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JUÍZES
O ladrão terá que restituir o que roubou, mas, se não tiver nada, será
vendido para pagar o roubo. ’’
Pena enésima vez, Bom Ladrão ia preso. Sentia-se
porém, como se fosse a primeira vez, quando tremia
completamente de medo. Depois do primeiro pula
saci, e com as seguidas prisões, passou a ficar
conhecido dos guardas que o prendiam. O que dirigia
a viatura onde estava podia até se considerar seu
amigo, antes de descobrir a última das suas. Bom
Ladrão, algemado no banco de trás, falou tentando
ser engraçado:
-Ô, Rondinei, rapaiz, você pegou a via errada. A
pensão é pela rua da esquerda.
A 'pensão' era a delegacia de furtos e roubos do
distrito. Mas Rondinei hoje não estava para piadas.
-Calabôca, seu sacana!-
Respondeu, dando-lhe uma coronhada com a
mão livre. Mesmo assim, bateu com tanta força que
chegou quase a perder a direção, derrapando na
pista. Estava realmente com raiva naquele dia, e não
sem razão. O motivo daquela raiva foi um mau
negócio que fizera. Apesar de a cada ano ter mais
trabalho, seu salário não subia na mesma proporção:
e para cobrir os buracos em casa, Rondinei
trabalhava, por fora, numa empresa de segurança,
com alguns colegas e o mesmo Subcomissário do
seu emprego regular, que trabalhava ali como
''consultor de operações'', tendo um primo formado
em administração numa faculdade particular como
proprietário formal do negócio. Um certo dia, o
Subcomissário lhe chamou em sua casa de praia
para dizer que Rondinei passaria pela prova de
confiança para ser efetivado na empresa: um serviço
de duas semanas com eletrônicos, no porto, fácil e
bem pago, mas que tinha a questão de vigiar também
os próprios funcionários do contratante, que tinham
esquemas com gente de fora. Aceitando o trampo,
Rondinei chamou a pessoa mais experiente que
conhecia para ser seu ajudante: ninguém menos que
o próprio Bom Ladrão, que agora vinha no carro.
Considerando que o seu ''consultor'' tinha uma boa
experiência e estava sendo bem pago, Rondinei
acreditou que bastaria aparecer e conversar com
Bom Ladrão de tempos em tempos para mostrar que
o material estava protegido, aproveitando para pegar
outros serviços na Zona do Porto, aonde eles eram
abundantes, enquanto fazia sua patrulha regular. Ele
até tinha como bater ponto e nem sequer entrar na
delegacia, mas isso ia contra seu senso de
honestidade. Confiava no próprio taco e não deixaria
as ruas desprotegidas enquanto cuidava dos
estabelecimentos que pagavam, mesmo que isso
significasse sacrificar as 3 horas de sono que tinha
por dia.
*
Na segunda semana, porém, Rondinei teve uma
triste surpresa. Um dos peões, conhecido por ser
notoriamente desonesto, o procurou na saída e
alcaguetou para ele que Bom Ladrão, com ajuda de
um supervisor, estava trocando as peças novas de
alguns aparelhos por outras mais velhas, da geração
anterior, e repassando as peças novas para algumas
autorizadas, que as trocariam a preço de ouro
quando os produtos começassem a dar problemas.
Rondinei, ao saber disso, ficou furioso: o esquema
era dos mais fuleiros e fáceis de serem descobertos,
bastando alguém levar o aparelho para consertar
com um técnico de confiança ou que não fosse das
autorizadas envolvidas, e saberia na hora que lacre
interno do produto havia sido violado e continha
peças que não batiam com o resto do material. Além
de queimar seu nome com o Subcomissário, a
investigação resultante poderia manchar sua ficha
administrativa, perfeitamente limpa em mais de 20
anos de serviço. Sem saber o que fazer, Rondinei
informou o caso ao Subcomissário, que friamente lhe
disse que aquilo seria resolvido com uma boa
conversa, e que Rondinei deveria levar seu sócio a
um lugar combinado. Tendo essas ordens, Rondinei
agiu. Ao supervisor, nada fez além de dar uma
indireta para ele ficar esperto, porque além do cargo,
era primo de consideração de um deputado de um
partido pequeno, mas influente. Quanto a Bom
Ladrão, o chamou para umas geladas fora de hora
num bar próximo, algo que ele jamais recusava, sob
o pretexto de comemorar com ele o sucesso no
serviço que tinham feito. Por consideração, e para
evitar que Bom Ladrão pudesse usar manobras de
capoeira e fugir, como fizera outras vezes, Rondinei
deixou que o parceiro tomasse as últimas cervejas,
por sua conta. Então, fazendo um grande esforço,
olhou grosso para Bom Ladrão, e apontou a pistola
para o rosto dele.
-Mãos nas costas e cara na mesa, vagabundo!-
gritou.
-O que é isso Rondi. Vai fazer isso comigo? Você
mesmo sabe que faz mais de um ano que não tenho
nenhum BO nas costas.- tentou desconversar Bom
Ladrão.
Rondinei não quis ouvir. Algemou o parceiro, o
arrastou, e jogou no banco de trás do carro. Os
frequentadores do bar viram tudo, mas fingiram que
não perceberam nada. Os rumores sobre o esquema
de Bom Ladrão e do supervisor já tinham se
espalhado pelo cais, e sabendo melhor que Rondinei
como aquilo acabaria, preferiram ficar calados,
antecipando a reação indiferente que teriam quando
a conclusão daquilo saísse numa reportagem de
canto de página dali a dois dias, se por acaso saísse.
Rondinei dirigiu para além do subúrbio, numa casa no
meio do mato. O lugar combinando era quase no
interior, já nos confusos limites entre a Região da
Capital e um dos municípios semi-costeiros do istmo
interno. À medida que os postes iam virando árvores,
Bom Ladrão tremia mais e mais. Se fosse uma
simples surra, ainda que daquelas ‘’de batismo'',
fariam isso na delegacia mesmo, pensou ele.
