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100 anos

Armistício
Grande GRANDES REPORTAGENS 2014

Guerra
IMPRENSA

Manuel Carvalho e Manuel Roberto

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

ÍNDICE
A Grande Guerra que Portugal quis esquecer
Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Palma, Norte de Moçambique
LER ARTIGO

A guerra inevitável nas colónias portuguesas


Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
LER ARTIGO

Os “filhos espúrios” que a República


enviou para o Niassa
Manuel Carvalho
LER ARTIGO

O convívio com a morte na baía do Tungue


Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Palma
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Grande Guerra • Grandes Reportagens

À procura do inimigo, do outro lado do rio


Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Nevala, Tanzânia
LER ARTIGO

Nevala, um forte longe de mais


Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Nevala, Tanzânia
LER ARTIGO

Oito “negros e amargurados”


dias durou o cerco
Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Nevala, Tanzânia
LER ARTIGO

Os soldados privados do eterno descanso


Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Mocímboa da Praia
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Grande Guerra • Grandes Reportagens

A coluna dos penitentes


Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Mocímboa da Praia
LER ARTIGO

Tudo se desmoronou em Negomano


Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Negomano
LER ARTIGO

A última derrocada
Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)
Negomano
LER ARTIGO

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

A Grande Guerra que Portugal


quis esquecer

Ponte da Unidade que liga Moçambique à Tanzânia

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia), em Palma Norte de Moçambique

Na Grande Guerra de 1914-18, o exército português sofreu a


sua maior derrota em África desde Alcácer Quibir. No Norte de
Moçambique morreram mais soldados portugueses do que na
Flandres. Não tanto pela razia das balas alemãs. Mais pela fome,
pela sede, pela doença e pela incúria. Minada pela vergonha, a

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I Guerra em Moçambique acabou votada ao esquecimento. Não


tinha lugar numa nação que até 1974 sonhava com um império
ultramarino. Numa viagem de mais de 2500 quilómetros, o
PÚBLICO foi à procura dessa guerra sem rosto. Os cemitérios
dos soldados foram profanados ou são lixeiras, mas o milagre da
tradição oral conservou as suas memórias até hoje.

N
o dia 26 de Junho o primeiro-ministro de Portugal foi ao cemitério
militar de Richebourg, no Norte da França, “prestar a nossa
homenagem colectiva” aos soldados que morreram na Primeira
Guerra Mundial. Se em vez de ter escolhido o palco europeu da
guerra e optasse pelo cemitério de Palma ou o ossário de Mocímboa
da Praia, no Norte de Moçambique, dificilmente Passos Coelho teria
condições para manifestar o “respeito e sentimento de enorme orgulho”
que o país supostamente “tem por todos aqueles que se sacrificaram
ao serviço da nação”. Porque nesses lugares remotos não encontraria
cemitérios com cruzes brancas, alinhadas e conservadas, a recortarem
o verde da paisagem. Descobriria sim lápides a emergirem entre o lixo
que alimenta galinhas e cabras, tumbas engolidas pelo avanço da selva,
túmulos profanados com os restos dos esqueletos dos combatentes
expostos ao ar, campas onde só com esforço se consegue ler o nome
dos que morreram em Quionga, em Negomano ou no território dos
Macondes, nas margens do rio Rovum.
O historiador Marco Arrifes escreveu que “o soldado desconhecido
de África é bem mais desconhecido que o da Flandres” e desde os dias
da guerra até hoje não faltam argumentos para comprovar a sua tese.
Em África combatia-se, de acordo com a ideologia e o direito da era
colonial, pela defesa do território nacional. Em África, principalmente
no norte de Moçambique, morreram mais soldados portugueses do que
nas trincheiras da Flandres, não tanto pelo efeito das balas mas mais por

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Abdel Carlos John junto ao túmulo de um soldado alemão cuja cúpula, garante, foi derrubada por um elefante

causa da impreparação, da incúria, da fome e da sede, da loucura das


febres, do paludismo e da disenteria. Mas nem isso bastou para que a
Grande Guerra em África tivesse merecido a atenção que os historiadores,
os políticos e a generalidade da opinião pública devotaram ao Corpo
Expedicionário Português na Europa. Até hoje, as campanhas em África
permanecem envolvidas numa relativa aura de esquecimento colectivo.
Só muito recentemente uma nova geração de historiadores decidiu
desenterrar o tabu e verificar a dimensão da tragédia que aconteceu em
Angola e, principalmente, em Moçambique.
Numa viagem de mais de 2500 quilómetros pelas zonas remotas da
província de Cabo Delgado, na linha de fronteira do Rovuma ou já no
outro lado do planalto dos macondes, em território da Tanzânia, o
PÚBLICO foi à procura do que resta dessa guerra. Partimos de Pemba,

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a Porto Amélia dos tempos coloniais, subimos a Mocímboa da Praia e


a Palma, as bases das principais expedições das tropas nacionais entre
1916 e 1917; visitámos Quionga que fora ocupada pelos alemães em 1894 e
reconquistada sem um tiro em 10 de Abril de 1916; subimos a Namoto, na
margem do Rovuma; fomos a Mueda, símbolo do orgulho dos macondes
e lugar simbólico do início da Guerra
Colonial, atravessámos a estrada de
No final da guerra, quase 200 quilómetros de terra batida,
Gavicho de Lacerda, em plena selva, que a liga a Negomano,
administrador da onde as tropas portuguesas sofreram
uma pesada derrota em 25 de Novembro
Zambézia, dizia que
de 1917; cruzámos a fronteira através
o seu prazo tinha de uma ponte moderna, absurda, que
fornecido 25 mil liga duas picadas entre o nada e lugar
carregadores ao nenhum e subimos ao planalto dos
macondes do lado da Tanzânia para
exército e desses,
visitar o velho forte alemão de Nevala,
em 1919, havia que os portugueses ocuparam durante
ainda cinco mil por um mês; passámos em Mahuta onde
repatriar. Estavam uma emboscada a 4 de Outubro de 1916
tirou a vida a 32 soldados e regressámos
“em tal estado que
a Moçambique via Kilambo e Namoto.
fazia horrores olhar Ainda hoje as memórias da Grande
para eles” Guerra permanecem guardadas nessas
localidades pela tradição oral. Amisse
Juma, 76 anos, sabe identificar o lugar onde se instalou o quartel-geral
da quarta expedição, em Mocímboa da Praia. Martins Ibrahim Musse,
65 anos, sabe relatar as histórias dos soldados cujos restos mortais
permanecem no cemitério de Palma e lembra-se do dia em que muitos
foram desenterrados e transportados para Portugal. O mzê (senhor de
idade) Assani Abdel Remani Kimombo desconhece ao certo a sua idade

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mas consegue detectar entre o mato as trincheiras que em 1916 as tropas


portuguesas cavaram em Namoto para se defenderem das investidas
alemãs que partiam do outro lado do Rovuma; Abdel Carlos John é capaz
de abrir caminho entre a selva com uma catana para, a alguns quilómetros
da aldeia, nos levar ao túmulo de um soldado alemão cuja cúpula, garante,
foi derrubada por um elefante. E em Negomano, na fronteira entre o
Cabo Delgado e o Niassa, Santos Salimo Mundogwan, 61 anos, conserva
as memórias que o seu avô, o régulo Malunda, lhe transmitiu do terrível
combate que em 25 de Novembro de 1917 opôs portugueses e alemães
numa das orlas da sua aldeia, no preciso lugar onde o Lugenda se funde
com o Rovuma. Santos Salimo Mundogwan recorda-se até do nome do
major Teixeira Pinto, o comandante das tropas nacionais em Negomano
que perdeu a vida com os primeiros tiros do cerco alemão.

Ponte da Unidade que liga Moçambique à Tanzânia

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O regresso a esses lugares e a recuperação dessas memórias ajuda a


perceber o destino das expedições. Obrigadas a defender uma fronteira
com 720 quilómetros, tendo de cruzar um território muito maior do que
Portugal, num clima abrasador onde,
no Verão, a chuva potencia níveis de
Há nesses relatos humidade acima dos 90%, numa região
vontade de denunciar, sem estradas que obrigavam as colunas
mas é mais fácil a ter de abrir caminho entre a selva,
sujeitos a permanentes ataques de feras
encontrar palavras
e de enxames de mosquitos, os soldados
contra os hábitos dos portugueses foram sujeitos a uma missão
negros ou contra os impossível. Sem treino específico,
monhés do que contra sem equipamento ajustado aos rigores
os oficiais ou contra os do mato africano, sem linhas de
abastecimento que garantissem comida e
políticos água, sem medicamentos nem hábitos de
higiene, tornaram-se presas fáceis de um
exército alemão com menos homens mas liderado por um génio militar,
Paul Emil von Lettow-Vorbeck, cujas tácticas de guerrilha em movimento
inspirariam todo o curso da guerra não-convencional do século XX, de Che
Guevara a Nguyen Giap, de Amílcar Cabral a Samora Machel.
A zona do conflito, entre os rios Lúrio e o Rovuma, era visitada pelos
portugueses desde os princípios da expansão, mas a sua posse efectiva
só se consumaria em Fevereiro de 1887, quando o coronel Palma Velho,
governador de Cabo Delgado, conquista a baía de Tungue ao sultão
de Zanzibar. De face voltada para a Índia, mas culturalmente próxima
da esfera do Islão, a costa era nessa época, como hoje, um mosaico de
povos que viviam da pesca e da agricultura familiar. Mais para o interior
dominavam os macuas, a sul do Lúrio, e os macondes e, já nos limites do
Lago Niassa, os ajauas. Para os soldados portugueses, na sua esmagadora
maioria provenientes das aldeias do interior, o Norte de Moçambique

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Pormenor da placa de monumento em Namoto com a inscrição: “As ossadas dos combatentes que aqui se
encontravam foram removidas em 1956 para o Ossário de Mocímboa da Praia inaugurado aquando da visita a
Palma de Sua Excia o Presidente da República General Francisco Craveiro Lopes”

aparecia-lhes como uma terra inóspita, maldita, povoada de leões que


entravam noite dentro nos acampamentos e devoravam carregadores
indígenas ou doentes dos hospitais de campanha, de formigas carnívoras,
de gente que comia ratos dos arrozais e dançava em trejeitos hedonistas
noite fora em batucadas.
Toda a área de conflito tinha sido concessionada à exploração da
Companhia do Niassa, em 1890, mas a obra colonizadora desta entidade
tinha sido nula. Os seus métodos “eram tudo o que havia de mais simples:
nem escolas, nem missões, nem hospitais, nem estradas. A sua actividade
cifrava-se na cobrança dos direitos da alfândega e no m’soco”, o imposto
de palhota, constatou o médico Américo Pires de Lima na sua memória
Na Costa de África. Poder-se-ia pensar que a experiência militar dos

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portugueses em África, coroada com missões do tenente Valadim no


Niassa, onde morreu em combate em Janeiro de 1890, com a estratégia
baseada na violência dos “Centuriões” comandados por António Enes,
ou as façanhas de Mouzinho de Albuquerque na batalha de Marracuene,
de Chaimite, ou com a prisão de Gungunhana, em 1895, colocaria as
tropas portuguesas numa situação de vantagem face à curta vivência dos
alemães em África, que se tinham estabelecido na região dos Grandes
Lagos apenas em 1885. Puro engano.
Quando a primeira expedição comandada pelo coronel Pedro
Francisco Massano de Amorim, director militar das Colónias, chega a
Porto Amélia e desembarca do Durhan Castle, no dia 1 de Novembro de
1914, com 50 oficiais, 77 sargentos, 1400 soldados e 322 solípedes era
já possível perceber a dimensão do improviso. A falta de objectivos, a
ausência de preparação militar ou a carência de bens cruciais como
medicamentos iriam comprometer o esforço das tropas expedicionárias.
Massano de Amorim lamentaria mais tarde no seu relatório de campanha
o seu destino: “Sem caminho-de-ferro, que aqui é considerado um bluff,
sem linhas telegráficas, sem estradas, sem força militar… com ratoneiros
e bandidos em vez de polícias e sipaios, sem protecção de espécie
alguma aos indígenas… não é para admirar que à data de chegada da
expedição do meu comando aos territórios da Companhia do Niassa os
postos administrativos fossem uma vergonha, os militares uma irrisão,
a ocupação uma mistificação, a cobrança de impostos uma violência, a
subordinação do gentio uma utopia e a viação um esforço grosseiro”.
A expedição, baseada na actual Pemba, capital da província de Cabo
Delgado, passaria um ano em Moçambique dedicada a tentar suprir as
carências de mobilidade que comprometiam a acção de um exército
moderno, sujeito a deslocações de centenas de quilómetros com
toneladas de víveres e equipamentos. O seu legado para a expedição
que se lhe seguiu consistiu na instalação de uma linha telegráfica e na
construção de uma estrada que ligaria Porto Amélia a Mocímboa do

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Rovuma, com uns 450 km de extensão. Mas mesmo a permanência na


belíssima baía de Pemba, num ecossistema e num clima apesar de tudo
mais favorável que os de Palma ou de Mocímboa da Praia, não evitaram
que, de acordo com o historiador António José Telo, a expedição tenha
sofrido “21% de baixas por doença nos primeiros seis meses, sem entrar
em combate e mesmo sem sair de Porto Amélia”.
Nem esses dados alarmantes serviram de lição. Nada mudou na
preparação das expedições seguintes, que depois de Março de 1916
tinham de viver em estado de guerra declarada com os alemães. Pelo
contrário, a segunda e terceira expedições, com mais de seis mil soldados
da metrópole, acentuariam os erros da primeira. Numa das sessões
secretas da Câmara de Deputados e do Senado da República destinadas
a discutir a situação da guerra, que decorreram entre 11 e 31 de Julho de
1917, o líder do Partido Unionista, Brito Camacho, daria conta da lassidão
e negligência com que as missões eram preparadas: “Não é segredo para
ninguém que se têm mandado tropas para a África como se não mandam
reses para o matadouro”.

