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Grande
Guerra ENSAIOS
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Grande Guerra • Ensaios
ÍNDICE
Guerra sonhada e guerra vivida:
as contradições do intervencionismo
português
Filipe Ribeiro de Meneses, National University of Ireland, Maynooth
LER ARTIGO
LER ARTIGO
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A correspondência do
desassossego e da saudade
Isabel Pestana Marques
LER ARTIGO
A guerra e o sagrado
António Araújo
LER ARTIGO
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Os choques da civilização:
testemunhos, horrores e silêncios
Miguel Bandeira Jerónimo, investigador na ICS-UL
LER ARTIGO
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ale a pena, por isso, determo-nos um pouco sobre essa
mesma corrente, os seus princípios e os seus objectivos, para
melhor entendermos as causas dos insucessos portugueses
e as suas consequências. Vale a pena também lembrar que o
intervencionismo português não foi um fenómeno isolado: em vários
outros países europeus – Itália, Grécia, Roménia – a intervenção na
guerra foi vista como o cortar do nó górdio, que permitiria resolver várias
questões domésticas e internacionais.
A frente interna
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que se foi apoderando de muitos oficiais ao longo de 1916 foi explorado pelo
‘herói da Rotunda’, Machado Santos, que tinha velhas contas a ajustar com
os partidos políticos. Eram os partidos, segundo este oficial da Armada, os
responsáveis pelo caos político no qual o regime que ajudara a fundar se
encontrava mergulhado.
Machado Santos fora preso após a
A ideia de que
revolta de 14 de Maio de 1915, e desde
a participação a sua libertação conspirara contra a
portuguesa no União Sagrada a tempo inteiro. A 13 de
conflito traria a Dezembro de 1916 passou ao ataque,
mas muitos dos que lhe garantiram o seu
pacificação da
apoio acabaram por nada fazer, sendo a
família portuguesa, revolta facilmente dominada pelas forças
ou pelo menos da leais ao Governo. Mas ficou o aviso e
família republicana, assim largas dezenas de oficiais foram
presos. Os efeitos militares e políticos
não sobreviveu aos
não se fizeram esperar. No mês seguinte,
primeiros meses oficiais de várias unidades recusaram-
da guerra se a partir à frente dos seus homens
para Lisboa, onde embarcariam rumo
a França. Para espanto de muitos observadores, sobretudo nos exércitos
aliados, estes oficiais cumpriram o seu castigo a bordo dos navios que os
levaram até Brest, sendo depois devolvidos às suas unidades. As medidas
tomadas para punir os responsáveis do 13 de Dezembro, mais severas,
dividiram o partido evolucionista, tendo alguns deputados abandonado
António José de Almeida para reconstituir o velho ‘bloco parlamentar’
com os unionistas de Brito Camacho.
Em Abril de 1917 caiu o Governo de António José de Almeida, no
Parlamento, após um episódio ainda envolto em mistério, um voto de
confiança que nunca devia ter ocorrido. Seguiu-se-lhe o terceiro (e último)
Governo de Afonso Costa, ainda sob a égide da União Sagrada, mas agora
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“O “Moçambique” atracado à frente do Arsenal da Marinha, para receber tropas que vão para Moçambique,
assistido pelo rebocador “Tejo” MUSEU DA MARINHA
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A guerra em África
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Desfile do CEP antes do embarque para França na Rua do Arsenal, em Lisboa JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICI-
PAL DE LISBOA
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O CEP
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Desfile do CEP antes do embarque para França na Rua do Arsenal, em Lisboa JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO
MUNICIPAL DE LISBOA
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Desfile numa localidade em França depois da vitória ARNALDO GARCEZ/LIGA DOS COMBATENTES
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O
regime republicano precisava de transformar o Exército, porque
disso dependia a sua própria sobrevivência. Por isso, os seus
responsáveis iniciaram desde muito cedo uma extensa mudança da
estrutura militar herdada da Monarquia.
Logo a 2 de Março de 1911, o Governo Provisório publicou um decreto
determinando profundas alterações no sistema de recrutamento
militar, que passava a assentar em cinco princípios: impossibilidade de
remissão a dinheiro do serviço militar obrigatório; substancial redução
do tempo de serviço militar obrigatório; alteração dos conceitos de
reserva; estabelecimento de períodos de preparação militar anteriores e
posteriores ao tempo de serviço militar obrigatório; e desaparecimento
da noção de exército profissional para dar lugar à de exército miliciano.
A transformação continuou, em lei de 25 de Maio de 1911, com
a reorganização do Exército baseada na ideia de que “os exércitos
permanentes fizeram o seu tempo, são instituições liquidadas”. Seguiu-se
a definição de um sistema de instrução e treino das tropas, com a criação
da Instrução Militar Preparatória, por decreto de 26 de Maio de 1911.
O dispositivo do Exército, constituído por unidades espalhadas por
todo o território, continuava com um núcleo profissional que perdia
importância, mas devia servir de base à Nação em armas, constituída por
tropas de reserva, com um adequado sistema de recrutamento, instrução
e mobilização adaptado à nova realidade.
Podemos dizer que a grande reforma republicana do Exército baseada
no princípio do exército miliciano, sem os recursos necessários, com uma
população maioritariamente analfabeta, contra a vontade do seu núcleo
profissional, estava votada ao fracasso. De qualquer maneira, as incursões
monárquicas primeiro e a Guerra logo a seguir aniquilaram a reforma.
Em 1914, quando a guerra na Europa começou, os quadros e os
efectivos gerais do Exército tinham tido somente três curtos períodos
de treino. O recrutamento e a mobilização fazia-se dentro da respectiva
divisão ou comando militar, cabendo a cada unidade suprir as suas faltas
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Desfile do CEP antes do embarque para França na Rua do Arsenal, em Lisboa JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO
MUNICIPAL DE LISBOA
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Marinha de guerra
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Do Sidonismo a La Lys
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Ensaio de: José Manuel Sobral, Antropólogo e historiador (Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa)
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1.
Há vários factores, uns ancorados na história mais próxima,
outros na mais distante, que explicam a participação de Portugal
na Grande Guerra de 1914-1918. O estado português tem sólidas
relações com um dos dois grandes blocos em que se dividem os
contendores: o constituído pelo Reino Unido, pela França e pela Rússia,
ao qual se juntara ultimamente a Itália.
A Grã-Bretanha era o seu principal parceiro em termos económicos e
políticos, a França era-o em termos culturais. A relação com a primeira
emergira na Idade Média com a aliança com a Inglaterra e sedimentara-
se tanto pelos laços comerciais como no decurso de diversos conflitos,
entre os quais os que asseguraram a independência do estado português
- a começar pelos que tiveram lugar no decurso da crise dinástica aberta
com a morte de D. Fernando em finais do século XIV. Este vínculo
foi um esteio da manutenção da autonomia portuguesa na Península
Ibérica, onde primeiro Castela, e depois a Espanha, foram sempre mais
poderosas. Embora este laço fosse sentido como assimétrico após o
tratado de Methuen - e se assacasse ao poder britânico responsabilidades
na manutenção de Portugal num estatuto económico secundário, de
país agrícola, enquanto a Grã-Bretanha
se transformava na primeira potência
A Grã-Bretanha, a industrial moderna -, ele nunca se
França e Portugal quebrou.
