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Armistício
Grande GRANDES REPORTAGENS 2014
Guerra
IMPRENSA
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Grande Guerra • Grandes Reportagens
ÍNDICE
A Grande Guerra que Portugal quis esquecer
Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Palma, Norte de Moçambique
LER ARTIGO
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A última derrocada
Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Negomano
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N
o dia 26 de Junho o primeiro-ministro de Portugal foi ao cemitério
militar de Richebourg, no Norte da França, “prestar a nossa
homenagem colectiva” aos soldados que morreram na Primeira
Guerra Mundial. Se em vez de ter escolhido o palco europeu da
guerra e optasse pelo cemitério de Palma ou o ossário de Mocímboa
da Praia, no Norte de Moçambique, dificilmente Passos Coelho teria
condições para manifestar o “respeito e sentimento de enorme orgulho”
que o país supostamente “tem por todos aqueles que se sacrificaram
ao serviço da nação”. Porque nesses lugares remotos não encontraria
cemitérios com cruzes brancas, alinhadas e conservadas, a recortarem
o verde da paisagem. Descobriria sim lápides a emergirem entre o lixo
que alimenta galinhas e cabras, tumbas engolidas pelo avanço da selva,
túmulos profanados com os restos dos esqueletos dos combatentes
expostos ao ar, campas onde só com esforço se consegue ler o nome
dos que morreram em Quionga, em Negomano ou no território dos
Macondes, nas margens do rio Rovum.
O historiador Marco Arrifes escreveu que “o soldado desconhecido
de África é bem mais desconhecido que o da Flandres” e desde os dias
da guerra até hoje não faltam argumentos para comprovar a sua tese.
Em África combatia-se, de acordo com a ideologia e o direito da era
colonial, pela defesa do território nacional. Em África, principalmente
no norte de Moçambique, morreram mais soldados portugueses do que
nas trincheiras da Flandres, não tanto pelo efeito das balas mas mais por
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Grande Guerra • Grandes Reportagens
Abdel Carlos John junto ao túmulo de um soldado alemão cuja cúpula, garante, foi derrubada por um elefante
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Pormenor da placa de monumento em Namoto com a inscrição: “As ossadas dos combatentes que aqui se
encontravam foram removidas em 1956 para o Ossário de Mocímboa da Praia inaugurado aquando da visita a
Palma de Sua Excia o Presidente da República General Francisco Craveiro Lopes”
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Mulher transporta na cabeça utensílios domésticos nas margens do rio Rovuma em Negomano, Cabo Delgado
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Velho forte alemão de Nevala, na Tanzânia, que os portugueses ocuparam durante um mês
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teatro de operações. E, como se tudo isso não bastasse, foi ainda por
vezes agravado com a intervenção, nem sempre oportuna, de poderes
superiores aos Comandos das expedições na direcção das operações, e
com o fraco apoio que, também por vezes, foi dado a estes Comandos
pelo Governo central”.
Alguns dos soldados e oficiais que resistiram às agruras das campanhas
africanas elevaram o tom das críticas, publicando as suas memórias nos
anos finais da Primeira República. Na maior parte dos casos são relatos
vívidos, pungentes, mais destinados a celebrar o milagre da sobrevivência
do que em analisar as causas da incompetência do comando. São livros
que nos falam dos hábitos dos indígenas, que relatam o sofrimento das
grandes caminhadas, que descrevem os horrores da fome e da sede,
que situam as bases ou os campos de batalha, que narram detalhes do
quotidiano dos bivaques ou dos acampamentos dos indígenas. Há nesses
relatos vontade de denunciar, mas é mais fácil encontrar palavras contra
os hábitos dos negros ou contra os monhés (indianos) do que contra os
oficiais ou contra os políticos.
Ainda que o volume de obras memorialísticas da guerra em
Moçambique seja muito inferior às que se escreveram a partir da
experiência na Flandres, as suas narrativas são cruciais para se perceber o
que aconteceu aos cerca de 20 mil soldados que o Governo da República
enviou para travar os alemães (em Angola, onde os conflitos duraram
apenas entre 19 de Outubro e 18 de Dezembro de 1914, o número de
praças europeias ascendeu a 13 mil). Américo Pires de Lima, um médico
do Porto que se viria a destacar como professor universitário e como
criador do Jardim Botânico que ainda hoje existe na Rua do Campo
Alegre, deixou-nos uma ideia brutal do efeito que as doenças tropicais
provocaram nas expedições baseadas em Palma e em Mocímboa da Praia,
entre 1916 e 1917. Carlos Selvagem e António de Cértima relataram com
detalhes a marcha pela actual Tanzânia que culminou com a conquista e
abandono do forte alemão de Nevala. Cardoso Mirão, Ernesto Moreira dos
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fio do Norte, até que há três anos o seu neto Armando Jacinto, um coronel
na reserva, a descobriu num baú – seria revelada em primeira mão
pelo PÚBLICO em Outubro de 2011 e entretanto publicada pela Câmara
Municipal de Espinho.
Com o Estado Novo, o processo de apagamento da memória avançou.
As derrotas da Primeira Guerra em África seriam anotadas como um
acidente de percurso, causado pela República jacobina, impreparada e
carente de sentido patriótico. Os valores do nacionalismo ou a glória do
Império coexistiam mal com as derrotas de Namoto ou Negomano. Os
mitos africanistas de Mouzinho de Albuquerque não se podiam associar
à tragédia de Nanguar ou da Serra Mecula. Craveiro Lopes, Presidente
da República entre 1951 e 1958, foi ainda capaz de visitar alguns dos
lugares do conflito em 1956, mandando recolher os restos mortais dos
soldados dispersos por vários campos de batalha e transladando-os para
Portugal ou para um ossário construído de propósito em Mocímboa da
Praia – hoje ao abandono. Mas esse seu gesto fez-se mais por um desígnio
pessoal do que pelo imperativo de moral pública. Craveiro Lopes fora um
alferes que, aos 23 anos, fizera parte da Coluna de Massassi e participara
na conquista de Nevala, em Outubro/Novembro de 1916. A sua bravura
na defesa do fortim conquistado aos alemães pelo curto prazo de uma
semana tinha-lhe merecido uma Cruz de Guerra. Era natural que um
militar que vivera as agruras da guerra na selva africana se preocupasse
em homenagear os que nela pereceram.
A guerra colonial regressaria a muitos dos lugares por onde andaram
os soldados portugueses de há cem anos. Francisco Dinis esteve em
Negomano até 1974 mas não se recorda de ter ouvido falar da batalha que
lá se travara 57 anos antes. Muitas das localidades que serviram de bases
aos soldados das quatro expedições entre 1914 e 1918 seriam usadas pelas
tropas coloniais que combateram a Frelimo quatro décadas mais tarde.