“A guerra dos outros”

Mais de 2000 soldados europeus mortos, uma derrota copiosa em


todas as frentes, a cedência aos ingleses do comando operacional após
o desastre do Verão austral de 1917: a linha de fronteira traçada pelo
curso do Rovuma tornou-se “o mais fantástico atoleiro da história militar
portuguesa moderna”, na opinião do historiador francês René Pélissier,
especialista no estudo do passado das ex-colónias portuguesas em África.
Cada relatório, cada fonte, militar ou civil, portuguesa ou alemã, oferece
visões desencontradas sobre os custos humanos da guerra entre os
soldados enviados da metrópole. Mas há nesta contabilidade um valor
aproximado, ao menos. O que se torna impossível em relação ao balanço
das vítimas entre a população local. Na Conferência de Paz, Portugal

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avançou com uma estimativa de 120 mil mortos entre os habitantes do


Norte de Moçambique, mas é provável que haja aqui algum exagero
destinado a inflacionar o valor da indemnização que se estava a pedir à
Alemanha.

Mulher transporta na cabeça utensílios domésticos nas margens do rio Rovuma em Negomano, Cabo Delgado

Certo é que morreram muitas dezenas de milhar de nativos


moçambicanos. Menos os que vestiram a farda do exército português
e integraram as companhias indígenas, muitos mais os que foram
capturados nas suas aldeias natais e obrigados ao trabalho forçado
de carregador. Carlos Selvagem, um alferes que integrou a terceira
expedição, em 1916, olhava-os “com piedade, angulosos, nus, esquálidos,
tiritando de frio debaixo dos pobres farrapos da manta, aglomerados
em rebanho nos seus cercados de capim, deslocando-se lentamente,

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em lentas filas de comboios, ajoujados sob os fardos que os esmagam,


e passivos, sonâmbulos, mecânicos, o olhar ausente, a face vaga, como
quem vaga no indefinido dum sonho remoto, duma remota visão de
palhotas e aldeias natais”.
No final da guerra, Gavicho de Lacerda, administrador da Zambézia,
dizia que o seu prazo tinha fornecido 25 mil carregadores ao exército e
desses, em 1919, havia ainda cinco mil por repatriar. Estavam “em tal estado
que fazia horrores olhar para eles”. Quantos terão morrido de fome, de
sede, de exaustão, de maus-tratos é impossível saber. Não faziam parte da
contabilidade administrativa do exército. “Não são homens porque não
têm nome; também não são soldados, porque não têm número. Não se
chamam, contam-se. Formam-se a varapau, põe-se-lhes uma carga à cabeça
e pronto”, lamentaria o sargento Cardoso Mirão, da expedição de 1917.
Ao infortúnio dos carregadores (só no ano final da campanha
foram recrutados 30 mil para apoio das tropas britânicas a operar em
Moçambique) junta-se a violência e as razias feitas por exércitos famintos
em marcha nos campos e armazéns dos aldeões. Com a presença do
exército no Norte de Moçambique, a Companhia do Niassa tratou
finalmente de cobrar impostos aos macondes, usando métodos que
arrepiavam até a sensibilidade dos soldados embrutecidos pela guerra.
“Um dia, em Mocímboa, vi chegar uma estranha procissão: à frente e
atrás, um sipaio [polícia indígena], no meio uma longa bicha de mulheres,
que foram metidas num redil de arame farpado. Surpreendido perguntei
a significação daquilo. Era a cobrança coerciva do m’soco [imposto de
palhota]. Como os pretos não pagavam, encarceravam as mulheres até
que os respectivos maridos, saudosos, as viessem resgatar pagando o
almejado m’soco”, lembraria Américo Pires de Lima, um alferes médico.
As sublevações indígenas, no Barué, perto da Beira, ou no planalto dos
macondes foram duramente reprimidas. No Norte de Moçambique, entre
Abril e Junho de 1917 foram incendiadas mais de 150 povoações maconde,
na contabilidade de René Pélissier.

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Moçambique e os moçambicanos foram sem dúvida as maiores vítimas


da guerra, mas nem isso motivou qualquer interesse entre a comunidade
académica sobre o tema. António Sopa, historiador moçambicano da
época contemporânea, explica este alheamento dizendo que a I Guerra
Mundial é vista como “uma guerra dos outros”. Sem fontes escritas,
com os arquivos militares e coloniais transportados para Lisboa, resta
a memória oral como objecto de estudo. Ou a ficção, fácil de prosperar
numa guerra entre europeus errantes pela selva. O escritor João Paulo
Borges Coelho recuperou esse tempo para escrever o romance que lhe
valeria o Prémio Leya de 2009, O Olho de Hertzog. E pouco mais.

Uma guerra ainda viva

Logo após o conflito, nos anos 20, os militares e a História ainda se


dedicaram a tentar perceber as razões para o desastre na guerra do
Norte de Moçambique. Outros fizeram-no em tom de ajuste de contas.
Foi o caso do general Gomes da Costa, que em 1918 comandou a última
expedição a Moçambique e teve a oportunidade de arrolar todas as
omissões e de compilar uma síntese de todos os erros cometidos.
Escreveu o militar que encabeçaria o golpe de 28 de Maio de 1926 sobre
o estado de impreparação das missões enviadas para Moçambique:
“Não se conhecem nem os recursos militares das colónias, nem os seus
recursos económicos, nem a sua topografia; nem há cálculos feitos para
a quantidade de víveres necessários para um dado número de homens;
nem estudo da ração mais própria; nem contratos ou combinações para
os fornecimentos a fazer com regularidade; nem fixação das formas de
acondicionamento; nem estudo dos nossos navios para se conhecer
o que cada um pode transportar em homens, animais e carga; numa
palavra, nada há feito, nada se sabe, para nada serve”. As campanhas
em Moçambique desenrolaram-se “sem objectivo, sem plano, sem
nexo, até à derrota”.

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Em 1926, uma Ordem do Exército que serviria de avaliação ao relatório


do comandante da terceira expedição, o general Ferreira Gil, acentuava
as responsabilidades dos políticos e desculpava os militares pelas perdas
materiais e humanas e pelas derrotas. “O estudo deste período da
campanha na África Oriental mais uma vez demonstra que as estações
superiores não puderam ou não souberam convenientemente preparar,
nem superiormente orientar a nossa intervenção militar nesse teatro
de operações. Em tudo se revela uma grande desorganização, a mais
completa ausência de previsão e de uma conveniente preparação, e
a carência de recursos em dinheiro e em material indispensável nas
campanhas coloniais, factores estes acrescidos com a falta de um plano
de guerra previamente estabelecido, onde tivessem sido fixados os
objectivos políticos e militares da nossa acção, como beligerantes, nesse

Velho forte alemão de Nevala, na Tanzânia, que os portugueses ocuparam durante um mês

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

teatro de operações. E, como se tudo isso não bastasse, foi ainda por
vezes agravado com a intervenção, nem sempre oportuna, de poderes
superiores aos Comandos das expedições na direcção das operações, e
com o fraco apoio que, também por vezes, foi dado a estes Comandos
pelo Governo central”.
Alguns dos soldados e oficiais que resistiram às agruras das campanhas
africanas elevaram o tom das críticas, publicando as suas memórias nos
anos finais da Primeira República. Na maior parte dos casos são relatos
vívidos, pungentes, mais destinados a celebrar o milagre da sobrevivência
do que em analisar as causas da incompetência do comando. São livros
que nos falam dos hábitos dos indígenas, que relatam o sofrimento das
grandes caminhadas, que descrevem os horrores da fome e da sede,
que situam as bases ou os campos de batalha, que narram detalhes do
quotidiano dos bivaques ou dos acampamentos dos indígenas. Há nesses
relatos vontade de denunciar, mas é mais fácil encontrar palavras contra
os hábitos dos negros ou contra os monhés (indianos) do que contra os
oficiais ou contra os políticos.
Ainda que o volume de obras memorialísticas da guerra em
Moçambique seja muito inferior às que se escreveram a partir da
experiência na Flandres, as suas narrativas são cruciais para se perceber o
que aconteceu aos cerca de 20 mil soldados que o Governo da República
enviou para travar os alemães (em Angola, onde os conflitos duraram
apenas entre 19 de Outubro e 18 de Dezembro de 1914, o número de
praças europeias ascendeu a 13 mil). Américo Pires de Lima, um médico
do Porto que se viria a destacar como professor universitário e como
criador do Jardim Botânico que ainda hoje existe na Rua do Campo
Alegre, deixou-nos uma ideia brutal do efeito que as doenças tropicais
provocaram nas expedições baseadas em Palma e em Mocímboa da Praia,
entre 1916 e 1917. Carlos Selvagem e António de Cértima relataram com
detalhes a marcha pela actual Tanzânia que culminou com a conquista e
abandono do forte alemão de Nevala. Cardoso Mirão, Ernesto Moreira dos

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Santos e José Teixeira Jacinto guardaram em texto a inenarrável odisseia


da Coluna do Lago, uma viagem desnecessária de 900 km pelo interior
da selva que acabou com as derrotas de Negomano e de Serra Mecula, em
Novembro de 1917.
A maior parte dessas memórias foi publicada na década que se seguiu à
guerra e, com excepção do livro Epopeia Maldita de António de Cértima,
ainda hoje um objecto de culto para os bibliófilos, caiu depressa no
esquecimento. Cardoso Mirão decidiu imprimir o seu Kináni (palavra
maconde que significa “quem vem lá” ou “quem vive”) já na vigência do
Estado Novo e, como seria de esperar, a obra foi censurada por instilar o
“derrotismo” no país e por conter relatos considerados “desprestigiantes
para o Exército Português”. O livro, emocionante, misto de tragédia e
de aventura, seria publicado em 2001. A memória de Teixeira Jacinto
permaneceu 70 anos guardada num invólucro de papel grosso, atado com