As relações com a França haviam
eram potências
sido historicamente muito distintas e o
coloniais. E a questão estado francês chegou mesmo a invadir
colonial havia-se Portugal no período napoleónico.
transformado num Todavia, as ligações mais profundas no
plano cultural ocorriam exactamente
problema político
com esse país. Ele representava a língua,
maior nas décadas a literatura, a cultura, a civilidade, a
prévias ao conflito. cozinha, que as classes mais abastadas
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Interior do Pavilhão de Portugal na Exposição-Feira de Angola, 1938 ATRIBUÍDO A FIRMINO MARQUES DA COSTA
(1911-1992)
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2.
A participação no cenário de guerra europeu, envolvendo uma
mobilização incomparavelmente maior, viria a dar-se mais de dois
anos depois, em 1917. Embora a maior parte das forças partidárias
apoiassem a intervenção, esta acarretou divisões no campo
republicano português, bem como a oposição de meios germanófilos e
das correntes internacionalistas ligadas ao movimento operário.
As carências e sacrifícios impostos pelo conflito prolongado foram
enormes. Puseram fim ao equilíbrio orçamental conseguido pouco antes
pela governação democrática e atingiram dramaticamente as condições
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O Ultimato britânico visto por Manuel Gustavo Bordallo Pinheiro, no jornal Pontos nos II
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Preparativos para o embarque das tropas que vão combater na Primeira Guerra Mundial em Belém
JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA
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3.
Deve dizer-se que esta exaltação nacional começara muito antes
do século XIX, pois as grandes navegações e conquistas dos
séculos XV e XVI foram acompanhadas pelo desenvolvimento de
um nacionalismo etnocêntrico. O poema épico de Camões, o mais
importante dos textos em que este se revela, celebrou no século XVI o
carácter e o destino nacional excepcional dos portugueses narrados pelo
navegador que atingira a Índia. Os túmulos poeta e de Vasco da Gama nos
Jerónimos são um produto do nacionalismo finissecular oitocentista, mas
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A correspondência do
desassossego e da saudade
Nos momentos de descanso, os soldados portugueses
escreviam onde calhava: nas trincheiras, num celeiro ou num
hospital. Escreviam com o que tinham à mão, sobre o joelho ou
escrivaninhas improvisadas. Alguns viram-se forçados a aprender
a ler. Todos tiveram a sua correspondência sob o olho da censura.
Todos os postais aqui reproduzidos foram enviados pelo soldado sapador ferroviário Felizardo Simões,
que combateu entre 1917 e finais de 1918, à sua mulher Maria José e filha Amélia COLECÇÃO DE MANUEL SIMÕES
R. MARQUES / BIB. MUN. DE FIGUEIRÓ DOS VINHOS
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A
vivência das duras condições do quotidiano de guerra e a luta
constante entre a vida e a morte impôs-se aos expedicionários
portugueses durante a campanha, em França (1917-1919). Neste
ambiente opressor, a troca de correspondência particular tornou-
se fundamental para a construção/manutenção do equilíbrio físico-
psicológico dos combatentes.
Desde cedo, os portugueses elegeram a escrita e a leitura de cartas,
enviadas ou recebidas, como meio de comunicação individual e privado,
ultrapassando obstáculos emergentes.
A vontade de comunicar motivou muitos expedicionários analfabetos
a aprenderem ou a aperfeiçoarem a leitura e a escrita da língua-mãe com
a ajuda de um camarada ou sozinhos, generalizando-se, então, o uso
da Cartilha de João de Deus em terras francesas. A aprendizagem do francês
fez-se com o auxílio das jovens francesas e a um ritmo célere, sem grandes
cuidados gramaticais. A necessidade fazia aguçar o engenho, recorrendo a
esquemas talentosos na construção de um original “francês de guerra”.
Nos momentos de descanso, escrevia-
se nas trincheiras (sobretudo na 2ª
Para impedir a
linha), num celeiro ou no “estaminet” da
transmissão de Linha de Aldeias e até num hospital da
informações valiosas Base, utilizando os materiais disponíveis:
para o inimigo ou papel, caneta e tinta; sobre o joelho ou
sobre escrivaninhas improvisadas com
que abalassem o
caixotes de corneed beef. A satisfação em
moral em Portugal, escrever ou ler cartas fazia esquecer as
as autoridades dificuldades da escrita e da leitura e até
criaram o Serviço de a disposição do momento e, sobretudo,
a falta de liberdade na troca de
Censura Postal do
correspondência em tempos de guerra.
Corpo Expedicionário Para impedir a transmissão de
Português informações valiosas para o inimigo ou
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em campanha, os autores vão decidir escrever àqueles que lhes são mais
próximos, em quem confiam e com quem são íntimos.
Na prioridade familiar, os solteiros escreveram aos pais e irmãos e os
casados às mulheres. Na prioridade de amizade, os camaradas de armas
trocaram cartas entre si e escreveram cartas de sedução a mulheres civis
e militarizadas. Na prioridade de relacionamento amoroso, eles e elas
trocavam cartas de amor, já consolidado, independentemente do local e
da língua escrita.
Deste modo, a correspondência serviu para contactar um mundo
menos masculinizado, menos militarizado e, sobretudo, civil, numa
tentativa de contacto com o mundo exterior.
O destino das cartas confirma essa necessidade. A retaguarda portuguesa
ditou a maioria, expressando uma forte necessidade de contacto com
a ansiada e distante terra natal e os familiares. A solidariedade entre
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dos “momentos de
combate” foi maior do que
qualquer risco… Diferentes
informações sobre a
campanha (operações
militares, deslocações de
unidades, relações entre
combatentes e com outros
exércitos, etc.) serão
prestadas com o intuito de
dar a conhecer o quotidiano
de guerra a terceiros,
de expressar críticas e
denunciar injustiças vividas
e, simultaneamente, de
aproximação ou rejeição
do conforto da retaguarda
distante. Igualmente dão-
se informações sobre
os camaradas de armas
para que os destinatários
informassem as respectivas famílias mas, também, com a intenção de
dar a conhecer os perigos e os sofrimentos vividos na zona de guerra.
Em suma, algum abatimento moral esquecerá os perigos de punição
por infracção do regulamento e levará a escrever linhas de desânimo face
às características originais dos combates, ao esforço físico da vida na zona
de guerra e à falta de meios humanos e materiais.
Dada a dimensão da batalha do Lys e o respectivo impacto na
evolução do Corpo Expedicionário Português, os autores vão escrever
sobre o tema, apesar do risco de prisão disciplinar: a simples referência
ao facto (em geral, por praças) ou extensas narrativas descritivas e
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necessidade de construir e
controlar decisões privadas
num contexto em que
colectivizava qualquer acto da
campanha, tornaram urgente
encontrar soluções de auto-
controlo para se impedir a
ruptura com o poder e as
autoridades estabelecidas.
Aqui as cartas vão unir os
combatentes a um exterior
distante geograficamente
mas teimosamente próximo.