Muitos dos eixos de penetração da guerrilha foram muito antes abertos
pelas incursões alemãs. Entre estas duas gerações há, por isso, memórias
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A guerra inevitável
nas colónias portuguesas
No mês de Julho, o rio Rovuma, que faz a fronteira com a actual Tanzânia,
torna-se um pequeno regato fácil de cruzar
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uando a seca se acentua no Norte de Moçambique, lá para o mês
de Julho, o rio Rovuma que faz a fronteira com a actual Tanzânia
torna-se um pequeno regato fácil de cruzar e foi esse detalhe da
natureza que ditou a tragédia que se abateu sobre Maziúa naquela
noite de 24 de Agosto de 1914.
Maziúa era um pequeno posto administrativo esquecido nos confins
da selva do Niassa, e assim permaneceria, distante e ignorado, se numa
decisão inesperada os alemães não o tivessem arrasado sem aviso prévio.
Formalmente, Portugal e Alemanha não estavam em guerra (o que
viria a acontecer em Março de 1916); que se saiba, não houve nenhum
acto de provação da pequena guarnição do posto, comandada por um
sargento enfermeiro; seguramente, a existência de meia dúzia de homens
perdidos no mato, mal alimentados e desligados de qualquer estrutura
operacional, estava longe de ser uma ameaça fosse para quem fosse.
Ainda assim, nessa noite, um destacamento militar baseado na colónia
alemã da África Oriental atravessou o rio a vau e, num ataque surpresa,
massacrou a pequena guarnição de um sargento e meia dúzia de polícias
indígenas e incendiou as precárias instalações de Maziúa – há relatos que
apontam apenas para a morte do sargento. Documentos revelados no
pós-guerra dão conta de que a operação foi pensada e autorizada pelo
governador alemão da África Oriental Alemã, Heinrich Schnee.
Quando a notícia chegou a Lisboa, o país indignou-se. Ouviram-
se os protestos do costume, o Governo pediu explicações, os ardores
nacionalistas da ideologia republicana exercitaram-se. Semanas depois, o
país acalmou com pedidos de desculpa e esqueceu o incidente no meio de
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em estátuas ou na toponímia
das cidades. Serpa Pinto,
Pereira de Andrada, Victor
Córdon, António Maria
Cardoso, João Azevedo
Coutinho, Caldas Xavier,
Alves Roçadas, António Enes
e, acima de todos, Mouzinho
de Albuquerque tornaram-
se os novos símbolos de uma
gesta que sublimaria em
África o drama de uma nação
falida e descrente.
O continente fatiado
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Documentos revelados no pós-guerra dão conta de que a operação foi pensada e autorizada pelo governador
alemão da África Oriental Alemã, Heinrich Scnee, DR
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A turbulência na República
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Manuel Carvalho
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arlos Tavares de Andrade Afonso dos Santos ficou conhecido na
história da literatura portuguesa com o pseudónimo de Carlos
Selvagem, mas nos primeiros dias de Junho de 1916, quando era a
hora de recolher à sua camarata do vapor Moçambique que o levava
para a guerra na fronteira do Rovuma, no Norte de Moçambique, a sua
identidade literária soava a falso. Selvagem ficava perturbado e sensível.
Na escuridão do navio, na solidão do mar, rodeado por mais de mil almas
que entre a ignorância e o enjoo não tinham a mais breve ideia do que os
esperava, não conseguia fugir ao vazio, ao medo e à saudade. E chorava.
“Na escuridão, por pudor, pode livremente chorar-se, em silêncio, com
uma volúpia amarga. E chora-se, chora-se, mansamente, por muito
tempo. O que será de nós, em alguns meses?!...”
Desde tempos imemoriais que a resistência ao recrutamento e a fuga
à guerra insiste em contradizer as declarações grandiloquentes sobre
o patriotismo e a coragem. Assim foi na primeira Guerra Mundial e por
maioria de razão. A começar pelo estado do próprio exército, que era
calamitoso. Até 1910, uns 15 % de alistados eram refractários, o que
junto com as “sortes”, que poupavam uns poucos do serviço militar, e
“as remissões”, que subtraíam os filhos dos mais ricos à tropa, reduzia
o universo de recrutamento a 47% dos jovens masculinos. A República
acaba com esse modelo, quer um “exército da Pátria”, uma força
de milicianos, na qual o serviço militar seria obrigatório e onde não
haveria lugar a “remissões”. Mas, a que exército poderia aspirar um
país falido e mergulhado na convulsão de um regime revolucionário,
que ora perseguia o clero, ora “rachava” os sindicalistas que
organizavam greves?
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Para a maioria, África era uma abstracção e a defesa da pátria uma ideia
vaga. “A palavra Portugal ainda os emociona e enternece. A ideia Pátria,
porém, não lhes perturba as digestões nem o funcionamento regular do
sistema circulatório”, apontaria Carlos Selvagem. No caos da República,
não houvera tempo nem para lhes preparar a moral nem sequer para
os instruir com as armas. Na segunda expedição, as tropas aquarteladas
em Mafra, onde recebiam treino militar, rebelaram-se e como castigo a
sua partida para o ultramar foi antecipada. As consequências da falta de
educação militar foram trágicas e não passaram ao lado da atenção dos
contemporâneos. Uma parte do regimento 21 de Infantaria, punido com o
envio para África, chegou a Moçambique em Setembro de 1916, mas “em
meados de Janeiro um terço do seu efectivo estava absolutamente incapaz
de qualquer serviço”, denunciava o deputado Tamagnini Barbosa nas
sessões secretas da Câmara dos Deputados e do Congresso de Julho de
1917, dedicadas a debater a participação de Portugal na guerra.
Na expedição de 1917 “seguiram telegrafistas sem saberem ler nem
escrever. Artilheiros desconhecedores do material, infantes sem
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Palma é uma pequena localidade que, entre Abril de 1916 e Junho de 1917, foi o epicentro das operações
do exército português no Norte de Moçambique
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a entrada do cemitério de Palma há uma lápide que, por milagre,
ainda emerge entre o lixo e o mato. Indica o lugar onde foi
enterrado o tenente miliciano Francisco Luiz D’ Abreu Amorim
Pessoa, morto na manhã de 27 de Maio de 1916 quando as tropas
portuguesas tentaram pela primeira vez atravessar a fronteira do rio
Rovuma e invadir o território da África Oriental Alemã.