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

fio do Norte, até que há três anos o seu neto Armando Jacinto, um coronel
na reserva, a descobriu num baú – seria revelada em primeira mão
pelo PÚBLICO em Outubro de 2011 e entretanto publicada pela Câmara
Municipal de Espinho.
Com o Estado Novo, o processo de apagamento da memória avançou.
As derrotas da Primeira Guerra em África seriam anotadas como um
acidente de percurso, causado pela República jacobina, impreparada e
carente de sentido patriótico. Os valores do nacionalismo ou a glória do
Império coexistiam mal com as derrotas de Namoto ou Negomano. Os
mitos africanistas de Mouzinho de Albuquerque não se podiam associar
à tragédia de Nanguar ou da Serra Mecula. Craveiro Lopes, Presidente
da República entre 1951 e 1958, foi ainda capaz de visitar alguns dos
lugares do conflito em 1956, mandando recolher os restos mortais dos
soldados dispersos por vários campos de batalha e transladando-os para
Portugal ou para um ossário construído de propósito em Mocímboa da
Praia – hoje ao abandono. Mas esse seu gesto fez-se mais por um desígnio
pessoal do que pelo imperativo de moral pública. Craveiro Lopes fora um
alferes que, aos 23 anos, fizera parte da Coluna de Massassi e participara
na conquista de Nevala, em Outubro/Novembro de 1916. A sua bravura
na defesa do fortim conquistado aos alemães pelo curto prazo de uma
semana tinha-lhe merecido uma Cruz de Guerra. Era natural que um
militar que vivera as agruras da guerra na selva africana se preocupasse
em homenagear os que nela pereceram.
A guerra colonial regressaria a muitos dos lugares por onde andaram
os soldados portugueses de há cem anos. Francisco Dinis esteve em
Negomano até 1974 mas não se recorda de ter ouvido falar da batalha que
lá se travara 57 anos antes. Muitas das localidades que serviram de bases
aos soldados das quatro expedições entre 1914 e 1918 seriam usadas pelas
tropas coloniais que combateram a Frelimo quatro décadas mais tarde.
Muitos dos eixos de penetração da guerrilha foram muito antes abertos
pelas incursões alemãs. Entre estas duas gerações há, por isso, memórias

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

em comum. Em Mecula, um lugar remoto do Niassa, onde Agostinho


Mesquita sofreu um atentado com uma mina que o tornou deficiente,
morreu o tenente Viriato de Lacerda em Dezembro de 1917 vítima dos
ataques alemães.
René Pélissier considera que o facto de a guerra de libertação da
Frelimo se ter iniciado no território dos macondes, onde se deram as
mais duras batalhas da Grande Guerra e onde a população civil sofreu
as agruras da escravidão ou da pilhagem, não é por acaso. “Não se deve
esquecer que apenas 47 anos separam a ‘submissão’ de 1917 do início da
guerrilha da Frelimo”, escreve o historiador francês. A verdade é que as
marchas forçadas entre a selva no Niassa ou no planalto dos macondes,
as razias dos bens das populações, a violência sobre as mulheres ou a
escravidão da Grande Guerra dão corpo a uma linha de acontecimentos
que esteve longe de se concluir quando os alemães depõem as armas, a
11 de Novembro de 1918. Por muito que em Portugal essa guerra distante
tenha sido estranhamente engavetada na História, os seus efeitos
perduraram no tempo. E, como o PÚBLICO pôde constatar, ainda hoje
resistem na memória dos seus habitantes.

Notícia alterada a 29/7: Craveiro Lopes recebeu


a Cruz de Guerra e não a Cruz de Ferro

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

A guerra inevitável
nas colónias portuguesas

No mês de Julho, o rio Rovuma, que faz a fronteira com a actual Tanzânia,
torna-se um pequeno regato fácil de cruzar

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia)

Maziúa, um posto remoto com uma pequena guarnição situado


nos confins do Niassa, foi atacado pelos alemães muito antes de
Portugal e Alemanha entrarem em guerra, em Março de 1916. O
incidente estava condenado a ficar esquecido com um pedido
de desculpas se não indiciasse um perigo maior. Depois de 30

22
Grande Guerra • Grandes Reportagens

anos de cobiça das grandes potências, a Grande Guerra tornou-


se uma ameaça real para o império colonial português. A sua
defesa tornou-se o único ponto de consenso nacional sobre a
participação na Guerra.

Q
uando a seca se acentua no Norte de Moçambique, lá para o mês
de Julho, o rio Rovuma que faz a fronteira com a actual Tanzânia
torna-se um pequeno regato fácil de cruzar e foi esse detalhe da
natureza que ditou a tragédia que se abateu sobre Maziúa naquela
noite de 24 de Agosto de 1914.
Maziúa era um pequeno posto administrativo esquecido nos confins
da selva do Niassa, e assim permaneceria, distante e ignorado, se numa
decisão inesperada os alemães não o tivessem arrasado sem aviso prévio.
Formalmente, Portugal e Alemanha não estavam em guerra (o que
viria a acontecer em Março de 1916); que se saiba, não houve nenhum
acto de provação da pequena guarnição do posto, comandada por um
sargento enfermeiro; seguramente, a existência de meia dúzia de homens
perdidos no mato, mal alimentados e desligados de qualquer estrutura
operacional, estava longe de ser uma ameaça fosse para quem fosse.
Ainda assim, nessa noite, um destacamento militar baseado na colónia
alemã da África Oriental atravessou o rio a vau e, num ataque surpresa,
massacrou a pequena guarnição de um sargento e meia dúzia de polícias
indígenas e incendiou as precárias instalações de Maziúa – há relatos que
apontam apenas para a morte do sargento. Documentos revelados no
pós-guerra dão conta de que a operação foi pensada e autorizada pelo
governador alemão da África Oriental Alemã, Heinrich Schnee.
Quando a notícia chegou a Lisboa, o país indignou-se. Ouviram-
se os protestos do costume, o Governo pediu explicações, os ardores
nacionalistas da ideologia republicana exercitaram-se. Semanas depois, o
país acalmou com pedidos de desculpa e esqueceu o incidente no meio de

23
Grande Guerra • Grandes Reportagens

um quotidiano feito de permanente crise política, de instabilidade social e


de radicalismo ideológico. Mas o aviso ficaria para sempre. Maziúa tornar-
se-ia a prova real de que a Alemanha estava atenta, que não perderia a
oportunidade para cumprir o velho desejo de se apropriar dos territórios
coloniais portugueses que faziam fronteira com as suas possessões – o
Norte de Moçambique e o Sul de Angola.
A equação colonial não foi o factor exclusivo que levaria Portugal
a entrar na Grande Guerra de 1914-18. Mas foi o factor crucial. A
legitimidade da jovem República já tinha sido reconhecida pelas potências
europeias mais recalcitrantes, onde se incluía a Inglaterra, em 11 de
Setembro de 1911. Mas o radicalismo do seu programa, a sua intolerância
religiosa, a precariedade do regime, acentuada pelas incursões militares
dos monárquicos de Outubro de 1911 e Julho de 1912 (houve sete governos
entre o 5 de Outubro de 1910 e Agosto de 1914) ou as severas condições
impostas aos presos políticos tornavam por esse tempo Portugal num
estado pária no concerto europeu. Para agravar o cenário, de Madrid
chegavam notícias que o rei Afonso XIII de Espanha fazia diligências em
Paris e Londres para obter o seu consentimento numa intervenção militar
em Portugal destinada a “pôr fim à anarquia”. Mas se estes factores
mobilizavam o desejo pela guerra entre as hostes republicanas reunidas
no Partido Democrático de Afonso Costa, a questão colonial estaria
sempre na primeira linha das preocupações nacionais.
O assalto a Maziúa, que aconteceu apenas três semanas depois de
a guerra ter sido declarada na Europa, era a prova de que a perda das
colónias era uma possibilidade real, fosse pela simples ocupação dos
alemães ou ingleses, fosse pela redacção de um posterior tratado de paz
na qual os territórios ultramarinos portugueses fossem usados como
compensação para as potências vencedoras. Não admira, por isso, que
“a defesa do território colonial e a entrada em guerra no teatro africano”
fossem “os únicos pontos no consenso nacional, tanto a nível das forças
politicas como da opinião pública”, escreve Nuno Severiano Teixeira no

24
Grande Guerra • Grandes Reportagens

seu fundamental ensaio sobre as causas da entrada de Portugal na Guerra.


Depois das grandes viagens de exploração no coração do continente
africano da década de 1880, a vulnerabilidade das pretensões portuguesas
ficara cruelmente exposta quando o velho aliado inglês entrega um
ultimato ao Governo na monarquia,
em 11 de Janeiro de 1890, exigindo o
Devemos conquistar
abandono dos territórios situados entre
novos territórios Angola e Moçambique que tinham
fora da Europa, mau sido traçados a cor-de-rosa no mapa
grado os esforços das ambições coloniais de Lisboa. O
ultraje, rapidamente capitalizado pelo
das nações menos
republicanismo, serviu de lastro para
poderosas, como a criação de uma nova consciência
Portugal ou espanha, nacional. “Desde o projecto do Mapa
para conservar as Cor-de-Rosa e, fundamentalmente,
do ultimato inglês de 1890 que o
suas colónias
imaginário político português se revelava
Revista alemã em 1898
fortemente investido pelo sonho de
um império colonial”, escreve Nuno
Severiano Teixeira. Como escrevia Oliveira Martins ainda na ressaca do
Ultimato: “Só como país marítimo e colonial Portugal pôde afirmar a sua
autonomia: só assim poderá conservá-la”.
A defesa das colónias tornou-se um imperativo, por muito que aqui e ali
houvesse quem fizesse contas, registasse os prejuízos crónicos do Estado
nos negócios de Angola e Moçambique e recomendasse a sua venda
pura e simples. Apesar da pequenez demográfica e da penúria financeira
exacerbada pela bancarrota de 1892, Portugal não deixou de prosseguir
com as suas viagens de exploração nas zonas mais remotas de Angola
e Moçambique nem deixou de se aplicar em sucessivas campanhas de
pacificação das revoltas indígenas. Desses dois movimentos simultâneos
e complementares nasceu uma nova gesta de heróis que se desdobraram

25
Grande Guerra • Grandes Reportagens

em estátuas ou na toponímia
das cidades. Serpa Pinto,
Pereira de Andrada, Victor
Córdon, António Maria
Cardoso, João Azevedo
Coutinho, Caldas Xavier,
Alves Roçadas, António Enes
e, acima de todos, Mouzinho
de Albuquerque tornaram-
se os novos símbolos de uma
gesta que sublimaria em
África o drama de uma nação
falida e descrente.

O continente fatiado

A pacificação de Gaza com


a vitória de Chaimite e a
O conflito na fronteira do Rovuma eclodiu ainda antes prisão de Gungunhana, a 28
de as tropas comandadas por Francisco Massano
de Amorim terem desembarcado em Porto Amélia, de Dezembro de 1895, ou
actual Pemba, a 1 de Novembro, DR
a presença de colonos no
coração da Zambézia capazes de controlar áreas (prazos) equivalentes
a metade de Portugal, como era o caso de António Maria Pereira,
pareciam criar condições para os amplos e ricos territórios da África
austral permanecessem sob a égide de Lisboa. Com as chancelarias
diplomáticas em modo de repouso, o problema maior estava na
ambição desse colono aventureiro que foi Cecil Rhodes, o fundador
da De Beers, ainda hoje a maior empresa diamantífera do mundo, que
lamentava não ter meios para “anexar os planetas” que via no céu
austral. Rhodes foi um permanente instigador de revoltas indígenas
contra os portugueses. E, na sua tarefa de “ajudar Deus” a tornar o

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Documentos revelados no pós-guerra dão conta de que a operação foi pensada e autorizada pelo governador
alemão da África Oriental Alemã, Heinrich Scnee, DR

mundo “mais inglês”, foi um dos maiores adversários da ambição


portuguesa no sul do continente africano.
Motivos não faltavam para Rhodes avançar com a sua estratégia. Uma
década após a Conferência de Berlim, realizada entre Novembro de
1884 a Fevereiro de 1885, quando a agitada partilha de África parecia ter
atingido os seus limites, havia ainda quem se declarasse insatisfeito. A
França joga os seus últimos trunfos com a ocupação de Madagáscar em
1895; a Inglaterra, que com o Ultimato a Portugal e o tratado de 1891 que
fixaria as fronteiras coloniais e imporia o direito de decidir sobre uma
eventual venda das possessões nacionais, garantira o projecto de unir
por caminho-de-ferro o Cabo ao Cairo, preparava-se para disputar as
prósperas repúblicas do Transval aos bóeres; e a Alemanha, empurrada
pela ambição da Weltpolitik do chanceler Bismark, não escondia a sua