As memórias dos tempos
de paz da família e da terra
natal, os afectos que se
deixaram em Portugal e as
cumplicidades emergentes
na campanha irão nortear
a escrita de palavras
emocionadas, de troca de
informações e de pedidos sinceros a um exterior que é chamado a
intervir em auxílio dos que sofrem.
Como único meio de comunicação com o exterior, os autores
raramente deixaram de reclamar resposta breve, finalizando sempre as
cartas com frases cheias de saudade: “Assim que esta tu recebas escrebem
idáme infirmações” ou “fico isprando resposta tua” ou ainda “Escreveme
na volta do correio”.
O pedido de notícias era constante.
Maioritariamente, perguntava-se pela família, pela saúde dos pais, da
mulher e dos filhos e depois pelo destino das colheitas, do gado e dos
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Carta 1
“França, 11 do 8 de 1918
Minha Crida e Saudosa mãe Comuito gosto e prazer lancei mão há pena
Somente para Saver da sua p emportente Saude e Juntamente atoda a
nossa família pois que eu fico bem Graças A Deus […] peço-lhe que me
mande 30 milrreis que com algum que eu tenho para ver se lá vou que
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depoes do combate com eles agora já há muito tempo que não estive
com eles e não esteja com quidado em mim que eu estou muito longe das
trincheiras que estou ao pé de Paris num depozito de Pagagens não me
falta couza alguma muitos abraços deste Seu filho José Martins.
A Deus A Deus/”
Fonte: Carta de José Martins, França, 11Ag1918, pp.4 para Anna Baltezara
de Jesus Correia de Chaves, Cazas Novas (mãe) in Isabel Pestana
Marques, Os Portugueses nas Trincheiras. Um Quotidiano de Guerra,
Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2002, Anexo XLV, p.390
Carta 2
“França 15 de Agosto de 1918
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vou indo. As horas que mais sofro são aquelas em que me lembra minha
família, minha mocidade e liberdade [riscado]. Nessas horas até quido de
estalar de paixão, vingo-me em chorar assim como muitos meus colegas,
mas não temos outro remedio que é disfarçar-mos uns com os outros.
No dia em que recebi as voças fotografias, não calculam o abalo que
me deu, ao ver aqueles que tantos beijos me deram e tantos tormentos
passaram para me criar e encontar-me longe e muito longe […]
Muitos abraços aos meus manos, beijinhos ao Jose e ao Almiro; muitas
recomendações a toudos os meus tios e tias, primos e preimas, a todos os
rapases e raparigas do meu tempo e a toda a nossa vesenhança.
Meus queridos pães recebam uma [riscado] viva saudade e um grande
Abraço d’este seu querido filho que já mais os esquesse e lhe deseja
pedir a bênção.
Manuel Martinho […]”
Carta 3
“Laventie 15-9 1917
Mademousel Catherine
Moá goute que vu dite se gout de fiancê avec moa.
Moá esperê que vu reponde a moá na bolta de lá posta. Escusamoá de
moá nan enquerer bien Francês […]
Belarmino de Figueiredo […]”
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Bibliografia
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A guerra e o sagrado
A Grande Guerra trouxe um “regresso aos altares”
em Portugal. Foi a resposta ao desconcerto do mundo
à volta. Em cada 13 famílias portuguesas, uma teve um soldado
mobilizado; em cada 39,6 famílias, um morto ou um ferido.
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A
Grande Guerra e o surto da pneumónica foram dois elementos
essenciais para a redescoberta do espírito religioso nos alvores
da década de vinte do século passado, fenómeno que teria
influência decisiva na reconfiguração das relações entre a Igreja
e o Estado e também no surgimento de uma militância católica mais
activa no plano político.
A presença da Guerra, seja nas trincheiras, seja na home front,
contribuiu para um “regresso ao sagrado”, aquilo que em França se
designou por “regresso aos altares”. Os soldados vieram “melhores,
maiores, vivendo mais perto de Deus”, dizia Mário de Almeida (O
Clarão da Epopeia, 1919). Augusto Casimiro, um membro do Corpo
Expedicionário Português (CEP) escreveria numa carta: “Nunca, nunca
senti Deus como agora, nem a minha alma respirou um ar mais puro e
forte...”. Casimiro afirmava que “os calvários redimem” e que os soldados
eram os “cristos desta guerra”, porventura numa aproximação ao célebre
Cristo das Trincheiras, actualmente exposto no Mosteiro da Batalha.
Outros, como o escritor Aarão de Lacerda, iam ao ponto de afirmar: “A
guerra actual deve ter sido uma límpida fonte de inspiração sagrada.” Não
foi coincidência o facto de a União Gráfica ter publicado uma novela, da
autoria de Ricardo Cruz, que envolve um médico abastado de ascendência
aristocrática, Jacques d’Hautenay, uma religiosa francesa, a irmã Suzanne,
um clérigo, frei Agostinho, e o personagem central, o capitão Maurício
Estêvão Garcia que, ferido em combate, beneficia da assistência da
Igreja, que o encaminha no sentido da fé cristã. A novela – com o título
expressivo Da Parte de Deus! – termina com o falecimento do herói
lusitano e a frase lapidar: “Compreendi a grande lição da Morte.” A ideia da
necessidade de amparo espiritual, que provoca nos descrentes uma espécie
de inveja da fé, está especialmente presente na peça Os Cegos, de Joaquim
Leitão. São curiosíssimos os diálogos aí travados entre um alferes agnóstico
e um capelão militar. O alferes diz que, apesar de não temer a Deus,
permitia a acção do sacerdote (“Bem sabe que não contrario a sua missão”),
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e o padre reconhece o facto (“Esse favor lhe devo. Deus lh’o agradecerá”).
No final, o alferes confessará, obviamente, que lamentava não crer em Deus
e que tinha inveja dos que foram tocados por essa graça.
Os relatos literários e memorialísticos da Grande Guerra – e da
religiosidade na frente – pecam por algum exagero ou, na melhor das
hipóteses, não retratam com fidedignidade as dificuldades vividas pelos
(poucos) capelães militares que faziam a assistência religiosa às tropas
portuguesas. No seu “diário”, o Pde. Lopes de Melo queixava-se que era
olhado com “desconfiança” e “tanta indiferença”; dias depois, confessa
a “triste impressão” com que ficou por ter detido na estrada os soldados
que tentavam escapar à missa que iria ser celebrada numa capelinha em
ruínas, sob uma chuva de granadas do inimigo.
A questão que se coloca é a de saber se o frémito religioso nasceu
apenas com o temor da guerra ou se já estava latente na sociedade
portuguesa. Alguns, mais empenhados, não têm dúvidas, como sucede
com António Corrêa d’Oliveira, possivelmente o autor dos poemas
alusivos à guerra onde a marca da fé católica é mais visível. O seu livro
Soldado que vais à guerra fala em verso de um carteiro que ao crepúsculo
distribuía as cartas vindas da Flandres nas aldeias de Portugal. Aí, era
indiscutível que a fé não se perdera, apesar de todos os esforços do
doutor Afonso Costa:
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Trincheiras do sector português na frente ocidental: Portugal terá redescoberto a fé católica com
a I Guerra Mundial ARNALDO GARCEZ / LIGA DOS COMBATENTES
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Em cada 39,6 famílias portuguesas, uma teve um soldado morto ou um ferido COLLECTION ODETTE CARREZ / REUTERS
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França ganhariam o epíteto de les gueules cassées, ou, entre nós, dos
jovens conhecidos como “gaseados da Flandres”.