Naquele cenário de abandono, ingratidão e sujidade, a lápide
que atesta a “saudade eterna” da sua mulher Emília parece um acto
premeditado de resistência da memória de Palma. A pequena localidade
que, entre Abril de 1916 e Junho de 1917, foi o epicentro das operações
do exército português no Norte de Moçambique foi apagando ao longo
dos anos todos os sinais que registou Primeira Guerra. Hoje resta esse
cemitério transformado em lixeira e pasto de cabras e galinhas, rodeado
de palhotas, a dez metros de uma praia de coqueiros, no qual apenas a
sepultura do tenente miliciano que nasceu em Soure continua em pé.
Martins Ibrahimo Musse lembra-se do tempo em que o cemitério estava
cercado de um muro alto regularmente caiado e tem ainda bem presente
na memória os dias em que alguém lhe arrancou o portão de ferro e abriu
o seu interior aos despojos e aos animais. Da sua casa, mesmo em frente
à entrada do cemitério, viu a mobilização de homens e de máquinas que
em 1972, de acordo com a sua memória, removeram os restos mortais
dos soldados da Primeira Guerra e os transportaram para lugar incerto.
“Só ficaram as duas filas da frente”, diz Martins. Desde então que este ex-
combatente do exército colonial vitimado por uma mina que rebentou em
Nangade, em 1972, e o remeteu para uma cadeira de rodas partilha com
o cemitério e com os restos mortais de Francisco Luiz D’ Abreu Amorim
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As primeiras ofensivas
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O lugar onde foi enterrado o tenente miliciano Francisco Luiz D’ Abreu Amorim Pessoa
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Reforços a caminho
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À procura do inimigo,
do outro lado do rio
Nesta estação, na maré alta, há uma ou duas viagens por dia num ferry que transporta, no máximo,
três automóveis e um camião em cada um dos sentidos da fronteira
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uem passasse pela proximidade da foz do rio Rovuma na noite de
18 de Setembro de 1916 poderia avistar um dos mais imponentes
aparatos militares que o exército português alguma vez organizou
na sua longa presença em África.
Junto a Quionga, concentravam-se nessa madrugada de maré baixa
e luar ténue 120 oficiais e 4060 homens. A sua capacidade de fogo
apoiava-se numa linha de 2682 espingardas, 10 metralhadoras, 12 peças
de artilharia de montanha e um canhão de marinha que fora arrastado a
custo pelo mato e pelo capim até ao planalto de Namoto. Uma vez mais, as
tropas portuguesas tentavam a invasão do território alemão do outro lado
do rio, depois da travessia falhada de 27 de Maio.
O comando das operações estava disposto a conquistar a outra margem,
custasse o que custasse. Agora, e ao contrário do primeiro ensaio, as
forças estavam centradas num único ponto. Não haveria dispersão de
tropas, para além das que integravam a Coluna Negra, preparada para
atravessar o rio em frente a Nhica, 40 quilómetros a montante; não haveria
o risco de ensaiar a passagem em barcos que se tornavam alvos fáceis
para as metralhadoras alemãs; não haveria arraiais nocturnos nem outras
imprevidências capazes de despertar o inimigo. O general Ferreira Gil tinha
muitas dúvidas sobre as condições de combate daquela tropa, mas no que
estava ao seu alcance tudo faria para apagar da memória da derrota de
Namaca com uma vitória como a da conquista de Quionga.
Até chegar àquele dia, a tropa da terceira expedição a Moçambique
passara dois meses de vida calma. Alguns soldados arrancados às leiras
do Minho ou às serras da Beira encontravam-se isolados em postos
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remotos instalados nas margens do rio que faz fronteira com a Tanzânia
ao longo de 730 quilómetros. A maioria, porém, aborrecia-se sob o calor
abrasador de Palma ou lutava por sobreviver aos frequentes ataques de
paludismo ou disenteria. O fracasso da tentativa de atravessamento do rio
em 27 de Maio deixara marcas no moral. Era preciso ter calma. O corpo
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Forte de Nevala
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Na maré baixa, centenas cruzam a vau as zonas menos profundas e de bote nos curtos trechos de maior caudal
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A 14 de Setembro, o jornal Star de
Apesar de alguns os Joanesburgo tornava pública uma
A passagem
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por três colunas e uma coluna de reserva, passaria o rio a vau ou,
num segundo momento, em jangadas construídas pelas equipas de
engenharia militar. Uma vez na outra margem, todas as colunas se
deveriam juntar em Migomba, em frente de Namoto.
Com a excepção de uma breve troca de tiros na zona de travessia da
Coluna Negra, tudo decorreu na mais perfeita quietude. A tão temida
travessia do Rovuma, que teve lugar no dia 19 de Setembro de 1916, não
passou de “um passeio de recrutas para experiências de heroicidade”,
como ironizaria António de Cértima.
“Nem um tiro heróico, nem um boche
Governo sabe que para troféu da conquista. Apenas
V. Exª já tem à sua meia dúzia de negros, uma peça do
disposição meios de Konigsberg [navio de guerra alemão
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A fotografia do líder nacionalista Julius Nyere gasta pelo tempo foi esquecida numa esquina
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A
fotografia do líder nacionalista Julius Nyerere gasta pelo tempo foi
esquecida numa esquina. Por cima de uma porta ficaram umas
algemas. Espalhados pelo chão foram deixadas folhas soltas de
autos policiais escritos em suaíli. O espectro de ruína que ameaça
o velho forte alemão de Nevala é uma boa sugestão para se imaginar a
sensação de abandono, desesperança e agonia que mais de um milhar de
soldados portugueses ali sentiram nos dias de cerco que durou entre 22 e
28 de Novembro de 1916.
Salehe Saidi Mawazo, 84 anos, diz que o “boma” (forte) foi construído
“por volta de 1893 para defender a cidade dos portugueses”, instalados
para lá do rio Rovuma, que se avista a uns 40 quilómetros de distância.
Salehe, o sábio da pequena cidade, nunca ouviu falar da sua conquista
pelos portugueses. Na sua memória, a dominação alemã que acabaria
em 1918 começa e acaba com a “brutalidade”, os “trabalhos forçados”,
a insistência “num governo pela força”. A curta passagem de 1800
portugueses por Nevala não se incrustou na tradição oral, mas haveria
de dar origem a uma das mais exuberantes manifestações de euforia e
depressão de toda a Grande Guerra na África portuguesa.
