Você está na página 1de 4

«Fiz assim! Fui para Coimbra.

Muito bem; porque é que eu depois… me… pedi a


transferência para Lisboa? Isso também posso contar.»
(J.V.) Ela falou muito da pequenez, fala muito da pequenez do que era o meio coimbrão.
«Vim para Lisboa, porque me deixei de gostar de Coimbra. Estava um bocado enfastiada
com o espírito provinciano de Coimbra. Era uma cidade, como digo, muito bonita, mas o
espírito que reinava era provinciano.»
Suponho que vir para Lisboa foi para ela uma libertação, porque ela em Coimbra já
(J.V.)
não estava com a mãe, não é!?, já não estava com a família, estava, estava num colégio,
uma espécie de casa de raparigas… …tipo com freiras ou qualquer coisa assim parecida.
Mas, acho que a vinda para Lisboa é que foi de facto a Fernanda encontrar-se com o mundo
e com uma certa liberdade.
(F.B.) «Eucheguei a Lisboa num dia de sol. Parece o primeiro verso de um poema, mas
cheguei por acaso a Lisboa num dia de sol. E ao sair do Rossio, da estação do Rossio, olhei
para a luz, olhei para aquilo e senti-me no paraíso.»
«Eu lembro-me na Faculdade de Letras, quer dizer, ela estava ligada assim a um
(Urbano.)
grupo onde havia mais homens que mulheres e, bom… e as mulheres, quer dizer, tinham
uma certa inveja da Fernanda, também, algumas, não digo todas, não é?»
(F.B.) «Encontrávamo-nos em cafés. Aaaa…, podia ser na Orquídea, podia ser na Paraíso,
podia ser no Chave de Ouro. Muito. Aaaa… E ali é que se resolviam os grandes problemas
da nação.» [Riso breve.]
«A Fernanda era sempre a... atraente, porque tinha muito humor, tinha, às vezes,
(U.T.R.)
tinha aquela pequena maledicência, que não chega a ser acintosa, mas que, as mulheres
gostam imenso disso.»
…………………………………………………………………………………….
«Ela já era casada… isso foi… e já tinha até o filho; mas tinha disponibilidade
(Voz de AMCV.)
para conviver connosco.»
«Quando nós começámos a assinar documentos a favor da liberdade de imprensa,
(U.T.R.)
para a libertação dos presos políticos, para a abolição da censura, aaa… a Fernanda Botelho
alinhou sempre connosco. E a maior…., muitas das raparigas, eu, por exemplo, eu lembro-
me que nessa altura da greve, muitas das raparigas iam às aulas.»
«Eu acho que a Fernanda também nunca teve problema nenhum em frequentar os
(J.V.)
meios que os homens frequentavam, não é?»
«Em Lisboa encontrei realmente um ambiente muito diferente. E depois relacionei-me, isto
foi o factor principal, com o David Mourão-Ferreira, que era aluno na mesma, mas que
tinha as mesmas veleidades literárias. Ele também queria ser escritor. Queria ser poeta. Eu
queria ser escritora. E ele queria ser poeta.»
«É ele que a apresenta ao seu grupo, ao seu grupo literário; é ele que insiste em
(A.M.C.V.)
que ela apareça como poetisa e depois como prosadora.»
«Embora a Fernanda diga que toda a vida, o que gostou de fazer foi, desde miúda que
(J.V.)
ler e escrever, mas suponho que o contacto com o David que foi absolutamente
determinante para ela perceber que tinha a vocação de escritor.»
-.-.-.-
(J.M.A.)«Na História da Literatura, do Óscar Lopes [imagem da História da Literatura Portuguesa /
António José Saraiva / Óscar Lopes], até havia lá uma parte que tinha um grande elogio, dizia que a
Fernanda Botelho era uma voz única na poesia e… só que foi uma voz, na poesia, muito
efémera, não é?, porque foi só ali naqueles vinte e oito poemas que constituem As
Coordenadas Líricas.»
(A.M.C.V.) «Uma poesia mais austera, quase agressiva, quase viril.»
(F.B.) «E este é um poema de amor.
Tem rimas tal feitio e destino
Que é para ti, somente.
Se hei-de escrever camélia, escrevo fósseis.
Quando vires abutre, pomba entende.
Que o meu sinistro verbo não te iluda.
Se queres um bom conselho, que te preste.
Monta, solene, um cavalo de lousa.
Chama-lhe Pégaso e alea jacta est.
Existes, porventura? Eu te consagro, porém,
Este mistério de sinónimos.
Decifra-o, se puderes.
Eu nele embarco, nele os náufragos.
Lê sonhos, sempre anónimos.
Salvou-os uma tábua em pleno mar,
Lugar que foi de todos o mais íntimo.
Vês como é fácil? Fácil como achar
Um belo e tenebroso logaritmo.
Não obstante, não era na poesia que eu queria singrar, Era, realmente, na prosa, na ficção.»
(A.M.C.V.) «Na revista Graal a Fernanda, logo no primeiro número, revela-se como
prosadora, como novelista. Há uma coisa curiosa, porque a revista tinha um mecenas. Ele
chamou-me, logo no segundo, logo no… …, que é que apareceu o primeiro número e
disse-me: — Sr. Director, se o senhor continua a publicar coisas como essas da Fernanda
Botelho…, bom, isto acaba-se a revista, já. Porque aquilo é uma imprudência, é um
disparate. — Imagine-se! Ele já faleceu, mas ele nessa altura proibiu-me de publicar mais
novelas da Fernanda Botelho.»
-.-.-.-
«Sem tomar posição frontal, na rua ou nas revistas, por uma emancipação da
(U.T.R.)
mulher, a Fernanda Botelho deve ter sido uma das escritoras portuguesas que, por um lado,
melhor revelaram o que era a condição feminina nos anos 50, ela publica O Ângulo Raso,
salvo erro em 1957, através da interioridade das mulheres, dos seus comportamentos, das
suas conversas, tudo isso está n’O Ângulo Raso, está n’A Gata e a Fábula, está
em Xerazade e os Outros…»
(G.A.)«Logo que não encontram um partido, uma ideologia, uma religião que funcione
como um ideal de grupo, ou que lhes proporcione um ideal de grupo. São de facto
diferentes e reivindicam dessa mesma diferença.»
«A leitura que ela fez do filme de Simone de Beauvoir frutificou muito e talvez seja
(U.T.R.)
ela, de todas as escritoras portuguesas, que denunciaram a humilhação da mulher e a sua