Entrando numa estrada secundária indicada pelo
chefe, Rondinei parou diante de um pequeno sítio e
buzinou. Três pessoas saíram da casa. Bom Ladrão
conhecia um deles, de vista. Era o Subcomissário,
acompanhado de dois mal-encarados que nem
mesmo Rondinei sabia quem eram.
-Então esse aí é o espertinho, hein? Entra, pra tomar
um café com a gente. Congelou, foi? Anda, homem.
Não diziam que você era atleta, que fez o Rondi
emagrecer?
Bom Ladrão não podia nem falar. Em ocasiões
semelhantes, o Subcomissário lhe daria um tapa para
''engrenar a fita'', mas se limitou a dizer:
-Binhão, ajuda aí o amigo.-
Binhão, um dos fortões, com o outro, que se
chamava Toninho, pegou Bom Ladrão pela manga e
carregou para dentro. O Subcomissário foi atrás,
conversando com seu subordinado. Pelo olhar dele
quando se aproximou antes de apertarem as mãos,
Rondinei acabou percebendo aquilo que os
estivadores e mecânicos no bar já sabiam. Não seria
uma conversa.
-Você não é homem, sargento? Tem de fazer. Você
mesmo não diz que é sério, honesto? - indagou o
Subcomissário.
-Mas eu sou chefe. Todo mundo que me conhece
sabe que eu nunca…- tentou responder Rondinei.
-Uma coisa é você lá, outra é aqui. Com plateia, todo
mundo é bom. Não tinha o Pereira, aquele que
botava banca de macho e descia a zorra nos
travecos? Morreu debaixo da outra, de ataque
cardíaco. No enterro dele, a mulher não tinha onde
botar a cara. Vive até hoje sem sair de casa. É isso
que você quer pra sua nêga? Que ela tenha
vergonha de você?-
-Não senhor claro que não… mas aí é já é diferente.-
-Diferente nada. No fim das contas, com traveco ou
sem traveco, é tudo a mesma coisa. Homem, tem o
que diz, e tem o que faz. Então você, que, que eu
conheço a anos, que meu pai quando fazia a
faculdade ia todo fim de semana na barbearia do seu,
já fez alguma coisa na sua vida, que um homem não
deveria fazer em relação a outros homens que lhe
deram confiança? -
Rondinei respondeu que não, longe disso.
-Então, Rondi, vai fazer por onde pra ninguém falar
nada de você.-
Entraram, deixando Bom Ladrão jogado na sala,
diante de uma cadeira. Havia outros homens lá
dentro, para olhar a lição. Usavam ternos e camisas
polo. Dois se destacavam, um pela pinta de médico,
e o outro, pela jaqueta ridícula que usava
-Então esse é o de hoje hein? Veio conhecer o
parque de diversões!- disse o homem da jaqueta.
A voz dele era hostil e forçada. Parecia um
daqueles apresentadores que fazem audiência com
cenas torpes, da imprensa urubu de sirene. Devia ser
o líder do grupo, pois o Subcomissário ficou a seu
lado. Toninho, prendeu as mãos de Bom Ladrão no
encosto da cadeira, usando a chave mestra que
possuía. A essa altura Bom Ladrão já gritava, pedindo
piedade.
-Não fui eu, patrão! Foi o homem que pediu! A parte
boa era dele! Era dele, meu chefe, era del…-
Mexia-se tanto, que nem mesmo Toninho, de
quase dois metros, conseguia controlá-lo. Binhão, de
um metro e sessenta, teve de dar-lhe um murro.
-Ai!-
Os presentes quase se engasgaram, rindo do
jeito que ele gritou, desmaiando. Acordou pouco
depois, com uma garrafa praticamente enfiada na sua
garganta. Era do whiskey que eles estavam bebendo.
Um uísque doce, numa garrafa quadrada, diferente
dos whiskys e bebidas compostas sabor uísque que
ele já tinha tomado até então. Interagia de forma
estranha com o sangue que se espalhava na sua
boca.
-Acorda, descarado. Já foi pra escola na sua vida? –
perguntou o Subcomissário.
-Fui, mas me expulsaram. Eu não aprendia não
patrão, diziam que eu era um menino ruim.-
respondeu Bom Ladrão, num tom ao mesmo tempo
aterrorizado e respeitoso.
-Pois a gente quer que você aprenda. História. Isso
mesmo, História. Vamos começar por aí. Era minha
matéria preferida na escola. Eu vou fazer um
teatrinho. Tinha teatrinho na sua escola? -
-Uma vez teve. O governador foi visitar. Todos os
professores apareceram pra dar aula e tinha comida
de verdade na cantina.-
O Subcomissário não pôde deixar de rir.
-Certo, mas nosso teatrinho vai ser diferente. Vai ser
de verdade.
-Então me solta, patrão, pra eu fazer melhor. Posso
ser o Dom Pedro.
-Não… nosso teatrinho vai ser sobre povos antigos.
Os acadianos, por exemplo. Já ouviu falar deles?
Eram um povo que vivia do saque, muito malvados.
Não gostavam de ser enganados. Sabe o que faziam
com quem tentava ser esperto com eles? -
-Davam uma pisa? Era isso, meu patrão, davam uma
pisa bem dada?-
-Não, isso foi depois, com os romanos. Povo que eu
também admiro muito, mas não estou a fim de brincar
de romano hoje. Vamos ser acadianos. Sabia que eu
tenho até um sabre? Rondinei foi pegar pra gente
ver.-
-Não quero ver não... não precisa de aula, não
senhor, eu já sei o que é! Meu Deus! Valha-me Jesus
Cristo, não precisa de aula não, que eu já sei, que
sabre é espada, sabre é espada, é espada meu
Deus! -
Todos riram com ainda mais gosto. Rondinei
apareceu taciturno, com o sabre na mão. Bom
Ladrão, que era negro, ficou parecendo um papel-
ofIcio, quase desmaiando de novo. O homem da
jaqueta pegou uma garrafa de champagne para
comemorar. No mesmo momento que saiu
champagne da garrafa, esguichou sangue no chão.