Entre 26 de Outubro e a madrugada chuvosa de 28 de Novembro de
1916 Nevala foi um símbolo da glória, do heroísmo, do valor da gesta
portuguesa. Duas colunas de soldados tinham conseguido atravessar
o Rovuma, foram capazes de bater a resistência alemã no seu próprio
território, subiram à serra de Nevala e conquistaram o seu forte. Para
um exército desmoralizado, doente, sem equipamento adequado,
atacado pela ausência de linhas de abastecimento que lhe garantisse
água e comida, a façanha merecia as homenagens e os elogios que
se ouviram e leram nas galerias do Parlamento, nos salões da gente
culta de Lisboa e do Porto ou nas páginas dos jornais. Um mês bastou
para que essas ilusões de glória efémera se desfizessem e Nevala se
transformasse na derrota que destruiu o maior e melhor equipado
contingente português enviado para África em toda a o conflito.
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Transporte de água e refrigerantes no ferry que atravessa o rio Rovuma de Kilambo, Tanzânia,
para Namoto, Moçambique
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O pesadelo em Mahuta
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Por cima de uma porta ficaram umas algemas. Espalhados pelo chão foram deixadas folhas soltas de autos
policiais escritos em suaíli. Em cima, a fotografia do líder nacionalista Julius Nyerere gasta pelo tempo
foi esquecida numa esquina
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as suas pardas muralhas, sua fiada de janelas, seu mastro esguio onde
arrogantemente drapejavam já na aragem matinal as cores da bandeira
alemã – vermelha, branca e negra”.
Descoberto o acampamento, o alferes procura o acampamento do
coronel Azambuja e recebe uma descompostura. “Não era por ali que nos
esperavam, mas sim pelo leste, pelos caminhos do planalto”, como rezava
a ordem do quartel-general em Palma. No dia seguinte está de regresso
com novas ordens. Pelo caminho tem de resistir a uma emboscada alemã.
O soldado José dos Santos Calhau é morto com um tiro na nuca. Prossegue
e ao chegar ao acampamento toma consciência do estado das tropas. Em
vez de uma coluna, o que ele vislumbra
é um bando de maltrapilhos. Após mais
Para Lisboa, a um dia de marcha intensa sem água nem
conquista de Nevala comida, a coluna deixara-se adormecer
seria por breves “no mais suave dos entorpecimentos”,
“sem uma sentinela, sem o menor
semanas o zénite
cuidado, como se deve dormir na mão
do brilho da jovem de Deus”. Outro dos participantes
República dessa odisseia, António de Cértima
afirmou mais tarde que o comandante
da coluna, capitão Liberato Pinto, “não fazia ideia onde se encontrava,
não se preocupando por isso com a disciplina da marcha nem com as
consequências que poderiam advir desta falta de critério militar”.
Com o frio da madrugada, a tropa desperta do sono retemperador
e põe-se de novo em marcha. O outro elo da ofensiva estará perto.
Às dez da manhã chegava à Ribeira de Nevala após uma semana de
etapas. De imediato, Azambuja refaz os seus planos. Gorado o plano
de ataque em pinça, três colunas sitiariam a fortaleza, mas antes lança-
se um apelo à rendição dos alemães. A resposta é um violento ataque
de artilharia que gera o pânico entre os portugueses. Um soldado em
transe grita pela “mãezinha”. O alferes Selvagem pergunta-lhe se estava
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ma ironia cruel da natureza, ou do destino, fez com que chovesse
em Nevala na noite de 29 de Novembro de 1916. Em torno do
pequeno fortim instalado no cimo de uma escarpa voltada para
a selva que segue até às margens do Rovuma, muitas centenas de
soldados portugueses resistiam há uma semana ao cerco que os alemães
haviam montado. Após “oito negros e amargurados dias”, na descrição
do alferes Carlos Selvagem, a fome e a sede começavam a entupir as
trincheiras de cadáveres. Todas as tentativas do quartel-general, a 200
quilómetros de distância, para romper o cerco tinham fracassado.
“Nada havia a esperar, pois. Nem mais uma noite na fortaleza maldita”,
desejava o alferes António de Cértima, autor da memória Epopeia
Maldita. Estava na hora de abandonar Nevala. Na noite escura de 29
de Novembro, quando os soldados se preparavam para a fuga, choveu
finalmente e os soldados puderam mitigar a sede acumulada há dias.
Mas era tarde de mais para ficar.
A saga dessa noite dava matéria suficiente para um sem número de
ensaios, de novelas e de filmes. Por horas viveu-se a angústia do medo
e a euforia da libertação, o desejo de abandonar o forte e a ansiedade
sobre o que se esconderia pelo caminho, a necessidade de matar a fome
e o risco de entrar num território desconhecido onde nada houvesse
para comer. Do forte de Nevala avista-se, ao longe, o vale do rio Rovuma,
onde haveria água e, na margem sul, bases do exército português onde
se poderia sobreviver. Mas para os soldados habituados a três meses de
caminhadas pela selva esse cenário estava longe de ser uma garantia e
ainda menos um conforto. O manto verde e impenetrável que se estende
por detrás do forte, a selva dura de África, é tão belo como enigmático,
tão exuberantemente colorido como ameaçador.
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A Quivambo figura entre os lugares do heroísmo português na gigantesca estátua dedicada aos soldados
que morreram na Primeira Guerra Mundial em Moçambique que ainda hoje se encontra em Maputo, mesmo
em frente à velha estação de caminhos-de-ferro
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Objectivo: Masasi
Quem visse esses homens poucas semanas antes não teria dificuldades
em imaginar o que os esperava. Um mês de marchas forçadas pela selva
desde que, a 19 de Setembro, tinham atravessado o Rovuma e pisado
o solo da colónia alemã da África Oriental, que na altura abrangia a
região dos Grandes Lagos e o Tanganica, tinham arrasado as tropas.
Uma semana depois de terem dominado o forte, que tacticamente
fora abandonado pelos alemães, as baixas por doença assumiram uma
proporção assustadora. Sete dias bastaram para que todos os oficiais do
Estado-Maior tivessem de retirar para a base, em Palma, com problemas
de saúde, deixando o comando temporariamente entregue a Torre do
Vale. António de Cértima notava que “os contingentes tinham-se reduzido
assombrosamente. A infantaria branca apresentava um efectivo de 22
espingardas; a negra de 300, aproximadamente”.