No norte de França e na Flandres, entre outros locais, improvisaram-
se milhares de cemitérios ad hoc, e as famílias tiveram de batalhar
para conseguirem exumar os corpos dos seus entes queridos. Perante
a irredutibilidade das autoridades francesas – que se recusavam a
deixar que os pais, mesmo às suas custas, levassem os cadáveres dos
filhos para as suas terras – criou-se mesmo uma indústria clandestina
de exumações, através da corrupção dos coveiros, o que enfureceu os
militares, responsáveis pela guarda dos cemitérios, e os mais pobres, que
consideravam ser a exumação dos entes queridos um privilégio reservado
aos ricos. A questão cruzou argumentos nos dois sentidos - “não separem
aqueles que a morte uniu”, diziam uns; “o sacrifício destes jovens foi
feito em nome dos laços familiares”, replicavam outros – e acabou por ser
discutida pelo Conseil d’État; no final, o Ministro da Guerra, em Junho de
1919, proibiu todas as exumações na zona das operações militares, não
atendendo àqueles que defendiam a então chamada “desmobilização dos
mortos”, inclusivamente por motivos religiosos.
Para muitos católicos, a exumação dos mortos era a única forma de os
retirar de cemitérios secularizados e de lhes dar um enterro conforme às
suas convicções religiosas; alguns chegaram mesmo a avançar argumentos
anti-semitas, sugerindo que o Ministério da Guerra não permitia as
exumações porque a maioria dos seus altos funcionários eram judeus.
E quando, em Setembro de 1920, o Ministério da Guerra permitiu a
recuperação dos cadáveres, não só foi necessário montar uma imensa
estrutura para proceder à remoção e transporte de cerca de 300 mil
corpos reclamados pelas famílias, como se abriram novas controvérsias,
nomeadamente em torno da questão de saber quem tinha o direito a ficar
com os corpos, se os pais – cujas associações diziam serem preponderantes
os laços de sangue – se as viúvas (venceram os primeiros). Além das
numerosas cerimónias em honra dos soldados desconhecidos que
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que não fosse verdade o que estava escrito nas mensagens vindas do
“front”. É sintomático que na Austrália tenham escolhido sacerdotes
para comunicar às famílias as notícias das mortes em combate.
Compreender-se-á melhor o peso que a religiosidade adquiriu se a tudo
isto juntarmos a acção de numerosos
grupos de voluntários, uns ligados
A pulsão religiosa era à Cruz Vermelha, outros às diversas
sentida de forma tão confissões religiosas, que se dirigiam
veemente que alguns junto das famílias enlutadas ou dos
mutilados para lhes prestar auxílio
chegavam a criticar
espiritual e, em certos casos, material.
a atitude passiva dos Os feridos de guerra, por sua vez,
bispos portugueses começaram a constituir associações
praticamente logo que chegaram da
frente, muitas delas com ligações às igrejas. As viúvas tornaram-se um
grupo social importante – calcula-se que 3 dos 9 milhões de mortos na
Grande Guerra deixaram viúvas, além de cerca de 6 milhões de órfãos
– e, de um modo geral, bastante permeável ao proselitismo religioso,
tanto mais que a esse proselitismo estavam associadas actividades
caritativas e de apoio material que se revelavam indispensáveis para
minorar a situação economicamente débil das viúvas, num tempo em
que o homem era o único sustento do lar e a assistência do Estado tinha
uma expressão assaz reduzida.
Salvo nos casos de famílias mais abastadas, enviuvar significava cair na
pobreza e ter de abandonar quase todos os hábitos de vida que se tinham
antes de o marido partir para a frente de combate. Como a mortalidade
incidiu em especial nas patentes mais baixas, ou seja, naqueles que,
em princípio, provinham dos estratos inferiores da sociedade, é fácil
perceber a dimensão social que este fenómeno adquiriu. Para lidar com
ele, adoptaram-se soluções diferenciadas: em Inglaterra, prevaleceu
a tradição filantrópica vitoriana, centralizada na Soldiers’ and Sailors’
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Mãe lhe ensinara, e o heroísmo que o seu coronel lhe pregara”. As crenças
religiosas e as convicções patrióticas fundiam-se, assim, no espírito
do soldado português que o cabo-de-guerra comovidamente evocava.
A mesma comoção percorre as páginas que Jaime Cortesão dedica ao
florescimento da fé religiosa, a alternativa possível de que o povo simples
dispunha ao culto patriótico personificado em Camões.
A pulsão religiosa era sentida de forma tão veemente que alguns
chegavam a criticar a atitude passiva dos bispos portugueses. Em
França, Adelino Mendes enternece-se ao assistir a um serviço religioso
em Notre Dame de Paris, onde se implorava a protecção divina para os
exércitos que enfrentavam os alemães. Questiona, então, a razão pela
qual os prelados portugueses não fariam o mesmo. Era uma crítica algo
injusta. De facto, já em Janeiro de 1915 o Patriarca Mendes Belo escrevia
ao Presidente da República propondo o envio de capelães militares para
a frente de combate, e também não foi por acaso que a Associação do
Registo Civil e a Federação Portuguesa do Livre Pensamento lançaram
a campanha “Sem Deus!”, que protestava pela presença de padres nos
regimentos e a distribuição de símbolos religiosos aos soldados.
A participação de capelães militares na Grande Guerra, com efeito,
contribuiu de forma decisiva para melhorar a imagem da Igreja e para
engrandecer o prestígio de alguns sacerdotes. Um deles é o padre Luís
Lopes de Melo, assistente eclesiástico do C.A.D.C., que se voluntaria como
capelão militar e regressará ferido da Flandres. Outro, o do padre José
Ferreira de Lacerda, que esteve em França com o Corpo Expedicionário
Português entre Maio e Setembro de 1917 e se tornará um dos mais activos
propagandistas da causa de Fátima.
O caso mais emblemático é, todavia, o do futuro bispo de Beja, D.