Bom Ladrão gritou. O homem com pinta de médico,
que de fato tinha alguma formação em saúde, não
demorou em garroteá-lo e anestesiá-lo.
-Esse aí vai viver, pros outros aprenderem. - disse o
Subcomissário.
Deixando Bom Ladrão jogado num canto, o
homem da jaqueta e o Subcomissário passaram a
conversar sobre negócios.
-Então, Subcomissário, nosso amigo, o vereador, me
disse que o senhor andou deixando outra emissora
fazer furos antes da gente. O valor tá muito baixo?
-Absolutamente não, seu J., porém eu não controlo
todas as viaturas, é do outro distrito, e o outro
Subcomissário é parente de…-
Passaram a noite nisso. Depois da reunião,
foram embora, deixando a casa. Na saída, após
ordenar que Toninho e Binhão cuidassem do que
fosse necessário, o Subcomissário apresentou
Rondinei ao homem da jaqueta.
-Então, seu J., aproveitando que o senhor vai
começar sua campanha pra deputado e tá querendo
alguém de confiança pra ajudar o seu pessoal, eu
gostaria de lhe apresentar o Rondi. O senhor mesmo
acabou de ver que ele é dos nossos e não foge da
reta. É vagabundo começar a vandalizar os seus
materiais de campanha, e seus amigos dentro dos
abrigos dizerem quais são dos adversários, que o
senhor já sabe.
-Mas então, com esse irmão aí, acabou o grão, não
tem café, e ele dá mesmo cartão de pênalti pros
vagabundos, não é mesmo? - exclamou J., batendo
forte na chaparia de um dos carros e rindo.
O Subcomissário riu com gosto ao vê-lo repetir
seu gesto de assinatura na televisão especialmente
para eles. Significava que a reunião tinha ido às mil
maravilhas, e que até as próximas eleições, estava
tudo garantido.
Segundo
GÊNESIS
"Assim também vós considerai-vos como mortos para o pecado, mas
vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor".
Bom Ladrão acordou perto da cidade, com dores
horríveis. Sentia-se ainda mais confuso por perceber em
seus braços, no lugar das mãos, dois cotocos cobertos de
gaze suja. Em redor, havia marcas das rodas de picape,
que após deixá-lo ali, aparentemente ficou fazendo voltas
e depois saiu exatamente por aonde chegara. Bom Ladrão
ainda sentia o gosto do whiskey tomando toda a sua
garganta, misturado a um bafo ruim de não sabia o que.
Saiu andando a esmo, reconhecendo ao longe o que
parecia ser uma comunidade. Aproximou-se, e reconheceu
o lugar. Era mais ou menos conhecido ali, com alguns
amigos, mas ao ver como ele estava, todos os evitaram
como se tivesse cinco mãos, e não o contrário.
-Saia de perto, filho! Isso aí é um ladrão que pegaram!
Não ajuda não que vão dizer que você é da gangue dele!-
ele ouviu, a partir de uma janela que se fechou numa casa
rebocada em apenas um dos lados.
Andou por vários lugares, vendo as portas se
fecharem com sua chegada, até desmaiar de sede e de
fome no meio de uma praça. Três moças de saia longa o
acharam, lhe deram água e comida, e o levaram para sua
congregação. O pastor não gostou muito daquilo. O rumor
da presença de Bom Ladrão tinha se antecedido a sua
chegada, e apesar dele ser novo ali, tendo vindo a pouco
tempo da universidade da denominação, que ainda estava
pagando, as lições de criminologia e sociologia
instrumental que tinha recebido indicavam ao pastor que a
presença daquele individuo ali era um mau negócio. As
três moças, porém, eram de famílias bem posicionadas na
comunidade, e lideranças dentro do movimento juvenil do
seu rebanho. Tinha, além disso, conseguido encaminhar
um noivado com a família da mais velha, que era uma das
que pagavam o maior dízimo da congregação, e nunca
falhavam com nenhuma oferta espontânea que seus
chefes pedissem. Devido a isso, e com mais alguma
insistência delas, acabou, a contragosto, aceitando fazer
algo por Bom Ladrão.
-Para servir a Deus, é necessário dar o que você tem.-
O que Bom Ladrão tinha agora eram os braços.
Colocando escovas adaptadas, passou a servir como
faxineiro do púlpito. Vestia roupas do bazar da igreja,
devidamente descontadas de seu pequeno ordenado, e
fazia suas refeições junto com os mendigos e catadores
de latinhas no sopão da caridade. Era deixado dormir no
pátio externo da igreja, sobre um colchão velho, pois
mesmo sem mãos, o pastor não confiava deixá-lo sozinho
dentro do prédio principal, aonde ficava a caixa de ofertas.