A 4 Novembro, o general Ferreira Gil, comandante da expedição, envia
um telegrama para Lisboa avisando que “o estado de saúde das tropas
é péssimo”, pelo que as “operações terão de interromper-se em fins de
Novembro”. Em Lisboa, porém, as prioridades militares do momento
colocavam a frente do Rovuma numa linha remota de prioridades. A
preparação dos primeiros embarques do Corpo Expedicionário Português
para as trincheiras da Flandres, que aconteceriam daí a dois meses (a 30
de Janeiro de 1917), era nesse momento o foco das atenções do Governo
e das altas patentes de Lisboa. Não haveria reforços tão cedo. A 15 de
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Travessia do Rovuma
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Rio Rovuma
lhe conta das dificuldades em criar uma força capaz de avançar no terreno
difícil da actual Tanzânia. Lembrou-o que o Inverno estava à porta e que,
após as chuvas, Nevala ficaria isolada, entregue à sua sorte, impossibilitada
de receber o que quer que fosse de Palma. As memórias dos que
participaram nesse dilema garantem que o major não dormiu nessa noite.
Mas as ordens são para cumprir e a 8 de Novembro, por volta das quatro
da manhã, pouco antes do nascer do sol na África tropical, a coluna parte
para Masasi. Seriam uns 23 oficiais, 347 praças europeias e 399 indígenas,
com 330 carregadores, 486 espingardas, quatro metralhadoras e duas
peças de artilharia. “Um punhado de maltrapilhos agarrados na véspera ao
acaso, sem discussão, sem recusas e, cegos pela vontade férrea do chefe,
electrizados pela sua grande alma, acompanhando-o como escravos”, na
descrição sempre cínica de António de Cértima.
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O assalto ao forte
O consolo, porém, era pouco. Sabia-se que os alemães estavam cada vez
mais perto do forte. No mesmo dia da emboscada de Quivambo, tinham
atacado o posto de Mahuta, onde uma forte resistência lhes causou 17
baixas, entre as quais dois soldados europeus. A proximidade era prova
que o limite da missão da Coluna de Masasi tinha ficado circunscrito
a Nevala. Por enquanto, ao menos. Von Lettow-Vorbeck, o genial
comandante alemão, investe tempo a recompor as suas tropas, perdidas
em destacamentos algures no interior planáltico do Tanganica. As suas
sucessivas missões de reconhecimento traçam um retrato do poder
de fogo dos portugueses. De acordo com as memórias de guerra dos
alemães, haveria 500 homens em Mahuta, entre 300 e 400 no interior
do forte, 800 junto à ribeira de Nevala, onde havia também artilharia,
calculavam os seus espiões.
No dia 19, o novo comandante da coluna, o major Aristides Cunha, está
em Quivambo e apercebe-se que, do lado alemão, algo de importante
está para acontecer. Regressa célere a Nevala e prepara-se para o pior.
Na madrugada do dia 22, os alemães estão nas imediações do forte. “O
círculo fechou-se num anel de fogo, crepitante, raivoso, feroz. Enfim,
estávamos cercados”, constataria António de Cértima. Para começar,
os alemães deram o mesmo passo que os portugueses um mês antes:
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O pânico em Palma
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Office, a força dos alemães seria constituída por “apenas 300 espingardas”.
Talvez esta previsão fosse a mais correcta. Mas, mesmo sabendo que as
forças portuguesas seriam facilmente batidas apesar do seu número, os
alemães não atacaram. Por dificuldade de recursos, mas também pela
exaustão de um exército que andava há dois anos a vaguear pelo coração
do continente, em permanente combate com belgas, ingleses, sul-africanos
e portugueses. Quando o couraçado britânico Princess e mais dois navios
de guerra fundeiam na baía de Tungue, era improvável que um exército
que que sempre preferiu a guerrilha ao embate frontal ousasse atacar.
A 17 de Janeiro de 1917, uma nota da Presidência do Ministério,
publicada no Diário do Governo, notava que “num desses fluxos e
refluxos que tem sido a característica da guerra actual”, os portugueses
foram forçados a “ceder momentaneamente algum terreno” na colónia
alemã. Mas com o mesmo tom de irrealismo e propaganda de sempre,
o ministério da União Sagrada garantia que, “em breve, as nossas tropas
recuperarão todo o terreno que tiveram de abandonar por um incidente
de campanha, e farão novos avanços, batendo completamente os alemães
no seu próprio território, e hasteando ali, definitivamente vitoriosa, a
bandeira de Portugal”.
Contrariando esta visão idílica, em Palma dão-se graças pela presença
dos ingleses e fazem-se preces pela bondade da chuva. O inverno
torrencial dos trópicos em breve tornaria o Rovuma inultrapassável e
as estradas em rios de lama intransitável. A expedição estava salva. Ou
o que restava dela. “Frangalhos de sete a oito mil homens, mil contos
de material de guerra abandonado ao inimigo, a certeza melancólica
de decisivos reveses”, na descrição de Carlos Selvagem, era tudo o que
poderia levar na memória quando chegasse a hora de partir.
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Os soldados privados
do eterno descanso
Na baía de águas azuladas, ainda hoje há dezenas de pequenos barcos de vela triangular como os que
escoltaram os navios portugueses
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“D
ulce et decorum est pro Patria mori”. O verso de Horácio que atesta
a beleza e a nobreza da morte ao serviço da pátria dificilmente
poderia soar mais vazio e mentiroso do que na porta de
entrada no mausoléu em ruínas no cemitério de Mocímboa da
Praia, erigido pelo Estado Novo para perpetuar a memória dos soldados
portugueses que tombaram na I Guerra Mundial no Norte de Moçambique.
O mausoléu conserva ainda a imponência da estátua de uma figura
feminina que segura a espada com a mão direita e ampara um escudo com
as armas nacionais com a esquerda. Mas, no seu interior devastado pelo
tempo, pelo saque, pela natureza e pelo esquecimento, as tumbas onde se
encontram depositadas as ossadas dos soldados que caíram em Mocímboa,
em Quionga ou no território dos macondes são a prova de que nada, nem a
paz eterna, fez sentido naquela guerra. As pesadas pedras de mármore que
tapavam as sepulturas no interior do mausoléu foram arrastadas e restos de
fémures, de caveiras, de cúbitos assim ficaram ao ar, como testemunho do
abandono cultivado num país desmemoriado e ingrato.
Mocímboa da Praia é hoje uma pequena cidade instalada na coroa
de uma baía cruzada por barcos com as velas triangulares típicas do
Índico que há muito esqueceu o tempo em que acolheu a base da Quarta
Expedição das tropas portuguesas em guerra com os alemães na fronteira
do rio Rovuma. Já ninguém designa o promontório do norte da baía
por “Ponta Vermelha”, com os soldados portugueses faziam há cem
anos por comparação com o relevo similar que se encontra em Maputo.
