
Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins e parte do estado do Maranhão, perfazendo uma superfície de aproximadamente 5 217 423km²
correspondente a cerca de 61% do território brasileiro.

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Essa diferença na quantidade de população indígena ocorre em função dos


diferentes métodos utilizados para a obtenção de dados. A Funai e o ISA levan-
taram dados dos habitantes localizados em aldeias de terras indígenas reconhe-
cidas oficialmente. O IBGE não apenas levantou dados naquelas regiões, mas
também dos índios que residem nas cidades ou em terras indígenas ainda não
reconhecidas, além de utilizar o método de autoidentificação.

Luciano (2006a) também destaca os dados da Fundação Nacional da Saúde


(Funasa) como relevantes fontes de informação sobre a população indígena que
vive em terras indígenas. Segundo dados desse órgão, o contingente popula-
cional reconhecido pelo governo brasileiro e cadastrado pelo sistema de saúde
é de 374 123 índios, distribuídos em 3 225 aldeias, pertencentes a 291 etnias e
falantes de 180 línguas divididas por 35 grupos linguísticos (FUNASA, Relatório
Desai, 2003, p. 3, apud LUCIANO, 2006a, p. 28). Dos 374 123 indígenas atendidos
pela Funasa, 192 773 são homens e 181 350 são mulheres.

Ainda segundo os dados da Funasa, a população indígena está dispersa por


todo o território brasileiro, sendo que na região Norte concentra-se o maior con-
tingente populacional indígena, com 49%, e na região Sudeste está o menor
contingente populacional indígena, com apenas 2% (LUCIANO, 2006a, p. 26).

A dificuldade de chegar a uma contagem exata da população indígena se


deve ao fato não apenas dela estar espalhada numa grande extensão do territó-
rio, às vezes de difícil acesso, mas também ao fato de existirem “grupos isolados”
sobre os quais se têm pouca informação, assim como índios urbanos, sobre os
quais também existem escassos dados. Estima-se que existam atualmente 46
evidências de “índios isolados” (ou seja, que não têm contato com a sociedade
nacional) no território brasileiro, das quais apenas 12 foram confirmadas até hoje
pela Funai (LUCIANO, 2006a, p. 51)4.

Por outro lado, devido a processos complexos de territorialização que as po-


pulações indígenas atravessaram, de deslocamento forçado ou expulsão de seus
territórios, alguns segmentos terminaram se instalando em meio urbano ou em
fazendas para morar próximo aos espaços de trabalho. Há alguns povos que têm
migrado para as grandes metrópoles (como Manaus e São Paulo) e outros para
cidades de menor tamanho. O IBGE estima que a parcela da população indíge-
na que residia em área urbana passou de 23,9% em 1991 para 52,2% em 2000
(IBGE, 2005). Ou seja, nem todos os povos continuam ligados ao seu território
4
O fato de serem denominados “isolados” não deve nos levar a pensar que nunca tiveram contato com a sociedade não indígena ou com outros
grupos indígenas. Alguns estudiosos consideram que provavelmente já tiveram algum contato no passado, mas, fugindo da violência ou de pres-
sões decorrentes dessa relação, se refugiaram em lugares mais distantes e inóspitos. As gerações seguintes foram as que não tiveram contato
(LUCIANO, 2006a).

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ancestral, embora ele esteja geralmente presente em narrativas, lembranças e


na continuidade de relações que estabelecem com grupos de parentesco que
ainda moram naqueles territórios.

Vamos considerar aqui como a fonte mais completa até o momento atual –
pelo fato de ter contemplado os índios urbanos – os dados do IBGE (2005) que
dão conta de 740 mil indivíduos, que formam parte de mais de 220 povos indí-
genas brasileiros.

As terras que até hoje o Estado reconheceu como de posse indígena repre-
sentam atualmente cerca de 12% do território brasileiro. A Constituição de 1988
garante o direito originário dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocu-
padas por eles. Cabe aclarar que isto não significa que tenham a propriedade
dessas terras, que são bens e patrimônio da União, apenas lhe são garantidos a
posse e o uso delas.

Segundo dados do Departamento Fundiário da Funai, em agosto de 2006,


existem no Brasil 612 terras indígenas com algum grau de reconhecimento por
parte desse órgão, totalizando uma extensão de 106 373 144ha, ou seja, 12,49%
do território brasileiro. A Amazônia Legal é a região brasileira que concentra a
maior parte das terras indígenas: 20,67% da região (LUCIANO, 2006a, p. 105).

Apesar do avanço que houve na garantia por parte do Estado de terras aos
povos indígenas, ainda faltam várias áreas a serem demarcadas e existem vários
grupos que estão sem terra, ou com terra insuficiente para garantir a sua so-
brevivência. É igualmente grave a situação de muitas terras que sofrem invasão
por parte de regionais não indígenas: madeireiros, caçadores, pescadores, entre
outros, sendo seus recursos naturais violentados.

Vejamos a seguir um quadro sistematizando as informações anteriormente


comentadas sobre a distribuição das terras indígenas no Brasil:
(Departamento Fundiário da Funai,
apud LUCIANO, 2006a)

Descrição Extensão (ha) %


Território Nacional 851 487 659 100
612 terras indígenas 106 373 144 12,49
405 terras indígenas 103 483 167
na Amazônia Legal
207 terras indígenas 2 889 992
no Centro-Oeste,
Nordeste, Sul e
Sudeste

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Diversidade linguística e cultural


Existe uma enorme diversidade cultural entre os povos indígenas do Brasil,
expressada, entre outras formas, nas artes, na música, na tecnologia, na medi-
cina, nos conhecimentos, nas tradições orais e nos rituais5. Essa diversidade é
produto das formas particulares em que cada povo foi se relacionando com o
território, o meio ambiente e com os demais grupos, conforme suas crenças e
visões de mundo. Também são significativos os processos de contato com agen-
tes e agências do Estado e da sociedade nacional, que influenciaram nas formas
em que hoje os indígenas assumem e mostram suas diferenças culturais.

As línguas expressam também essa rica diversidade, porque elas representam


modos distintos de classificar e compreender o mundo. São transmitidas de gera-
ção em geração por meio da tradição oral. Apesar de muitas terem sido extintas,
ao longo dos anos da colonização, ainda se falam mais de 180 línguas nativas.

Algumas delas são consideradas em risco de extinção pelo número reduzido


de falantes (cerca de 40 línguas). Certos povos já perderam suas línguas e falam
as línguas de outros povos ou falam o português como língua materna. É o caso
de 37 povos que só falam o português (LUCIANO, 2006a). Alguns deles estão
levando a cabo um processo de resgate de suas línguas, com o apoio de organi-
zações não governamentais e de especialistas vinculados à Academia. São reali-
zadas, para isso, pesquisas e estudos com os falantes mais idosos ou recorrem a
estudos linguísticos e antropológicos do passado.

Outras línguas indígenas permanecem vitais e ativas e são amplamente uti-


lizadas não apenas no âmbito doméstico, mas crescentemente no espaço esco-
lar, público e até nas cidades. Em alguns municípios, como em São Gabriel da
Cachoeira, no estado do Amazonas, têm sido reconhecidas, junto com o portu-
guês, como línguas oficiais.

Os linguistas classificam as línguas indígenas em troncos, famílias, línguas


e dialetos: há dois grandes troncos, o Tupi e o Macro-Jê, e 20 famílias linguís-
ticas que não apresentam graus de semelhanças suficientes para poderem ser
agrupadas nesses troncos. Há, também, famílias de apenas uma língua, às vezes
denominadas “línguas isoladas”, por não se revelarem parecidas com nenhu-
ma outra língua conhecida (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2009) Os quadros, a
seguir, sintetizam de forma simplificada as classificações hoje vigentes e reco-
nhecidas pela maioria dos linguistas brasileiros.
5
A diversidade cultural é reconhecida pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) como patrimônio
comum da humanidade. No caso particular da diversidade cultural indígena, ela é considerada patrimônio da humanidade pela Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), que o Brasil ratificou e reconheceu como Lei em 2003.

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Tronco Tupi

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Famílias Tupi-Guaraní Arikém Aweti Juruna Mawé Mondé Puroborá Mundurukú Ramarama Tuparí

Akwawa Karitiana Juruna **


Amanayé Aweti (Yuruna), Kuruáya Karo
Anambé Xipaia Mundurukú (Arara)
Apiaká
Línguas Arawete Mawé Arujú (Mayoro)
Asurini do Tocantins Sateré-Mawé
Asurini do Xingu Makurap
(Asurini do Irocará) e Mekém
(Asurini do Koatinemo)
Avá-Canoeiro Parakanã Aruá Sakirabiár
Guajá Cinta-Larga Tupari
Dialetos Gavião (Ikôro)
Guarani Kaiowã, Mbyá e Mondé
Kaapór
Nhandéva Surui (Paitér)
(Urubu Kaapór)
Zoró
kamayurá
Kayabi Parintintin, Diahói, Juma,
Kawahib Karipúna, Tenharin e Uru-Eu-
Kokáma -Wav-Wav
Língua Geral
Amazônica *
Suruí do Tocantins Kokãma e Omágua
Tapirapé (Kambe--ba)
Tenetehára
Wayampi
(Waiãpi, Guajajara e Tembé
Oiampi) Xetá
Zoè (Puturú)

Língua Geral Amazônica (Nheengatú). É Amazônica para distinguir da outra Língua Geral, a Paulista,
* agora já extinta; Nheengatú é um nome tanto artificial, que lhe deu foi Gen. Couto de Magalhães em
seu livro de 1876 – O Selvagem.

** Puroborá é um povo cuja língua há documentos dos anos 20 (Th. Koch-Grünberg) e dos anos 50
(W. Hanke) e de que há ainda alguns remanescentes dispersos de Porto Velho até o Guaporé e o pes-
soal do Setor Linguístico do Museu Goeldi tem contactado alguns e gravado dados linguísticos).

Fonte: Instituto Socioambiental.

IESDE Brasil S.A. Adaptado.


Tronco Macro-Jê

Famílias Boróro Krenák Guató Jê Karajá Maxakali Ofayé Rikbaktsá Yaté

Boróro Krenák Guató Javaé


Línguas Umutina Karajá Ofayé Rikbaktsá Yaté
Xambioá
Dialetos
Maxakali
Pataxó
e
Pataxó
Hã-Hã-Hãe
Xakriabá, Xavánte e Xerente
Akwén
Apinayé
Kaigáng Tapayúna
Kaingánd do Paraná
Kayapó
Kaingáng Central
Kaingáng do Sudoeste e Panará
Canela Apaniekra
Kaingáng do Sudeste Suyá Canela Ramkokamekra
Timbira Gavião do Pará (Parkateyé)
Xokléng Gavião do Maranhão (Pulkobiyé)
Gorotire, Kararaô, Kakraimoro, Krahõ Krenjé (Kren-yé) e
Kubenkrankegn, Menkrangnoti, Krikatí (Krinkati)
Mentuktire (Txukahamãe) e Xikrin

Fonte: Instituto Socioambiental.


