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afetivo e cognitivo, de uma Como se sabe, para Freud, processo cômico; necessitam
experiência, enfim. Chega a ser os chistes ou frases espirituosas, ser afastadas, como vimos,
curiosa a vigência e a embora sejam "a mais social de emoções bem determinadas,
disseminação dessa imagem todas as funções mentais que talvez todas as integrantes do
do fruidor superior e impassível objetivam a produção de prazer" naipe da compaixão e do medo,
que seria alvo da comédia, servem sempre ao propósito mas de modo algum as que
mesmo um século depois de inconsciente de satisfazer a um estão associadas às pulsões
certos estudos que no mínimo a instinto - libidinoso ou hostil - agressivas e libidinais, para
colocariam sob suspeita. O diante de um obstáculo, seja ele falar apenas das que foram
primeiro e mais importante externo (normas e limites da devidamente reconhecidas por
deles, que citei há pouco, é o sociedade) ou interno (repressão Freud. Mas cabe lembrar que,
minucioso trabalho de Freud psíquica); ao contornar tais bem antes dos afetos revelados
sobre os chistes. obstáculos, os chistes nesse estudo sobre os chistes,
conseguem extrair prazer de existe uma longa trajetória de
Por sua importância para a
fontes que de outro modo discussões no pensamento
dramaturgia em geral, e para a
permaneceriam interditadas. O ocidental sobre a comicidade,
comédia em particular, o estudo
homem civilizado, incapaz de rir quando se trata de compreender
de Freud seria suficiente para
de uma obscenidade que lhe esse fenômeno dentro do
deslocar de seu nicho a
pareceria repugnante, a ela tem espectro das paixões humanas.
resistente teoria da
acesso através de todo um A diferença entre tragédia e
insensibilidade. Sua
repertório de chistes aceitos comédia, para Aristóteles,
investigação sobre os
socialmente. O mesmo se daria aponta exclusivamente para o
propósitos dos chistes
com os impulsos hostis, que ethos (aqui no sentido de
representa, para a teoria e a
estão sujeitos à repressão relativo às personagens):
prática do drama, e em
desde a infância. Ao renunciar representação de homens
especial para o estudo da
à expressão da hostilidade superiores/inferiores ao que são
comédia e seus efeitos sobre o através da ação, desenvolve-se
espectador, muito mais do que na realidade (ARISTÓTELES,
uma técnica substituta: tornar o Poética, cap. II). A superioridade
a apresentação detalhada de inimigo inferior, desprezível,
um rico repertório de técnicas. ou inferioridade com que vemos
ridículo, e isso diante de uma e somos vistos, ou as
Freud cuidou de modo terceira pessoa, uma
exaustivo, como nenhum outro assimetrias que geram
testemunha que obtém prazer identidade e diferença é
autor antes dele, de um tipo pelo riso. Transforma-se assim
específico de comicidade verbal questão sempre presente, que
o desprazer do contato com repercute na ética, na poética,
que sempre foi justamente a fatos e pessoas desagradáveis
parte do cômico considerada na retórica, na política, e parece
num pretexto social de diversão, estar aí a chave que regula os
"nobre" pela maioria de críticos como no exemplo de alguém
e teóricos. E por quê? Porque fluxos passionais.