José do Patrocínio Dias, que para sempre ficará conhecido como “bispo-
soldado”. Um dos fundadores do C.AD.C. – instituição que, de resto, se
orgulhará da participação dos seus associados no conflito de 1914-18 –
Patrocínio Dias fora preso durante a I República, mas com a permissão
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Ensaio de: Filipa Lowndes Vicente, historiadora, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
A passagem das tropas portuguesas sob o Arco do Triunfo, em Paris, após vitória dos Aliados, como
testemunhou a câmara de Arnaldo Garcez ARNALDO GARCEZ / LIGA DOS COMBATENTES
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O
que são as fotografias da I Guerra Mundial? As fotografias oficiais
tiradas pelos militares de ambos os lados da barricada, em vários
momentos do seu novo quotidiano? As imagens pessoais daqueles
soldados que levaram as suas próprias máquinas fotográficas para
a frente de batalha? Os retratos dos jovens soldados, feitos longe de casa,
e enviados às mães e mulheres - a última imagem para muitos deles? As
fotografias oficiais, sujeitas ao crivo da censura, consciente do poder das
imagens como arma de guerra, que depois eram impressas em jornais ou
em folhetos? As fotografias, horríficas, para uso exclusivo de médicos, a
mostrar as feridas dos soldados e os efeitos, desconhecidos, das novas
tecnologias de combate? Ou as fotografias dos mortos, enquanto prova
mais dura do conflito, do que de pior tinha acontecido? Todas elas são
fotografias da guerra. Todas são produzidas nos diferentes contextos
da guerra. E todas podem ser pensadas como objectos históricos para
melhor se compreender os diversos aspectos do conflito.
Nunca nenhuma guerra fora tão fotografada como a I Guerra Mundial.
O enorme desenvolvimento tecnológico da fotografia, ao longo da
segunda metade do século XIX e na primeira década do século XX,
permitiu que as imagens da Guerra 1914-18 se multiplicassem com uma
velocidade nunca vista e que o seu impacto tivesse lugar ainda durante
o decurso do conflito. O uso da máquina fotográfica e a impressão de
imagens democratizaram-se. Passara a ser fácil e barato tirar fotografias.
O postal fotográfico, inventado na transição do século, tornara-se uma
forma de comunicação comum. E os exércitos e governos também já
sabiam como as imagens podiam ser uma arma de guerra.
Os progresso da tecnologia
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Foi pela lente de garcez que ficou gravada uma dança tradicional na partida de soldados portugueses
para África ARNALDO GARCEZ / LIGA DOS COMBATENTES
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Joshua Benoliel retratou o desfile do CEP no Parque Eduardo VII em 1917 JOSHUA BENOLIEL / AML
continuou por França até ao ano de 1921. O casamento com uma francesa e
o nascimento de três filhos também terão adiado o seu regresso.
Quer em França, quer já em Portugal, continuou a documentar os
resquícios e destroços do conflito, contribuindo para a construção,
imediata, da memória da guerra. Escolhido para membro da Comissão
de Padrões da Grande Guerra, organizou exposições fotográficas sobre
a guerra; envolveu-se na construção dos cemitérios em França onde
ficaram tantos portugueses e fotografou as transladações de corpos,
inauguração de monumentos aos mortos e todas as cerimónias de luto
e lembrança. Isto, claro, depois da euforia da vitória aliada - que ele
também testemunhou, ao acompanhar as tropas portuguesas a passar sob
o Arco do Triunfo de Paris, ou nas ruas engalanadas de Londres.
A “guerra” de Garcez desobedeceu a algumas das instruções superiores
que decidiam aquilo que podia ou não podia ser fotografado e aquilo
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Postal fotográfico
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Desfile do Corpo expedicionário Português pela Avenida da Liberdade JOSHUA BENOLIEL / AML
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Desfile do Corpo expedicionário Português pela Rua Augusta, a caminho do embarque JOSHUA BENOLIEL / AML
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Mulheres na guerra
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Mas, 100 anos depois, nem a fotografia guarda todas as memórias - não
se sabe quem foi o autor das 400 chapas fotográficas de vidro, um amador
provavelmente, nem quem são as centenas de soldados britânicos que
para ele posaram. Os arquivos de guerra continuam a ser desenterrados
para enriquecer a cultura visual do primeiro conflito a ser tão fotografado
na história da humanidade. Depois de 1918, nos muitos conflitos armados
que se seguiram, a fotografia continuou a assumir todas as suas facetas e a
ser usada tanto como um instrumento nas estratégias de guerra, como um
antídoto para a dor.
Bibliografia
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Fábrica de munições em França REUTERS / ARCHIVE OF MODERN CONFLICT LONDON / HANDOUT VIA REUTERS
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D
urante todo o período da Grande Guerra, uma ideia que dominou
os movimentos feministas nos países beligerantes foi a de que as
mulheres adquiriram hábitos de iniciativa e responsabilidade tais
que seria desperdício não os aproveitar findo o conflito, como
sintetiza a historiadora Anne Cova, do Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa
Uma ideia muito difundida é que as mulheres, graças ao seu activismo
durante a Grande Guerra, conseguiram obter vários direitos. Assim, a
guerra teria produzido um efeito benéfico para os direitos das mulheres.
Por exemplo, no que diz respeito à cidadania política, com a obtenção do
direito de voto feminino em muitos países - Dinamarca (1915), Países Baixos
(1917), Alemanha (1918), Áustria (1918), Reino Unido (1918), Polónia (1918),
Rússia (1918), Bélgica (1919), Suécia (1919) - parece corroborar esta asserção.
No entanto, outros países, incluindo Portugal, concederam o voto para todas
as mulheres muito mais tarde: em Portugal depois do 25 de Abril de 1974,
Suíça (1971), Grécia (1952), Itália (1945) e França (1944). À leitura da Primeira
Guerra Mundial como um período que terá gerado grandes oportunidades
para as mulheres - nomeadamente no mercado do trabalho - enaltecendo
o lado positivo do conflito, opõe-se uma outra abordagem, que destaca
o carácter conservador da guerra em termos de relações entre homens e
mulheres. De facto, nos anos vinte, as mulheres são “convidadas” a regressar
ao lar. Tendo em conta estas duas perspectivas, pretende-se analisar, de
maneira sucinta, a mobilização das mulheres portuguesas bem como os
seus efeitos, numa perspectiva comparada e transnacional : “L’histoire des
femmes en temps de guerre (...) est un sujet aujourd’hui mieux compris dans
une optique transnationale” [1 - Ver Bibliografia no final do texto].
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Mão-de-obra feminina numa fábrica em França, 1916 ARCHIVE OF MODERN CONFLICT LONDON/REUTERS
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Piquenique de oficiais alemães da força aérea, em 1918 REUTERS / ARCHIVE OF MODERN CONFLICT LONDON /
HANDOUT VIA REUTERS
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As acções de beneficência, como a Venda da FLor, em Lisboa, eram uma ocupação das mulheres
JOSHUA BENOLIEL / AML
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Regresso ao lar
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Bibliografia
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Desfile de antigos combatentes da Primeira Guerra Mundial junto à estação do Rossio, Lisboa FOTÓGRAFO NÃO
IDENTIFICADO/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA
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Ensaio de: Sílvia Correia, Professora do Instituto de História da Universidade Federal Rio de Janeiro /
Investigadora do IHC – UNL.
P
ercorrer os lugares que chamam a si os mortos da Grande Guerra,
passados 100 anos do início do conflito que lhe deu origem, é olhar
para o esquecimento que compôs a sua memória em Portugal.
Menção a um tempo que a memória histórica incorporara já como
esquecimento. Pensar esses lugares de memória equivale a pensar o
esforço que implica alguma referência ou identificação entre os mortos
representados e aqueles que hoje se cruzam com eles.