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Outras famílias linguísticas

Aikaná
Aikaná (Masaká e Kasupá)

Arawá Banawá-Yari Dení Jarawára Kanamanti

Kulína Paumarí Jamamadi Suruahá


(Zuruahá)

Apurinã Baiwa do Içana Baré Kampa


(Ipurinã) (cf. Sasha) (Axininka)

Arúak
(Arawak, Maipune) Mandawáka Mehináku Palikúr Paresí (Arití, Haiti)

Piro Manitenéri Salumã (Enawené-Nawê)


Maxinéri

Tariana Yurupari-Tapúya Terena (Tereno)


(Iyemi)

Wapixana Warekena (cf. sasha) Waurá Yawalapití

Guaikuru Kadiwéu

Iranxe Iránxe (Mynky)

Jabuti Arikapú Jabutí (Jeoromitxi)

Kanoé Kanoé (Kapixaná)

Karib Aparaí (Apalaí) Arara do Pará Bakairí

Galibí do Oiapoque Hixkaryána Ingarikó (Kapóng)

Kalapálo Kaxuyána Kuikúru Makuxí Matipú

Mayongong Nahukwá (Nafukwá)


(Makiritáre, Yekuána)

Taulipáng (Pemóng) Tiriyó (Tirió, Trio) Txikão (Ikpeng)

Waimirí (Waimirí-Atroarí) Warikyána Wayána Wai-wai

Katukina Kanamarí Katawixí

Katukina do rio Biá Txunhuá - Djapá


(Pedá Djapá) (Tsohom-djapá)

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Koazá
(Kwaza) Koazá (Koaiá)

Máku Máku

Makú Bará (Makú-Bará) Dow (Kamá) Guariba (Wariía-tapúya)

Húpda Nadab Yuhúp

Mura Mura Pirahã

Nanambikwára Nambikwara do Norte Tawandê


Lacondê
Latundê
Mamaindê
Negarotê

Nambikwara do Sul Galera


Kabixi
Mundúka
Nambikwára do Campo

sabané

Pano Amawáka (estes índios vivem no Peru, Katukina do Acre


não é certeza se alguns vivem no Brasil) (Xanenawá) (c.f. Aguiar)

Kaxararí Kaxinawá Korúbo Marúbo Matís

Matsé (Mayoruna) Nukini Poyanáwa Yamináwa

Yawanáwa

Trumái Trumái

Tikúna Tikúna

Tukano Arapaço Bará Desána Karapanã Kubewa (Kubeo)

Makúna Pirá-Tapuya (Waikana) Siriáno Tukano

Tuyúka Wanano

Txapakúra Orowari Torá

Urupá Warí (Pakaanova)

Yanomani Ninam Sanumá

Yanomám Yanomami

Fonte: Instituto Socioambiental.

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Formas de organização social e parentesco


Cada povo possui uma forma própria de organizar suas relações sociais, po-
líticas e de parentesco. As relações de parentesco são a base da estrutura social
dos povos indígenas. Em geral, se constituem com base na família extensa, que
é uma unidade social articulada em torno de um patriarca ou de uma matriar-
ca por meio de relações de parentesco consanguíneas e de afinidade política
ou econômica com outros grupos aliados. Uma família indígena extensa geral-
mente reúne a família do patriarca, as famílias dos filhos, os genros, as noras, os
cunhados e outras famílias afins que se filiam à grande família por interesses
específicos (LUCIANO, 2006a, p. 43).

Também são significativas as relações de aliança econômica e política que


cada povo ou grupo familiar estabelece com outros. As alianças se estabelecem
a partir de interesses comuns que, em geral, vinculam-se ao compartilhamento
de espaços territoriais, à troca comercial e à troca de mulheres, através do casa-
mento. Os grupos de parentesco e de aliados costumam se reunir tanto para a
produção de certos bens e empreendimentos, quanto para a distribuição desses
bens, para rituais e festas.

Alguns povos indígenas vivem em grandes malocas comunitárias, outros em


casas separadas e dispersas ao longo dos rios e das florestas. Ainda outros têm se
organizado em grandes aldeias, com casas contíguas e nas que vêm se operando
um processo de urbanização. Também estão os que vivem na cidade, mas isso não
significa que tenham perdido vínculos com as suas comunidades de origem.

Existem papéis de liderança que são chamados “tradicionais” porque seguem


as condições e regras herdadas dos seus pais ou ancestrais e que são aceitas pelo
grupo. Sua função é aconselhar, organizar e articular os membros de sua aldeia
ou grupo e também de representá-los diante de outros povos. Também estão
as “novas lideranças”, que são novos papéis surgidos a partir do contato com o
Estado, principalmente com o órgão indigenista: capitães, professores indígenas,
agentes indígenas de saúde, dirigentes de organizações indígenas. Eles funcionam
como intermediários e interlocutores com a sociedade não indígena e adquiriram
seus cargos por formas e critérios de escolha diferentes das lideranças tradicionais,
como o de ter educação escolar e falar bem o português. As lideranças tradicionais
e as “novas lideranças” coexistem no espaço das aldeias e tentam coordenar suas
ações e representações de forma conjunta (LUCIANO, 2006a).

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Em geral, os caciques – de forma diferente ao uso do poder nas chamadas


sociedades ocidentais – carecem de um poder autoritário e de uma estrutura
repressiva. O chefe indígena adquire seu poder por prestígio, por capacidade de
aconselhamento, pela posse de determinadas virtudes valorizadas pelo grupo.
Mas seu poder vai se circunscrever a determinadas esferas ou circunstâncias.
Não têm poder soberano sobre o grupo e as decisões que ele tome terão que ser
consensuadas pela coletividade.

De acordo com a posição que se tenha no grupo (em relação à idade,


gênero, geração) serão outorgadas as tarefas, as funções e as responsabilida-
des aos indivíduos.

Existem papéis especializados como os pajés ou xamãs, responsáveis pela


segurança espiritual e pela cura dos membros de seu grupo. Alguns povos indí-
genas tinham papéis especializados de guerreiros, outros de caçadores e pesca-
dores, outros de contadores de histórias e cantores.

Economias indígenas
Os índios que residem dentro das terras indígenas vivem dos recursos ofere-
cidos pela natureza, da pesca, da caça, da agricultura, da coleta de frutos silves-
tres. Nelas encontra-se uma diversidade de ecossistemas – entre outros, matas
das várzeas, matas de igapós, savanas de terra firme, florestas de terra firme, ser-
rado, mata atlântica etc. Cada um desses ecossistemas enseja aos índios uma
forma particular de manejo, de forma a otimizar a obtenção dos recursos que
são necessários ao seu bem-estar.

O território é a base da vida dos povos indígenas, não apenas por ser o meio
onde se encontram os recursos naturais que lhes garantirão sua subsistência
econômica, mas também por ele estar vinculado a seres, espíritos, valores e co-
nhecimentos de fundamental relevância para sua reprodução cultural. O terri-
tório representa o vínculo com a ancestralidade, com os antepassados, com os
mitos de origem e tem uma significação que transcende o sentido capitalista de
entender e de se apropriar desse espaço.

É recorrente entre os povos indígenas brasileiros considerar que todos os


seres vivos e não vivos, reais ou imateriais possuem suas dimensões espirituais.

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Nos mitos, fala-se que existem espíritos protetores, aos que chamam de “mães”.
Assim, por exemplo, quando um animal é caçado sem respeito a regras ou tabus
vinculados à captura de certos seres, a “mãe” ou espírito desse animal reagirá
vingando tal violação, provocando doença ou morte da pessoa. Em geral, se ex-
plica a origem das doenças a partir de relações que as pessoas mantêm de dese-
quilíbrio com a natureza (LUCIANO, 2006a, p. 190).

As condições territoriais serão determinantes para as economias e formas de


vida praticadas. Assim, por exemplo, os que vivem em terras mais extensas e
abundantes em recursos naturais têm a possibilidade de continuar praticando
valores importantes para a organização social de muitos povos indígenas, como
a reciprocidade e a generosidade na distribuição de alimentos. Já os que vivem
em terras reduzidas e com escassos recursos naturais estão expostos a conflitos
maiores e a não poder praticar rituais ou festas que requerem abundância de
alimentos. Contudo, isso não significa necessariamente que abandonem essas
práticas. Há muita diversidade nas respostas e estratégias que os povos vêm
construindo para lidar com a problemática de escassos recursos e terras.

A economia dos índios urbanos é diferente das dos índios aldeados. Não de-
pendem das condições do território para sobreviver e sim do mercado de traba-
lho e da assistência social.

Contudo, em muitos casos não existe uma fronteira rígida entre essas formas
de economia e, crescentemente, os que vivem em terras indígenas dependem
do mercado e comerciam os produtos de sua roça por objetos manufaturados e,
ao contrário, alguns indígenas que vivem na cidade conservam roças na aldeia e
se deslocam para cuidar delas nos períodos necessários do ano.

Religiões indígenas
Os modos de vida indígenas seguem princípios e orientações cosmológicas
e ancestrais fortemente marcados pelos mitos6. Existem princípios culturais cru-
ciais para a existência étnica que não podem ser rompidos, uma vez que possi-
bilitam equilíbrio e bem-estar. Romper com esses princípios e valores poderá
significar a desestruturação da ordem social indígena (LUCIANO, 2006a).