*
Certo dia, porém, o Apóstolo Setorial do bairro disse
ao pastor que precisava de pessoas convincentes para
aparecer no programa de tevê da denominação, num dos
horários alugados das emissoras menores. O pastor,
recém-promovido de Pastor Estagiário a Pastor Júnior,
gostaria de ter alguém melhor para mandar. Porém, o ex-
esquizofrênico que ele tinha curado com imposição de
mãos, após abandonar qualquer tratamento que não fosse
a Água Sagrada do Monte Gerizim™, tinha recentemente
se jogado do alto de um prédio em obras, destruindo
milhares de reais em azulejos importados e entrando em
coma. O ex-molestador, curado de forma semelhante,
tinha atacado o chiuaua da irmã solteira com o qual ele a
tinha casado, levando o pobre animal a óbito e fazendo a
irmã mudar de denominação e processá-la na delegacia
do consumidor e na delegacia dos animais. Por exclusão,
e insistência da sua recém-noiva, o pastor acabou
indicando Bom Ladrão, na sincera esperança de que ele
fosse recusado. O pastor gostava da faxina e dos outros
pequenos serviços que ele fazia, mas não queria arriscar a
promoção pela qual esperava passando essa vergonha
com o chefe. Sabendo perfeitamente disso, sua noiva e as
amigas levaram Bom Ladrão ao escritório dele dias antes
de estarem efetivamente agendados. Após um pequeno
tempo de espera, a secretária falou ao chefe:
-Seu Batista, tem um varão e três irmãs querendo
audiência com o senhor. Dizem que é um caso de alta
urgência, que depende de um poder maior para ser
resolvido.- disse a secretária, atribuindo essas palavras a
noiva para ajudá-la a conseguir um horário na agenda do
patrão.
Ser reconhecido como indispensável para resolver
um problema, era de fato um dos pontos fracos do
Apóstolo, e ele sabia perfeitamente que a secretária fizera
uso dele, mas deixou passar essa porque ela não
costumava fazer mal uso. Após essa chave ter sido
utilizada, Bom Ladrão e as moças foram recebidos
polidamente na sala do Apóstolo, que funcionava na
sobreloja do pequeno mercado do qual ele era
proprietário. Ele resistia bravamente a ser absorvido pelas
megarredes que há anos vinham tentando quebrá-lo.
Ultimamente, elas estavam fazendo ofertas de várias
vezes o valor verdadeiro de sua propriedade para que ele
se tornasse parte de uma franquia de mercados de bairro
controlados pelos grandes, aonde se mantinha o ‘’clima
local’’ que as pessoas das comunidades gostavam, mas a
companhia lucrava como nos mercados grandes.
Empresarialmente falando, o plano era bom, mas, ainda
assim, ele considerava que não compensava: os
funcionários que ele tinha, todos irmãos, aceitavam um
salário ainda menor do que o das grandes redes e faziam
mais horas extras, além de serem dizimistas e ofertantes
nas unidades das quais ele era supervisor. Ganhar alguns
milhões de dólares ou euros, e se tornar franqueado ou
gerente do próprio mercado sob as regras das redes
estrangeiras era algo que nem compensaria para ele nem
faria bem para os funcionários, que teriam de aceitar
trabalhar com gente que não era da fé ou praticava
abominações, por causa das ‘’políticas de inclusão’’ que
seriam impostas pelos estrangeiros apóstatas e
exploradores. O Apóstolo, portanto, era um homem muito
satisfeito consigo mesmo, pois considerava que tinha
deixado de se dobrar a Mammon para servir a Deus,
mesmo sofrendo tantas dificuldades. Do ponto de vista de
Deus, ele tinha certeza que a única coisa melhor do que
ser ele mesmo era ser funcionário dele. Foi nesse espírito,
que ele perguntou a Bom Ladrão quando ele entrou:
-Com qual dádiva você foi agraciado após sair do mundo e
oferecer em sacrifício ao Altíssimo a décima parte de sua
renda? Qual milagre alcançou após adquirir as relíquias
consagradas no Altar da Fé?-
-A dádiva eu não sei, reverendo meu patrão, porque não
recebo nem meia nem quarta parte de qualquer salário, e
não tenho como adquirir um milagre nem no crediário Pra
mim já é milagre estar vivo e sendo bem cuidado do jeito
que eu estou sendo na Casa de Deus. Gosto de viver na
humildade, sem chamar a atenção, assim na minha
mesmo- disse Bom Ladrão, tentando parecer contrito.
-O milagre dele é ter um trabalho e viver dentro da fé após
ter passado pela provação de um terrível acidente de
carro no qual o atropelador fugiu após atingi-lo! - exclamou
a noiva do Pastor.
-Ah, claro, um terrível acidente- disse o apóstolo
encarando Bom Ladrão de forma enigmática.
Ele olhou um pouco mais detalhadamente para Bom
Ladrão, e não o reconheceu porque não o conhecia,
porém se lembrou de rumores que tinha ouvido há algum
tempo. Como proprietário de um pequeno comércio, se
mantinha relativamente informado do que ocorria nas
empresas de segurança, e ficara sabendo da maneira que
andavam dizendo que apresentador J., infelizmente
frequentador de uma denominação concorrente, tinha
escolhido quem faria a proteção dos banners e outdoors
da sua campanha de deputado contra os pivetes dos
outros candidatos. Vendo Bom Ladrão e tendo ouvido do
Pastor Júnior a maneira pouco clara que ele tinha voltado
aquela comunidade, donde saíra há anos ameaçado pelo
dono da rua, insatisfeito com os roubos e golpes que ele
praticava, o apóstolo juntou as pontas e deduziu que
aquilo que andavam dizendo era exatamente o que tinha
ocorrido. Apesar de ser mais antigo na fé, e não ter tido a
oportunidade de fazer um curso EAD de Tecnólogo em
Teologia como o pastor, ele tinha senso de negócios, e
exatamente por isso era chefe direto dele na organização:
o que o pastor apenas pôde perceber como um incômodo
ou possível ameaça para sua própria unidade, ele pôde
enxergar como um ativo muito valioso para a organização
como um todo. O Apóstolo intuiu que, as eleições estando
próximas, Bom Ladrão seria o primeiro de não poucos
que, passando por uma provação corporal ordenada pelo
Pai, buscaria a porta da consolação espiritual tantas vezes
ignorada, e eles estariam preparados para fornecê-la.
Sorrindo sem aparentar ter percebido nada, o Apóstolo
respondeu:
-Pois bem, varão. Se você ainda não foi devidamente
ungido na palavra, lhe peço que se ajoelhe agora diante
de mim, e faça o que eu mandar. -
Vendo que Bom Ladrão iria ser formalmente
batizado, algo que o pastor-local tinha tido receio de fazer,
as três boas irmãs exultaram, começando a fazer alarido e
falar em línguas.