Discursos e memoriais servem processos de disseminação da morte,
transformando o soldado morto no herói de salvação da pátria. Trata-
se, ontem como hoje, de aniquilar o impacto sobre a opinião pública
da massa de mortos, neutralizando-a em novas estruturas materiais e
imateriais de tradição local, simulando um novo léxico da morte, uma
nova retórica - “em guerra não se morre mas sim cai-se, a vida não se
perde mas doa-se, não desaparece no nada mas vive-se eternamente
no império do heroísmo patriótico”[ii]. Procura-se, assim, evitar a
consternação pelo injustificado sacrifício em massa. O luto individual é
metamorfoseado pelo ritual do culto dos mortos no orgulho consensual
pela morte em nome da pátria. Uma tentativa idílica e metafórica
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Antigos combatentes da Primeira Guerra Mundial no rancho de confraternização que decorreu durante a
Semana do Combatente, 1929-06-30 ATRIBUÍDO A FERREIRA DA CUNHA/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA
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Desfile de tropas portuguesas em Londres, 1918 AGENCE ROL / BIBLIOTHÉQUE NATIONAL DE FRANCE
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Familiares de soldados mortos em França, a caminho da igreja dos Mártires onde se realizaram exéquias
religiosas, em Abril de 1918 JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA
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O Presidente António José de Almeida lançando a primeira pedra do monumento aos mortos da Grande
Guerra, em Lisboa, 1923 FOTÓGRAFO NÃO IDENTIFICADO / ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA
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Rutura e continuidade
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Bibliografia
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Ensaio de: Nuno Severiano Teixeira, professor Catedrático da Universidade Nova de Lisboa;
Visiting Professor na Georgetown University
A
entrada de Portugal no século XX ficou marcada, por dois
acontecimentos matriciais: primeiro, a fundação da República,
em 1910, segundo, a entrada de Portugal na Grande Guerra, de
1914-1918. São dois momentos distintos, mas que têm em comum
o mesmo significado histórico: a entrada de Portugal no novo século
e a sua adaptação às dinâmicas internacionais em desenvolvimento e,
particularmente, à dinâmica europeia.
No início do século XX, o pensamento estratégico português encarava
Portugal como um país de vocação, exclusivamente marítima - atlântica
e colonial - e sem interesses estratégicos no continente europeu.
Um pensamento que se manteve ao longo do século e permaneceu,
inalterado, até à dupla transição, pós autoritária e pós imperial, na
segunda metade da década de 80.
Como resultado de condicionantes geopolíticas e de movimentos de
longa duração histórica, Portugal conheceu, de um ponto de vista do
seu lugar no mundo e da sua inserção internacional, uma forte corrente
de matriz antieuropeia. Esta matriz, que foi historicamente dominante,
teve reflexos numa longa tradição política e diplomática, assim como na
formulação do pensamento estratégico e militar.
Esta matriz antieuropeia tinha por base duas ou três ideias fundamentais:
em primeiro lugar, uma percepção contraditória, e em certos momentos
históricos, mesmo, dilemática entre a Europa e o Atlântico; em segundo
lugar, e como consequência, considerava que Portugal não tinha interesses
estratégicos na Europa, porque a sua vocação era vocação marítima e
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Instrução de militares do Corpo de Artilharia Pesada em Inglaterra, 1917 AGENCE ROL / BIBLIOTHÉQUE
NATIONALE DE FRANCE
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Chegada de militares do CEP a Brest, França, no início de 1917 AGENCE ROL / BIBLIOTHÉQUE NATIONALE DE FRANCE
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Regresso a Lisboa das tropas do Corpo Expedicionário Português que combateram na Flandres, em Janeiro de
1919 ATRIBUÍDO A JOSHUA BENOLIEL / ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA
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Militares do CEP em Brest, França, no início de 1917 AGENCE ROL / BIBLIOTHÉQUE NATIONALE DE FRANCE
a Inglaterra vir jogar a sorte das colónias portuguesas na mesa futura das
negociações de paz. No plano europeu, diversificava, diplomaticamente,
a posição estratégica de um Portugal beligerante, por oposição a uma
Espanha neutra. E julgava, com isso, conquistar o tão almejado o
reconhecimento no “Concerto das Nações”.
Conseguiria, finalmente, um desígnio inconfessado, de natureza política
interna: a consolidação e a legitimação nacional do regime. Na Conferência
da Paz, em Versalhes, Portugal conseguiu, por inteiro, o seu objectivo
colonial: o Império ficou intacto. Mas falhou, pelo contrário, também
por inteiro, o seu objectivo europeu: o reconhecimento no Concerto das
Nações, significava na política internacional do pós-guerra um lugar no
Conselho Executivo da Liga das Nações que Portugal beligerante jamais
conseguiu, quando, ao contrário, o conseguiu a Espanha neutra. Foi a grande
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Grande Guerra • Ensaios
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Lições económicas
da Primeira Guerra Mundial
O governo da República teve de financiar a aventura da guerra
através da emissão monetária e de dívida. O aumento da circulação
monetária traduziu-se em níveis de inflação dos mais elevados da
Europa, numa forte desvalorização cambial, e no agravamento do
desequilíbrio externo do país. Paradoxalmente, o período a seguir
ao fim da primeira Guerra Mundial, que ocorreu num contexto de
proteccionismo generalizado, foi palco de uma transformação de
certo modo excepcional da economia portuguesa.
Ensaio de: Pedro Lains, Investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
Preparativos para o embarque das tropas que vão combater na Primeira Guerra Mundial, Rua Augusta, Lisboa,
1916 JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA
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O
século que começou com a paz de Viena e acabou com a primeira
Guerra Mundial foi marcado pela industrialização do continente
europeu, pautada por progressos em todas as frentes. A guerra
alterou as regras do jogo económico internacional, deixando
marcas que trazem lições até aos dias de hoje.
Dado o mote da primeira revolução industrial, os países ou regiões
mais próximos da Grã-Bretanha seguiram um caminho de imitação ou
substituição dos elementos que estruturam essa grande transformação
económica. Por trás desse impulso industrial esteve a possibilidade que a
paz de 1815 trouxe ao crescimento das trocas intra-europeias de produtos,
serviços, capitais e, então em menor grau, pessoas, pautado pelo padrão-
ouro, o regime de estabilidade cambial mais conseguido da história.
O facto de a Europa ser cada vez mais o continente de monarquias ou
repúblicas constitucionais, regimes em que os cidadãos têm alguma voz,
embora muitas vezes imperfeita, foi também de grande importância ao
contribuir para o clima de abertura de fronteiras.