Como Lopes da Silva (1995) chama a atenção, os mitos se articulam à vida


social, aos rituais, à história, à filosofia própria do grupo, e expressam modos
6
Os especialistas definem os mitos como narrativas orais, que contêm verdades consideradas fundamentais para um povo e que formam um
conjunto de histórias dedicado a contar peripécias de heróis que viveram no início dos tempos (no tempo mítico ou das origens). O que se enfatiza,
dessa perspectiva, é o caráter de narrativas que os mitos têm. O mito pode também ser definido com um nível específico de linguagem, uma ma-
neira especial de pensar e de expressar categorias, conceitos, imagens. Ambas definições sugerem uma relação particular entre o mito (ou os mitos),
o modo de viver e pensar e a história daqueles povos responsáveis por sua existência (LOPES DA SILVA, 1995).
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peculiares de conceber a pessoa humana, o tempo, o espaço, o cosmos. Na vida


cotidiana, as concepções cosmológicas orientam, dão sentido, permitem inter-
pretar acontecimentos e ponderar decisões. Elas se expressam através da lingua-
gem simbólica dos rituais: música, ornamentos corporais, entre outros recursos,
permitem o contato com outras dimensões cósmicas, com momentos outros do
mundo e do processo da vida e da morte.
Os mitos são parte da tradição de um povo, no entanto a tradição é continua-
mente recriada e as experiências passadas são tornadas referências vivas para o
presente e para o futuro. Os mitos mantêm com a história uma relação de inter-
câmbio (SAHLINS, 1989).
Para Sztutman (2008), os mitos contam como as coisas chegaram a ser o que
são. Contam como as divindades, os homens, os animais e as plantas se diferen-
ciaram. Os rituais, por sua vez, fazem o caminho inverso dos mitos. Eles contam e
recriam o mito, promovendo uma espécie de retorno a um tempo de indiferencia-
ção geral em que divindades, homens, animais e plantas se comunicavam entre si. 
Sabe-se hoje (e isto é tema atual de inúmeras pesquisas) que as culturas hu-
manas desenvolvem variadas lógicas históricas, maneiras de pensar, relacionar-
-se e viver os processos históricos. Também existem diversas interpretações da
alteridade e das formas de se relacionar com os “brancos” e de entender o pro-
cesso de contato com eles. Assim, alguns povos indígenas têm aderido a religi-
ões cristãs de base ocidental, sobretudo católicas e evangélicas, seja porque têm
valorizado os agentes que os contataram com fins de catequese, seja porque a
“conversão” lhes permitiu a aquisição de uma identidade e acesso a bens mate-
riais e simbólicos valorizados.
Apesar de que entre os indigenistas a presença de missões tem suscitado
muita controvérsia e oposição, tendo em conta os processos de mudança e
perda cultural que algumas tentam promover, outros estudiosos relativizam o
poder que têm as religiões de origem ocidental na transformação dos modos de
vida dos povos indígenas e assinalam que, ao contrário, opera-se uma acomoda-
ção ou apropriação de ideias, símbolos e valores que elas veiculam segundo as
lógicas indígenas. Também é importante considerar a existência de um segmen-
to de indígenas que se identifica como cristãos e que defende a possibilidade de
ter simultaneamente essa identidade e valorizar sua cultura. De fato, lideranças
importantíssimas do movimento indígena receberam durante sua infância e ju-
ventude uma educação missionária, mas se apropriaram criticamente de algu-
mas ferramentas úteis que esta formação lhes proporcionou, como o domínio
do português e da escrita, utilizando-as mais tarde em prol de suas demandas e
processos de luta.
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Situação contemporânea dos povos indígenas

Texto complementar
O texto a seguir é de um líder e escritor indígena da etnia Pareci do estado
do Mato Grosso. Trata-se de um depoimento feito em um encontro sobre
Educação Escolar Indígena, em Cuiabá, MT, em agosto de 1993.

Depoimento de Daniel Matenho Cabixi, do povo


Pareci, aldeia de Rio Verde no Mato Grosso
Vi muitas pessoas postarem-se diante de mim, um índio, e ficarem horas
e horas a olhar-me. Além de lançarem uma série de perguntas, entre elas, se
não existe mais índio brabo. Penso comigo: que estarão elas pensando?

Esforço-me para penetrar em seus pensamentos. Afinal, um descendente


de índios selvagens, descendentes de seres mitológicos índios, está posta-
do diante deles, de calça, camisa e sapatos. Neste momento, a imaginação
desse povo simples voa pelo mundo da fantasia. Como será que vivem? O
que comem? Será que ele pensa igual a nós? Será que descende de comedo-
res de gente? Terá ele provado alguma carne humana? Tem ele algum senti-
mento humano de amor e compaixão?

Enfim, percebo que as interpretações e comparações que nos fazem não


passam da categoria de animais exóticos que habitam a natureza. Tenho
vontade de fazê-los compreender o meu mundo, assim como cheguei a
compreender o mundo deles.

Gostaria de dizer-lhes que faço parte de uma sociedade que possui normas
de vivência harmônica entre homens e natureza. Gostaria de dizer-lhes que
possuímos nossos valores sociais, políticos, econômicos, culturais e religiosos,
que adquirimos através dos tempos, de geração em geração.

Gostaria de dizer-lhes que formamos um mundo equilibrado e justo de


relações humanas. Dizer que como humanos somos sujeitos a falhas e erros.
Dizer que nossos sentimentos mais íntimos são exteriorizados através da arte,
da língua, da nossa religião, das festas acompanhadas de ritos e cerimônias.
Dizer que conseguimos nossas experiências diante da vida e do universo.

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Dizer que conseguimos chegar num equilibrado mundo prenhe de valo-


res que transmitimos a nossos filhos, o que em outras palavras mais compre-
ensíveis é sinônimo de educação.

Gostaria de dizer-lhes também que tudo, tudo isso vem sendo deturpado,
desrespeitado e destruído. Dizer que estamos despertando para uma nova
realidade. Estamos percebendo que todas as tentativas estão sendo feitas
para acabar com nossos princípios já constituídos. Dizer que um de nossos
objetivos fundamentais é levar à nossa comunidade o conhecimento desta
realidade nova que nos rodeia. Do interesse em perpetuar nossos valores
morais e culturais.

Dizer que estamos prontos para receber o que de útil a sociedade deles
nos oferecer e rechaçar o que de ruim ela nos apresentar. Mas a cegueira
etnocêntrica não permite este diálogo franco e sincero.

(Disponível em: <www.iande.art.br/textos/danielcabixi.htm>.


Acesso em: 25 ago. 2009.)

Dicas de estudo
 O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil
de hoje, de Gersem dos Santos Luciano.

Escrito pelo professor Gersem dos Santos Luciano – da etnia Baniwa –


primeiro indígena Mestre em Antropologia Social no Brasil e ator impor-
tantíssimo do movimento indígena, é uma leitura imprescindível para
conhecer a situação contemporânea dos povos indígenas de nosso país.
Proporciona tanto informações muito valiosas, para compreender as for-
mas e condições de vida atual desses povos, quanto provoca uma reflexão
acerca da problemática que eles enfrentam e as formas com que vêm se
organizando e lutando pela conquista de seus direitos.

 Site do Instituto Socioambiental: <www.socioambiental.org>.

O Instituto Socioambiental é uma das organizações não governamentais


de apoio aos povos indígenas mais antigas e reconhecidas pela relevância
de sua trajetória e atuação. O site, além de conter boletins informativos
atualizados sobre a situação dos povos indígenas e os principais aconte-
cimentos e notícias relativos a eles, apresenta uma seção que se chama

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“Povos Indígenas no Brasil”, na qual pode-se obter informações de cada


grupo indígena, com dados de sua localização, história, organização so-
cial, cosmologia, rituais, além de apresentar fontes de informação para o
aprofundamento da pesquisa sobre esses grupos.

 Site da Funai <www.funai.gov.br/mapas/fr_mapa_fundiario.htm>.

O link acima dá acesso a um mapa do Brasil em que é possível situar a lo-


calização dos diversos grupos indígenas do nosso país.

 Terra Vermelha (Birdwatchers) (2008). Direção de Marco Bechis. Coprodu-


ção ítalo--brasileira. 108 minutos.

O filme, escrito pelo diretor e roteirista brasileiro Luiz Bolognesi (Bicho de


Sete Cabeças), foi inspirado na história do cacique Ambrósio Vilhalva, da
etnia Guarani-Kaiowa, que liderou um acampamento para a retomada das
terras de seus ancestrais, em um local hoje ocupado por uma fazenda pro-
dutora de soja.

Com índios nos papéis principais, o filme conta ainda com atores como
Leonardo Medeiros, Matheus Nachtergaele, Claudio Santamaria, Fabiane
Pereira da Silva e a italiana Chiara Caselli. A ficção mostra de uma forma
sensível e complexa as relações entre índios e brancos num dos estados
do país onde mais conflitos existem entre esses segmentos pela posse de
terras.

Estudos literários
1. Que fontes de informação existem para uma abordagem demográfica dos po-
vos indígenas no Brasil? Quais são suas diferenças e quais são as estimativas da
quantidade de população indígena que elas apresentam?

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2. Quantas línguas indígenas são, aproximadamente, faladas hoje no Brasil?


Quais são os troncos linguísticos reconhecidos pelos estudiosos e que outras
famílias linguísticas existem?

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3. O que o território representa para os povos indígenas? De que forma garante


sua sobrevivência econômica e cultural?

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Situação contemporânea dos povos indígenas

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Demandas, conquistas e projetos do
movimento indígena

Mariana Paladino
Neste capítulo vamos estudar os direitos indígenas e conhecer os avan-
ços, as conquistas e as ações que os povos indígenas têm levado a cabo
nos últimos anos para garantir seu bem-estar coletivo e o fortalecimento
de sua identidade cultural. Entre essas ações, vamos focar a produção de
escritores, pesquisadores e artistas indígenas.

O objetivo desta aula é nos aproximar dos conhecimentos e saberes


dos povos indígenas contemporâneos, reconhecendo o lugar e o valor
que eles têm na sociedade brasileira. Contudo, apenas trataremos de uma
pequena vertente desses conhecimentos e saberes, diante da grande
diversidade existente, ficando de fora os conhecimentos indígenas rela-
tivos ao meio ambiente e à medicina, estratégicos frente aos desequilí-
brios causados pelo avanço sem limites da agricultura extensiva e da
industrialização.

Outro objetivo é promover uma reflexão sobre as lutas que os indíge-


nas têm empreendido para poder acessar e exercer uma cidadania dife-
renciada. Veremos que eles são detentores de direitos de cidadania ga-
rantidos a todos os brasileiros e, ao mesmo tempo, por formarem parte
de “povos”, o Estado reconhece suas necessidades especiais e seus direitos
específicos.

Lutas do movimento indígena


Em meados da década de 1960, o órgão responsável pelas políticas in-
digenistas, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), enfrentou denúncias de
irregularidades administrativas, corrupção e gestão fraudulenta do patri-
mônio indígena. Com isso, o governo federal extinguiu esse órgão e criou
uma nova agência indigenista, a Fundação Nacional do Índio (Funai), com
o poder de exercer o papel de tutor dos índios e lhes prestar assistência.
Entre outras funções, devia garantir a posse permanente das terras habi-
tadas pelos índios e o usufruto exclusivo dos recursos naturais nelas exis-
tentes.
EsteAinda naétentativa
material de conter
parte integrante a onda
do acervo de críticas
do IESDE BRASILque
S.A.,recaíam sobre
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Demandas, conquistas e projetos do movimento indígena

o anterior órgão tutor, o governo federal comprometeu-se a elaborar uma nova


legislação para os índios (ARAÚJO et al., 2006). Essa legislação se concretizou em
1973, quando entrou em vigor o Estatuto do Índio (Lei 6.001). A perspectiva assi-
milacionista que o Estado tinha naquela época em relação aos povos indígenas
ficava clara logo no primeiro artigo dessa Lei: “[...] integrar os índios à sociedade
brasileira, assimilando-os de forma harmoniosa e progressiva”. Porém, enquanto
não estivessem integrados “à comunhão nacional” ficavam sujeitos ao regime
tutelar. Ou seja, o Estatuto determinou que os índios deviam se integrar à cultura
brasileira para requerer emancipação.