27
Grande Guerra • Grandes Reportagens

insatisfação por ser o parente pobre do “scramble for Africa”, ao qual


chegara tarde e sem condições. É neste contexto de domínio imperialista
que se começa a avolumar um interesse pela partilha dos territórios
coloniais das potências mais frágeis, como a Bélgica, a Espanha e,
principalmente, Portugal.
Em 1898, uma revista alemã escrevia: “Nós devemos conquistar novos
territórios fora da Europa, sempre que a ocasião se apresentar, sem
renunciar a nada, mau grado os esforços das nações menos poderosas,
como Portugal ou Espanha, para conservar as suas colónias”. Faltava,
no entanto, uma oportunidade para consumar a “conquista” e a grave
crise financeira do Estado português criá-la-ia nesse mesmo ano. Londres
empenha-se em facilitar um empréstimo de 8 milhões de libras a um
juro de 3%. Como contrapartida, ficaria com as receitas das alfândegas
coloniais. Quando as primeiras notícias desta manobra de envolvimento
dos britânicos se torna conhecida, os alemães dispõem-se a participar
no negócio. No dia 30 de Agosto de 1898, Arthur James Balfour, ministro
dos Estrangeiros de Inglaterra, e o embaixador alemão em Londres
Melchior Hatzfeld assinam uma convenção secreta em que se acertam
os detalhes desse empréstimo. A Inglaterra ficaria com as cobranças do
Norte de Angola e do Sul de Moçambique, enquanto os alemães ficariam
com o controlo das áreas alfandegárias do Norte de Moçambique, o Sul
de Angola e Timor. Em caso de incumprimento, essas zonas alfandegárias
passariam automaticamente para a esfera de influência desses dois países.
O governo de José Luciano de Castro percebeu o perigo. Recusaria o
empréstimo alegando “perda de soberania”. Com o apoio tácito de uma
França hostil ao reforço das possessões dos seus rivais europeus, Lisboa
procura uma alternativa junto dos banqueiros Rothschild. De acordo
com os documentos analisados por Nuno Severiano Teixeira, os alemães
ainda pressionam os britânicos para obrigar Portugal a assinar o acordo
do empréstimo, usando “a força se necessário fosse”. Os ingleses, porém,
começam a tergiversar. A sua maior preocupação era já a guerra iminente

28
Grande Guerra • Grandes Reportagens

contra a república do Transval, dominada pelos bóeres, para a qual tanto


precisavam da neutralidade alemã como da cooperação portuguesa.
O apoio alemão aos bóeres, explícito e cimentado através de fortes
investimentos germânicos nas minas de ouro do Transval, era um
incómodo que, através do tratado, os britânicos tentaram mitigar. Mas
o sul de Moçambique, principalmente a zona de Lourenço Marques, à
qual, numa terminologia própria de
protectorado, os britânicos chamavam
Quando num Delagoa Bay, era fundamental para
acto imprevisto a logística militar da campanha no
de provocação os Transval. Era daí que partia uma linha
de caminho-de-ferro, que Lisboa
alemães cruzam
nacionalizara em 1889, em direcção
a fronteira Norte à mais importante cidade africana do
de Moçambique e tempo, Joanesburgo. Em Agosto de
devastam o pequeno 1899, a passagem via Lourenço Marques
de 500 toneladas de munições para a
posto de Maziúa,
República da África do Sul tinha deixado
tinha-se já percebido Londres irritada e atenta ao perigo de
que, tarde ou cedo, uma neutralidade efectiva de Portugal.
Portugal teria de se Em 1899 britânicos e alemães entram

envolver na defesa das em disputa sobre as Ilhas Samoa,


Londres esquece a convenção sobre a
suas colónias partilha das colónias nacionais e volta
a aproximar-se de Portugal, assinando,
sob a forma de declaração secreta, o Tratado de Windsor a 14 de Outubro
de 1899. De acordo com esse tratado, Portugal comprometia-se a proibir a
importação de material de guerra para o Transval via Lourenço Marques
no caso de uma guerra anglo-bóer (que eclodiria ainda nesse mês) e
autorizava o abastecimento dos navios britânicos nos portos da colónia.
Como compensação, Londres voltava a assumir os termos do tratado

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

de 1661, cujo artigo final obrigava a Inglaterra a “defender as colónias


portuguesas contra todos os seus inimigos presentes e futuros”.
O que a seguir se verificou parece justificar o regresso do espírito
de aliança entre os dois países, que ficara fortemente abalado com o
Ultimato de 1890. Em Dezembro de 1900 a esquadra britânica passa
por Lisboa. O rei D. Carlos visita a Inglaterra em Novembro-Dezembro
de 1902. Em Abril de 1903 é a vez do monarca britânico, Eduardo VII,
retribuir o gesto com uma visita à capital portuguesa. D. Carlos irá uma
vez mais a Londres em Novembro-Dezembro de 1904. Nesse ano, o
segundo tratado de Windsor é assinado. Em Portugal podia respirar-se
de alívio. O património colonial estava de novo a salvo, sob a protecção
por escrito da maior potência económica e marítima da época. A cobiça
das grandes potências tinha protegido o império. “O que se passou
na década de 90 em relação a África pode ser resumido da seguinte
maneira: Portugal dispunha de um bem que muita gente ambicionava
e que se pensava não tinha posses para manter; mas aqueles que
cobiçavam esse bem não se podiam verdadeiramente entender sobre
a maneira de o partilhar e, por isso, cada um deles tentava sobretudo
que não seriam os outros a aproveitar-se dele”, escreveu a propósito o
historiador Rui Ramos.

A turbulência na República

A instauração da República em 5 de Outubro de 1910 e o exílio do rei D.


Manuel II em Londres voltam a alterar o pano de fundo sobre o qual se tecia
o futuro do sonho colonial português. As dúvidas sobre o poder de Portugal
administrar territórios longínquos, várias vezes mais vastos do que o da
metrópole, multiplicaram-se. As críticas sobre a contratação de mão-de-
obra indígena em Angola ou o envio de força de trabalho de Moçambique
para as minas sul-africanas ganharam fôlego. O trabalho escravo em São
Tomé teve amplo eco na imprensa internacional, em boa parte fomentado

30
Grande Guerra • Grandes Reportagens

pelos interesses da poderosa Cadbury, uma produtora de chocolate


britânica. Pouco antes do eclodir da Grande Guerra, a exibição da cobiça
pelo património colonial português voltaria à actualidade.
Nas suas memórias escritas em 1925, o Primeiro Lorde do Almirantado
Winston Churchill haveria de confessar que “se ajudar a Alemanha
no domínio colonial era um meio para estabilizar a situação, esse era
um preço que nós estávamos dispostos a pagar”. Uma vez mais, os
britânicos moldavam o seu jogo de alianças em função da urgência dos
seus interesses. Paradoxalmente, e até ao dia em que o conflito mundial
eclodiu, nada prenunciava que os primos Guilherme II, o kaiser alemão,
e Jorge V, o rei inglês, pudessem entrar em guerra. É neste contexto que,
em 1912 e 1913, as chancelarias dos dois países recuperaram os termos
da convenção secreta de 1898. Sob o pretexto de possíveis agravamentos
e de contágio da instabilidade do regime republicano, Londres e Berlim
rubricam a 13 de Agosto de 1913 um novo acordo que rearranja o mapa
da partilha de 1898 e alarga o campo de possibilidades para poderem
partilhar Angola e Moçambique – Timor ficaria de fora, mas São Tomé
passaria para o controlo alemão.
Desta vez, com excepção do Niassa e de Cabinda, todo o território de
Moçambique e de Angola passariam para a influência, respectivamente da
Inglaterra e da Alemanha. E para que esse passo fosse dado, não estavam
em causa apenas incumprimentos financeiros: os dois países arrogavam-
se, por exemplo, ao direito de anexar os territórios coloniais portugueses
sempre que as autoridades nacionais não pudessem garantir a segurança
dos ingleses ou alemães que neles habitavam – “um critério vago e
essencialmente político”, como sublinha Nuno Severiano Teixeira.
Uma vez mais, seria a França a servir de amparo ao desagrado de Lisboa.
Paris protesta em Londres, alegando que esta aproximação à Alemanha
contrariava o espírito da Entente Cordiale que os dois países tinham
celebrado em 1904. O Presidente Poincaré consideraria os acordos como
“um triste exemplo de imoralidade diplomática”. Portugal, por seu lado,

31
Grande Guerra • Grandes Reportagens

pouco pode fazer. Consegue apenas ganhar tempo, convencendo Londres


a assinar o acordo apenas após a sua publicação. As pressões francesas
e portuguesas e a obrigação de tornar igualmente públicos os termos do
Tratado de Windsor, que em cerca medida contrariavam o espírito do
acordo anglo-alemão, criam um impasse. Quando a Alemanha, que preferia
manter o secretismo sobre o acordo, acede finalmente à exigência britânica
de assinar o tratado após a sua revelação pública, estávamos já em Junho de
1914. Um mês mais tarde a guerra eclodiria na Europa.

Em força para as colónias, parte I

Quando num acto imprevisto de provocação os alemães cruzam a fronteira


Norte de Moçambique e devastam o pequeno posto de Maziúa, tinha-se já
percebido que, tarde ou cedo, Portugal teria de se envolver na defesa das
suas colónias. Dias depois do princípio da guerra na Europa, a 18 de Agosto
de 1914, o Governo da República ordena o envio das primeiras expedições
para Angola e para Moçambique. O conflito na fronteira do Rovuma eclodiu
ainda antes de as tropas comandadas por Francisco Massano de Amorim
terem desembarcado em Porto Amélia, actual Pemba, a 1 de Novembro;
em Angola, as forças enviadas da metrópole, comandadas pelo experiente
Alves Roçadas, desembarcaram em Moçâmedes a 1 de Outubro e 18 dias
depois teria início a série de incidentes que acabaria no desastre de Naulila,
em 18 de Dezembro de 1914. Ambos os combates seriam, no entanto, o
prelúdio do que viria a seguir.
Derrotados pelos britânicos e pelos sul-africanos na frente da África
Ocidental, os alemães rumaram para a região dos Grandes Lagos,
no Tanganica. Seria aí que travariam entre 1916 e 1918 os mais duros
combates com as tropas portuguesas. Pressionados a Norte e a Oeste
pelos britânicos e pelos sul-africanos, que mobilizaram para o conflito
africano mais de 300 mil homens, a pequena força de 14 mil combatentes
alemães, liderada por um dos mais geniais estrategas militares da história,

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Paul Emil Von Lettow-Vorbeck, acabaria por atacar Moçambique logo


na Primavera de 1916 e centraria aí o essencial da sua ofensiva de 1917
e 1918. Os corpos expedicionários portugueses, apesar de maioritários
em termos de tropas europeias, apesar de disporem de mais e melhor
armamento, sofreram então uma série de reveses que tornam a
campanha africana da Primeira Guerra Mundial uma das páginas mais
vergonhosas da história do Exército nacional.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Os “filhos espúrios” que a


República enviou para o Niassa

O paquete Moçambique atracado em África, local desconhecido MUSEU DA MARINHA

Manuel Carvalho

Durante os quatro anos da Grande Guerra em África milhares


de soldados portugueses habituaram-se a chorar em silêncio,
a maldizer o exílio forçado numa terra distante, a morrer
por falta de cuidados de saúde ou de preparação militar.
Muitos perceberam fazer parte de um exército à deriva mal

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

embarcaram. Outros, a maioria, nem sabiam o que era a Pátria,


nem a Guerra, nem os alemães, nem o Niassa onde tantos
acabariam por tombar.