Entre os elementos do crescimento oitocentista contam-se, não
necessariamente por esta ordem, economias à época já relativamente
avançadas, elevados níveis de
capital físico e humano, instituições
O período a seguir financeiras experientes, recursos
ao fim da primeira naturais de exploração competitiva,
sectores agrícolas capitalizados e
Guerra Mundial
virados para os mercados locais,
foi palco de uma regionais ou internacionais, tradições
transformação manufactureiras seculares e redes
de certo modo de estradas e canais a ligar cidades,
campos, minas e portos. Este padrão
excepcional da
favorável à industrialização era comum
economia portuguesa nas regiões do noroeste europeu, do
em muitas frentes.” norte de França à Bélgica, do ocidente
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Militares do CEP em Brest, França, no início de 1917 AGENCE ROL / BIBLIOTHÉQUE NATIONALE DE FRANCE
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1
Quase tudo foi dito sobre a Primeira Guerra Mundial entre os
especialistas, mas a memória contemporânea desta é escassa em
Portugal. Para dizer a verdade, se fossem alvo de um inquérito,
poucos portugueses saberiam que Portugal participou nesta guerra
apoteótica da modernidade, que interrompeu aquilo a que muitos
cientistas sociais chamaram a primeira vaga da democratizações,
afogando essa gloriosa etapa de uma globalização optimista do
capitalismo liberal e do hoje tão atormentado capital financeiro.
O Portugal republicano e nacionalista conseguiu participar nesta
guerra (mais europeia do que mundial, apesar do nome), com grande
esforço e à revelia dos sentimentos da sociedade portuguesa, no que
aliás não foi singular. Portugal não só participou nela em África e na
frente europeia como a terminou com um enorme número de mortos e
feridos, bem maior dos da guerra de que todos se lembram. Pequenos
monumentos de homenagem aos mortos, de Naulila a La Lys, também
não faltaram, mas a longa duração do Salazarismo conseguiu apagar esta
“guerra republicana” de que não gostava.
Os factores que levaram a elite republicana a forçar a participação
militar na Guerra mobilizaram os historiadores portugueses e deram
origem a várias explicações, mais complementares, do que alternativas.
Reconheça-se que o debate era importante. O que levou um País
pequeno, periférico e pobre como Portugal, sem que o tenham
chamado, a “querer” entrar a sério na Guerra deste 1914? A defesa do
património colonial africano, sempre periclitante e ameaçado, era um
factor óbvio, mas para Afonso Costa e para o Partido Democrático, o
partido dominante da jovem Primeira República, outras motivações
também estiveram presentes, mas a “União Sagrada” cedo se esboroou
e os partidos republicanos conservadores tiraram o tapete ao ensaio de
mobilização patriótica do partido dominante. Um ano e meio depois de o
Governo mandar apresar os barcos alemães no Tejo já a elite republicana
era apeada do poder por um bem sucedido golpe de estado conservador.
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Sidónio Pais, um militar e professor universitário reconvertido à vida
política, membro de um partido republicano conservador, deputado
e ex-embaixador em Berlim, dirigiu o golpe de Dezembro de 1917,
com um programa relativamente simples: retirar Portugal da guerra.
A Ditadura de Sidónio seria derrubada um ano depois, quando o
assassínio do seu chefe colocou o País à beira da guerra civil, com uma
revolta monárquica no Norte. Após algumas hesitações programáticas,
Sidónio enveredou por um presidencialismo populista. Ao mesmo tempo
que limitou a actividade dos partidos republicanos, alterou a lei eleitoral
proclamando o sufrágio universal e fez-se plebiscitar presidente. Inspirado
pelos integralistas, apresentou um esboço de representação corporativa,
tentou agregar alguns partidos conservadores num partido único,
permitindo apenas a organização autónoma dos monárquicos e do pequeno
partido católico. Após algumas hesitações iniciais perante o novo regime,
dada a sua pretensão de afastar Portugal da guerra, os sindicatos foram
violentamente reprimidos enveredando por uma tentativa de greve geral.
O discurso político de Sidónio, em plena crise de abastecimentos
devida à guerra, foi o do antiplutocratismo, da luta contra as oligarquias
partidárias, e o de um nacionalismo messiânico. Sidónio conseguiu
unir conjunturalmente monárquicos e republicamos conservadores,
ao mesmo tempo que utilizou os seus recursos carismáticos de forma
eficaz, rodeando-se de um grupo de jovens oficiais do exército que
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Parte integrante da vaga autoritária dos anos 20 na Europa, o golpe
de Estado de 28 de Maio de 1926 não foi apenas uma intervenção
militar de tipo pretoriano na vida política. Não foi a hierarquia
militar estabelecida que decidiu derrubar mais um governo, mas
uma coligação heterogénea de militares, com o apoio decidido de diversos
partidos e grupos de pressão. O liberalismo republicano foi derrubado por
um exército dividido e politizado, sofrendo apelos golpistas de fracções
organizadas no seu interior, que iam desde os republicanos conservadores,
aos católicos-sociais e à extrema-direita integralista e correlativos apêndices
fascistas, particularmente influentes junto dos jovens oficiais.
O apelo aos militares foi uma constante na vida política da República
no pós-guerra, por parte da oposição ao partido dominante, o Partido
Democrático. Quase por definição, o sistema político republicano não
teve uma “oposição leal”, para usar a terminologia de um politólogo
recentemente falecido, Juan Linz, já que era patente para os actores
políticos que a possibilidade de chegada ao poder por via eleitoral era
nula. Desde cedo que os partidos republicanos conservadores, pequenos
agrupamentos de notáveis ligados a grupos de interesses, se tinham
habituado a recorrer a meios extraparlamentares para se aproximarem do
poder. No pós-guerra existiram alguns governos de coligação ou mesmo
conservadores, mas sempre ligados a situações de crise. A radicalização
dos pequenos partidos republicanos conservadores (Nacionalistas,
Reconstituintes, União Liberal Republicana, etc.) foi um factor
fundamental na queda da República, levando-os a “apelar aos militares”,
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Grande Guerra • Ensaios
General Gomes da Costa e a oficialidade saindo da tenda de campanha onde foi servida uma taça de
champagne, para comemorar a vitória do golpe militar de 28 de Maio, Junho de 1926 FERREIRA DA CUNHA/
ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA
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Guerra e revolução
na Rússia de 1917
A impreparação do exército russo impôs-lhe pesadas derrotas na
guerra, o que, com o agravamento das condições de vida, ditou
o surto insurrecional que afastou os Romanov. O novo regime,
porém, dividir-se-ia entre a continuidade da guerra e a celebração
da paz. No final, a exigência do fim do conflito imposta pelos
bolcheviques triunfou com a revolução de Outubro. O armistício
com a Alemanha seria assinado em Dezembro de 1917, mas o
tratado teria de esperar por Fevereiro. A Rússia conquistou a paz à
custa de pesadas cedências territoriais.
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Grande Guerra • Ensaios
F
oram de curta duração a euforia nacionalista e o ardor fanático com
que a Rússia czarista se lançou na Grande Guerra, alinhada com
as potências da Entente contra os impérios centrais, soprada pelo
consenso da “união sagrada” em torno da “defesa da pátria”. Ao
qual não faltou o apoio dos liberais, dos mencheviques (a ala direita do
movimento social-democrata russo) e do partido camponês, herdeiro do
populismo russo, que dava pelo nome de socialista revolucionário (SR).