Até hoje, o Estatuto ainda não foi revogado, embora a concepção sobre o
lugar dos índios na sociedade nacional tenha mudado profundamente a partir
da Constituição de 1988.

O artigo 19 do Estatuto do Índio determinou que as terras indígenas, por ini-


ciativa e sob orientação da Funai, deviam ser demarcadas, de acordo com o pro-
cedimento estabelecido em decreto do Poder Executivo.

Contudo, no mesmo período em que os índios conseguiam algumas ga-


rantias legais, o governo brasileiro realizou diversas ações para desenvolver a
Região Amazônica, o que os prejudicou muito. Essas ações formaram parte do
famoso Plano de Integração Nacional (PIN), que se materializou na abertura de
estradas, construção de hidrelétricas e concessão de fortes subsídios econômi-
cos aos que quisessem explorar as riquezas ali existentes. As ações provocaram
um processo de ocupação maciça, desordenada e predatória que envolveu os
povos indígenas e suas terras, causando em alguns casos sua remoção obrigada,
doenças e numerosas mortes. O caso mais emblemático foi o do povo Panará,
que em 1975 foi levado à revelia para o Parque Indígena do Xingu em decorrên-
cia da abertura da Rodovia Cuiabá-Santarém, a BR-163. A construção da estrada
e a remoção do território tradicional ocasionaram a morte de mais da metade
daquele povo. Somente nos anos 1990, os Panará conseguiram retomar uma
parte do seu território tradicional, após longa batalha administrativa e judicial
(ARAÚJO et al., 2006, p. 35).

Assim, apesar dos dispositivos legais que o próprio governo criou, na prática
ocorreu um processo sistemático de negação dos direitos territoriais dos índios
e apenas foram demarcadas terras diminutas, permitindo-se a exploração das
áreas remanescentes por empresas. Foi, por exemplo, o que aconteceu com as
terras do povo Waimiri-Atroari, no Amazonas, exploradas até hoje pela minera-
dora Paranapanema (ARAÚJO et al., 2006).

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Demandas, conquistas e projetos do movimento indígena

Durante o período da ditadura, o governo manteve a Funai sob seu estrito


controle, inclusive designando militares para presidi-la. Contudo, o controle foi
de difícil execução, visto que, apesar do momento político que o país vivia, a
Funai começava a contar com um quadro de servidores comprometidos com a
defesa dos índios – principalmente antropólogos e indigenistas – que levaram a
cabo importantes ações, como a de promover projetos de desenvolvimento sus-
tentável nas terras indígenas, mas com a participação ativa dos índios e segundo
seus modos de organização tradicional. O governo então estabeleceu mecanis-
mos para controlar as decisões da Funai referentes a terras e os quadros mais
comprometidos do órgão foram demitidos.

Nesse contexto político, em que o governo implementava ações que colo-


cavam em risco a vida e a cultura dos povos indígenas, surgem numerosas or-
ganizações não governamentais engajadas na proteção dos direitos indígenas.
Também se envolveram nessa causa várias associações científicas, juristas e re-
ligiosas. Todos eles foram fundamentais para promover e acompanhar a orga-
nização de diversos povos indígenas, que construíram uma coalizão nacional,
coordenada pela então União das Nações Indígenas (UNI). Essa organização foi
fundada em 1979, como resultado das Assembleias de Lideranças Indígenas
que ocorreram ao longo da década de 1970, com apoio do Conselho Indigenista
Missionário (Cimi). A UNI lançou a campanha “Povos Indígenas na Constituinte”,
que mobilizou índios de todo o país e desempenhou um papel fundamental
para a reversão de um quadro anti-indígena no Congresso Constituinte e para
a concretização dos avanços aprovados no texto constitucional. Para isso, fez
alianças com organizações não governamentais, parlamentares de vários parti-
dos políticos, associações profissionais como a ABA (Associação Brasileira de An-
tropologia) e a Conage (Coordenação Nacional dos Geólogos) (RICARDO, 1995,
p. 49). A intensa mobilização durante o processo de elaboração da Constituição
fortaleceu o movimento indígena e estimulou a criação de novas organizações
voltadas à defesa de seus direitos1. As principais lutas empreendidas pelas or-
ganizações indígenas naquele período estiveram dirigidas a reivindicar direitos
territoriais e acesso a uma assistência escolar e à saúde, mas que fossem perti-
nentes e respeitosas dos seus costumes.

Atualmente existem no Brasil mais de 700 organizações indígenas (LUCIANO,


2006a, p. 67). Algumas são de caráter étnico de base local (por aldeia ou comuni-
dade), ou representam um grupo de aldeias ou comunidades. Também há orga-
nizações regionais que representam várias etnias, como, por exemplo, a Coorde-

1
Para um relato detalhado do processo de organização indígena daquele período, ver Santilli (1991) e Santos (1989).

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Demandas, conquistas e projetos do movimento indígena

nação de Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab)2, que reúne 75


organizações dos nove Estados da Amazônia Brasileira (Amazonas, Acre, Amapá,
Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins). Ainda existem or-
ganizações que reúnem categorias profissionais (professores, agentes indígenas
de saúde, escritores, artesãos, entre outros) e de gênero (como a Associação das
Mulheres Indígenas do Rio Negro, entre outras).

Guilherme Rangel ADIRP.


Índio Kayapó lê um dos projetos de Constituição elaborado pelos parlamentares
constituintes.

Conquistas legais
Podemos dizer que a intensa mobilização indígena e das organizações de
apoio da sociedade civil, durante o processo constituinte, foi responsável pela
conquista de direitos importantes expressos no Capítulo VIII da Constituição de
1988, intitulado “Dos Índios”. Ela trouxe uma série de inovações no tratamento
da questão indígena, incorporando novos parâmetros para a relação do Estado
e da sociedade brasileira com os índios, assegurando o direito deles à diferença
e aos direitos coletivos. Inovou também ao reconhecer a capacidade processual
dos índios, de suas comunidades e organizações para a defesa dos seus próprios
direitos e interesses.

2
Ver o site da organização: <www.coiab.com.br>.

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O artigo 231 da Constituição Federal explicitou, pela primeira vez, que “são re-
conhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradi-
ções, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, com-
petindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Como observam Araújo et al. (2006, p. 45):


A Constituição de 1988 estabeleceu uma nova forma de pensar a relação com os povos
indígenas em nosso território, reconhecendo serem eles coletividades culturalmente distintas,
os habitantes originais desta terra chamada Brasil, por isso mesmo, detentores de direitos
especiais. Ao afirmar o direito dos índios à diferença, calcado na existência de diferenças
culturais, o diploma constitucional quebrou o paradigma da integração e da assimilação
que até então dominava o nosso ordenamento jurídico, determinando-lhe um novo rumo
que garanta aos povos indígenas permanecerem como tal, se assim o desejarem, devendo o
Estado assegurar-lhes as condições para que isso ocorra. A verdade é que, ao reconhecer aos
povos indígenas direitos coletivos e permanentes, a Constituição abriu um novo horizonte
para o país como um todo, criando as bases para o estabelecimento de direito de uma
sociedade pluriétnica e multicultural, em que povos continuem a existir como povos que são,
independente do grau de contato ou de interação que exerçam com os demais setores da
sociedade que os envolve.

Entre os direitos reconhecidos aos índios pela Constituição Federal,


encontramos:

 direito à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições;

 direitos originários e imprescritíveis sobre as terras que tradicionalmente


ocupam, consideradas inalienáveis e indisponíveis;

 obrigação da União de demarcar as terras indígenas, proteger e fazer res-


peitar todos os bens nelas existentes;

 direito à posse permanente sobre essas terras;

 proibição de remoção dos povos indígenas de suas terras, salvo em caso


de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população ou no inte-
resse da soberania do país, após deliberação do Congresso Nacional, ga-
rantido o direito de retorno tão logo cesse o risco;

 usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas exis-
tentes3;

 uso de suas línguas maternas e dos processos próprios de aprendizagem


(art. 210); e proteção e valorização das manifestações culturais indígenas
(art. 215), que passam a integrar o patrimônio cultural brasileiro.

3
Ficou também explícito que no caso de aproveitamento de recursos hídricos e de exploração mineral em terras indígenas é necessária a prévia
audiência das comunidades indígenas afetadas e a autorização do Congresso Nacional (art. 231, §3.º).

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Demandas, conquistas e projetos do movimento indígena

A Constituição Federal tratou de garantir especialmente o direito territorial


indígena, definindo, no artigo 231 parágrafo 1.º, que:
Art. 231 [ ... ]

§1.º São terras tradicionalmente4 ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação
dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física
e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Contudo, as terras continuam sendo “bens da União” (art. 20, XI). Ou seja,
os índios não são proprietários das terras que ocupam no sentido de que não
podem dispor delas para venda.

A nova Carta Constitucional propiciou um debate sobre a necessidade de refor-


mulação do Estatuto do Índio de 1973. Desde 1990, tramitam no Congresso Nacional
vários Projetos de Lei propondo a revisão do Estatuto do Índio e a regulamentação
de diversos aspectos da Constituição relacionados aos direitos indígenas.

Entre os direitos indígenas, o que gera mais conflitos é o vinculado a terras.


Existe a ideia, divulgada pela mídia e por segmentos vinculados a interesses fun-
diários, de que “há muita terra para pouco índio”, apresentando-os como privi-
legiados em relação aos demais setores da sociedade brasileira. Como mostram
os pesquisadores especializados nesta questão, Pacheco de Oliveira (1995), por
exemplo, é que existem muitos preconceitos e juízos errados em relação a essa
afirmação, pois a maioria dos povos – com a exceção de alguns poucos que
vivem na Amazônia – estão em áreas pequenas que não lhes conferem as condi-
ções para uma existência digna. Portanto, o que está em jogo são interesses por
parte da elite econômica de ocupar as terras já demarcadas e impedir ou limitar
a demarcação de novas terras. Ainda são 600 terras que precisam ser garantidas
e regularizadas pelo Estado brasileiro (LUCIANO, 2006a, p. 20).

Cabe destacar que há hoje mais de dez advogados índios atuantes na área
dos direitos indígenas. Eles vêm trabalhando com temas que vão desde a prote-
ção dos direitos territoriais até a questão do acesso aos recursos genéticos em
terras indígenas e os conhecimentos tradicionais a eles associados. Destaque-se
ainda a atuação de organizações e de alguns advogados indígenas em fóruns e
em organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e
a Organização dos Estados Americanos (OEA) (ARAÚJO et al., 2006).