-Com o poder que me foi concedido pelo Pai, eu declaro
neste momento, oh Senhor, que este penitente aqui agora,
oh Senhor, é uma pessoa nova, diante do Senhor! -
Disse isso, pôs as mãos violentamente sobre a
cabeça de Bom Ladrão, apertando e agitando com
veemência.
-Esse varão aqui!!! O Espírito me diz que ele passou por
grandes sofrimentos na sua vida! E não foi honesto diante
de Deus no prestar de contas de tudo o que fez de errado!
Ele não foi honesto, oh Senhor! Enganou a outros na sua
vida, e achou que na sua casa teria esconderijo, oh Leão
de Judá! - disse o Apóstolo, apertando ainda mais, e
encarando Bom Ladrão agressivamente nos olhos
-Eu revelo tudo sim, mas me garanta, reverendo! - tremeu
Bom Ladrão, agora tomado de verdadeiro medo.
-Só te garanto a MORTE!
Bom Ladrão começou a chorar descontroladamente.
-Você quer a morte!?- gritou-lhe o homem.
-Quero não! -
-Você quer a morte!?-
-NÃO! -
-Pois você quer a morte nesta vida pra ter a salvação em
outra? Ou prefere o inevitável nessa daqui e o Inferno na
outra? O fogo da salvação, ou o lago fervente do
INFERNO?
-A salvação, senhor! A morte que garante! O fogo bom!-
gemeu Bom Ladrão.
-Pois receba A MORTE! E tome O FOGO! - disse o
apóstolo, pondo a mão esquerda sobre o ombro esquerdo
de Bom Ladrão, e a mão direita aberta sobre a cabeça
dele.
-POU! - exclamou o Apóstolo, fazendo um som de tiro.
Como se por um sinal, as três moças, que tinham
entrado junto, começaram a ulular e rodarem em círculos
pela sala.
-Ai! - gritou Bom Ladrão, já sabendo o que aquilo
significava, por ter visto o pastor fazer dezenas de vezes,
quando visitava traficantes arrependidos.
-TRÁ! TRÁ! - fez o apóstolo, dessa vez simulando uma
pistola semiautomática.
-Ai! Ai! -
-XABLAU! PLAM! RATÁPEIM! TABUM! - fez ele,
disparando um arsenal onomatopeico que parecia incluir
também uma calibre 12, um fuzil de assalto, um lança-
morteiros da polícia de choque e uma granada de
fragmentação.
Bom Ladrão se contorceu devidamente como se
tivesse atingido em cheio por todo esse material bélico, se
jogando para trás, contorcido, após a granada final. O
apóstolo ainda disparou sobre o ‘’cadáver’’ dele, para
garantir, algumas rajadas de metralhadora e uma bateria
naval, antes de perguntar:
-Você já está bem morto?- indagou ele.
-Tô sim!- disse o presunto de Bom Ladrão.
-Você já está bem morto?
-Tô sim!
-Você quer a nova vida?
-Quero!
-Você quer a nova vida?
-Quero!
-Pois ajoelha!
-E diga comigo: Eu sou... uma nova... PESSOA!
-EU SOU! UMA NOVA! PESSOA!
-O meu passado! Está no passado!
-O meu passado tá passado!
-Pois bem, pode se levantar, irmão. - disse,
tranquilamente, o apóstolo.
-Tão simples assim? - perguntou Bom Ladrão.
-O procedimento, como um todo, envolve outras
preparações, mas no seu caso, o que importava era
garantir que você estivesse puro para o templo de Deus.
Siga em paz para onde está sendo abrigado, irmão, e
fique descansado de que não tardarão a surgir dádivas na
sua vida.- disse o Apóstolo, despedindo-o junto com as
moças. Por não serem mais inteligentes que seu próprio
pastor, elas apenas achavam que tinham feito uma boa
ação e salvo uma alma, mas ele sabia que tinha batizado
alguém que, em alguns anos, provavelmente seria maior
do que ele, e de quem, mesmo sendo mais velho, pediria
a benção. Conhecendo Deus mais que os outros, sabia
reconhecer quem estava destinado a ser retirado do
monturo para dar glória ao palácio do Pai e causar
espanto nos descrentes.
Terceiro
LAMENTAÇÕES
‘’. Quem pratica a fraude não habitará no meu santuário; O mentiroso
não permanecerá na minha presença. ’’
Sabendo que Bom Ladrão era agora um irmão, e
não apenas isso, alguém considerado por um superior
como importante por alguma razão que só pertencia ao
Altíssimo, o pastor deixara com ele a chave da igreja, para
que Bom Ladrão pudesse dormir dentro dela e abri-la um
pouco mais cedo, o que basicamente equivalia a promovê-
lo ex-officio a levita-assistente-júnior. Poucos dias depois,
o pastor lhe informou que uma van da denominação viria
buscá-lo para ser levado ao estúdio. Ao chegar lá, Bom
Ladrão foi levado a sala do Missionário Geral responsável,
que era um diretor de TV relativamente famoso antes de
ter se convertido após ter hipotecado a própria mansão,
que lhe disse:
-Dimas, pregador.
-Amém! E MERDA!-
LUCAS
‘’Pois o Reino de Deus não consiste em palavras, mas em poder. ’’
Havia, porém, outro sub-gedeão, tão fervoroso
quanto Bom Ladrão, ou até mais, pois o Espírito o
favorecera com uma pequena, mas próspera loja de
materiais de construção. Além do mais, era casado há
muitos anos com uma esposa que não só tinha muita fé,
mas tinha conseguido convertê-lo junto com sua mãe de
90 anos, do catolicismo, da maçonaria e de ser eleitor de
um partido de centro-esquerda para a religião correta.
