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A música de Livio Tragtenberg em Latitude Zero.

Esse artigo pretende analisar a música do compositor Livio Tragtenberg no filme Latitude
Zero (2000) de Toni Venturi, lançando o olhar sobre a relação da música com os com
elementos visuais e narrativos, discutindo as possíveis interpretações que podem surgir
dessa relação, O embasamento se dá nas teorias de Claudia Gorbman sobre as funções
da música no cinema juntamente com as propostas de Anahid Kassabian que apontam a
possibilidade da música evocar informações fora do texto fílmico.

Latitude Zero faz parte de um grupo de filmes do período da retomada que


reformulam a ideia de utopia no cinema brasileiro, como observa Nagib (2006, pg. 61)
tanto por abordar questões relevantes (como os resqúicios da ditadura militar e a
representação da mulher no cinema) quanto por propor maneiras viáveis de realização 1.
Centrado em Lena (Débora Duboc), grávida, ela é mantida em um garimpo
abandonado pelo seu antigo amante, o coronel Matos. gerenciando um bar sem
fregueses. A trama começa com a chegada de Vilela (Claudio Jaborandy), subordinado de
Matos, que após ter cometido um assassinato por acidente, é enviado para o mesmo
lugar para se esconder, a partir daí se inicia uma conturbada relação.
Para Nagib, a intenção de anunciar um “recomeço” na história do cinema brasileiro e os
elementos alegóricos são pontos de convergência entre Latitude Zero e alguns filmes do
cinema novo. A ideia de uma sociedade ainda não fundada presente no filme também é
encontrada em Deus e o Diabo na Terra do Sol, que Ismail Xavier chama de “narrativa de
fundação” (Xavier, 1998 pg. 16/17). A protagonista Lena precisa romper com resquícios
do seu passado (simbolizado materialmente pelo véu de noiva que ela rasga), da mesma
maneira que o páis precisa romper com os resquícios do regimem militar, para que- a
partir daí- possa ter alguma prosperidade.
A oposição entre o masculino e o feminino sugere uma estrutura narrativa um tanto
maniqueísta, o que aproxima o filme do melodrama. Encontramos semelhança com o que
Peter Brooks chama de melodrama de fuga frustrada, no livro A Imaginação
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Melodramática (BROOKS,1995, pg,30). Segundo o autor, seria uma variação do

O filme foi produzido com uma linha de financiamento voltada para filmes de baixo orçamento.

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melodrama em que o protagonista se encontra preso e a narrativa se desenvolve através
de tentativas de libertação. Nagib comenta que o objetivo de Lena é se livrar da opressão
masculina (2006 pg. 34).
Apesar da aproximação, nem todas as convenções são do gênero são seguidas a
risca. Segundo o autor no melodrama a ordem se re-estabelece a partir da união do casal
(BROOKS, 1995, pg.32). Em Latitude Zero, no entanto, Lena se liberta a partir da morte
do seu parceiro, fato esse que ressalta o potencial revolucionário da mulher retratada no
filme. Acreditamos que estas características na narrativa fílmica - que dialogam tanto com
certos códigos pré-estabelecidos quanto com possíveis subversões - são fundamentais
para a concepção musical adotada por Tragtenberg.