Nenhuma das instalações militares construídas à pressa para receber as
tropas em 1917 resistiu à prova do tempo. Hoje, na sua parte alta e central,
Mocímboa continua a ser a cidade que os portugueses deixaram por
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Em 1955, construiu-se o mausoléu para acolher os restos mortais dos soldados dispersos por Quionga e pelos
territórios dos macondes
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No cemitério, o mato tomou conta das campas onde a custo se lêem o nome de colonos
ou de soldados que morreram em combate nas operações militares dos anos 60 e 70.
E, 30 anos passados, os ossários assim permanecem, com as pesadas tampas arrastadas,
com os esqueletos ao ar
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A morte no 31 do Porto
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Amisse Juma, olhos estranhamente claros e vivos, dono de um português de nível raro nestas paragens
as suas fileiras. Nessa altura, porém, o seu destino estava traçado. Como
acontecera na terceira expedição com 432 praças do regimento de
infantaria 21 e oito sargentos, as tropas do 31 foram muito provavelmente
transferidas para as Colónias nos termos do Regulamento Disciplinar.
Sousa Rosa, que comandaria as tropas portuguesas em Moçambique
depois de Setembro de 1917, lamentaria no seu relatório que os
contingentes que tinha ao serviço “eram mais elementos de perturbação
e indisciplina do que forças a aproveitar contra o inimigo”.
Chegados a Mocímboa, os soldados do regimento começaram a morrer
em catadupa. O médico Américo Pires de Lima, também ele do Porto,
tinha vivido o flagelo das doenças tropicais em Palma, tinha cuidado
de uma multidão de soldados famintos e arrasados moral e fisicamente
após a derrota de Nevala e tinha sentido o pânico que assaltou o Quartel-
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Na baía de águas azuladas, ainda hoje há dezenas de pequenos barcos de vela triangular como os que
escoltaram os navios portugueses
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Hoje, na sua parte alta e central, Mocímboa continua a ser a cidade que os portugueses deixaram por alturas
da independência: bem desenhada, com edifícios esbeltos e bem construídos.
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N
uma manhã de Setembro de 1917, o segundo sargento Cardoso
Mirão esquece-se por um momento dos leões e das hienas que
o atormentaram nessa noite passada no forte de Milange e, num
momento de improvável relaxamento, deslumbra-se a ler jornais
de Portugal que alguém lhe enviara por correio. Os jornais eram antigos,
muito do que lá se escrevera fora já sujeito à erosão do tempo e à vertigem
da mudança num país e numa Europa em guerra. Mas, para o sargento
Mirão, esse mundo retratado nos jornais fora das poucas oportunidades
que tivera nos últimos meses para escapar a um absurdo quotidiano de
privações e de caminhadas extenuantes. Mesmo velhos, as suas páginas
eram “como janela aberta de par em par sobre o céu azul e o jardim
florido da nossa terra”, escreveria.
Até Milange, no território do Niassa, o sargento que integrava a Coluna
do Lago tinha caminhado uns 700 quilómetros, sofrera o ataque das
febres, passara fome e sede, as suas botas estavam desfeitas e deixavam os
dedos negros do pó à mostra, percebera que toda aquela campanha que
mandou para o mato quase mil soldados carecera de estudo, de inteligência
e de sentido de utilidade, sentira na pele as desavenças no comando.
Algures entre o nada e lugar nenhum, sabia que a paragem naquele forte
era passageira, que seria necessário continuar a caminhar dias e dias em
direcção a um destino impreciso e sem sentido. A Coluna do Lago estava
condenada a ser o mais brilhante testemunho do absurdo e do fracasso
em que as campanhas militares em Moçambique na Primeira Grande
Guerra se tinham transformado. Essa odisseia chegaria até nós através
dos apontamentos que os sargentos Cardoso Mirão, o alferes José Teixeira
Jacinto e o sargento Ernesto Moreira dos Santos nos deixaram.
A sorte da Coluna do Lago começa no Porto, algures nos meses finais
de 1916. A 21 de Dezembro desse ano, o governador de Moçambique envia
um telegrama ao Governo no qual diz que, “em vista da doença das tropas
europeias, julga vantajoso recorrer ao emprego de tropas indígenas”, pelo
que serão necessários “quadros e material de guerra” para a criação de
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865751Coluna apeada de reabastecimento de géneros, entre Mocímboa do Rovuma e Negomano, em 1917 AHM
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localizar no mapa, mas que ficava nas margens de um rio cavado, que
foi atravessado pelas colunas a vau ou através de uma ponte de madeira
que deixou os nervos dos soldados em estado de sítio. O sentido da
marcha, para leste, indicava ainda assim um propósito. A Coluna do Lago
regressava ao território colonial português.
Todas as memórias coincidem em notar o estado de irritação do
capitão Melo e dos seus oficiais com este episódio. Fracassadas as
negociações com os ingleses, o comandante combina com um obscuro
administrador da Companhia do Niassa, Guerra Laje, a instalação das
tropas no forte de Milange. Aqui disporiam de tempo até reunirem
condições para avançar. Destino: a frente do Rovuma. A mais de 900
quilómetros de distância. E não sabiam como a percorrer. Instala-se
o conflito e a divisão entre os oficiais. O Governador de Moçambique,
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A barbárie em Maúa
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Metarica, uma etapa de seis dias, foi possível reparar que só com medidas
desesperadas se podia avançar. Os prisioneiros no posto de Maúa, 50
mulheres e 30 idosos, foram obrigados a servir como carregadores.
Algumas mulheres estavam grávidas e quando davam à luz ficavam
ao abandono. Os velhos, “verdadeiros esqueletos”, eram amarrados
à cintura em grupos de cinco e forçados a marchar por um soldado
irregular que os fustigava com um chicote de pele de hipopótamo.
Caminhavam até ao limite, acabando por ser deixados no caminho
quando se esgotavam. Quando a coluna indigente e esfarrapada chegou
a Metarica podemos imaginá-los com a visão que Carlos Selvagem teve
deles na missão do ano anterior: “Olho-os com piedade, angulosos, nus,
esquálidos, tiritando de frio debaixo dos pobres farrapos da manta,
aglomerados em rebanho nos seus cercados de capim, deslocando-se
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medo das feras e também de receio de passar pela região de Maúa em que
seriam mortos pelos seus habitantes como represália dos factos que se
haviam passado com as forças da Coluna”.