Bom Ladrão foi até o homem, e mostrou ter o Espírito
consigo naquela questão. Chegando ao escritório do outro
com uma pasta debaixo do braço, abriu-a e mostrou o
conteúdo. Ele tremeu, como se um espírito maligno saísse
de seu corpo. Bom Ladrão então falou a ele:
REVELAÇÕES
‘’...e se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar e orar, buscar a
minha face e se afastar dos seus maus caminhos, dos céus o ouvirei, perdoarei o
seu pecado e curarei a sua terra. ’’
Bom Ladrão abriu vários negócios, operados em
nome de Lucas para maior discrição, e passou a contar no
seu rebanho com pessoas nos altos e baixos escalões da
cultura, política e dos negócios, tanto lícitos como não tão
lícitos assim. E aprendeu a gostar de ser obedecido tanto
quanto até então só tinha gostado de dinheiro. Tinha
finalmente chegado ao ponto de, mesmo que lhe dessem
uma chance de passar de onde estava, recusaria, pois
teria mais trabalho sem poder aproveitar tudo o que
acumulara. Andava até mesmo pensando em se
aposentar dali a algum tempo: lia nas revistas de negócios
mil casos de executivos que saíam no melhor momento e
se davam melhor do que aqueles que ficavam tentando
chegar à Presidência. Vivendo antes como alguém que
chegava até a passar fome entre um golpe e outro,
passou a poder se dar ao luxo de apenas esperar o tempo
mais conveniente. Os seus antigos membros nem faziam
tanta falta assim, pois tinha criados a disposição para cada
coisa que precisasse. Planejara uma aposentadoria em
grande estilo: dali a algumas semanas, numa das Sessões
de Desapego do Mega-Templo aonde fora recentemente
designado Apostolo Executivo Financeiro, por indicação
unânime dos outros Apóstolos, conclamaria por uma
dádiva especial para ajudar a ampliar o estacionamento
privativo. Na verdade, porém, ele aplicaria todo o dinheiro
arrecadado na criação de uma denominação nova, menor
que a sua original, mas aonde ele seria o Missionário
Executivo Chefe, Lucas o Vice Apóstolo, e sua esposa a
Bispa Geral de Recursos Humanos. Ele acreditava que o
Pastor Presidente de sua atual denominação não teria
como reclamar ou gastar muito com um processo por
lucros cessantes, depois da tentativa de adquirir igrejas
menores na África ter sido bloqueada por um governo
local preocupado com a influência excessiva da
denominação nos assuntos locais, e da projetada fusão
com um culto sul-coreano ter fracassado por causa de
uma alta repentina no dólar. Provavelmente aceitaria um
acordo dividindo igualmente algumas retransmissoras de
TV e horários alugados em canais menores, e cederia
partes de rádios comunitárias de acordo com a quantidade
de gedeões-votantes de cada um. O problema mesmo
seria decidir a quais deputados e vereadores da base
abençoada cada um teria direito, mas isso depois se
resolvia. No exato dia da grande conclamação, porém,
aconteceu o impossível. Bom Ladrão tinha anunciado um
grande momento de louvor e de consagração,
antecipando-o com a participação de vários cantores
gospel recém-saídos do mundo, e tinha posto todas as
câmeras do Mega-Templo diante de si para fazer o
anúncio, uma declaração que ele dizia que mudaria a vida
dos presentes para sempre e seria um divisor de águas
nas suas existências. Ele já tinha mandado projetar os
gráficos e balancetes mostrando o quanto seria
necessário para a pretensa construção do
estacionamento, quando, do meio dos fiéis, surgiu uma
figura atarracada, que se mexia fervorosamente, enquanto
os outros estavam parados, aguardando a revelação.
Inicialmente confuso com o que poderia ser, por não ter
ensaiado nenhum arrebatamento nem expulsão do
demônio para aquele dia, Bom Ladrão tentou se
concentrar em quem seria, e então, aterrorizado, percebeu
o rosto de Rondinei, visivelmente perturbado e chorando,
correndo em direção ao palco.
PROVÉRBIOS
‘’S’e ele se mostrar confiável, não cairá nem um só fio de cabelo da sua cabeça,
mas, se nele se descobrir alguma maldade, ele morrerá"
Bom Ladrão tinha se recolhido ao seu apartamento
sacerdotal, dentro do próprio Mega-Templo, para se
recuperar. Rondinei, entrando em colapso, havia sido
levado para um hospital. Bom Ladrão temia, agora, que
quando se fossem cobradas as devidas satisfações sobre
o que havia sido revelado, um hospital seria de muita
pouca ajuda tanto para Rondinei como para si mesmo.
Gente ainda mais pesada do que aqueles homens de
alguns anos atrás se sentiria ameaçada pelo que julgariam
ter sido uma manobra de popularidade feita as suas
custas, e o corpo tinha muito mais pedaços do que apenas
as mãos. A mente de Bom Ladrão estava toda ocupada
por um sentimento de morte, desespero em estado puro
pela que outros homens poderiam imaginar fazer quando
o pegassem tentando ser esperto com eles de novo. Bom
Ladrão não mediu o tempo que ficou sentado em sua
poltrona, catatônico, mas foi avisado que o Pastor
Presidente em pessoa, que estava do outro lado do país
instruindo um futuro candidato a Presidente, tinha
mandado reabastecer as pressas seu jatinho pessoal para
vir falar com ele. Após algumas horas, o homem foi
finalmente anunciado: era um senhor branco, entre os
cinquenta e sessenta anos, com uma cabeleira mantida
ligeiramente grisalha, cuidadosamente pintada de forma a
passar ao mesmo tempo a sensação de experiência e
jovialidade. Tinha uma expressão benévola que dava a
impressão de ser alguém que jamais xingava ou se
exaltava com ninguém, apesar de que nos bastidores, seja
exigindo o cumprimento de metas ou disciplinando quem
julgasse estar querendo passá-lo para trás, poder ser tão
duro e incisivo que podia causar em pouco tempo uma
gastrite motivada por estresse em alguém que provocasse
sua fúria ou caísse em seu desfavor. Além disso, era um
músico bem passável, e tinha composto a música-tema da
denominação, que ele cantava junto com um coro de
levitas pessoalmente conduzido por ele, na abertura dos
programas nacionais da igreja. Entrou no apartamento, fez
sinal para que todos saíssem e sentou em outra poltrona.