A Música:
No início do filme, a trilha musical aponta o que estamos considerando como sua
“principal” característica: a exploração de códigos reconhecíveis que se transformam.
Vemos imagens do garimpo abandonado, máquinas e outras estruturas em ruína.
Enquanto Lena procura Vilela, escutamos fraseados em instrumentos de corda
friccionada com alturas imprecisas, que nos faz lembrar a sonoridade da rabeca,
instrumento de corda muito utilizado em festas populares da região nordeste - como o
Cavalo Marinho.
Poucos segundos depois, quando Lena encontra Vilela no garimpo e tenta convencê-lo de
maneira nada sutil a ir embora, ouvimos nas cordas uma interessante harmonia.
Conforme o filme avança para sua abertura (créditos iniciais), os acordes, o ritmo e a
sonoridade de uma guitarra nos transportam para o blues. Porém, a música apresenta
elementos específicos que ao mesmo tempo se distancia do gênero. Alguns dos acordes
utilizados são encontrados em uma a progressão harmônica de um blues tradicional de
doze compassos, enquanto outros, deles se mostram como um elemento estranho a
tradição do gênero musical em questão, principalemnte os acordes menores, uma vez
que o gênero é baseado em acordes dominantes. Ou seja, encontramos nessa
composição elementos que nos trazem referência a uma linguagem musical reconhecível,
e também elementos que de certa maneira introduzem informações que não petencem a
essa linguagem.
A fusão entre os dois estilos de referência(o blues e a música nordestina de rabeca)
pode ser encontrada na cena em que Lena senta em frente ao bar e toma chuva .
Composta por dois planos, a sequência começa com um plano geral em que vemos a
Livro em que a autor discorre sobre as bases do melodrama.
personagem saindo do bar carregando uma cadeira em direção ao espaço externo, no
próximo corte vemos a personagem em um plano americano no centro da tela. A
protagonista agora demonstra um pouco de serenidade, seu sorriso sutil, seu olhar e a
música dizem ao espectador que aquele é um momento mais tranquilo e que aquela
solidão talvez não seja tão ruim. A chuva também contribui para a sensação de leveza.
Ouvimos na música elementos harmônicos pertecentes ao blues e nos instrumentos de
cordas que executam o trecho e a interpretação sugerem aquela proximidade com a
rabeca, que descrevemos antes. Essa música contribui para para que se perceba uma
certa leveza no estado de espírito da personagem.
Um ponto importante a ser destacado são as semelhanças entre o blues e música
nordestina de rabeca. No blues é comum a exploração de sons que estão “entre” as
notas, através de técnicas como o bend3 e da utilização do bottleneck4, pensando
exclusivamente na guitarra. A ausência de trastes na rabeca (e também nos instrumentos
de corda utilizados na trilha musical do filme) possibilita glissandos5 entre as notas, que
gera efeito um semelhante.
É provável que os dois estilos tenham uma origem em comum, conforme nos diz
Mugiatti autor do já citado livro Blues-da Lama a Fama:
Alfons M. Dauer, presidente do Departamento Afro-Americano do
Instituto para Pesquisas do Jazz (sim, existe! em Graz, na
Áustria), defende a tese de que o blues norte-americano não se
desenvolveu no Sul dos Estados Unidos, mas surgiu numa data
muito anterior nas savanas da África Ocidental. Ele destaca
elementos textuais e melódicos na música sudanesa muito
similares ao blues norte-americano e únicos na África. Dauer
menciona ainda - segundo o brasilianista da MPB, Claus
Schreiner - "em conexão com a música brasileira, um tipo de
violino que se desenvolveu a partir do rebab árabe e que se

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Técnica em que o músico estica as cordas com a mão esquerda durante a performance para conseguir sonoridades
entre as notas pré-estabelecidas pelos trastes do instrumento.

Tubo utilizado no dedo da mão esquerda para que o músico possa deslizar entre as notas pré estabelecidas pelos trastes
do instrumento.

Glissando é uma articulação musical que consiste na passagem de uma nota para outra evidenciando os sons que estão
entre elas.
assemelha muito a um violino rústico usado na música do
Nordeste brasileiro chamado rabeca ou rebeca."
(MUGIATTI,1999, pg.11)

Música, Imagem e possíveis articulações sígnicas.

A utilização de estilos musicais codificados e de ampla referência em uma trilha


musical possibilita uma série de associações. No livro Música de Cena Tragtenberg nos
explica como pensa a relação entre estilos pré-existentes e uma referência narrativa.
Segundo o compositor:

Ao transitar entre o estilo de referência e sua recriação, a música


de cena busca em seu próprio texto os meios expressivos que
contemplem os diferentes registros presentes na textura da
cena(...)Talvez seja esse um dos procedimentos musicais na música
de cena. A partir dele é possível ter variações sutis de sugestões,
associações e críticas narrativas. (TRAGTENBERG, 2008, pg.33)

A recriação, como Tragtenberg denomina, parece ser uma importante ferramenta


para acrescentar a uma cena informações que talvez o gênero musical em si não
comporte. Não é difícil enxergar nesse procedimento, relação com o que Jacques Attali
chama de código e subversão, nas palavras dele:
A subversão na produção musical opõe uma nova sintaxe à sintaxe
existente,(...) Transições desse tipo têm ocorrido na música desde a
antiguidade e levaram à criação de novos códigos dentro de redes
em mudança. Assim, a transição das escalas grega e medieval para
as escalas temperada e moderna pode ser interpretada como uma
agressão contra o código dominante pelo ruído destinado a se tornar
um novo código dominante. Na verdade, esse processo de agressão
só pode ter sucesso se o código existente já se tornou fraco através
do uso.(ATTALI, 1985, pg. 34).