Nas áreas de saúde e educação foram asseguradas, a partir de 1988, políticas


diferenciadas de atendimento aos índios.
4
Com o uso do termo “tradicionalmente”, a Constituição se refere não ao fato temporal, ou seja, a que o povo indígena possa comprovar uma
ocupação antiga de um determinado território, mas ao modo tradicional de os índios utilizarem e se relacionarem com as terras (ARAÚJO et al.,
2006, p. 48).

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No caso da educação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei


9.394, de 20 de dezembro de 1996), em seus artigos 78 e 79, estabelece que
compete ao Estado oferecer aos índios uma educação escolar bilíngue, ou seja,
simultaneamente em português e nas línguas indígenas. A educação deve ter
como objetivo “[...] a recuperação de suas memórias históricas, a reafirmação de
suas identidades étnicas e a valorização de suas línguas e ciências”, e à União
cabe a responsabilidade de apoiar técnica e financeiramente para isso. Por sua
vez, o Conselho Nacional de Educação, por meio da Resolução 3, de 10 de no-
vembro de 1999, definiu que compete à União fixar as diretrizes da política de
educação indígena, cabendo aos estados a tarefa de ofertá-la.

No caso da saúde indígena, merece destaque a aprovação da Lei 9.836, de 23


de setembro de 1999, conhecida como Lei Arouca, que criou o Subsistema de
Atenção à Saúde Indígena como componente do Sistema Único de Saúde (SUS).
Esse Subsistema está estruturado com base em Distritos Sanitários Especiais In-
dígenas (DSEIs), desenhados justamente para, em sua atuação, levarem em con-
sideração a realidade local e a especificidade das culturas dos povos indígenas.

Apesar dessas conquistas legais, é importante considerar que ainda faltam


avanços na consolidação dos direitos indígenas, como a aprovação de um novo
Estatuto do Índio e a regulamentação de vários dispositivos da Constituição re-
lativos aos índios. É o caso, por exemplo, das leis sobre mineração em terras in-
dígenas e sobre o aproveitamento dos recursos hídricos nelas existentes. Outro
tema fundamental, pendente de regulamentação, diz respeito à definição do
chamado “relevante interesse público da União”, que excepcionaria, por meio de
lei complementar, a proteção integral das terras indígenas (ARAÚJO et al., 2006,
p. 61). Na prática, os índios ainda estão distantes do gozo pleno dos direitos a
eles garantidos.

O avanço no processo
de escolarização dos povos indígenas
Fazer com que as populações indígenas possam se defender das sociedades envolventes
usando o português como “arma”, sem perderem a identidade étnica.
Encontro de Educação Indígena, OPAN, 1989

A educação escolar destinada aos povos indígenas – antes do processo de


organização do movimento indígena e dos avanços legislativos da Constitui-

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ção de 1988 – era dirigida principalmente pelo órgão indigenista e por mis-
sões religiosas. Embora essas agências tivessem ideologias, intenções e práti-
cas diferentes, coincidiam no objetivo de assimilar o índio, tentando lhe impor
novas religiões, crenças e costumes. Por isso, no contexto da mobilização da
sociedade civil, na década de 1970, que denunciou a política desenvolvimen-
tista do governo militar da época, também as críticas voltaram a questionar o
tipo de educação escolar que os índios vinham recebendo.

Naquela época, a Funai tinha assinado um convênio com uma instituição


norte-americana – o Summer Institute of Linguistics – para que ela fosse res-
ponsável pela educação bilíngue dos índios. Essa era uma instituição que es-
tudava línguas indígenas com o objetivo de traduzir a Bíblia nessas línguas,
com a ideia de que seria um meio mais fácil de convertê-los ao cristianismo. O
ensino escolar que essa agência promovia era bilíngue, mas não com o objeti-
vo de valorizar as línguas indígenas, e sim por considerar que a alfabetização
na língua materna seria o método mais eficaz para os índios aprenderem. Uma
vez conseguida a alfabetização, a meta final era que dominassem e utilizas-
sem como única língua o português. Este tipo de educação foi considerada
pelas organizações não governamentais de apoio aos índios como alienadora
e autoritária.

Contudo, muitos povos indígenas perceberam, naquele período, que a edu-


cação também podia ser relevante por proporcionar conhecimentos que lhes
permitissem um melhor domínio da comunicação e da relação com a socieda-
de envolvente. Surge então uma demanda por maior acesso à escolarização,
mas junto com uma reivindicação para que esta não tivesse o caráter integra-
cionista do passado. Começa-se a gestar experiências educativas pertinentes à
realidade indígena – desde o currículo, o material didático, a rotina e a discipli-
na escolar, às metodologias de ensino diferenciadas, até os calendários foram
pensados para respeitar as atividades tradicionais dos índios. Ganhou força o
discurso de que uma escola com esse perfil tinha um sentido libertador, que
poderia contribuir para a construção da autonomia dos povos indígenas.

Assim, diversas entidades civis junto com os povos indígenas de distintas


regiões levaram a cabo experiências de educação diferenciadas e indepen-
dentes das escolas da Funai. Houve um grande esforço por elaborar material
didático produzido em línguas indígenas e tendo como autores os próprios
índios. Também várias ONGs se voltaram a implementar cursos de magistério
indígena para que eles se tornassem professores e assumissem a condução
das escolas localizadas nas aldeias.

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A ocupação do cargo de professor nas mãos dos índios foi percebida como
uma grande conquista por eles, tanto pela possibilidade de assumir o ensino
escolar e elaborar outras modalidades e estilos de exercer tal função, quanto por
ser uma fonte de recursos e de acesso a novos espaços.

A partir de 1988, criou-se uma organização que reuniu os professores indíge-


nas dos estados do Amazonas, Roraima e Acre que vêm realizando desde então
reuniões anuais para analisar e discutir questões relacionadas com a atividade
educacional que desempenham, trocar experiências e conhecimentos sobre as
ações que cada grupo faz para conseguir uma escola adequada às suas neces-
sidades5. Discutem-se formas alternativas de currículos e regimentos escolares
e também procuram encontrar soluções para os obstáculos que se apresentam
neste processo6.

O Estado, após a Constituição de 1988, reconheceu essas experiências pionei-


ras e levou em consideração várias de suas propostas para a elaboração das leis
educativas vigentes, que legitimaram a concepção de que a educação escolar
indígena devia ser: bilíngue, específica, diferenciada e intercultural7.

Atualmente, a educação escolar indígena é consensualmente considerada


como um direito de cidadania essencial, que garante informação, conhecimen-
tos e instrumentos de comunicação importantes para uma participação plena
dos índios na sociedade nacional. Participação esta que não deve se confundir
com integração nem com perda dos seus costumes tradicionais.

O Estado foi ampliando a oferta escolar nas terras indígenas e muitas delas
hoje têm Ensino Fundamental completo e Ensino Médio, embora ainda seja
grande a demanda por maior quantidade de estabelecimentos e assistência es-
colar nas aldeias.

Outro avanço importante a ser destacado no campo da educação escolar in-


dígena é o acesso crescente dos índios ao Ensino Superior. Algumas universida-
des começaram, desde 2002, a implementar ações afirmativas para o ingresso
deles, seja estabelecendo uma percentagem de vagas reservadas para índios,

5
Ver Ferreira (1992) e Silva (1998) para um histórico do movimento e organização de professores indígenas no Brasil, especialmente da região
amazônica.
6
Atualmente essa organização que reúne professores dos estados do Amazonas, Acre e Roraima chama-se Comissão dos Professores Indígenas
da Amazônia (Copiam).
7
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, artigos 78 e 79, garante aos povos indígenas a oferta de programas de educação escolar bilíngue
e intercultural.

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seja através da criação de vagas suplementares, como é o caso, por exemplo, do


que ocorre na Universidade de Brasília (UnB).

Também algumas universidades têm implementado cursos específicos para


a formação de professores indígenas no nível superior, que se chamam “Licen-
ciaturas Interculturais” ou “Licenciaturas Indígenas”. Alguns desses cursos são
coordenados em forma conjunta entre universidades, organizações indígenas e
organizações da sociedade civil.

Apesar dessas conquistas, observa-se uma brecha entre o garantido pelas leis
e sua aplicação prática. Isto se deve, entre outros fatores, às mudanças e descon-
tinuidade existentes nas políticas e nos programas de governo, a dificuldades
de ordem financeira e burocrática e à incompreensão e o preconceito em rela-
ção aos índios e à realidade indígena por parte dos gestores e funcionários dos
órgãos públicos de nível estadual e municipal, encarregados de aplicar as leis.

Escritores e literatura indígena


Cabe destacar que o início da produção escrita por parte de autores indíge-
nas se produz no contexto dos cursos de magistério indígena de modalida-
de bilíngue e intercultural que começaram a ser implementados nas décadas
de 1980 e 1990 – no início promovidos pelas organizações não governamen-
tais de apoio ao índio e mais tarde assumidos pelo Estado. A possibilidade de
elaborar material escrito nesses contextos, desde as perspectivas indígenas,
seus conhecimentos e suas memórias históricas representou um importante
avanço e fortalecimento político dos índios. Pela primeira vez, eles puderam
escrever suas próprias histórias e falar de si mesmos para os outros – tarefa
que anteriormente era executada, na maioria das vezes, pelos indigenistas e
estudiosos das sociedades indígenas. Cada vez mais os índios estão tomando
a voz para representar a si mesmos na discussão acerca do seu passado, seu
presente e seu futuro.

A escrita de mitos e histórias indígenas, que até poucos anos atrás vinham sendo
transmitidas somente por meio da oralidade, tem seus defensores e detratores entre
os especialistas em povos indígenas, principalmente preocupando os linguistas.

Para os detratores, a passagem de narrativas orais para a escrita simplifica


a riqueza do discurso oral. As histórias indígenas reservam um manancial de
imagens, de sons e matizes que são difíceis de registrar de forma escrita. Os
índios se enfrentam ao desafio de dar a conhecer saberes complexos aos não
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índios de forma inteligível para eles e acabam nessa tentativa simplificando


essa riqueza.

Para os defensores, ao contrário, é necessário passar as narrativas orais dos


indígenas para a escrita com o objetivo de preservá-las. Para os que pensam
isso, os conhecimentos orais indígenas estariam em risco de extinção, porque
entendem que estão principalmente contidos nas pessoas idosas e partem do
suposto que – pelas transformações impostas pela sociedade atual – eles já não
passam como antes seus conhecimentos às novas gerações.

Existe também a posição dos que entendem que é possível incorporar novas
formas de sistematizar os conhecimentos indígenas de forma escrita e manter e pro-
mover, ao mesmo tempo, a tradição oral. Nesse sentido, a gravação de relatos orais
em CDs é um importante recurso, porque, por esse meio, não se perdem as sutile-
zas da linguagem, e estes podem circular amplamente pelas aldeias e serem apro-
veitados por toda a população – inclusive crianças e adultos não alfabetizados.

