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Esse artigo pretende analisar a música do compositor Livio Tragtenberg no filme Latitude
Zero (2000) de Toni Venturi, lançando o olhar sobre a relação da música com os com
elementos visuais e narrativos, discutindo as possíveis interpretações que podem surgir
dessa relação, O embasamento se dá nas teorias de Claudia Gorbman sobre as funções
da música no cinema juntamente com as propostas de Anahid Kassabian que apontam a
possibilidade da música evocar informações fora do texto fílmico.
O filme foi produzido com uma linha de financiamento voltada para filmes de baixo orçamento.
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melodrama em que o protagonista se encontra preso e a narrativa se desenvolve através
de tentativas de libertação. Nagib comenta que o objetivo de Lena é se livrar da opressão
masculina (2006 pg. 34).
Apesar da aproximação, nem todas as convenções são do gênero são seguidas a
risca. Segundo o autor no melodrama a ordem se re-estabelece a partir da união do casal
(BROOKS, 1995, pg.32). Em Latitude Zero, no entanto, Lena se liberta a partir da morte
do seu parceiro, fato esse que ressalta o potencial revolucionário da mulher retratada no
filme. Acreditamos que estas características na narrativa fílmica - que dialogam tanto com
certos códigos pré-estabelecidos quanto com possíveis subversões - são fundamentais
para a concepção musical adotada por Tragtenberg.
A Música:
No início do filme, a trilha musical aponta o que estamos considerando como sua
“principal” característica: a exploração de códigos reconhecíveis que se transformam.
Vemos imagens do garimpo abandonado, máquinas e outras estruturas em ruína.
Enquanto Lena procura Vilela, escutamos fraseados em instrumentos de corda
friccionada com alturas imprecisas, que nos faz lembrar a sonoridade da rabeca,
instrumento de corda muito utilizado em festas populares da região nordeste - como o
Cavalo Marinho.
Poucos segundos depois, quando Lena encontra Vilela no garimpo e tenta convencê-lo de
maneira nada sutil a ir embora, ouvimos nas cordas uma interessante harmonia.
Conforme o filme avança para sua abertura (créditos iniciais), os acordes, o ritmo e a
sonoridade de uma guitarra nos transportam para o blues. Porém, a música apresenta
elementos específicos que ao mesmo tempo se distancia do gênero. Alguns dos acordes
utilizados são encontrados em uma a progressão harmônica de um blues tradicional de
doze compassos, enquanto outros, deles se mostram como um elemento estranho a
tradição do gênero musical em questão, principalemnte os acordes menores, uma vez
que o gênero é baseado em acordes dominantes. Ou seja, encontramos nessa
composição elementos que nos trazem referência a uma linguagem musical reconhecível,
e também elementos que de certa maneira introduzem informações que não petencem a
essa linguagem.
A fusão entre os dois estilos de referência(o blues e a música nordestina de rabeca)
pode ser encontrada na cena em que Lena senta em frente ao bar e toma chuva .
Composta por dois planos, a sequência começa com um plano geral em que vemos a
Livro em que a autor discorre sobre as bases do melodrama.
personagem saindo do bar carregando uma cadeira em direção ao espaço externo, no
próximo corte vemos a personagem em um plano americano no centro da tela. A
protagonista agora demonstra um pouco de serenidade, seu sorriso sutil, seu olhar e a
música dizem ao espectador que aquele é um momento mais tranquilo e que aquela
solidão talvez não seja tão ruim. A chuva também contribui para a sensação de leveza.
Ouvimos na música elementos harmônicos pertecentes ao blues e nos instrumentos de
cordas que executam o trecho e a interpretação sugerem aquela proximidade com a
rabeca, que descrevemos antes. Essa música contribui para para que se perceba uma
certa leveza no estado de espírito da personagem.
Um ponto importante a ser destacado são as semelhanças entre o blues e música
nordestina de rabeca. No blues é comum a exploração de sons que estão “entre” as
notas, através de técnicas como o bend3 e da utilização do bottleneck4, pensando
exclusivamente na guitarra. A ausência de trastes na rabeca (e também nos instrumentos
de corda utilizados na trilha musical do filme) possibilita glissandos5 entre as notas, que
gera efeito um semelhante.
É provável que os dois estilos tenham uma origem em comum, conforme nos diz
Mugiatti autor do já citado livro Blues-da Lama a Fama:
Alfons M. Dauer, presidente do Departamento Afro-Americano do
Instituto para Pesquisas do Jazz (sim, existe! em Graz, na
Áustria), defende a tese de que o blues norte-americano não se
desenvolveu no Sul dos Estados Unidos, mas surgiu numa data
muito anterior nas savanas da África Ocidental. Ele destaca
elementos textuais e melódicos na música sudanesa muito
similares ao blues norte-americano e únicos na África. Dauer
menciona ainda - segundo o brasilianista da MPB, Claus
Schreiner - "em conexão com a música brasileira, um tipo de
violino que se desenvolveu a partir do rebab árabe e que se
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Técnica em que o músico estica as cordas com a mão esquerda durante a performance para conseguir sonoridades
entre as notas pré-estabelecidas pelos trastes do instrumento.
Tubo utilizado no dedo da mão esquerda para que o músico possa deslizar entre as notas pré estabelecidas pelos trastes
do instrumento.
Glissando é uma articulação musical que consiste na passagem de uma nota para outra evidenciando os sons que estão
entre elas.
assemelha muito a um violino rústico usado na música do
Nordeste brasileiro chamado rabeca ou rebeca."
(MUGIATTI,1999, pg.11)