Embora Attali esteja se propondo a discutir mudanças na linguagem musical em uma


perspectiva histórica, podemos encontrar similaridades com o pensamento de
Tragtenberg a música do filme em questão. Percebermos o compositor transformando um
material reconhecível em função de elementos da narrativa. Assumimos a perspectiva de
que se trata de uma linguagem musical codificada com “interferências” de elementos de
certa forma “ruidosos” em relação à linguagem. Nos distanciamos da proposta cronológica
de Attali se pensarmos especificamente o potencial expressivo da relação entre a
subversão de um código vigente. Talvez em nossas análises o termo “fraco” que Attali
associa aos elementos reconhecíveis não seja o mais adequado, pois qualquer material
sonoro gera significado, ou, nas palavras de Michel Chion, acrescenta valor (2011,pg.12).
Ao entendermos que os estilos musicais que representam elementos culturais, nos
aproximamos da caraterística que Claudia Gorbman denomina de pista narrativa
(narrative cueing), ao se referir a uma das funções que a música exerce no cinema
narrativo clássico (Gorbman, 1987, pg. 73). Função essa que, em muitos casos fornecem
ou reforçam informações étnicas e/ou geográficas. No entanto, o filme que estamos
analisando se passa na região central do Brasil, ou seja, não encontramos relação óbvia
entre os estilos de referência e o local. , Em Latitude Zero, um outro mecanismo de está
em jogo. Neste sentido, as ideias de Anahid Kassabian nos parecem mais pertinentes
para respaldar as múltiplas interpretações que a música pode empreender. (Kassabian,
2001, pg. 57). A autora também defende a ideia de que música no cinema tem a
capacidade de evocar outras narrativas além da estória contada no filme, chamando esse
fenômeno de alusão (allusion),(IDEM, pg.50).
A autora primeiramente nos esclarece o que compreende por citação (citation) que,
segundo ela, tem a ver com o uso de canções ou peças musicais pré-existentes. A letra
das canções podem agregar à narrativa fílmica ideias e informações de várias ordens. A
alusão (allusion) segundo ela, seria a utilização de músicas pré-existentes presente em
outras narrativas (como no balé e na ópera, por exemplo), emprestando para o filme
algumas ideias e referências presentes nessa outra narrativa.
A diferença fundamental é que Kassabian usa esses conceitos pensando
especificamente no uso de músicas pré-existentes e/ou atributo sígnicos ligados a uma
composição específica. O nosso foco é a música original de Tragtenberg, Neste sentido
podemos pensar que relações semelhantes podem ser feitas a partir dos “elementos
estilísticos” presentes na sua composição, ou seja, a ligação entre a trilha original de
Latitude Zero e elementos fora do texto fílmico se dá muito por conta desses elementos.
Entendemos que esta característica, de certa forma, ocorre de forma mais ampla no filme
de Venturi, tanto na referência ao cinema no cinema novo que Nagib aponta, quanto em
relação aos fatos históricos e geográficos da região onde o filme se passa.
No livro A migração no Centro-Oeste Brasileiro no período 1970-96: o esgotamento
de um processo de ocupação de José Marcos Pinto da Cunha, encontramos informações
sobre imigrantes nordestinos que trabalharam atividade garimpeira (Cunha, 2002, pg.96).
Após o esgotamento das minas, houve uma significativa desocupação do local. A partir
daí questões como o deslocamento e o não-pertencimento se mostram importantes
fatores para construção da narrativa.
Nagib fala sobre como esse esvaziamento e está presente no filme:
Na paisagem natural monumental, as paredes escavadas da terra
vermelha sugerem as centenas de mãos ávidas que trabalhavam lá
no passado. Agora, eles são os restos do Eldorado já sonhado pelos
primeiros descobridores, as ruínas da Utopia, o paraíso perdido. O
mar que se transformou no sertão. (NAGIB, 2006, pg 84).