C
arlos Tavares de Andrade Afonso dos Santos ficou conhecido na
história da literatura portuguesa com o pseudónimo de Carlos
Selvagem, mas nos primeiros dias de Junho de 1916, quando era a
hora de recolher à sua camarata do vapor Moçambique que o levava
para a guerra na fronteira do Rovuma, no Norte de Moçambique, a sua
identidade literária soava a falso. Selvagem ficava perturbado e sensível.
Na escuridão do navio, na solidão do mar, rodeado por mais de mil almas
que entre a ignorância e o enjoo não tinham a mais breve ideia do que os
esperava, não conseguia fugir ao vazio, ao medo e à saudade. E chorava.
“Na escuridão, por pudor, pode livremente chorar-se, em silêncio, com
uma volúpia amarga. E chora-se, chora-se, mansamente, por muito
tempo. O que será de nós, em alguns meses?!...”
Desde tempos imemoriais que a resistência ao recrutamento e a fuga
à guerra insiste em contradizer as declarações grandiloquentes sobre
o patriotismo e a coragem. Assim foi na primeira Guerra Mundial e por
maioria de razão. A começar pelo estado do próprio exército, que era
calamitoso. Até 1910, uns 15 % de alistados eram refractários, o que
junto com as “sortes”, que poupavam uns poucos do serviço militar, e
“as remissões”, que subtraíam os filhos dos mais ricos à tropa, reduzia
o universo de recrutamento a 47% dos jovens masculinos. A República
acaba com esse modelo, quer um “exército da Pátria”, uma força
de milicianos, na qual o serviço militar seria obrigatório e onde não
haveria lugar a “remissões”. Mas, a que exército poderia aspirar um
país falido e mergulhado na convulsão de um regime revolucionário,
que ora perseguia o clero, ora “rachava” os sindicalistas que
organizavam greves?

35
Grande Guerra • Grandes Reportagens

No país em estado de sítio, era tarefa impossível conceder ao


exército condições mínimas de equipamento, disciplina e moral para o
transformar numa força credível. Entre 1914 e 1918 o governo da República
registou nove ministérios. Alguns, como os dirigidos por Bernardino
Machado ou o governo da União Sagrada, duraram meses (309 dias o de
Bernardino, um ano e 39 dias a União Sagrada). Outros duraram dias. E
João Chagas, vítima de uma tentativa de homicídio, não chegou sequer
a tomar posse como primeiro-ministro. Pelo meio houve a ditadura
de Pimenta de Castro, nos primeiros cinco meses de 1915, uma Junta
Revolucionária e uma Junta Constitucional. Pimenta de Castro sucumbiria
a um golpe de Estado. A 13 Dezembro de 1916 uma revolta de Machado
dos Santos, o herói do 5 de Outubro, mobiliza tropas em Tomar para
tentar derrubar a União Sagrada dirigida por António José de Almeida.
Produto de uma era de radicalismo, o exército estava dividido entre
monárquicos e republicanos, entre oficiais de carreira formados no

A fronteira do rio Povuma, PÚBLICO

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

tempo dos reis e “jovens Turcos” contaminados pelos métodos da


Carbonária. Afonso Costa, a alma mater dos primórdios da Primeira
República, ferira ainda mais o espírito de corpo das forças armadas ao
retirar aos militares os mais elementares direitos políticos – o de votar
e de ser eleito. No princípio de 1915 o presidente Manuel Arriaga falava
abertamente do “antagonismo entre o Exército e a República”. Não era
caso para menos.
A indisciplina grassava nos quartéis e a penúria financeira atrasava
salários e minava a operacionalidade do equipamento. Em 1914, o ministro
da Marinha referia-se aos meios que geria (cinco cruzadores, um dos quais
blindado, dois contratorpedeiros, três submarinos e 13 outras embarcações)
como “um resto de marinha”. Quanto ao exército, o ministro da Guerra
confidenciaria a Brito Camacho, líder do Partido Unionista, em Janeiro de
1915: “Não digo que tem pouco; digo que não tem nada”. A guerra na era
industrial tornara-se um bem quase inacessível ao depauperado tesouro
nacional: “Uma divisão para a frente ocidental, nas contas do ministro
da Guerra, custava 35 mil contos, metade dos rendimentos anuais do
Governo”, refere o historiador Filipe Ribeiro de Menezes.

A mobilização em tempos de crise

As duras privações da Guerra foram causa de particular influência na


permanente instabilidade social que, em grande medida, contaminaria
a esfera da governação e minaria a disciplina e a moral do Exército. Os
factos mais graves relacionados com greves ou actos de insurreição social
ocorreram a 19, 20, 21 Maio de 1917, com motins e assaltos no Porto e em
Lisboa. Na capital registam-se 102 prisões numa só noite. O governador
militar da capital, Pereira da Eça, teve de decretar o estado de sítio para
controlar uma sublevação que provocou 23 mortos e 50 feridos. A 12 de
Julho o estado de sítio é novamente decretado para Lisboa por causa de
tumultos. Uma bomba provoca seis mortes e 28 feridos na capital. Neste

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

período, que culmina com o golpe de Sidónio Pais, a 5 de Dezembro


de 1917, as invectivas contra a guerra tornaram-se muitas vezes meros
apêndices da hostilidade contra o regime. Um panfleto, intitulado “Alerta
Portugueses!” recordava: “A primeira
leva de 3000 homens (para África) já
“A primeira leva de seguiu e em menos de um mês outras
3000 homens (para se seguirão… Pensai nisso, Mulheres e
África) já seguiu e Mães portuguesas… Salvai da morte e da
desonra vossos maridos e filhos e gritai
em menos de um mês
comigo: Abaixo a maldita República,
outras se seguirão… morte aos traidores”.
Pensai nisso, Mulheres Quando Carlos Selvagem, Cardoso
e Mães portuguesas… Mirão ou o médico Américo Pires de
Lima embarcam no Moçambique,
Salvai da morte e
que com as suas 6500 toneladas era o
da desonra vossos maior navio da Companhia Nacional
maridos e filhos e de Navegação, não tiveram por isso
gritai comigo: Abaixo direito a despedidas solenes nem a
homenagens oficiais. Faziam parte
a maldita República,
da terceira expedição a Moçambique
morte aos traidores e há muito que a sorte das tropas
Panfleto intitulado nacionais na guerra se tinha dissolvido
“Alerta Portugueses!”
em esquecimento na luta diária pela
sobrevivência. Na expedição anterior,
que partira a 7 de Outubro de 1915, o oficial Júlio Rodrigues da Silva, na
sua Monografia do 3º Batalhão Expedicionário do R.I. nº 21 à Província
de Moçambique em 1915 , ainda se recorda de “três ou quatro pessoas” a
darem “vivas e bateram palmas ao batalhão” algures no meio da Avenida
da Liberdade. Meio ano mais tarde, o alferes médico Américo Pires de
Lima viveria uma experiência bem mais gélida: “Princípio de Junho, à
tarde, desfilou o batalhão de Campolide até ao Cais da Areia. Da parte da

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

tropa, marcha resignadas fatalista para o desconhecido. Nem entusiasmo,


nem desalento. Da parte do público, na longa travessia, a indiferença mais
completa, como se tratasse de um regimento que fosse fazer manobras
nos arredores da cidade. Nem interesse, nem sequer curiosidade; um
vácuo mais doloroso do que a própria hostilidade”.
Para os soldados, a partida para África tanto podia significar o
cumprimento de uma pena como uma porta para a salvação da miséria.
Alguns soldados foram porque tiveram de ir, apenas. Muitos integravam
regimentos que se envolveram em rebeliões contra os superiores,
contra a República ou contra a ordem pública, caso do 31 do Porto.
Muitos foram como voluntários. Um inquérito aos sargentos e praças do
Regimento de Cavalaria n.º 3, citado no livro A Primeira Guerra Mundial
na África Portuguesa, de Marco Arrifes, indica que 27 dos 74 inquiridos
se ofereceram para o ultramar por razões monetárias, 13 fizeram-no
por “motivos políticos”. Um foi por “desgosto”, outro “por ter sido
abandonado pela família”, um terceiro “por ter sido indicado por alguns
camaradas como chefe de um complot para matar oficiais e por isso
recear ser castigado”. Vinham de quarteis instalados em todo o país. De
Penacova, de Évora, mas principalmente das Beiras e do Porto.
Os primeiros contactos com a organização militar serviram para muitos
de prenúncio para o que viria a acontecer – um interminável rol de
exemplos de desorganização, irresponsabilidade, incúria e negligência.
Cardoso Mirão e quatro soldados que se ofereceram como voluntários
para formarem companhias indígenas partiram do Porto de comboio,
chegaram a Lisboa e no depósito colonial tiveram dormir no chão. Nem
capotes para o frio receberam. No Arquivo Histórico Militar conservam-
se as prescrições para o embarque, desde o numeramento de camas ao
local para os animais, a numeração de camas com giz, a localização da
pólvora, das munições e das armas (longe da humidade e da máquina), o
serviço de polícia e as brigadas de faxina tudo. Mas até entrarem no navio,
os soldados e oficiais tinham de resistir a embarques com dias de atraso,

39
Grande Guerra • Grandes Reportagens

Bivaque de tropas portuguesas no norte de Moçambique AHM

onde a carne fresca chegou primeiro que as conservas de sardinha, onde


medicamentos ou equipamentos militares cruciais não foram carregados
para não atrasar ainda mais a viagem.
Pelas regras a bordo, o oficial mais graduado devia empregar todos
os esforços para proibir o jogo, para proibir o fumo fora dos locais a
isso destinados. Devia ainda providenciar para que as praças tomassem
banho. Em tese, estas exigências podem parecer simples de cumprir. Mas
era difícil conseguir aprumo, higiene e método numa legião de rapazes
recrutada no mundo rural de um país onde o analfabetismo rondava os
70% da população. “O nosso lapuz das Beiras e Alentejo – a grande massa
destas tropas – é, por natureza, por hábitos ancestrais, por desamor de
si próprio, desleixado e porcalhão”, lamentava Carlos Selvagem nas suas
memórias Tropa d’ África, Jornal de campanha de um voluntário no Niassa,
publicado em 1924”. Aquilino Ribeiro, que assistira ao eclodir da Guerra
em Paris, adivinhou logo o problema quando perguntou: “Em nome de

40
Grande Guerra • Grandes Reportagens

que justa, necessária causa, se podem despachar para o matadoiro os


meus pobres, ignorantes e pacíficos labregos?”. António de Cértima,
autor de uma das mais dramáticas memórias da I Guerra em Moçambique
(Epopeia Maldita) suspeitava que “às cegas, tinham trazido esta gente do
continente, como se fossem agarrados de sorrelfa pelos campos”.
Poucos dias depois do embarque, a maioria tinha já consumido o farnel
levado às docas pelas mães, mulheres ou namoradas. Os avisos sobre os
perigos dos “três ss” (saias, sol e sereno, o cacimbo que torna as noites dos
planaltos húmidas e gélidas) estavam já esquecidos. Durante o dia, a tropa
subia dos porões, fazia ginástica e tomava o banho forçado. Para evitar
o tédio e a nostalgia - até ancorarem nas baías do norte de Moçambique,
as expedições tinham de passar um mês no alto mar -, o comando da
terceira expedição organizou uma série de palestras sobre África e a guerra
moderna. Os resultados foram tão deprimentes que acabaram por ditar o
seu fim, para evitar danos maiores na moral das tropas. Os oficiais ficaram
com mais tempo para as horas de aborrecimento no spar deck, onde por
vezes Carlos Selvagem tocava piano.
Menos sorte tinham os soldados. Nas camadas inferiores dos navios, “nos
esconsos das cobertas e porões, com calor insuportável, cheiro nauseabundo
e repelente de centenas e centenas de criaturas com hábitos de porcaria
e receosas do contacto da água, nunca deixou de se jogar, principalmente
depois do recolher”, recorda o capitão Júlio Rodrigues da Silva. Ao fim de
alguns dias, “todo o navio é um rumoroso e turbulento quartel flutuante,
acoalhado de fasces tisnadas e imberbes, serapilheiras cinzentas de
uniformes, toques de clarins, restos de rancho coalhado, emporcalhando
todos os recantos dos porões e cobertas”, recordaria Carlos Selvagem.
A disciplina tornava-se ténue com o tédio, o medo e a falta de sentido
de corpo. “Alguns graduados não era sem receio que desciam aos porões,
onde a rufiagem refilava a qualquer ordem e deixava entrever as lâminas
das facas, a propósito de tudo ou nada”, continua Júlio Rodrigues da
Silva. António de Cértima teve de descer um dia a um desses porões

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e impressionou-se com os “dois centos e meio de homens que por ali


se amontoam rebolando-se sobre míseros colchões postos no chão
besuntados de gordura e vómitos”. A noite obrigava a que todas as luzes
fossem apagadas, até a das brasas dos cigarros, para evitar avistamentos
dos submarinos alemães que, entre outras vítimas, afundariam o Augusto
de Castilho, comandado por Carvalho Araújo, em Outubro de 1918. Nos
porões, na penumbra, os soldados que resistiam ao enjoo jogavam as
cartas ou recordavam o mundo que deixaram. Carlos Selvagem ouvia-
os da vigia do seu camarote a falar de saudades das “suas Marias”, do
descanso das tardes quentes de domingo, “dos alqueires de milho ou
almudes de vinho que tiravam com as colheitas”.