No caminho para Metarica a coluna perdera toda a aura de uma força
militar. O cansaço apoderara-se dos corpos, minara a organização,
desfizera a disciplina. A coluna espraiava-se por quilómetros de
extensão, numa marcha arrastada. “Mais do que vergonhosa, a minha
indumentária é ridícula”, registaria Cardoso Mirão. “Trago o chapéu
num bolo, a farda rota, os joelhos nus e as botas, o meu último par de
botas, de bocarras enormes, escancaradas, sem solas, sem palmilhas,
a mostrarem desalmadamente os dedos negros e sujos do pó”. Neste
estado de penúria, os soldados surpreenderam-se quando viram o que
os alemães haviam deixando para trás após a sua curta permanência
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O princípio do fim da coluna
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Tudo se desmoronou
em Negomano
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A
travessa-se o centro de Negomano, com a sua esquadra da polícia
e o seu posto administrativo a recordarem a persistência da
arquitectura colonial portuguesa, caminha-se em direcção às areias
do Rovuma e, à esquerda, um extenso campo aberto até onde o
rio Lugenda acaba o seu curso desafia-nos a imaginar o que ali aconteceu
entre as 10 da manhã e as três da tarde do dia 25 de Novembro de 1917.
Na pequena aldeia de muitas palhotas e poucas casas de alvenaria, as
memórias da guerra estão ainda presentes, mas não vão para lá de 1960,
quando Negomano se tornou a sede de um destacamento no qual umas
centenas de soldados do exército colonial resistiram a anos e anos de
ataques da Frelimo. Só Santos Salimo Mundogwan, de 61 anos, sabe que
ali, naquele triângulo plano formado pelo encontro de dois rios, teve
lugar uma das batalhas mais terríveis da Primeira Guerra Mundial no
Norte de Moçambique. Porque ele é o chefe de posto da aldeia e é o fiel
depositário das memórias do seu avô, o régulo Malunda, que há cem
anos sentiu na pele as agruras desses dias violentos que acabaram de vez
com qualquer possibilidade de os portugueses saírem de África com um
mínimo de dignidade.
Para a posteridade, Negomano seria para Portugal o que Alésia foi para
os gauleses de Astérix. Um lugar maldito, que convinha a todo o custo
esquecer. No campo aberto que Santos Salino Mundogwan nos mostra
houve em tempos uma placa a indicar que ali tinham sido sepultados os
oficiais e soldados portugueses que foram cercados e dizimados pelos
alemães até que alguém (não se sabe bem quem) decidisse acabar com o
martírio tocando o cornetim do cessar-fogo. Todos esses corpos seriam
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Santos Mundogwan ainda consegue apontar as linhas das trincheiras que o seu pai lhe revelou em criança
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ainda consegue apontar as linhas das trincheiras que o seu pai lhe revelou
em criança. Deste ponto, a curta distância da ponte que surge como uma
miragem entre duas estradas de terra batida para ligar Moçambique e a
Tanzânia (chama-se, simbolicamente Ponte da Unidade e foi construída
pelos chineses), não era difícil observar os movimentos das tropas
inimigas, na outra margem. Ali, não haveria qualquer possibilidade
de os portugueses serem apanhados sob o intenso fogo cruzado que
em escassas horas arrasou todas as tentativas de defesa da linha do
Rovuma. O efeito de tenaz, que os ingleses em perseguição dos alemães
acreditavam poder acontecer se essa linha defensiva resistisse, não
passaria de desenhos vagos nos mapas de campanha. Sob todos os pontos
de vista, Negomano foi apenas mais um exemplo de impreparação e
incompetência. Mas foi um exemplo que, do ponto de vista militar, teve
a mesma consequência que a saga-fuga de Nevala, em Novembro do ano
anterior: arrasou todas as expectativas de sucesso da quarta expedição de
tropas portuguesas para a Primeira Guerra no Norte de Moçambique.
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A memória dos soldados portugueses resiste na orla de uma praça onde todos os anos o governo da Frelimo
comemora “o massacre de Mueda”, o acontecimento de 1962 que serviria de rastilho à guerra colonial
não foi além de uma viagem inútil de três dias e de um susto perante a
proximidade de um leão que quase o surpreendeu. Mas nem a falta de
garantias absolutas sobre a veracidade dos rumores britânicos levou o
comando do major Feio Quaresma a tomar precauções. Pelo contrário.
Negomano era um campo de lazer.
Entretanto, os alemães estavam em marcha. Desgastada pelos
britânicos a Norte, a força comandada por von Lettow-Vorbeck tinha
decidido a 19 de Outubro mudar de estratégia, transferindo o teatro
operações para o território colonial português. A 20 Novembro descera
de Masasi e está em Nevala, a uns 100 km de Negomano. A 21 de
Novembro avança de Nevala para sul com as forças que restavam
dos seus corpos originais após o desgaste de dois anos de guerra
– restavam-lhes 300 europeus, 1700 soldados indígenas e 3000
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ou ingleses à sua espera, mas não era isso que mais o preocupava –
o comando de von Taffel andava perdido e perdera a ligação à sua
coluna havia dias. Cardoso Mirão, entretanto, estava prestes a chegar
a Negomano, após a sua missão inútil ao Unde. A alguns quilómetros,
a correria de nativos a que assiste alerta-o para o pior. Ao chegar ao
Lugenda, ouve tiros ao longe e vê negros
em fuga em direcção a sul. “Kimbia
A bala perdera- Vitá” (fugir à guerra), dizem, em pânico,
se no espaço e o “seminus, encostados ao grosso cajado
alferes, desvairado, de bambu, as mulheres mal cobertas
com uma rude serapilheira, de casca de
de olhar esgazeado,
árvore à volta da cintura, ajoujadas sob
mergulhava os dedos o peso dos seus poucos haveres, os filhos
crispados nos seus enrolados às costas, a manquejar sobre
cabelos negros e as duras de areia do leito descoberto
do Lugenda, todos em direcção a sul,
arrancava-os aos
pelo território do Niassa a dentro”. Logo
punhados, à procura depois, já nas imediações de Negomano,
dos seus soldados, é parado por “oito, 10, 15 askaris altos
da sua honra, da sua como barrotes e negros como carvões”,
que “surgiram das entranhas do mato,
vida. Estava louco
com os olhos a chamejarem ódio e os
Memórias de Cardoso Mirão
gestos a proclamarem guerra”. Foi
desarmado. Estava preso.