Os textos que compõem os livros didáticos produzidos por indígenas são


muitas vezes frutos de pesquisa (que envolve gravação e transcrição de depoi-
mentos) dos professores indígenas com as pessoas mais idosas dos grupos in-
dígenas em questão. Para a elaboração dos textos, esses depoimentos são con-
densados e fundidos a vários relatos de várias procedências e transformados em
relatos escritos pelos professores indígenas (SCARAMUZZI, 2007).

Também existe uma crescente produção de livros de autores indígenas que


não tem apenas o objetivo de serem utilizados nas escolas das aldeias, mas
também de circular por um público mais amplo, infantil, juvenil e adulto da
sociedade não indígena. Cabe destacar a existência de um grupo de escritores
reunidos numa organização que tem como metas divulgar a literatura indígena,
promover a qualificação de indígenas para o exercício profissional da produção
literária e discutir temas relevantes sobre literatura indígena e direitos autorais: o
Núcleo de Escritores e Artistas Indígenas (Nearin8), criado por ocasião do I Encon-
tro Nacional de Escritores Indígenas, ocorrido no ano de 2003 no Rio de Janeiro.

Por fim, cabe destacar uma produção indígena acadêmica, compreendida


por dissertações, teses e artigos, referente às áreas de formação que estão transi-
tando intelectuais indígenas. Predominam textos nas áreas das Ciências Sociais,
da Pedagogia e da Linguística. São materiais riquíssimos tanto pela relevância
das pesquisas, quanto por serem fruto de reflexões que os autores indígenas
elaboram a partir de trajetórias e experiências de vida complexas e densas.
8
Ver o blog do Nearin para um melhor conhecimento dos projetos e ações que realizam, assim como das publicações dos escritores indígenas que
participam da organização: <http://escritoresindigenas.blogspot.com>.

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Artistas e cineastas indígenas


Reconhece-se, atualmente, que os povos indígenas não são simplesmente
produtores de artesanato que utilizam variadas matérias primas à disposição no
meio-ambiente para elaboração de artefatos. Eles são conhecedores de técnicas
sofisticadas, de manejo e tratamento de uma grande diversidade de matérias
primas, e os objetos que elaboram estão carregados de significados e vinculados
a concepções religiosas, estéticas, filosóficas e terapêuticas, que permeiam toda
a vida social indígena.

Os povos indígenas não recortam, dentro de sua experiência coletiva, uma


esfera separável que poderia ser qualificada de cultura material, e que teria uma
finalidade prática ou aplicada, de uma artística, como acontece na concepção
ocidental de Arte.

Como chama a atenção Lopes da Silva (1995, p. 373):


[...] a arte, nas sociedades indígenas, está comprometida com outros fins sociais que aqueles
a ela atribuídos na sociedade ocidental. É, até certo ponto, uma arte anônima, no sentido de
que o sujeito criador são as coletividades, ainda que seja sempre o indivíduo concreto quem
dá a marca, o selo, o gesto particular. Nesse sentido, caberia apontar os rituais como sendo,
provavelmente, a forma mais condensada da arte indígena e da arte popular, por serem a
síntese suprema de todas as manifestações de cultura corporal, de artes plásticas, de teatro, de
poesia, de literatura, música e dança.

A maior parte dos povos indígenas não tem uma palavra na sua língua para
designar o que nós chamamos “arte”, porque para eles não se trata de uma es-
pecialidade separada do resto da vida. Porém, como parte do processo de afir-
mação identitária e reconhecimento do valor da sua cultura, muitos grupos – e
sobretudo as organizações que os representam – começaram a reivindicar que
sua cultura material fosse considerada ou tratada como “arte”. Assim, se criaram,
ao longo dos últimos anos, associações de produtores de artesanato e artistas
indígenas, que procuram divulgar sua cultura e também comercializar seus pro-
dutos de uma forma mais justa, valorizando quem os produz, para que possam
receber preços adequados ao custo e valor da habilidade do seu trabalho.

Entre as artes indígenas, destaca-se a elaboração de cerâmica, da cestaria e


do trançado, os instrumentos musicais, a arte plumária9, máscaras e pintura cor-
poral e a arte gráfica.

9
Como chamam a atenção Sonia Dorta e Lúcia van Velthem (1982 apud Lopes da Silva, 1995, p. 395): “[...] os adornos plumários não servem apenas
para enfeitar o corpo, e os elementos plumários aplicados a outras superfícies, como armas, instrumentos musicais, máscaras, não podem ser vistos
como atributo meramente decorativo. Eles podem ser considerados verdadeiros códigos, que transmitem, numa linguagem não verbal, mensagens
sobre sexo, idade, filiação clânica, posição social, importância cerimonial, cargo político e grau de prestígio de seus portadores. Além de enfeites,
portanto, são símbolos e, por isso, usados nos ritos e cerimônias, campo simbólico por excelência das culturas humanas”.

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Entre os povos indígenas discute-se crescentemente como preservar e prote-


ger a biodiversidade e os conhecimentos tradicionais. Nesse sentido, cabe des-
tacar a criação de uma organização indígena especialmente voltada à proteção
do patrimônio cultural, que visa discutir a temática da propriedade intelectual
e defender os conhecimentos tradicionais: O Instituto Indígena Brasileiro para a
Propriedade Intelectual10.

Por fim, é importante destacar a incursão de indígenas em expressões artísti-


cas não tradicionais, como a produção de CDs, com gravação de músicas tradi-
cionais11 e a produção de filmes e vídeos.

Vejamos como exemplo a capa do CD produzido pelo povo Ashaninka, povo


do tronco linguístico Arawak que habita a Amazônia peruana e brasileira. Nesse
CD eles gravaram músicas que vêm sendo transmitidas de geração para geração,
não apenas para diversão, mas para passar conhecimentos importantes que ga-
rantem a sobrevivência do povo. Também tiveram como objetivo divulgar sua
música para a sociedade não indígena, para mostrar quem são os Ashaninka e
como é sua cultura.
Divulgação FUNAI.

Capa do CD Homãpani Ashaninka.

A partir do apoio de algumas organizações não governamentais têm sido


levadas a cabo experiências de filmagem em aldeias indígenas pelos próprios
índios, segundo seus interesses e perspectivas da realidade. Também foram
sendo realizadas oficinas de formação para lhes ensinar a usar câmeras de fil-
magem e produzir eles próprios seus vídeos e filmes. Cabe destacar o projeto
“Vídeo nas Aldeias”, criado em 1987, dentro das atividades da ONG Centro de
Trabalho Indigenista12. Atualmente há mais de 70 filmes que foram produzidos
por cineastas indígenas, alguns premiados nacional e internacionalmente.
10
Ver o site da organização: <www.inbrapi.org.br>.
11
Ver o site: <www.iande.art.br/musica/musica1.htm> para um melhor conhecimento e acesso aos CDs de música indígena produzidos pelas
próprias comunidades indígenas em parceria com distintas agências.
12
Esse projeto surgiu como um experimento realizado por Vincent Carelli entre os índios Nambiquara. O ato de filmá-los e deixá-los assistir ao
material filmado foi gerando uma mobilização coletiva. Diante do potencial que o instrumento apresentava, essa experiência foi sendo levada a
outros grupos, gerando uma série de filmes de como cada povo incorporava o vídeo de uma maneira particular. Em 2000, o Vídeo nas Aldeias se
constituiu como uma ONG independente. Veja o site: <www.videonasaldeias.org.br/2009>.
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Texto complementar
O relato que leremos a seguir foi escrito por Daniel Munduruku, nascido
em Belém do Pará, da etnia mundurucu. Graduado em Filosofia, licenciado
em História e Psicologia é doutorando em Educação na Universidade de
São Paulo. É um autor conhecido nacional e internacionalmente, sendo que
vários de seus livros receberam prêmios no Brasil e no exterior. É também
presidente do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (IN-
BRAPI) e pesquisador do CNPq. A história que escolhemos aqui foi retirada
do seu blog pessoal: <www.danielmunduruku.com.br>

Xipat?
1

(MUNDURUKU, 2008)

Tawé levantou levemente a cabeça e fixou o olhar para o outro lado do


rio Tapajós. Pássaros levantavam voo no exato momento em que uma canoa
passava na praia. Dentro dela ia um casal bem novinho, recém-casado. O
rapaz remava o barco com muita destreza e a moça o olhava com um ar de
sonho realizado. Tawé acenou sem muita vontade. Estava triste, preocupa-
do. Não queria conversar com ninguém, saber da vida das pessoas ou o que
estava acontecendo com elas.
Tudo tinha perdido o sentido para ele e não conseguia mais entender as
mudanças que estavam se processando em sua vida.
Ele ia sempre a este lugar quando tinha dificuldades de entender a cul-
tura de seu povo. Seu avô lhe dizia que tudo podia ser resolvido bastando
colocar-se contra o vento e ouvir as palavras desse espírito-irmão. Segundo
o velho, nada ficava sem resposta quando se soubesse fazer as perguntas
certas. Mas quais perguntas podiam ser certas? Se tudo já estava decidido,
o que mais querer saber? Se havia pessoas que decidiam por ele, o que mais
ele podia fazer?
Absorto nestes pensamentos, Tawé não percebeu Ianiurebê aproximar-
se. A jovem acocorou-se ao seu lado, mas não dirigiu-lhe nenhuma palavra.
Apenas catou alguns coquinhos que estavam ali por perto e passou a lançá-los
1
Xipat é uma expressão em Munduruku que quer dizer: tudo bem?