“Cegos, gagos, míopes, herniados…”

Para a maioria, África era uma abstracção e a defesa da pátria uma ideia
vaga. “A palavra Portugal ainda os emociona e enternece. A ideia Pátria,
porém, não lhes perturba as digestões nem o funcionamento regular do
sistema circulatório”, apontaria Carlos Selvagem. No caos da República,
não houvera tempo nem para lhes preparar a moral nem sequer para
os instruir com as armas. Na segunda expedição, as tropas aquarteladas
em Mafra, onde recebiam treino militar, rebelaram-se e como castigo a
sua partida para o ultramar foi antecipada. As consequências da falta de
educação militar foram trágicas e não passaram ao lado da atenção dos
contemporâneos. Uma parte do regimento 21 de Infantaria, punido com o
envio para África, chegou a Moçambique em Setembro de 1916, mas “em
meados de Janeiro um terço do seu efectivo estava absolutamente incapaz
de qualquer serviço”, denunciava o deputado Tamagnini Barbosa nas
sessões secretas da Câmara dos Deputados e do Congresso de Julho de
1917, dedicadas a debater a participação de Portugal na guerra.
Na expedição de 1917 “seguiram telegrafistas sem saberem ler nem
escrever. Artilheiros desconhecedores do material, infantes sem

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instrução de tiro”, diria numa dessas


Princípio de Junho, sessões o deputado Vasconcelos e Sá.
à tarde, desfilou No relatório de 1919 que deixou em sua
defesa, Sousa Rosa, comandante da
o batalhão de
quarta expedição, confirmaria: “Para
Campolide até ao Cais aqui vieram praças de engenharia
da Areia. Da parte a quem só ensinaram canto coral;
da tropa, marcha praças de artilharia que nunca viram
montar e desmontar o material de
resignadas fatalista
montanha nem com ele fizeram fogo,
para o desconhecido. tendo sido, neste clima depauperante
Nem entusiasmo, que se lhes tem ministrado instrução a
nem desalento. Da toda a pressa; praças de infantaria que
mal sabiam carregar a espingarda”.
parte do público,
Vasconcelos e Sá iria mais longe:
na longa travessia, “Tudo é possível quando vêm 1600
a indiferença mais homens, soldados sem instrução nem
completa, como disciplina, na sua maioria rapazes de
19 a 22 anos, quando para África todos
se tratasse de um
o sabem, são úteis para resistirem
regimento que fosse devidamente ao clima homens feitos.
fazer manobras nos Quando 1000 homens do batalhão 14
arredores da cidade trazia talvez 200 dos seus soldados
que são raquíticos, tarados e outros
Américo Pires de Lima
Alferes médico com doenças crónicas da tabela, que
nem para a vida militar devem servir,
cegos de um dos olhos, gagos, míopes, herniados, etc…”, pouco havia
a fazer, lamentava Vasconcelos e Sá.
“Se há desastres em África, não provêm eles do menor valor ou de
menos competência dos nossos oficiais, ou do medo ou cobardia dos
nossos soldados, mas da insuficiência da instrução e da pobreza do

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material”, diria Brito Camacho, líder do Partido Unionista, na oposição,


falhas que atribuía à prioridade dada pelo Governo aos efectivos enviados
para os campos de batalha na Flandres. Com pouca razão no que diz
respeito à “pobreza do material”, porque, sendo, de facto, pobre e
em muitos casos antiquado, o armamento dos soldados portugueses
era bem melhor do que o dos alemães esquecidos da África Oriental,
como assinalou o historiador António José Telo. Com toda a razão
quando mencionava a “insuficiência da instrução”, que além de ter
consequências dramáticas nas manobras militares teve custos humanos
ao nível da saúde.

O problema da comida e da água

Para os doentes havia regras que lhes garantiam alimentação melhorada.


Pelo menos aos que estavam nas enfermarias, já que as fomes por
que passaram os soldados da Coluna do Lago ou as agruras dos que
se aventuraram no território da actual Tanzânia para conquistar o
forte alemão de Nevala nem sempre toleraram os comportamentos
de humanidade normalmente dispensados aos enfermos. De resto, a
qualidade dos alimentos deixava muitas vezes a desejar. “O leite, ao
serem abertas as latas, geralmente aparecia podre e exalava um cheiro
repelente. Imagine-se o espectáculo de um desgraçado, cheio de febres,
a vomitar tudo, a quem se dava, como mimo dietético, uma lata de leite
que, ao ser aberta, espalhava um perfume capaz de fazer vomitar as tripas
a um avestruz”, desafiaria Pires de Lima.
Num exército estratificado pela condição racial e pela necessidade de
recrutar milhares de carregadores que viabilizavam a logística das colunas
que se aventuravam na selva, a dieta alimentar era muito variada. As
ordens dadas aos provisores impunham normas para acondicionamento
dos víveres, o seu registo detalhado, as horas do rancho quando a
coluna estava em marcha ou estacionada, os mecanismos de requisição.

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Nas regiões remotas, o provisor, a quem competia gerir o depósito de


alimentos, “terá de lançar mão a todos os recursos da região”, prescreveu-
se. Comprará os géneros “que puder obter como: feijão, ovos, galinhas,
bois, carneiros, cabritos, porcos, sal, hortaliças e milho, o qual fará moer
à moda da região”. Procurará “informar-se se na região há comerciantes,
pagando se tiver recursos, passando requisição no caso contrário”. Para
isso, “deverá munir-se da moeda comercial da região, dinheiro ou panos”.
As taras dos géneros, como sacas, barris, caixas, “podem servir de objecto
de permuta com os indígenas”, lê-se nos regulamentos existentes no
Arquivo Histórico Militar.
Como facilmente se compreende, na maior parte das vezes, os
alimentos eram simplesmente saqueados aos indígenas – “requisitados”,
no jargão militar. Quando tal era possível, ao menos. A Coluna do Lago,
perdida na imensidão do Niassa, chegou a um ponto do território onde
nada havia para comprar nem para “requisitar”. Sobreviveu através do
recrutamento de três caçadores. Do nada, quase como mistério, chegam
à coluna Regina Pietro, o “Pitala”, italiano do Piemonte, “fino com o
vime e rijo como o aço, há muitos anos perdidos pelas florestas negras do
Niassa”, Elias, um grego, “corpo alto e mal feito, de orelhas recortadas em
renda de bilros”, e Kassan, “um indiano negro e pequenino, mas muito
vivo e inteligente”, na memória de Cardoso Mirão. Foi a sua salvação.
Quando o sistema logístico das colunas de carregadores funcionava
(ou quando havia estradas abertas e câmaras-de-ar para os camiões
Kelly), os soldados europeus alimentavam-se de rações que António José
Telo considera “ pouco apropriadas para Europeus em África, levando-
se grandes quantidades de bacalhau, sardinhas em lata e, sobretudo,
o chamado rancho confeccionado”. Gomes da Costa, o general que
comandaria a última expedição a Moçambique e que deixaria para a
posteridade um libelo acusatório arrasador para os governos da República
sobre as suas responsabilidades na derrota, considerava o rancho
confeccionado “a invenção mais infame que se conhece”.

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O momento mais comovedor da vida dos soldados era sem dúvida a


chegada do correio. Entre a anarquia administrativa, o serviço postal
parecia ser um milagre. Que se revelava até em zonas remotas como
Metarica, no Niassa. Para lá chegar, uma carta enviada de Lisboa teria
de passar por Lourenço Marques, subir à Beira e depois a Mocímboa
da Praia, subir o Zambeze, passar por Chinde, o Chíndio, Luchenza,
Fort Johnston, Zomba, Blantyre, no actual Malawi, até apanhar uma
eventual missão de carregadores em direcção ao interior. Quando
chegava o correio, “o coração
sobressalta-se, ruborizam-se as faces,
O nosso lapuz das e instantaneamente nos tornamos
Beiras e Alentejo insociáveis”, lembraria Cardoso
– a grande massa Mirão. Quanto chegava a hora de
responder, os soldados tinham “pressa
destas tropas – é,
em esquecer por momentos a guerra,
por natureza, por a selva, a fadiga e as privações, para
hábitos ancestrais, pensar afincadamente nas páginas de
por desamor de si recomendações, beijos e saudades a

próprio, desleixado e mandar à família com a afirmação,


quantas vezes falsa, duma saúde que
porcalhão não existia”.
Carlos Selvagem nas suas Nesses momentos fugazes,
memórias Tropa d’ África
“deixávamos o ar selvagem e brutal
que a selva nos emprestava para nos
tornarmos de novo homens, enternecidos e sentimentais, revendo a casa,
a terra, os amigos, emocionados pelas recordações da família e mais que
nunca saudosos da pátria e do lar”. Depois, quando o papel se esgotava,
“recorríamos aos livros das companhias, surripiávamos as folhas dos
cadernos da ordem, e por último, reduzidos à expressão mais simples,
aproveitávamos o papel de embrulho dos caixotes da massa e da bolacha,
cujos bordos endireitávamos à faca, a fingir de papel de carta”.

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Nas memórias que deixaram, os soldados e oficiais que foram para a


guerra em Moçambique evocam muitas vezes o dia do regresso como
um desejo impossível. A baixa por doença era sempre um caminho para
casa mais provável do que a vinda de tropas para substituição. Para
Pires de Lima esse dia chegou em Outubro de 1917, quando aportaram
a Mocímboa da Praia médicos frescos. “Após 16 meses de trabalho
intensivo e ininterrupto”, teve baixa ao hospital e foi proposto à junta
de Lourenço Marques, que a meio da guerra e perante o número
alarmante de enfermos, teve a incumbência de validar ou invalidar
as decisões dos médicos de campanha. No final de Novembro toma
o vapor Quelimane em direcção a Lisboa. Em Freetown, Serra Leoa,
juntam-se a um comboio de barcos que receberia protecção da marinha
britânica na viagem até à Europa. Um dia, pela manhã, avista finalmente o
estuário do Tejo e respira de alívio. Sobrevivera.
As primeiras notícias que recebe em Lisboa “foram profundamente
tristes”. Souberam do desastre de Negomano, a mais severa derrota das
tropas portuguesas em Moçambique. Depois, ficaram no Tejo parados
durante horas. No cais, viu “algumas mulherzinhas do povo, as únicas
mulheres portuguesas (além da família dos expedicionários) que assistiram
ao desembarque. Levantaram altos gritos de revolta e compaixão, ao verem
os soldados esqueléticos, macilentos e esfarrapados que chegavam de
Moçambique”. Como na partida, o regresso a casa decorreu num cenário
de indiferença das autoridades. “A esperar-nos, ninguém, nem a Cruz
Vermelha, na hipótese, infelizmente verdadeira, de trazermos doentes, que
careciam de ser transportados em maca”. E sentiu “mais uma vez o travor
amargo da injustiça, que pesava sobre os meus pobres soldados, assim
imerecidamente tratados como filhos espúrios”.

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O convívio com a morte


na baía do Tungue

Palma é uma pequena localidade que, entre Abril de 1916 e Junho de 1917, foi o epicentro das operações
do exército português no Norte de Moçambique

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia), em Palma

Em Março 1916, logo após a declaração de guerra da Alemanha,


as tropas portuguesas viajam para Palma, a uns escassos 20 km
da fronteira do Rovuma. A reconquista de Quionga prenunciava
uma campanha brilhante. Mas depois vieram os desastres. O
de Namaca e o da própria Palma, onde hoje um cemitério de

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soldados transformado em lixeira serve de testemunho de uma


expedição dizimada pelas doenças, pela fome e sede, pelas balas
alemãs, pela vaidade e pela incompetência.