Os primeiros tiros tinham surgido da frente sul por volta das dez da
manhã. Camuflados da cabeça aos pés com camadas de capim, os askaris
eram uma força invisível. Os primeiros sinais de pânico são coincidentes
com as primeiras balas. “Acachaparam-se os cozinheiros, abandonando
as ‘mess’ e as cozinhas, e logo por todo o acampamento se espalhou o
cheiro acre e desagradável a refogado queimado”, recordaria Cardoso
Mirão. O major Teixeira Pinto tenta rumar contra a desorientação, chega-
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Após cinco horas de combate, o ameno campo que regista o cruzamento das águas do Lugenda com
as do Rovuma, tornara-se um desolador cenário de sofrimento e morte
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Os despojos de Negomano
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A última derrocada
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A
meio da tarde de 20 de Abril de 1918, um grupo de homens e
mulheres exaustos e andrajosos aproximou-se da linha de defesa do
comando militar português de Muirite, no Norte de Moçambique. À
cabeça da caravana que por esse momento integrava um impedido,
um cabo, 17 indígenas armados, três refugiados, as respectivas mulheres
e um guia estava o alferes José Teixeira Jacinto. Todos ficaram reféns.
Só o oficial seria autorizado a avançar até ao comandante do posto.
Para provar a sua qualidade de soldado da quarta expedição tinha uma
narrativa extraordinária para contar.
E começou: desde que as tropas alemãs começaram a desbaratar as
linhas defensivas portuguesas em Negomano, a 25 de Novembro de 1917,
nunca mais tivera contacto com os seus comandantes; que fora o único
oficial português a escapar incólume à razia alemã; que tinha conseguido
transferir a companhia que comandava nos Montes Macolos, na frente
ocidental, quase junto ao lago Niassa, para a base segura de Unango; que
se juntou às forças britânicas do coronel Clayton com as quais combateu
os alemães; que aí, semanas antes, soubera que as tropas portuguesas
estariam em Muirite; que, depois de entregar a sua companhia a outro
oficial, passou “19 dias pela floresta lutando pela vida” até ao limite, até se
poder apresentar aos seus superiores.
A vida errante de José Teixeira Jacinto pela selva do Niassa, pelas
escarpas de Nanguar, no caminho para os montes Macolos e no regresso
até ao conforto de uma base portuguesa durou dez meses e fez-se ao
longo de mais de 2000 quilómetros a pé. Quando chegou a Muirite, já as
tropas portuguesas se tinham transformado num apêndice das manobras
do exército inglês, que agora liderava o combate aos alemães instalados
bem no coração da colónia portuguesa. O que restava da expedição de
1917, a quarta que Lisboa enviou para a frente do Rovuma, acumulava-
se nos quartéis à espera do final das suas comissões de serviço. A
imprevidência, incapacidade e incompetência que soldados e oficiais
tinham mostrado transformaram-nos em mais do que num peso morto
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Grande Guerra • Grandes Reportagens
para a guerra em África: tinham sido até preciosos aliados dos alemães,
que com delícia se apropriaram de toneladas de armas, munições,
víveres, medicamentos e carregadores que os portugueses deixavam nos
campos de batalha onde foram derrotados.
Para José Teixeira Jacinto, o regresso a uma base portuguesa era
redentor. O que passara nos últimos meses raiava o limite da capacidade
de resistência. Nas suas viagens vira e vivera um pouco de tudo: penou
com a morte de companheiros, estarreceu-se com os corpos esventrados
após ataques de leões, passou fome e sede, assistiu e obedeceu a ordens
e contra-ordens de um comando desnorteado e incompetente, caçou
hipopótamos para comer e uma jibóia de seis metros e meio para lhe
guardar a pele, mandou pilhar comida aos indígenas, cavou trincheiras,
enterrou e desenterrou alimentos escondidos aos alemães e, no final,
manteve uma luta renhida com o Estado para reclamar o Colar da Ordem
da Torre e Espada pelo seu heroísmo em Moçambique que, por engano,
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fora entregue
a outro oficial.
Porque afinal ele
comandou a única
companhia que se
salvou da razia do
ataque alemão de
Novembro de 1917
e foi até capaz de
a guiar até uma
base inglesa onde
permaneceria em
campanha.
Quando a
Coluna do Lago
chegou a Nanguar,
em Outubro de
1917, Teixeira
Jacinto teve razões
para suspeitar
que o calvário
das caminhadas
pela selva iria
continuar.
Aí soube que
O Monumento aos Mortos de Negomano em Mueda passaria a ser o
comandante da 2.ª
Companhia Indígena da Beira, que treinara. E soube também que tudo
aquilo por que passara não entrava nos planos do seu novo comandante.
Na primeira reunião formal com os seus oficiais, o major Feio Quaresma
que acabara chegar do litoral a Nanguar, deixara um aviso sério e grave:
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O princípio do fim
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Bernard Guedes, que tinha ficado prisioneiro dos alemães na serra Mecula
e viria a ser Governador-geral na Índia nos anos 50. No final de Março
parte para a sua última grande travessia do território do Niassa com seis
carregadores, um 2.º cabo, dois soldados indígenas e um guia. Jacinto e os
seus companheiros percorreram nessa última etapa talvez 500 quilómetros
até Muirite. Como nas anteriores deambulações, o seu relato da viagem
está repleto de referências a momentos de fome, de cansaço, de desespero.
Foi encontrando pequenos pelotões de portugueses que o abasteceram, o
alimentaram e lhe permitiram saber, via TSF, que a guerra na Europa estava
a um passo do fim. Soube também que tinha sido promovido a tenente.
Enquanto Jacinto caminhava para leste, Von Letow dirigia-se para Sul.
Em Abril está de novo em Maúa, onde menos de um ano antes o alferes
Jacinto se horrorizara com o castigo imposto aos indígenas da região
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José Jacinto foi encontrando pequenos pelotões de portugueses que lhe permitiram saber, via TSF,
que a guerra na Europa estava a um passo do fim. Soube também que tinha sido promovido a tenente.
Aqui posto de TSF em Nacarute AHM
seu relatório. Dois oficiais e um sargento são abatidos. Onze oficiais são
prisioneiros. No dia seguinte, o combate, agora com von Lettow-Vorbeck
a comandar os alemães, foi mais equilibrado. Mas na madrugada do dia
3 de Julho de 1918 uma nova ofensiva desgasta as posições defensivas
dos aliados e, pela tarde, a artilharia alemã entra em acção. Gera-se o
caos. Portugueses e ingleses fogem em desordem para o rio, onde uns
100 soldados africanos e quatro europeus, entre os quais um tenente-
coronel britânico, morrem afogados. Uma vez mais, von Lettow-Vorbeck
sairia invencível. Como troféu, apreenderia em Namacurra equipamento
militar moderno, incluindo metralhadoras, umas 500 toneladas de bens
essenciais e até um vapor com abastecimentos que entretanto subira o
Licungo em socorro das tropas aliadas.
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