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no rio. As sementes batiam duas ou três vezes na água formando círculos. Ela
ria tentando chamar a atenção do amigo de infância que continuava sem se
dar conta dos gracejos que a menina fazia.
Num momento de lucidez do amigo, Ianiurebê tomou-o pelas mãos e
fê-lo caminhar até a pequena praia mais abaixo do local onde estavam. No
primeiro momento Tawé recuou em pegar na mão dela, mas em seguida
deixou-se ser conduzido e seguiu os passos da pequena amiga que, agora,
ele via que estava crescendo. Ianiurebê chamou sua atenção para a areia da
praia e começou a riscar o chão. Fez primeiro um círculo pequeno; em se-
guida um maior e, depois, outro ainda maior. Pegou uma pedra circular e
lançou-a nas águas que absorveram-na em silêncio.
Tawé ficou imaginando o que aqueles círculos queriam dizer, mas não
teve coragem de perguntar. Deixou que Ianiurebê tomasse a iniciativa.
– Você está tão triste que não consegue distinguir o que os círculos querem
dizer, mas eu vou lhe contar. O círculo menor é o que você sabe, é o seu co-
nhecimento... bem pequeno. O círculo do centro é o que sabe nossa gente,
nossos velhos... um conhecimento maior que o seu e o meu; o círculo maior
é o que você ou eu, ou nossa gente não sabe... é o mistério que alimenta a
nossa vida... são as respostas que nossas perguntas ainda não encontraram.
Dito isso a menina-moça olhou com carinho para o amigo e saiu correndo
para a aldeia deixando Tawé sozinho com suas reflexões.
Ele acocorou-se perto do círculo e ficou pensando nas palavras da amiga,
procurando entender aquele sinal. 
Totalmente envolvido com seus pensamentos não percebeu que uma
canoa passou ali perto criando uma pequena onda que chegou à praia e
apagou o desenho, mas deixando uma imagem em sua cabeça.
– Deixe disso, Tawé. Nada do que você está pensando é tão importante.
Você precisa entender que cada pessoa tem um caminho para seguir e é dos
passos que cada um dá que nossa gente vai vivendo.
– Mas padrinho, eu sou ainda tão pequeno, tão novo... por que eu tenho que
fazer isso? Se eu não me sair muito bem? O que as pessoas vão dizer de mim?
– O que quer que elas digam haverá em você a vitória de ter tentado. Mas
não se preocupe com isso agora. Quando chegar a hora você saberá fazer
a coisa certa. Assim como as árvores crescem no tempo adequado, você
também crescerá.

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– Mas eu não quero crescer. Quero continuar a brincar com os meus co-
legas; quero nadar no rio, correr no mato, jogar flecha. As pessoas quando
crescem parece que não fazem mais nada disso!
– Cada estação tem seu tempo, Tawé. Não dá para pedir ao verão que
ele se torne inverno ou ao inverno que vire verão. Com as pessoas também
é assim. Não se pode querer que uma criança vire adulto ou um adulto
vire uma criança. Sua hora como criança está passando. Você está virando
uma árvore madura... e não adianta você se esforçar para fazer o contrário.
Assim como a árvore cresce sem nossa ajuda, você crescerá e virará um
homem para o seu bem e de nossa gente.
Tawé recordou com certa tristeza a conversa que teve com seu padri-
nho. Sabia que estava virando um homem e isso lhe deixava confuso. Como
poder ser um adulto sem abandonar a alegria da criança?
Enquanto pensava, notou que se aproximava seu melhor amigo,
Cumaru. Vinha correndo numa alegria só. Cumaru tinha a mesma idade
sua e não estava encontrando toda esta dificuldade em crescer. Parece que
ele já tinha as respostas prontas em sua mente e em seu coração. 
Cumaru chegou em frente do amigo e apenas disse: – Xipat? Vamos no
mato brincar de procurar as meninas? 
Neste instante, Tawé percebeu que pode haver uma grande alegria e
aventura no crescimento. Que as árvores grandes dão as frutas mais deli-
ciosas que as árvores pequenas.

Dicas de estudo
 Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença, de Valéria Araújo
et al.

O volume reúne pela primeira vez as contribuições de profissionais indí-


genas da área do direito, aportando as visões próprias daqueles que foram
treinados para operar o ordenamento político brasileiro, mas que são por-
tadores também da singular experiência de vida por serem integrantes de
povos indígenas autóctones das Américas e partícipes relevantes na luta
em prol dos direitos desses povos.

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 Site: Vídeo nas Aldeias <www.videonasaldeias.org.br/2009>.

A ONG Vídeo nas Aldeias, criada em 1987, é um projeto precursor na área


de produção audiovisual indígena no Brasil. O site, além de introduzir in-
formação sobre o projeto e as diversas ações que realiza, dispõe o catá-
logo de filmes produzidos pelos cineastas indígenas (há uma coleção de
mais de 70 filmes) e apresenta informações sobre a trajetória deles.

 Pisa Ligeiro (2003). Direção: Bruno Pacheco de Oliveira. 42 minutos.

Resultado de um trabalho de quatro anos desenvolvido por uma equipe


do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento
do Museu Nacional, em associação com organizações indígenas, o vídeo
corresponde a um esforço de reflexão e autoavaliação desses líderes sobre
os últimos 15 anos de lutas e mobilizações.

 Juruna, O Espírito da Floresta (2008). Direção: Armando Lacerda. Documen-


tário de longa metragem. 86 minutos.

O filme pretende resgatar a história do cacique Xavante, ex-deputado


Mário Juruna, personagem excepcional na história política do Brasil. Foi
o primeiro indígena eleito como deputado nacional, famoso por gravar
as promessas de ministros, que depois se propunha cobrar. Sua história
de vida é densa e inspiradora. O enredo do filme mostra também a re-
sistência e sobrevivência das comunidades indígenas diante do avanço
da “civilização” e propicia uma reflexão sobre a conjuntura político-social
brasileira, da metade do século XX até o presente momento.

Estudos literários
1. A Constituição de 1988 representa um marco na forma do Estado pensar a
relação com os povos indígenas em nosso território, ao reconhecer pela pri-
meira vez que são coletividades culturalmente distintas e, por isso, deten-
tores de direitos especiais. Explique os direitos que a Constituição Federal
garante aos povos indígenas.

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2. Que objetivos teve historicamente a educação destinada aos povos in-


dígenas e que mudanças houve a partir do movimento de organização
que eles empreenderam nas décadas de 1970 e 1980?

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3. Quais são as características e especificidades das artes indígenas?

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Gabarito

A África lusófona: um pouco de história


1. A conquista de Ceuta tem um motivo religioso e econômico. Para os
portugueses, tomar Ceuta era fazer uma cruzada contra os povos in-
fiéis e consolidar o Império do cristianismo em terras não cristãs. No
entanto, a Coroa Portuguesa não desconhecia que havia indícios de ri-
quezas no continente africano. Ao tomarem Ceuta, os portugueses se
dão conta de que ali desembocavam várias riquezas vindas de outras
regiões da África e percebem que seria mais lucrativo avançar para o
sul do continente em busca de tesouros desconhecidos do que ocu-
par os já conhecidos territórios ao longo do Mar Mediterrâneo.

2. Toda a riqueza encontrada em território africano era levada para a


Metrópole. Com a necessidade de se colonizar a América, descobre-
-se outro “negócio” rentável na África: o tráfico negreiro. Esse tipo de
comércio terá seu vigor durante os séculos seguintes até meados do
século XIX, quando Portugal começou a sofrer as imposições de países
europeus mais poderosos que exigiam mudanças na política portu-
guesa na África.

3. Durante o século XX, a Casa do Estudante do Império – especialmente


a de Lisboa – abrigava um grupo de estudantes africanos, geralmente
de origem mestiça e burguesa – que começa a tomar contato com in-
telectuais e escritores não só portugueses contrários ao regime de Sala-
zar, mas também de outras regiões da África portuguesa. Nessas casas,
longe de suas terras, os jovens reinventavam poética e literariamente a
nação de que eram originários e lá ganhavam força as ideias de liberda-
de e independência.

4. Os fatores que desencadearam a luta dos povos africanos das colônias


contra o regime de Salazar foram o descontentamento com o Ato Co-
lonial instituído nas colônias, a disseminação das ideias do Movimento
da Negritude, o conhecimento das lutas dos negros norte-americanos
contra o racismo e a independência dos países africanos colonizados
por ingleses e franceses.
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Gabarito

Cultura e literatura nos arquipélagos lusófonos


e na Guiné-Bissau
1. A revista Claridade inaugura uma nova fase na literatura africana de língua
portuguesa por apresentar pela primeira vez uma voz de valorização da ca-
boverdianidade como a língua crioula, por exemplo, em detrimento da refe-
rência cultural europeia.

2. Francisco José Tenreiro já era um santomense conhecido em Portugal quando


lançou, com o angolano Mário Pinto de Andrade, o Caderno da Poesia Negra de
Expressão Portuguesa, uma clara referência à obra do Movimento da Negritude.

3. Na Guiné, a independência do país constituiu um divisor de águas para a


valorização da literatura. A ex-colônia portuguesa, por conta da sua pobreza,
foi a que menos se desenvolveu culturalmente. Após a independência, a lite-
ratura colonial ganhou novo vigor com a revelação de novos talentos.

Cultura e literatura em Angola


1. Para o estudioso, a adoção da língua portuguesa – a língua do colonizador
– foi necessária, uma vez que se todas as etnias utilizassem suas línguas e
dialetos locais a construção da nova nação seria prejudicada pela dificuldade
de comunicação entre os grupos étnicos que habitam o território angolano.

2. Com a perda do Brasil, Portugal resolveu explorar a sua maior colônia na Áfri-
ca. Com isso, muitas riquezas foram extraídas da região e enquanto vigorou
o tráfico negreiro e a escravidão muitos negros foram arrancados de sua re-
gião. No entanto, a necessidade de explorar a colônia fez com que muitos
colonos portugueses se fixassem na região. Assim, paulatinamente, uma
população mestiça, constituída em sua maioria de pequenos comerciantes,
juristas, advogados etc., foi se formando em Angola, mais precisamente em
Luanda e com isso se criava na capital uma demanda por educação que irá
favorecer as novas gerações.

3. O MPLA surgiu em 1956 em Angola, na esteira da criação do PAIGC, e foi


criado por uma articulação de intelectuais – especialmente poetas, estu-
dantes etc. que reivindicavam a independência de Angola. Por sua vez, os
movimentos independentistas na África lusófona foram influenciados pelas
lutas pela independência de países africanos colonizados por outros países
europeus como a Inglaterra e a França.

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Gabarito

Cultura e literatura em Moçambique


1. A literatura em Moçambique só apresenta traços de moçambicanidade no
século XX quando os periódicos O Africano e O Brado Africano começam
a apresentar um suplemento literário em que poetas como, por exemplo,
Virgílio Lemos e Noêmia de Sousa publicam poesias que falam do homem
africano e do moçambicano em particular, da condição do negro e da ne-
gritude. No século XIX não havia expressão dessa poesia nos periódicos que
circulavam em Moçambique.

2. Segundo Pires Laranjeira, Noêmia de Sousa é um importante nome deste


período pois fala da condição da mulher negra, fugindo dos estereótipos
da literatura colonial X literatura local, além de usar expressões próprias da
oralidade, tão importante na tradição cultural dos países africanos.

3. Podemos falar da consolidação da literatura moçambicana após a independên-


cia do país. Nesse período, a literatura em Moçambique adquire maturidade com
a tematização de outras questões além da condição do negro e da negritude.