N
a entrada do cemitério de Palma há uma lápide que, por milagre,
ainda emerge entre o lixo e o mato. Indica o lugar onde foi
enterrado o tenente miliciano Francisco Luiz D’ Abreu Amorim
Pessoa, morto na manhã de 27 de Maio de 1916 quando as tropas
portuguesas tentaram pela primeira vez atravessar a fronteira do rio
Rovuma e invadir o território da África Oriental Alemã.
Naquele cenário de abandono, ingratidão e sujidade, a lápide
que atesta a “saudade eterna” da sua mulher Emília parece um acto
premeditado de resistência da memória de Palma. A pequena localidade
que, entre Abril de 1916 e Junho de 1917, foi o epicentro das operações
do exército português no Norte de Moçambique foi apagando ao longo
dos anos todos os sinais que registou Primeira Guerra. Hoje resta esse
cemitério transformado em lixeira e pasto de cabras e galinhas, rodeado
de palhotas, a dez metros de uma praia de coqueiros, no qual apenas a
sepultura do tenente miliciano que nasceu em Soure continua em pé.
Martins Ibrahimo Musse lembra-se do tempo em que o cemitério estava
cercado de um muro alto regularmente caiado e tem ainda bem presente
na memória os dias em que alguém lhe arrancou o portão de ferro e abriu
o seu interior aos despojos e aos animais. Da sua casa, mesmo em frente
à entrada do cemitério, viu a mobilização de homens e de máquinas que
em 1972, de acordo com a sua memória, removeram os restos mortais
dos soldados da Primeira Guerra e os transportaram para lugar incerto.
“Só ficaram as duas filas da frente”, diz Martins. Desde então que este ex-
combatente do exército colonial vitimado por uma mina que rebentou em
Nangade, em 1972, e o remeteu para uma cadeira de rodas partilha com
o cemitério e com os restos mortais de Francisco Luiz D’ Abreu Amorim

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Pessoa um mesmo e triste destino: o do


Desde então que esquecimento absoluto por parte do
Estado português.
este ex-combatente
Pouco mais de meio ano antes de
do exército colonial morrer no Rovuma, o tenente do 3º
vitimado por uma Batalhão de Infantaria 21, baseado
mina que rebentou em Penamacor, ouviu o discurso do
presidente da Câmara local que avisava
em Nangade, em
os soldados do “pesado sacrifício”
1972, e o remeteu que iriam cumprir na sua missão. Três
para uma cadeira de dias depois, no dia 7 de Outubro de
rodas partilha com 1915, Francisco Pessoa embarca para
Moçambique. Fazia parte da segunda
o cemitério e com
expedição, comandada pelo major
os restos mortais Moura Mendes, com 1670 soldados
de Francisco Luiz europeus. Um mês mais tarde, a 7 de
D’ Abreu Amorim Novembro, as tropas desembarcam em
Porto Amélia, actual Pemba, e por lá
Pessoa um mesmo
ficam até Portugal e Alemanha entrarem
e triste destino: o formalmente em guerra, a 9 de Março
do esquecimento de 1916. Nesse mês, um destacamento
absoluto por parte comandado pelo major Portugal da
Silveira embarca nos vapores Luabo e
do Estado português
Zambeze e dirige-se para Palma, uns 250
quilómetros a Norte, já a curta distância
da fronteira com a actual Tanzânia, na época território colonial alemão.
Os dias de preparação e da logística estavam a acabar.
Palma, no coração da baía de Tungue, é ainda hoje um bom exemplo
dos postais de praias paradisíacas. A plataforma continental entra
vagarosamente pelo mar dentro e na maré vaza é possível entrar e
caminhar pela água quente do Índico até longas distâncias da praia.

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Ao longe, nas coroas da baía, extensos areais brilhantes servem de


cenário a palmares que se recortam entre o azul-turquesa do mar.
Conquistada em Fevereiro de 1887 pelo coronel Palma Velho ao sultão
de Zanzibar, ainda hoje, e ao contrário da maioria dos topónimos de
origem portuguesa, conserva o nome do herói colonial. Quando a
segunda expedição lá chegou era uma pequena aldeia de pescadores
que viviam nos terrenos arenosos, debaixo de coqueiros, onde ainda
hoje resistem as ruínas do cemitério militar.

As primeiras ofensivas

A primeira missão dos homens de Moura Mendes era resgatar para a


soberania nacional o triângulo de Quionga, uma área de 450 quilómetros
quadrados de machambas pobres e palmares junto à embocadura
do Rovuma. Os alemães haviam ocupado esse território sem aviso
prévio nem explicações em 1894, e para o Governo da República a sua
recuperação era a primeira de todas as prioridades. As tropas de Moura
Mendes tiveram por isso menos de um mês para se instalarem em Palma
e para prepararem a ofensiva. No dia 10 de Abril de 1916, às quatro e meia
da madrugada, um destacamento com três homens a cavalo e 350 a pé
deixa a baía do Tungue e faz-se ao caminho para vencer os cerca de 25
quilómetros de um planalto sobranceiro ao mar até Quionga, Às onze e
meia, a bandeira portuguesa era hasteada na pequena localidade.
Quionga caíra sem um tiro – um “pequeno cãozito foi a única
resistência” que as tropas nacionais encontraram, como mais tarde
recordaria o capitão Júlio Rodrigues da Silva, citado no livro de Ricardo
Marques, Os Fantasmas do Rovuma. Mas em Lisboa a primeira façanha do
exército no palco de Moçambique foi exaltada com a mesma solenidade
dos feitos militares de Mouzinho de Albuquerque ou das aventuras
exploradoras de Serpa Pinto. Portugal daria aos “heróis de Quionga”
o nome de ruas, o parlamento enviou felicitações, emitiu-se um selo

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O lugar onde foi enterrado o tenente miliciano Francisco Luiz D’ Abreu Amorim Pessoa

comemorativo e logo a 11 de Abril o jornal A Capital exultava: “Para as


afrontas que da imperial nação de bandidos recebemos, soou finalmente
a hora do desagravo. Há uma justiça imanente que se manifesta,
tardiamente embora, perante a qual têm de curvar-se os altivos exércitos
do kaiser e são inúteis as suas tremendas máquinas de guerra”.
Quionga, hoje como há um século, é uma aldeia remota, pobre e
pacata. O médico militar Américo Pires de Lima visitou-a um ano depois
da reconquista. Saiu de madrugada de Palma, num camião Kelly. “A certa
altura a paisagem mudou de repente. Para lá de uma trincheira aberta
no solo, o aspecto era totalmente diverso. Em lugar do matagal virgem
e bravio, era um terreno cultivado, como se tratasse de um jardim. Um
pouco para o lado do mar, não se via, mas informaram-me, era uma
plantação de 500 mil coqueiros”. Para ele, Quionga era “um mimo,

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comparada com Palma”. Apreciou as “casas confortáveis, com largas


varandas coloniais”, a ladearem “a rua principal, bem arborizada”.
Sublinhou a existência de “uma casa de dois andares, de alvenaria”, que
“dava uma nota europeia se não estivesse coberta de folgas de palmeira”.
A casa ainda existe, em ruínas. A avenida larga conserva as suas árvores
enormes. No centro, ainda se podem ver os vestígios de um monumento
aos combatentes de Quionga, do qual resta apenas o esboço de uma cruz
de Cristo na sua base.

As trincheiras entre a selva

A facilidade com que Quionga regressou à soberania nacional


entusiasmou o comando militar e ainda mais os responsáveis da
República em Lisboa. Recomposto o mapa da colónia, estava na hora
de o ampliar com conquistas. Do outro lado do rio Rovuma estava o que
restava do império colonial alemão, que nessa altura tinha já cedido aos
franceses e aos britânicos os seus domínios no Sudoeste Africano e nos
Camarões. No mês seguinte, colunas portuguesas partem de Quionga e
seguem as margens do Rovuma à procura de pontos de travessia. Uns 15
quilómetros a montante, em Namoto, onde hoje existe um dos dois postos
fronteiriços entre Moçambique e a Tanzânia, descobrem um pequeno
planalto sobranceiro ao rio onde se constroem fortificações.
Nos anos que se seguiram, o pequeno forte foi sendo sucessivamente
ocupado e perdido entre portugueses e alemães. Assani Abdel Remani
Kimombo, o chefe da aldeia de Namoto, que diz ter “talvez mais de 90
anos”, leva-nos ao que resta de umas trincheiras mesmo por detrás do
posto alfandegário. “Era aqui o quartel dos alemães”, diz, embora o tenha
sido, pelo menos originalmente, dos portugueses. Ao seu lado, o chefe
de Quionga, Sahid Momad Agostinho, que nos acompanhou até Namoto,
aponta os limites das fortificações e garante que, “há muitos anos os
muros de terra eram mais altos”. Ainda assim é possível distinguir entre

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

o mato o fosso do fortim e os


muros de protecção onde os
soldados se albergavam do
fogo inimigo.
Namoto, onde se chega
depois de 40 quilómetros de
terra batida desde Palma, é
um lugar cheio de memórias
da Grande Guerra. Assani
Casa em frente ao cemitário de Palma.
Abdel Remani Kimombo ou
Sahid Momad Agostinho,
cujo pai trabalhou para os
alemães, são capazes ainda
hoje de as identificar. Com
erros e lacunas, próprios do
desgaste a que a tradição oral
sujeita os factos, mas com
conhecimento do essencial.
Numa caminhada de dois
quilómetros por um trilho
ameaçado pelo avanço da
selva, onde elefantes, leões
e várias espécies de macacos
vivem livremente, foi possível
encontrar um sepulcro
atribuído a um oficial alemão.
Abdel Carlos John, que fala
razoavelmente português
e vive há anos em Namoto,
levou lá há dois anos uma
Assani Abdel Remani Kimombo, o chefe da aldeia de Namoto alemã que andara à procura

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

de um seu antepassado. O pináculo da sepultura foi derrubado por um


elefante, diz Abdel. Não há nenhum relato nem nenhuma inscrição capaz
de justificar a estranha aparição daquele túmulo no meio da selva.
Na zona circundante de Namoto, as tropas portuguesas foram fixando
posições, sempre ao longo do rio, até uma distância de 50 quilómetros da
foz. Hoje é difícil saber onde fica Namaca ou Namiranga ou Nachinamoca.
Nhica, o outro ponto da rede, permanece na toponímia. Não há dúvidas
porém que, nesta linha defensiva, Namoto seria o ponto mais importante.
Por isso é alvo de um primeiro ataque por parte dos alemães logo a 23
de Abril de 1916, domingo de Páscoa, levando à debandada dos oficiais
e dos soldados indígenas que o ocupavam. A ousadia alemã suscita
receios. Ao contrário da pressa habitual, de Lisboa chegam telegramas
recomendando prudência. Era melhor esperar pelas tropas da nova
Expedição, que se preparava na metrópole, ou pela vinda da infantaria
montada da Guarda Republicana de Lourenço Marques antes de assumir
riscos com novas ofensivas.
Os conselhos, porém, não produziram efeito. Nada parecia capaz
de travar o plano de travessia do Rovuma, que por esta altura do ano
apresenta um baixo caudal e deixa a enorme extensão do seu leito de
cheia entregue à areia ou a ilhotas onde crocodilos e hipopótamos se
recolhem. No final do mês, estava já determinado que a passagem para
a margem Norte do Rovuma se faria em duas colunas, separadas por
uma distância de 1500 metros, que partiriam em simultâneo de Namaca
e Namiranga. Para que não faltasse solenidade ao acto, o Governador
de Moçambique, o influente Álvaro de Castro que em público gostava
de se apresentar como pessoa de um “acrisolado amor pela República”,
chegara a Quionga a 20 de Maio a bordo do Moçâmedes.
Um dia depois, começam as hostilidades. O cruzador Adamastor e a
canhoeira Chaimite subiram o rio, em reconhecimento, e impuseram
a sua presença com uma operação de bombardeamento. Duas lanchas
aportam na margem alemã, junto a um posto designado Fábrica, e

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

incendeiam palhotas e paliçadas. A 23 a ousadia repete-se, mas, desta


vez, a resposta alemã é enérgica. Morrem três soldados portugueses
e seis ficam feridos. A 24, tropas desembarcam na ilhota de Namaca,
a 150 metros da outra margem e preparam-se para o assalto. Mas
ao contrário das mais elementares
recomendações de prudência, em vez
Palma, no coração
do silêncio furtivo que antecipa as
da baía de Tungue, operações militares, durante essa noite
é ainda hoje um bom os soldados transformam a ilhota num
exemplo dos postais de arraial: “Os pretos acendiam fogueiras
e os brancos gritavam, produzindo-
praias paradisíacas.
se o rumor característico dos grandes
A plataforma ajuntamentos”, recordaria o capitão
continental entra Júlio Rodrigues da Silva. A 26, um novo
vagarosamente pelo bombardeamento naval encontra como

mar dentro e na maré resposta o silêncio da outra margem.