que se refere à dolorosa
supostamente o chiste ou companhia de um chato com o Ao considerar que a
"espírito" se dirigiria ao intelecto saboroso comentário: "Viajei peripécia - inversão no curso
puro, a mentes refinadas, com X tête-a-bête" (FREUD, dos acontecimentos - só pode
exigindo platéia culta, capaz de 1977, p. 39). Se aceitarmos a ocorrer no trânsito da felicidade
anestesiar, ainda que ambiguidade constitutiva do à infelicidade, e vice-versa,
momentaneamente, suas efeito espirituoso - a intenção Aristóteles adverte que não
emoções frente aos pobres- consciente de fazer rir servindo devem ser representados
diabos arrastados em cena pelo a um propósito inconsciente de "homens muito bons que
ridículo. E é justo nesse ponto agressão ou desnudamento - passem da boa para a má
que o estudo freudiano destrói depois do estudo de Freud, é fortuna" - pois isso, além de não
as premissas da teoria da impossível afirmar que "as provocar terror e piedade,
insensibilidade. emoções" estão ausentes do suscitaria "repugnância" e nem
"homens muito maus que certos enredos consagrados e positivas: a inveja. Apesar de
passem da má para a boa ver que esses perigos ou raramente apontada nas teorias
fortuna" -, pois "não há coisa ameaças não são, na maioria do cômico, sua presença foi
menos trágica", além de não ser das vezes, desprezíveis. Perder denunciada no que parece ser
"conforme aos sentimentos a jovem amada para o rival velho a mais antiga abordagem
humanos" (Idem, cap. XIII, p.81). e rico, quando não para o filosófica do riso e da
Quando, porém, nos deslocamos próprio pai, como em várias comicidade que chegou até nós:
da tragédia para o drama comédias latinas; ser punido por o diálogo Filebo, de Platão. Na
romântico e daí para o leis injustas e cruéis, como em verdade, o assunto desse
melodrama, a indignação é um Medida por Medida; dar a vida diálogo não é o cômico, e sim
afeto que recobra sua em pagamento de uma dívida, uma crítica às idéias hedonistas,
importância na economia como em O Mercador de mas nesse contexto vemos
catártica, desde que Veneza; ser privado dos bens, Sócrates apontar aquele que ri
convenientemente dirigido às da respeitabilidade e do amor como alguém turbado por uma
personagens negativas ou vilões da família, como em Tartufo; "afecção mista", que reúne
em geral. Na comédia há uma resignar-se a uma existência malícia e inveja. Ele extrai seu
tendência de amenizar a miserável, sob o arbítrio dos prazer dos infortúnios de
indignação, transformando-a poderosos, como em O Auto da personagens que ignoram as
numa antipatia para com as Compadecida seriam próprias falhas, já que o vício
personagens obstrutoras perspectivas dolorosas, se o cômico é invisível para o seu
(pedantes, avarentos, autoritários, perigo não se dissolvesse como portador. Mas, além de não
gananciosos, intolerantes e um sonho mau, graças a um cientes de si mesmas, Platão
obsessivos em geral que detêm golpe de sorte, a uma ajuda adverte que tais personagens
algum poder). A piedade, por sua providencial ou, mais devem também ser fracas no
vez, é transformada em simpatia frequentemente, ao uso da sentido de destituídas de poder,
para com as personagens astúcia. Quando usada como porque diante da ignorância e
facilitadoras. arma contra algum tipo de força insensatez dos poderosos
Para manter a mesma aterradora ou obstrutora, a sentiríamos ódio ou temor,
referência nesta exploração dos astúcia parece conferir um afetos que, como já sabemos,
afetos associados ao efeito sentimento de triunfo que afastam a possibilidade do riso
cômico, lembro que na Retórica, pertence à escala afetiva da (Cf. PLATÃO, Diálogos IV, p.218).