África lusófona e Brasil: laços e letras


1. Quando os portugueses chegaram ao continente africano encontraram um
tipo de escravidão doméstica comum entre as diversas etnias africanas. Ela
consistia basicamente em se tomar os prisioneiros de guerras como escravos
que passavam a trabalhar na lavoura dos povos vencedores, que, por conta
da escassez de mão de obra, necessitavam de reforço. As mulheres escravas
eram incorporadas ao domínio dos povos vencedores e acabavam gerando
filhos de seus senhores. As novas gerações iam paulatinamente conquistan-
do a liberdade e já gozavam de certos direitos na comunidade em que suas
mães haviam sido escravizadas. O outro tipo de escravismo desenvolvido
pela presença dos árabes no território já apresentava características mercan-
tis. Os escravos eram comercializados entre os povos árabes e valiam como
moeda de troca. Com esse tipo de escravismo, muitos africanos acabavam
sendo levados de seus territórios para outras terras e desse modo ficavam
alienados de sua cultura.

2. Na penosa travessia pelo Atlântico, muitos africanos morriam em razão das


péssimas condições em que eram transportados nos navios negreiros. Ao che-
garem ao Brasil, muitos não se adaptavam ao trabalho escravo e fugiam para o
interior. Assim, eram criados os quilombos no interior do Brasil que funciona-

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vam como espaços de liberdade para o africano. Entre os séculos XVII e XVIII,
centenas de quilombos existiram no Brasil e o mais famoso deles foi o Quilom-
bo dos Palmares, no qual Zumbi foi consagrado rei. Nesses lugares, a cultura
africana era valorizada e cultuada, embora os africanos que para ali fugiam
fossem de diferentes regiões da África.

3. Podemos dizer que os cultos africanos foram reinventados no Brasil, uma vez
que cada grupo étnico que aqui chegava, estrategicamente disposto pelo co-
lonizador em regiões distintas do Brasil, trazia uma cultura própria de seu gru-
po étnico, em que havia crenças e divindades próprias. Porém, a aproximação
desses diferentes grupos, com suas crenças diversas, fez surgir um sincretismo
das diferentes religiões africanas, já que umas cultuavam orixás e outras vo-
duns, por exemplo. Esse sincretismo também se fundiu ao catolicismo e, em
determinadas regiões do Brasil, ao islamismo, e esse amálgama de crenças ge-
rou os cultos afro-brasileiros.

História e historiografia indígena


1. As fontes disponíveis para o estudo da história indígena são as crônicas de
colonizadores e missionários dos séculos XVI, XVII e XVIII, relatos de viajantes
e naturalistas do século XIX, estudos arqueológicos e antropológicos realiza-
dos nos séculos XX e XXI e as próprias narrativas das sociedades indígenas
contemporâneas. Essas fontes são diversas e devem ser analisadas conforme
os contextos em que foram produzidas, assim como as ideologias e ideias
sobre os índios que as sustentaram. A importância de considerar as narrati-
vas históricas dos povos indígenas contemporâneos é que nos traz à luz suas
visões e compreensão do passado, assim como sua rica memória transmitida
de forma oral. Portanto, nos possibilita entendê-los como sujeitos ativos de
sua história.

2. Os aldeamentos se constituíram a partir dos “descimentos”, ou seja, do des-


locamento – promovido por tropas de soldados, com a presença de missio-
nários – de povos inteiros, dos territórios que tradicionalmente ocupavam
para morarem junto ou próximo das vilas fundadas pelos colonos. Esse novo
padrão de moradia e de organização social tornou-se fundamental para sus-
tentar o sistema colonial, já que os indígenas que moravam nos aldeamen-
tos produziam tanto os alimentos consumidos pelos colonos, como lhes ser-
viam de mão de obra para diferentes afazeres. Também foram utilizados para

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lutar nas guerras que os portugueses estabeleciam contra colonizadores de


países estrangeiros ou contra os próprios índios.

3. A política que a Coroa estabeleceu para os índios diferenciou “índios aldea-


dos e aliados” e “índios inimigos”, dando um trato bem diferenciado a cada
um deles. Aos primeiros lhes foi garantida a liberdade ao longo de toda a
colonização e o direito de serem pagos pelo seu trabalho. Contudo, isso não
significa que não tenham sofrido exploração, sendo sobrecarregados de tra-
balho e deslocados de um lado a outro segundo interesses de governantes e
particulares. Aos segundos se declarou “guerra justa” e a escravização poste-
rior foi vista como lícita e até legitimada através de várias leis.

4. Os objetivos e princípios que orientaram a primeira agência indigenista es-


tatal – o Serviço de Proteção aos Índios – foram o estabelecimento de uma
convivência pacífica entre índios e brancos, a garantia da sobrevivência física
e cultural dos povos indígenas, a promoção gradual e com métodos bondo-
sos e dissuasórios de sua “civilização” e formação como “trabalhadores na-
cionais”. Esses objetivos eram ambíguos, já que se promoveu uma política
protecionista, mas ao mesmo tempo integracionista, que considerou a con-
dição indígena como transitória, condenada à extinção. Contudo, a diferen-
ça das políticas durante a colônia e o Império, o órgão indigenista defendeu
a aplicação de métodos brandos, de atração, de mudança de hábitos através
do exemplo e o ensino de ofícios e novas formas de trabalho, assim como o
inculcamento de valores e símbolos de nacionalidade.

Situação contemporânea dos povos indígenas


1. As fontes disponíveis para conhecer a situação demográfica dos povos in-
dígenas brasileiros são os dados que a Funai, o ISA, a Funasa e o IBGE nos
proporcionam. As diferenças na quantidade de população indígena que es-
sas agências registram devem-se a abordagens metodológicas distintas na
coleta de dados. Enquanto a Funai e o ISA levantaram dados de habitantes
localizados em aldeias de terras indígenas reconhecidas oficialmente, o IBGE
também incluiu os índios que residem nas cidades ou em terras indígenas
ainda não reconhecidas e que se auto identificaram como tais. Já a Funasa
registrou a quantidade de população inscrita no sistema de saúde e à qual
esse órgão presta assistência. Assim, a Funai e o ISA estimam 325 mil, a Funa-
sa, 374 123 e o IBGE, 740 mil indígenas.

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Gabarito

2. Hoje se falam 180 línguas indígenas no Brasil. Algumas delas são considera-
das em risco de extinção devido ao número reduzido de falantes (cerca de
40 das 180 línguas). Outras são vitais e ativas e possuem um considerável
número de falantes. Existem também grupos que perderam suas línguas e
falam somente o português como língua materna. Porém alguns deles estão
envolvidos em processos de resgate.

Os linguistas reconhecem dois grandes troncos: o Tupi e o Macro-Jê, e 20 fa-


mílias linguísticas. Também identificam “línguas isoladas”, que não reconhe-
cem parentesco ou semelhança com outras famílias linguísticas.

3. O território representa para os povos indígenas não apenas o meio onde


obter recursos naturais para seu consumo, mas também o espaço habitado
por seres, espíritos e ancestrais com os quais possuem fortes vínculos e aos
quais se associam valores e conhecimentos de fundamental relevância para
a reprodução do grupo.

O território proporciona as condições para o desenvolvimento das econo-


mias indígenas, que variarão conforme a extensão de terras, a abundância
de recursos naturais e os tipos de ecossistemas que nele se desenvolvam.
Também garantirá a reprodução cultural ao permitir a continuidade de prá-
ticas valorizadas pelos povos indígenas, como a reciprocidade e a genero-
sidade na distribuição de alimentos e a prática de rituais e festas em que o
consumo de certos alimentos e bebidas é fundamental. Ainda cabe destacar
que os indígenas, devido ao maior consumo de bens manufaturados, cres-
centemente comercializam os produtos da roça ou da pesca no mercado.

Demandas, conquistas e projetos do movimento indígena


1. A Constituição Federal, no capítulo VIII, intitulado “Os Índios”, garante o direi-
to dos índios a serem reconhecidos como povos. Portanto, estabelece que
são detentores dos direitos individuais como qualquer cidadão brasileiro,
mas também de direitos específicos e coletivos pela sua condição como po-
vos. O artigo 231 explicita, pela primeira vez, que “[...] são reconhecidos aos
índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os di-
reitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo
à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Os indígenas passam a ter direitos imprescritíveis sobre as terras que tradi-


cionalmente ocupam, consideradas inalienáveis e indisponíveis e também

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direito ao usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos. Torna-
se obrigação da União demarcar as Terras Indígenas, proteger e fazer respei-
tar todos os bens nelas existentes.

A Constituição garante o direito ao uso das línguas maternas e o direito a


que os índios recebam uma educação pertinente à sua cultura que valorize
os processos próprios de aprendizagem. Garante-se também a proteção e
valorização das manifestações culturais indígenas, que passam a integrar o
patrimônio cultural brasileiro.

Por fim, dispõe que os índios têm direito a políticas de atendimento diferen-
ciado na área de saúde e educação.

2. A educação destinada aos povos indígenas teve historicamente um objeti-


vo assimilacionista, procurando torná-los cristãos ou “civilizados” e promo-
vendo que deixassem de ser índios para se integrar à Nação. Contudo, para
alguns povos indígenas os conhecimentos e costumes que a escola promo-
via eram valorizados por proporcionar ferramentas para lidar melhor com a
situação de contato com os não indígenas. No processo de mobilização que
empreenderam a partir das décadas de 1970 e 1980 em prol de melhorar as
condições de exploração e conflito em que se encontravam, a reivindicação
por terra se deu conjuntamente com a demanda por receber – por parte
do Estado – uma assistência escolar que fosse pertinente e acorde à cultura
indígena. Com o apoio de organizações da sociedade civil, foram construin-
do experiências educativas inovadoras, que reformularam os currículos es-
colares, a disciplina e rotina escolar, os calendários e os materiais didáticos
utilizados. Destaca-se também o fato de que os índios passaram a ser capa-
citados para se desempenhar como professores, assumindo a condução das
escolas. O Estado foi ampliando a oferta escolar nas terras indígenas e muitas
delas hoje têm ensino fundamental completo e ensino médio.

3. Os povos indígenas – de forma diferente da concepção de arte ocidental


– não separam, na sua experiência cotidiana, a cultura material de finalida-
de prática ou aplicada, da que tem uma finalidade estética ou artística. Os
objetos que elaboram estão carregados de significados e vinculados a con-
cepções religiosas, estéticas, filosóficas e terapêuticas, que permeiam toda
a vida social indígena. Podemos dizer que, até certo ponto, a arte indígena
é uma arte anônima, no sentido de que o sujeito criador é membro de uma
coletividade, da qual não necessariamente se distingue, diferente do artista
da sociedade ocidental. Porém, como parte do processo de afirmação iden-

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titária que atravessam os povos indígenas no nosso país, alguns grupos – e


sobretudo as organizações que os representam – começaram a reivindicar
que sua cultura material fosse considerada ou tratada como “arte”. Entre as
artes indígenas, destaca-se a elaboração de cerâmica, a cestaria e o trançado,
os instrumentos musicais, a arte plumária, máscaras, pintura corporal e a arte
gráfica.

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