Cruzou uma das pernas sobre o joelho, uma das mãos
sob o queixo, e ficou, matreiramente, encarando Bom
Ladrão. Após alguns minutos assim, vendo que o outro
não diria nada sem ele abrir a boca primeiro, Bom Ladrão
falou:
- Pelo que conheço deles, eles não seriam tão burros nem
tão atrevidos para pensar algo assim. Algo mais?-
respondeu o pastor.
ROMANOS
Inclinem-se diante dele todos os reis, e sirvam-no todas as nações. ’’
Passaram-se alguns anos. Bom Ladrão, já elevado a
Pastor Co-Presidente, foi procurado por uma delegação
do recém criado Conselho Interdenominacional e Extra-
Ecumênico Nacional, que tinha importantes coisas a lhe
dizer.
Iluminado Social,
Médium de Influência,
Emir do Pensamento,
Mulá de Mídias;
Druida da Especulação;
Xamã do Papo Furado;
Mestre da Popularidade;
e além desses,
ATOS
‘’Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas
já passaram; eis que surgiram coisas novas! Tudo isso provém de
Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos
deu o ministério da reconciliação, ou seja, que Deus em Cristo estava
reconciliando consigo o mundo, não levando em conta os pecados dos
homens, e nos confiou a mensagem da reconciliação. Portanto, somos
embaixadores de Cristo, como se Deus estivesse fazendo o seu apelo
por nosso intermédio. Por amor a Cristo suplicamos: reconciliem-se
com Deus. Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado,
para que nele nos tornássemos justiça de Deus. ‘
Um cidadão que passasse com seu carro pela
avenida Zaqueu (antiga Doutor Senador Avô) vindo da
Jacó (antiga Bacharel Deputado Filho), não deixaria de
acompanhar os jogos do Campeonato Abençoado, ou
Abençoadão, através da mega-tela postada diante do
Hipertemplo da cidade, que de quando em quando
passava mensagens edificantes, misturadas com notícias
devidamente interpretadas de acordo com aquilo que era
moralmente correto. As declarações do Conselho
Naciosagrado sobre como tudo melhorava no país, que
recentemente adquirira armas ‘’de grande poder’’ para
poder se defender dos poderes apóstatas ainda restantes,
se alternavam com anúncios da nova novela das 8 na
Rede Única Nacional, que inovava em relação as que
existiam antigamente por, em vez de ter um tema do
Antigo Testamento, ser baseado em alguns trechos do
Novo, com infiéis de verdade morrendo nas cenas de
guerra e assassinato, como aquelas na qual Cristo,
durante a luta contra os vendilhões do tempo, atirava com
sua metralhadora contra os soldados romanos e guardas
do Sinédrio mandados para proteger a venda de produtos
feitos por empresas pagãs que não davam á Casa de
Deus o dízimo devido. Ninguém tampouco esquecia de ir,
mensalmente, ao banco pagar o carnê da Arca da
Promessa, um inovador sistema de capitalização que
garantia valiosos prêmios no fim do ano, em troca de
parcelas muito pequenas se comparados aos prêmios que
algumas pessoas ganhavam. Havia gente mais prática,
que já pagava o carnê junto com o desconto do dízimo no
contracheque. Lendo as notícias da Trombeta de Davi, o
jornal oficial, distribuído gratuitamente em todas as
bancas, o cidadão também poderia saber, por exemplo,
que vantagens teria em tomar o Achocolatado da Benção
em vez de achocolatado comum, pois o primeiro era o
único com sete vitaminas e fabricado de acordo com
preceitos bíblicos, ao contrário dos chocolates pagãos. A
bem da verdade, a fabricante de ambos os achocolatados
era de fato a mesma, que usava dois tipos de embalagem
nas suas fábricas. Nos bons tempos, a empresa lucrava
mais de 40% do valor da venda apenas com sua marca,
pagando uma pequena fração do total aos produtores do
cacau e leite utilizados. O Conselho lhes tomara esse
lucro forçando-os a colocar parte da produção sob a nova
embalagem, cujo direito intelectual pertencia ao governo.