confiança, e da auto-confiança, Se é aceitável que a própria
assim como à piedade opõe-se
mas em grau superlativo, e que fraqueza da personagem
a indignação, a paixão oposta
podemos nomear como júbilo. cômica faça com que ela seja
ao medo é a confiança
Esse riso de vitória sobre um vista com simpatia, não é
(ARISTÓTELES, Retórica das
perigo iminente é quase um igualmente claro porque ela
Paixões, Livro II, cap.5). No
ponto pacífico nos estudos deva ser invejada. Mas Platão
desenvolvimento de uma ação
sobre a comicidade, associado aponta a inveja como um
cômica, o que importa é a
ao sentimento de autoconfiança importante componente afetivo
confiança (ou segurança) que se
e superioridade que infunde no do "estado de alma" em que nos
produz exatamente porque um
espectador. colocam as comédias. Como
perigo cresceu a ponto de ser
temido para depois ser vencido, Não há muita dificuldade em entender isso? De que modo a
ou afastado. Essa é a função do perceber a participação do júbilo imagem de seres fracos, que
suspense cômico. E para quem e da simpatia no processo desconhecem seus próprios
ache que um mal ou um dano catártico da comédia. O mesmo vícios, despertaria em nós o
dentro do universo cômico não não ocorre com uma paixão afeto invejoso? Se a suprema lei
é passível de suscitar efetivo menos confessável, que se do funcionamento psíquico é
temor, seria suficiente imaginar insinua como um tempero "evitar o desprazer", de que
um diferente desenlace para amargo no prato das emoções modo encarar a vantagem
estratégica de uma emoção tão Dentro de uma estrutura de propor algo mais que este
vergonhosa, inconfessável, papéis muito persistente, que magro esboço de possíveis
dolorosa? A inveja seria emoção vem da Comédia Nova latina até trilhas para a investigação das
aparentada à cobiça e à as atuais sitcoms da televisão, paixões presentes na catarse
admiração. Mas, por que eu ela é freqüentemente o cômica. Mas reconhecer essa
sentiria inveja de uma representante de uma "sociedade presença talvez seja o primeiro
personagem cômica? O que de velhos" (seja por idade, passo para isso.
haveria a invejar nesse herói posição de poder ou culto de
risível, que ao expor o seu comportamentos conservadores).
ridículo, o nosso ridículo, Nós vemos esse adulto infantil
funciona como signo da finitude, espernear contra a realidade e
do limite, da menor dimensão do agir de modo simultaneamente
humano? O que se poderia livre e ridículo, e nos perguntamos
cobiçar nesse anti-herói que não "por que ele acha que pode fazer
se conhece minimamente, que isso"? A platéia adulta que ri
de nada sabe, nem mesmo que inveja essa loucura - não quer
é ridículo? corrigi-la ou curá-la pelo riso,
Acontece que aquilo mesmo como pensam Meredith e
que torna esse herói irrisório - a Bergson, e sim fruí-la no espaço
inconsciência de seu pedantismo, de liberdade delimitada
avareza, burrice etc - é o que socialmente pela comédia.
contribui para transformá-lo numa Assim, se todas as paixões têm
criança aos nossos olhos, livre origem nas duas grandes
para agir fora dos rigores de um vertentes pulsionais de vida e
padrão adulto de comportamento. morte, a personagem cômica
Ao atuar de modo louco, absurdo, parece funcionar (tal qual a
extravagante, ao dar-se o direito trágica) como a vítima de um
de dizer bobagens, a sacrifício ritual, amada e odiada,
personagem cômica nos dá a fonte de simpatia e júbilo tanto
impressão de manter intacto quanto alvo de pulsões erótico-
aquele "patrimônio lúdico" da agressivas: um pharmakós com
infância a que Freud se refere e máscara de bufão.
que o espectador sente ter Parece, pois, haver um ponto
perdido em nome das exigências de convergência entre o mais
sociais de coerência e antigo escrito a ocupar-se do
seriedade. Realmente, de certo cômico (o Filebo, de Platão) e a
modo, toda personagem cômica psicanálise do século XX. Sejam
é uma criança grande: alguém "afecções da alma" ou
que acredita ser maior, mais forte,
"impulsos reprimidos", as
mais belo, mais sábio do que paixões desencadeadas pelo
realmente é - e age como se o efeito cômico podem vir de
fosse. Sganarello, vestindo tendências tão opostas -
armadura para duelar com um permitindo o jogo entre
suposto rival, em O Traído proximidade e distância,
Imaginário, tem algo do menino atração e repulsão - quanto
fantasiado de super-herói. provêm o terror e a piedade. No
Ao mesmo tempo, a atual estágio dos estudos de
personagem cômica, recepção no drama, e na
obviamente, não é uma criança. comédia em particular, é difícil
REFERÊNCIAS