Apesar de alguns ilusórios sucessos iniciais, a falta de preparação, a
brutal prepotência da oficialidade, o défice de treino e municiamento,
a incapacidade de poder armar um imenso exército de 16 milhões de
soldados (a larga maioria camponeses analfabetos) “dirigidos por uma
nobreza cuja arrogância só era equivalente à incompetência”, tudo
rapidamente degenerou em desastre. “Desde as primeiras batalhas
na ofensiva de Tannenberg, a primeira fila entrou em combate com
espingardas e botas, a segunda com espingardas e sem botas e a terceira
sem botas nem espingardas” [1 - Ver notas em final de texto]. A tática
das “vagas humanas” fez disparar as baixas que, em 1917, atingiam os 4
milhões de soldados. Faltavam armas adequadas, munições, transportes,
oficialidade sintonizada com a guerra moderna, cuidados decentes para
os feridos, logística eficaz, respeito pelos soldados.
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O duplo poder
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A revolução de Outubro
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Notas
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Os choques da civilização:
testemunhos, horrores
e silêncios
A guerra europeia em África foi essencialmente protagonizada
por africanos, os soldados e participantes mais desconhecidos de
todos. Como carregadores ou como soldados, foram vítimas de
horrores que só agora estão ser devidamente reconhecidos, ainda
que tardiamente, na Europa. O “imposto de vidas” assim o exige.
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“O
s indígenas mais válidos da Província têm sido violentamente
recrutados para fins expedicionários e já há hoje quem calcule
o número de mortos em perto de 50 mil. Porque os indígenas
só voltam quando moribundos ou estropiados, a repugnância
pelo recrutamento e pelo nome português tem-se espalhado através do
sertão; contam as vicissitudes porque passam, dias sem alimentação
muitas vezes, ou com alimentação imprópria; os mortos e os moribundos
abandonados pelo caminho como animais; a lenda funesta alastra-se, os
pretos emigram em massa, a agricultura e a indústria Zambeziana lutam
com falta de braços, e o Governo é vítima dos seus próprios métodos,
só pela violência encontra quem o sirva, e chegará o momento, se os
métodos não mudarem, em que nem carregadores encontre e em que
as empresas da Zambézia tenham de assistir à ruína e transformação
de tanto esforço e dinheiro empregado em puras perdas por falta de
indígenas para o trabalho”. Assim sendo, não era de estranhar que o
“indígena” tivesse começado a “odiar os que o arrancam ao seu lar e
às suas florestas para o ir matar sem piedade, à míngua de tudo, nos
trabalhos forçados das expedições”. Era este o retrato sombrio constante
numa carta, datada do dia 6 de Maio de 1918, enviada conjuntamente
pelo Grémio de Proprietários e Agricultores da Zambézia, pela Companhia
do Boror e pela Sociedade de Recrutamento de Indígenas ao Governador-
geral de Moçambique, Manuel Luís Moreira da Fonseca.
A citação é longa mas descreve e resume, de modo assertivo, os
principais processos que resultaram da extensão da primeira guerra
mundial aos contextos coloniais, sobretudo chamando a atenção para o
papel, infelizmente desvalorizado e ignorado por muitos, desempenhado
pelas populações coloniais, neste caso africanas.
Os acordos feitos pelas autoridades portuguesas com o General Jacob
van Deventer, comandante militar sul-africano que liderava as forças
imperiais britânicas, para o recrutamento de carregadores em função
das necessidades destas estavam, há muito, a ter consequências nefastas.
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excerto que merece ser reproduzido pelo seu carácter elucidativo: “Veio
há pouco a guerra com a ‘German East Africa’ em que a nossa infeliz
província sofreu o mais cruel imposto de vidas que é lícito conceber. Para
alimentar de carregadores as forças inglesas, e de carregadores e soldados
as forças portuguesas, não houve recurso nem violência de que se não
lançasse mão, pondo em risco e prejudicando não só o prestígio da nossa
soberania, mas obrigando a prejuízos inenarráveis todas as indústrias e os
imensos interesses e sacrifícios que significam a nossa acção económica
e civilizadora naquela província. Não se pode avaliar em menos de 80 mil
os indígenas portugueses mortos por virtude da guerra contra o alemão,
e para cúmulo da desgraça, o flagelo da pneumónica, ao findar a guerra,
veio completar a obra de devastação iniciada, por vezes com perfeita
inconsciência, pelas próprias autoridades”. Por vezes, apenas por vezes,
com “perfeita inconsciência”, note-se.
Impressões semelhantes foram transmitidas para Lisboa
pela Companhia do Boror: abusos em excesso, sem controlo oficial
ou protagonizado mesmo pelas autoridades; uma pressão constante
e agressiva para garantir o recrutamento forçado de carregadores
africanos ao serviço de britânicos e portugueses; revoltas “indígenas”
generalizadas; e, por fim, a “morte de cerca de 80 mil carregadores”.
É certo que ambas as companhias procuravam, acima de tudo, bloquear
o desvio de mão-de-obra africana das suas plantações para as necessidades
insaciáveis das forças militares. Procuravam ainda questionar, como faziam
com frequência, as políticas e a economia, formal e informal, da circulação
de trabalhadores africanos para as minas do Transvaal. A deslocação da
“população válida” para o serviço militar, para servir de carregadores e
“nunca mais voltarem”; a sua utilização “em grande número” para suprir
as “necessidades da administração”; a sua emigração para a Niassalândia e
a sua fuga para o “mato” constituíam uma combinação de factores danosos
insuperável. O uso de “braços para tão desvairadas aplicações” tinha de
ser imediatamente restringido. O recrutamento forçado enquanto “acção
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escravo de São Tomé, ambos com o seu auge no início do século XX,
demonstram. A dinâmica militar da guerra só acentuou esses processos. O
escasso desenvolvimento infra-estrutural e comunicacional nas colónias,
marcado pela quase ausência de estradas, rios navegáveis e caminhos-
de-ferro, exigia um recurso desmesurado aos carregadores, cujo
recrutamento assentava em violentas operações de resgate por cipaios e
por outro tipo de recrutadores, públicos e privados (ainda que esta
distinção fizesse pouco sentido a maior parte das vezes).
Calcula-se que cerca de 60 mil a 90 mil carregadores tenham sido
usados pelos portugueses durante a guerra em Moçambique. Cerca de 30
mil terão sido fornecidos às forças expedicionárias britânicas, o que não
impediu inúmeras acusações britânicas de incumprimento dos acordos
estabelecidos. A procura suplantava a oferta. Em virtude do conflito
que envolveu os alemães, os britânicos (incluindo a África do Sul) e os
portugueses na África Oriental, calcula-
se que tenham sido mobilizados entre
Por ordem superior
500 mil a 700 mil carregadores
foram enforcados africanos. Destes, calcula-se que
bastantes pretos e tenham falecido entre 200 mil a 400
pretas (...). Os pretos mil: em combate, por subnutrição (em
1917, os carregadores recebiam apenas
eram enforcados
1000 calorias por dia), por doenças
nas árvores e para várias (incluindo as disseminadas
isso utilizaram, por em campos de concentração), por
vezes, arame farpado. deserção (que era endémica e conduzia
a execuções sumárias). Não sabemos
Eram os landins
quantos ficaram inválidos ou para
os executantes dos sempre com a marca das agruras e
enforcamentos. crueldades associadas a este processo.
Testemunho de Joaquim Pinto Uma outra estimativa considera que
(Março de 1917) as forças britânicas sozinhas recrutaram
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