Não fazer isso significaria ter o produto listado pela
Associação de Pais de Família Preocupados, cujos
advogados e relações públicas, recrutados entre
profissionais que tinham sido cassados por suas
associações ou internados em clínicas psiquiátricas,
tinham conseguido destruir todas as marcas de
refrigerante seculares em menos de três anos e
assegurado o monopólio nacional do Guaraná Messias,
alegando que Satanás fazia surgirem ratos dentro dos
refrigerantes pagãos para causar doenças naqueles que
os consumissem. Devido a esse receio, a empresa era
basicamente obrigada a concorrer com ela mesma, sem
poder fazer propaganda do seu próprio produto porque a
Associação e o Conselho possuíam acesso gratuito aos
meios de comunicação que os outros tinham de pagar. E
ainda existia outro risco: pessoas que compravam a
embalagem deles porque era quase ilegal, para poderem
se sentirem subversivas consumindo o produto deles
dentro das embalagens oficiais. Quando havia apreensões
de lotes não autorizados em galpões ou casas, a
Associação começava campanhas de mídia que
acabavam com multidões destruindo lotes legítimos nos
mercados, sem que os Guardiões impedissem nem a
justiça os reembolsasse. Assim como as outras grandes
empresas, eles tinham, é claro, apoiado a decisão do
Conselho em suprimir o Congresso e indicar o Presidente
através de uma escolha interna porque eles tinham
prometido que o livre mercado seria assegurado. Em
menos de seis anos, porém, todas as empresas que não
fornecessem versões abençoadas de seus produtos
tinham sido colocadas para falir ou seus ativos
confiscados, inclusive em países aonde o Conselho não
tinha autoridade direta, mas a denominação tinha muitos
líderes poderosos entre os discípulos. No final das contas,
ninguém queria de ser impedido de investir no maior
mercado do mundo: os empresários e financistas
compreenderam que novo país que estava se formando, a
liberdade do investidor investir era conseguida ao custo da
liberdade do consumidor escolher, e do trabalhador de
como trabalhar, mas apesar deles não saberem como, não
era a primeira vez que este paradoxo acontecia. Os
grandes jornais fizeram algumas reportagens deplorando
‘’um certo excesso de ingerência’’ do Conselho nos
assuntos financeiros, mas elogiando ‘’a grande
competitividade’’ da economia como um todo. Na
linguagem humana, isso queria dizer que eles aprovavam
tanto a administração do Conselho como alguém poderia
aprovar, quando você é alguém que aprovaria um
espantalho como guarda de trânsito porque ele não
atrapalha o livre fluxo dos carros, ou colocaria um lobo
selvagem para cuidar de ovelhas porque ele promove a
atividade física no rebanho. Havia paz na Terra, entre os
homens de boa vontade.
*
No Templo de Governo, que após ser concluído fez
a megalópole que surgiu ao redor dele ser considerada a
nova Capital Nacional sem necessidade de qualquer
decreto ou proclamação, o homem conhecido pelo público
como Pai Supremo da Pátria pela Graça e com a Benção
do Altíssimo, saboreava seu humilde caviar de penitência,
pois era sexta e não podia por nada na boca que não
fosse peixe. Rondinei estava ao seu lado, cuidando dele
humildemente, como um bom servo. Estava trajado de
forma simples, pouco melhor do que um simples
empregado. Ele possuía, presenteado por seu mestre, um
sobrecasaco branco, acompanhado por um chapéu e
algumas peças de terno, decorado com duas ombreiras
douradas com sete estrelas em cada uma. Tinha também
um bastão de carvalho decorado com uma espada, asas,
porrete, e uma âncora sobrepostos, e ao redor desse
símbolo, um isotopo de plutônio, um símbolo de perigo
biológico e as letras ‘’WWW’’ dentro de um círculo. Mas
essas meras externalidades, para ele, não tinham utilidade
das portas do Templo para dentro. Eram apenas roupas de
trabalho que tinha que utilizar quando o Mestre o expedia
em funções burocráticas. Ele tinha decidido ser, desde
que tinha recebido alta do centro de repouso, o primeiro a
estar por perto para atender cada capricho de seu mestre,
e qualquer empregado que tentasse antecedê-lo nisso era
punido diretamente por ele, e ainda temia, com razão,
grandemente pela própria vida e pela vida dos seus fora
dali. Nas primeiras vezes que isso aconteceu, Bom
Ladrão achou engraçado, e os outros empregados
acharam que Rondinei era uma espécie de bajulador.
Algum tempo depois, compreendendo que, mesmo ele
não acreditando em nenhuma nessas coisas, havia de fato
algo quase sobrenatural naquela dedicação, Bom Ladrão
não conseguiu mais rir, e os empregados entenderam que
o próprio Rondinei era algo ainda mais digno de medo do
que os títulos e atribuições que tinha recebido.
Aprenderam a não ficar em seu caminho, e a deixar que
ele cumprisse o que tinha tomado como sua sina. Bom
Ladrão foi superando o estranhamento, e por final se
acostumou. Nesse momento, Rondinei preparava o caviar
de duas maneiras diversas: colocando três variedades
enlatadas sobre pequenas colheres de pérola rosa, e
outras duas de spread em bisnaga sobre canapés de pão
israelense levemente tostado no forno de lenha
alimentado com maple canadense, e cortado em várias
formas geométricas diferentes, a depender da maneira
que o Mestre fosse preferir consumi-lo naquele dia.
Rondinei sabia perfeitamente que, por Bom Ladrão, eles
poderiam abrir qualquer uma das latas e comerem juntos,
usando as próprias mãos (e implantes) ou colocando o
caviar em pães de cachorro quente junto com molho
cheddar e pasta de amendoim, como faziam nos velhos
tempos. Ainda assim, Rondinei sempre cumpria
cuidadosamente o mesmo ritual, e Bom Ladrão chegava a
ter mais prazer em vê-lo executar cada etapa do que no
caviar em si, que para ele não era isso tudo que fizeram
parecer quando ele era pobre. Pessoalmente, Bom Ladrão
não achava mais necessário ele ser tão atencioso, apesar
de saber que isso era algo impossível de ser impedido. A
verdade é que novas mãos cibernéticas lhe permitiam
fazer tudo que fazia antes, e até mais, pois podiam girar
completamente ao redor do próprio eixo, ajudando, entre
outras coisas, a escovar os dentes mais rápido, girando as
mãos num sentido e a escova automática para outro.
Engolindo vários canapés de cores diferentes em
sequência, perguntou ao subordinado quais eram as
novidades. Rondinei respondeu que suas 40 esposas e o
filho estavam bem, exceto pelas notas escolares do garoto
que andavam meio baixas e ele pediu que o diretor da
escola verificasse de novo. Aproveitado que já estava
falando de escola, Rondinei comentou que, em Ottawa,
Ciudad del Mexico e Quito, professores universitários
tentaram realizar paradas pelo ensino da Evolução Natural
e dos métodos anticoncepcionais. Bom Ladrão pediu a ele
sua opinião sobre o assunto.