2
aspiração à liberdade em todos os planos, no trabalho, na vida da relação, na vida erótica,
até como mãe, … … está em toda a obra de Fernanda Botelho, duma maneira que é talvez,
de todas, a mais importante.»
«Isto é único ou… se não é único é raro, entre os autores que conheço.
(F. Branco.)
Obviamente que propor figuras de mulher, propor heroínas femininas, nos anos 50, em
plena ditadura, com o movimento das mulheres, com as mulheres a fazerem os
agradecimentos ao ditador…
Numa época de definição da mulher como a fada do lar, como a esposa, a mãe abençoada,
essas tretas todas, não é?! E ela ser capaz de agarrar e mostrar mulheres que procuram fora
do casamento, que desfazem o casamento, que procuram inclusivamente mais do que uma
vez, ou seja, não só são situações de adultério e o adultério masculino também é corrente,
embora as pessoas não olhem tanto para ele, estou a dizer: é corrente no romance, cá fora
também!, mulheres que não só cometem adultério, para já: que não cometem adultério
pontualmente, por acaso, porque…, por uma desorbitação momentânea, mas
conscientemente e repetidamente. E não só têm um amante fora do casamento, mas podem
ter mais do que um amante fora do casamento, há várias heroínas que em momentos
diferenciados ou na mesma época têm mais do que um amante fora do casamento, não é?!
Eu acho que é preciso muita coragem, realmente…»
«Porque são vários tipos de mulher que ela analisa, a mulher submissa, a mulher que
(U.T.R.)
só tem como horizonte da vida o casamento, porque é economicamente dependente, não
tem uma profissão e depois se sujeita a todas as imposições do marido, a mulher que salta o
fosso e que se liberta, ou pelo adultério ou pela ruptura com o casamento e pela experiência
duma… duma vida de mulher só. É muito interessante, de livro para livro, ela
inclusivamente põe essas mulheres a contracenarem umas com as outras e a dialogarem
umas com as outras, o que é extremamente interessante.»
-.-.-.-

«Estou-me a lembrar, uma mulher, no romance dela Lourenço É Nome de Jogral,


(U.T.R.)
que a certa altura se apaixona por um homem que é justamente o Lourenço, que é um
sedutor que tem uma espécie, que tem, que é muito, que é quase feminino de aparência, o
que lhe dá uma certa cumplicidade com as mulheres e, então, ele tem ao mesmo tempo três
casos, um, com essa personagem, que é praticamente a figura central do romance, um, com
uma outra, talvez seja mulher dum amigo, e uma outra, com uma catraia de dezoito anos ou
coisa assim. É, e então, ela, e é uma mulher, que se diz uma mulher livre; ela, para não o
perder, aceita, inclusivamente, que ele a leve para a cama com outra ou… e ela sente-se
muito, no fundo, sente um grande desconforto nessa situação e faz isso, para não perder o
homem de quem gosta.»
«A título de curiosidade, Lourenço é, das minhas personagens, aquela com quem eu
(F.B.)
mais me identifico. Parecendo muito estranho, acho que os problemas que ele apresenta no
livro, que eles…, que ele tem, que há, são muito meus. Eu não me identifico muito com a
maior parte das minhas personagens, elas são elas e eu sou eu, não é?!, mas… à
personagem Lourenço, acho que dei tudo, … que me transformei nele ou ele transformou-
se em mim. Eu sinto, sinto, sinto isso.»
-.-.-.-