Além de chamar a atenção para o trabalho no garimpo, no trecho também


encontramos outras informações que ajudam a guiar nossa busca pelos possíveis
significados dos elementos referentes à música nordestina. Eldorado, utopia, o mar que
virou sertão são termos que remetem à Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em
Transe de Glauber Rocha. Nagib relaciona Latitude Zero com Deus e o Diabo na Terra do
Sol porque, segundo ela, em Latitude Zero o mar se transformou em sertão, se referindo
ao esgotamento da riqueza do garimpo (“O sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão” são
versos da música de Sérgio Ricardo presente no filme de Glauber Rocha). Em Latitude
Zero a autora vislumbra a ideia utópica de uma “nova proposta” para produção
cinematográfica brasileira, proposta essa que envolve tanto a viabilidade de produção
cinematográfica, como assuntos relevantes que vão desde os resquícios da ditadura
militar a representação da mulher no cinema.
Em suma, pode-se considerar que os elementos referentes à música nordestina
incorporados por Tragtenberg evoca tanto questões da história do local onde se passa o
filme, bem como dialoga com a história do cinema brasileiro e suas propostas utópicas.
Como exemplo das múltiplas interpretações possíveis da música, podem ser
percebidas na sequência em que vemos Vilela no garimpo procurando ouro.
As imagens evidenciam a grandiosidade, as texturas e as cores do terreno. O
personagem é visto em planos gerais, não vemos claramente suas expressões faciais, o
que que contribui para afastar alguma possível empatia entre ele e o espectador. Nesses
planos gerais as características físicas e até táteis do terreno ficam evidentes. Podemos
considerar de certa maneira que o personagem se torna parte dessa paisagem.
Na música, o clarone, de forma imponente, toca as notas graves assim como a
paisagem (também imponente) apresenta irregularidades através de passagens
cromáticas. Os instrumentos de corda friccionada passam uma ideia de rusticidade
através de glissandos e trinados. Como já foi dito, lembram a rabeca, mas podemos
vincular a essa sonoridade narrativas que envolvem ambientes desérticos, uma vez que
em westerns e road movies é comum timbres musicais dessa natureza (cordas ásperas e
arranhadas) estarem associados a imagens amplas de lugares desérticos e vazios. As
texturas sonoras variadas que a música de Livio , quando associadas às imagens dos
paredões rochosos possibilitam de um certa maneira que essas rochas sejam “ouvidas”,
evidenciando sonoramente as superfícies irregulares e acidentadas.
A paisagem árida à beira da estrada e os elementos pertencentes ao blues
estabelecem alguma semelhança com o filme Paris Texas (1984), de Wim Wenders. Ray
Cooder, compositor da música de Paris Texas, é um renomado guitarrista de blues,
Embora Cooder tenha suas origens no gênero, em Paris Texas ele criou uma música que
através de elementos externos ao blues estabelece conexões com a narrativa, assim
como a música de Tragtenberg no filme que estamos estudando. O próprio termo que dá
nome ao estilo musical é uma gíria que significa um estado de espírito melancólico.
Criado por escravos nos estados unidos a partir de elementos da música do continente
africano e europeu, tanto a melancolia como a ideia de não-pertencimento estão, de uma
certa, maneira atreladas ao estilo.
Notamos que as relações entre estilo de referência e recriação, código e subversão,
sinal e ruído podem estabelecer um rico jogo de significado para o filme. Curiosamente
foram escolhidas por Tragtenberg sonoridades que já são lidas como culturalmente
fronteiriças: o blues carrega em si elementos africanos e europeus, da mesma maneira
que a rabeca pode ser encarada como um elo musical entre o sertão nordestino e o
oriente médio. Vemos e ouvimos códigos se atrelando a subversões, se re-significando
junto a narrativa. A partir daí as informações parecem se potencializar. O ruído, como
interferência de linguagem, deixa de ter conotação negativa e ganha significado potente.
Como na própria narrativa do filme, uma nova proposta se estabelece a partir de pontos
de ruptura e diálogos com as tradições.

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