«Eu crio as personagens e depois as personagens, depois, eu gosto ou não gosto. E as


(F.B.)
personagens impõem-se-me. Algumas delas, de que eu tencionava… …, às quais eu
tencionava dar um caminho dentro do romance, dentro da história, numa determinada

3
altura, desviam-se. E eu deixo-as; elas é que se impõem. Elas é que me indicam o caminho
que querem seguir. E eu aceito. Isto parece um bocado complicado.»
«E as personagens dela são realmente personagens que se impõem e que ficam, não
(J.M.A.)
é!?, não são daquelas personagens que morrem quando se fecha o livro.»
(F.B.) «Háuma personagem masculina de que eu queria fazer uma espécie de malandro, em
que o… ele era um conquistador e eu queria, como não gosto muito de conquistadores…,
também não tenho que gostar, não é!? Cada um é como é. E eu queria fazer dele uma
personagem um bocado caricata sob esse aspecto, aaaa… e a partir de uma certa altura,
deixei de o governar… e não consegui que ele se me tornasse antipático, nem a mim, nem
aos leitores e ele por lá anda muito feliz da vida, a personagem, porque eu não consegui
desfigurá-lo.
«Todos os escritores têm muito de autobiográfico, o que é é que o autobiográfico,
(U.T.R.)
através do processo narrativo transforma-se, quer dizer, nós pensamos, nós vamos
reproduzir uma vivência nossa e transformamo-la. Pensámos numa determinada
personagem, que viveu connosco ou com que nós observámos de muito perto e ao escrever
transformámo-la e criámos uma outra figura. Quer dizer: a literatura acaba por ser uma
forma de transformação do vivido e do observado, mas que os livros da Fernanda estão
carregados disso, estão.»
«Nos meus livros há muita cosa que é…, muita coisa que é…muita coisa!..., se não
(F.B.)
são tantos…, mas algumas situações que são reais ou que eu conheço e transformo um
bocadinho, evidentemente, mas a maior parte delas são deduzíveis, quer dizer: eu, a partir
de comportamentos que eu conheço deduzo certas circunstâncias e… pode acreditar que
muitas vezes a realidade ultrapassa a fantasia.»
-.-.-.-

«Antes do 25 de Abril, a ideia que eu tenho é que a Fernanda era juntamente com a
(J.V.)
Maria Judite de Carvalho era considerada uma das escritoras mais importantes, a Natália
Correia, também, da literatura portuguesa. E a Fernanda estava digamos também muito na
vanguarda da própria forma, da Fernanda escrever… e depois há um interregno de facto
muito grande, com estes anos que se seguem ao 25 de Abril.
(U.T.R.) —O
Lourenço É Nome de Jogral, salvo erro, é de 71 e, a partir daí, há um salto até
87, enorme, portanto, há um período que eu nunca compreendi muito bem em que ela se
cala.»
«Tinha cinquenta folhas A4 escritas à mão de um livro a que eu iria chamar Esta Noite
(F.B.)
Sonhei com Brueghel. Aconteceu que entretanto surge o 25 de Abril. Claro que há um
grande entusiasmo, mas com esse grande entusiasmo há uma quebra na produção literária.
[F.B.] Eu achei que, e isto é sincerissimamente…, o 25 de Abril surge, o entusiamo é grande
e eu penso: não vale a pena eu escrever, porque isto é muito melhor do que a escrita.
Escrever para quê? Eu não posso escrever nada mais interessante do que isto. Eu acho que
não vale a pena, acho que não vale a pena. E, então, parei de escrever. Até que um dia me
surgiu uma proposta para um livro novo, portanto, agarrei nas cinquenta páginas que eu
tinha deixado para trás de Esta Noite Sonhei com Brueghel e de que eu já não me lembrava
como era, achei que aquilo estava tudo errado, modifiquei aquilo tudo e escrevi um livro
novo…, chamado Esta Noite Sonhei com Brueghel, que iniciou uma outra fase.»

Você também pode gostar