Chegara a hora da invasão.
vaza é possível entrar Álvaro de Castro está na balaustrada
e caminhar pela água do Adamastor nesse dia 27 de Maio de
quente do Índico 1916. Às nove da manhã começa a assistir
ao desastre. Pelotões dos regimentos
até longas distâncias
20 e do 21 lançam-se para a outra
da praia margem em pequenos botes. “Quando
estavam talvez a cem metros da margem
esquerda rompe sobre eles um verdadeiro dilúvio de balas enviadas pelas
metralhadoras que os alemães possuem”, nota a memória de António
Eduardo Silva, citado por Ricardo Marques. Américo Pires de Lima,
que não viveu a tragédia em directo, corrobora a falta de prudência, o
aventureirismo e o desprezo dos comandos pela vida dos soldados. “Os
nossos, no meio do rio, completamente a descoberto e sem defesa, foram
literalmente trucidados e, em poucos minutos, daquela tropa confiante

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Quionga, hoje como há um século, é uma aldeia remota, pobre e pacata

só restavam montões de cadáveres nos barcos que derivavam pelo rio


abaixo, ao sabor da corrente”, recorda.
Às 15h30, o combate estava acabado. Os alemães não tiveram baixas.
Do lado português contaram-se três mortes de oficiais e de 30 praças.
Quatro oficiais e 24 praças ficaram feridos. Seis soldados acabaram
prisioneiros ao tentarem a salvação na outra margem. O corpo de
Francisco Luiz D’ Abreu Amorim Pessoa seria transportado para
Palma, onde foi sepultado e onde ainda hoje se encontra. Outros foram
enterrados em Quionga ou no cemitério que ainda hoje persiste no
planalto de Namoto. Em tempos, havia neste local, a um quilómetro do
centro da pequena aldeia de Namoto, uma machamba da família do mzê
(ancião, em suaíli) Assani Abdel Remani Kimombo. Hoje a selva tomou
conta do cemitério.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Chega-se lá com dificuldade. À frente, Abdel Carlos John tem de


desbravar o caminho com uma catana. A experiência ajuda a perceber
a dureza da vida dos soldados naquele local distante. A cada passo há
que evitar as micaias, uma planta com espinhos infecciosos, o feijão
macaco, que causa uma urticária irritante, e principalmente os tapetes de
formigas que pintam de preto vários metros do trilho. Por muito que se
corra é impossível evitar que se colem aos sapatos e subam pelas pernas,
assinalando o seu trajecto com dolorosas mordeduras. Por fim, algures
entre um trilho recente de elefantes, um singelo monumento indica o
lugar onde um número indeterminado de soldados que pereceram na
tentativa de travessia ou nos combates posteriores foi sepultado. Uma
placa informa que “as ossadas dos combatentes da Guerra de 1914-1918
que aqui se encontravam foram removidas em 1956 para o ossário de
Mocímboa da Praia inaugurado a quando da visita de S. Ex.ª o Presidente
da República General Craveiro Lopes”. Sob o zumbido dos insectos, com
a vista do enorme leito do Rovuma pela frente, o lugar impressiona pela
sua dramática beleza.
Depois dessa data fatídica de 27 de Maio, restava à segunda expedição
e ao seu comandante, o major Moura Mendes, esperar pelo final da
comissão de serviço. Os danos causados pela derrota de Namaca foram
devastadores. Nos dias que se seguiram à derrota, Quionga recebeu
os “espectros” vindos da margem do rio. “Os que não ficavam para
sempre no caminho, chegavam num estado lastimoso: faces macilentas e
encovadas, olhos brilhantes de febre, expressão parada de imbecilidade,
barba e cabelo crescidos, maltratados, capacetes amarrotados e sujos,
fatos desabotoados, nojentas botas desatacadas, com as calças metidas
dentro, arrimados a um bordão, quase famintos, pedintes desprezíveis,
abandonados, assim eles entravam em Quionga”, recordaria o capitão
Júlio Rodrigues da Silva.

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Reforços a caminho

Por essa altura estavam já a caminho as primeiras tropas da maior


expedição enviada de Portugal para África até então. Os soldados, o
equipamento e 750 equídeos começaram a embarcar a 28 de Maio
(um dia depois da derrota de Namaca) no vapor Portugal. A 5 de Junho
larga de Lisboa o Moçambique, o maior navio a navegar sob o pavilhão
português, que transportava 1500 soldados. Seguem-se o Zaire e, a 8 de
Julho, o Amarante. A expedição era comandada pelo general Ferreira
Gil, depois de o Governo da República ter anulado a nomeação de Garcia
Rosado, ex-governador geral de Moçambique e militar experimentado nas
campanhas africanas. Dispunha, inicialmente, de uma força composta
por 159 oficiais e 4483 praças. Mais tarde chegariam no vapor Beira mais

Martins Ibrahimo Musse lembra-se do tempo em que o cemitério estava cercado


de um muro alto regularmente caiado

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432 praças e 8 sargentos que se haviam insubordinado em Mafra contra


os alegados privilégios no recrutamento dos filhos de famílias ricas e aos
estudantes de Coimbra. A sua pena seria cumprida nas praias do Índico.
Carlos Selvagem, pseudónimo literário de Carlos Tavares de Andrade
Afonso dos Santos, e Américo Pires de Lima foram dois dos militares
que integraram a expedição. Viajaram durante um mês desde Lisboa
até Lourenço Marques, de onde rumaram a Palma numa viagem de
mais quatro dias. Quando chegaram esperava-os o mesmo caos e
desorganização que tinham presenciado no momento do embarque, em
Lisboa. A bordo do navio, Carlos Selvagem notava no seu caderno de
campanha o primeiro vislumbre do local onde passaria três meses. “Lá
longe, aquela humilde aparência de povoado, afogada sombriamente em
arredondadas máscaras de arvoredo, dizem-nos que é Palma”. Américo
Pires de Lima parecia ter esquecido a sua formação científica e assustava-
se com profecias. Tungue, que dava o nome à baía de Palma, era um
nome agourento, “ensombrado com a alcunha sinistra de cemitério de
brancos” que enchia os soldados de “maus presságios”.
A vista da baía, com as suas areias brancas, com o povoado ao fundo,
seria durante dias e dias a única ligação possível com a terra firme para
muitos soldados. A inexistência de um porto e a falta de condições
mínimas para acolher os recém-chegados obrigaram-nos a permanecer
no barco e esperar pelas marés. Os que tinham mesmo de chegar a terra
fizeram-no em condições “grotescas”. Aos ombros de negros que os iam
buscar no ponto onde as pequenas embarcações encalhavam. “Saltamos-
lhes, um pouco intrigados, sobre os maciços ombros; passamos-lhes
fortemente as pernas por diante do peito; e é de ver a nossa pícara
cavalgada dentro de água”, recordaria Carlos Selvagem. Foram precisas
semanas a fio para que os navios pudessem desembarcar os homens, os
150 camiões Kelly, as armas, as munições ou os víveres.
“E vemo-nos de repente numa larga rua de areia – única rua de Palma
– que corre ao longo da praia, toda revolvida por fundos sulcos de rodas,

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Resto das trincheiras mesmo por detrás do posto alfandegário de Namoto

entre as suas filas de moradas humildes, sob os vagos novelos de sombra


dos coqueiros altos e outras árvores dos trópicos”, recordaria Carlos
Selvagem, numa primeira impressão pouco positiva de povoação: “Uma
escura aldeia indígena, miserável, primitiva, que se espalha ao acaso,
por aqui, por além, na sombra das árvores copadas, em grupos de oito
a dez palhotas, mais ignóbeis que fojos de feras”. Américo Pires de Lima
indignou-se com a sua primeira experiência de desumanidade da guerra,
quando viu, na praia, no meio de um bosque de mangal, “alguns cadáveres
de negros esqueléticos. Enxames de moscas banqueteavam-se naquela
carnagem a ponto de alguns cadáveres nus, de costas no areal, olharem
para o infinito azul com o olhar profundo e vago das órbitas vazias”.
Era o princípio de uma experiência traumática, da qual nem todos
sobreviveriam. O médico notou que “os recém-vindos miravam com

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

quase infantil curiosidade os veteranos do sertão, muitos dos quais se


apresentavam macilentos e hirsutos. Olhavam-nos como se, num espelho
mágico, vissem a própria imagem do que viriam a ser alguns meses
passados”. Não se enganou. Por essa altura já Carlos Selvagem adivinhava
o que estava a acontecer à terceira expedição. Escreveu: “A avaliar pela
rapidez com que os homens vão tombando, uns após outros, como
estorninhos, tiritando de febres ou desfeitos em disenteria, é de crer
que, ao levantarmos os bivaques para iniciarmos, enfim, a nossa grande
ofensiva, já não haja um soldado capaz de afrontar galhardamente outros
mais negros, porventura mais trágicos dias”.

A espera na baía do Tungue

O relato da terceira expedição em Palma é feito de tédio, de sofrimento


com o calor e a humidade que até “a própria alma abolorecia”, de horror
aos mosquitos, às formigas ou aos leões que a cada passo entravam nos
acampamentos. O grosso das tropas ficaria instalado já no planalto,
longe das palhotas à beira da praia, do cemitério e do quartel-general.
Em princípio era um lugar mais arejado e saudável. Carlos Selvagem foi
o oficial que se encarregou de desbravar um terreno, queixando-se da
indolência dos negros ou da resistência da selva, onde “cada palmo de
terreno limpo absorve-nos horas sem fim”. Depois foi esperar que que
as feridas abertas em Namaca sarassem e os soldados fossem de novo
enviados ao acaso para a frente de batalha.
Foram três meses de tédio e de dificuldades. De manhã, “as abluções
fazem-se em água negra, de uma espessa cor de café puro, que
prodigamente o moleque nos traz no fundo de um balde de lona ou de uma
velha lata de gasolina. Quem deseja lavar os dentes serve-se regiamente
das águas minerais da Curia ou Vidago, das dotações semanais. Os outros
– sargentos e praças -, sem águas minerais, sem forte necessidade de
dentes lavados, abstêm-se, em regra, deste luxo”, conta Carlos Selvagem.

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Para obstar ao calor, o quartel-general ordenou um período de descanso


entre as dez e as três da tarde. “A malta do batalhão descia para a planície
logo depois do café e por lá andava a esturrar-se ao sol e a envenenar-se
na água dos charcos, a que a sede levava, até horas da primeira refeição”,
recordaria António de Cértima no seu livro Epopeia Maldita, de 1924.
A necessidade de adaptação ao novo ecossistema social exige
compromissos. O ódio aos monhés (moçambicanos de origem indiana)
é generalizado. Os negros merecem ora condescendência, ora desprezo,
ora admiração. Principalmente as mulheres, com as suas “peles de
ébano macias e tenras, a linha fugitiva das espáduas graciosamente
descaindo sobre o polido contorno dos quadris, muito esbeltas, bem
lançadas, a garganta delgada, o colo alto”, na descrição de Carlos

A inexistência de um porto e a falta de condições mínimas para acolher os recém-chegados obrigaram-nos a


permanecer no barco e esperar pelas marés

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Selvagem que, contudo, lhes deplorava a “odiosa carapinha e hediondo


focinho”. Muitos soldados envolveram-se em concubinatos assumidos,
os incidentes com o roubo das mulheres tornaram-se um problema que
escapou aos registos das campanhas.
A guerra tornara-se um lugar distante. Principalmente depois de
começarem as chegar notícias provenientes de fontes inglesas que davam
os alemães como acabados. As tropas entediam-se, esvanecem-se em
febres ou no torpor do calor húmido dos trópicos. “Todas as difíceis
ideias de Pátria, Honra e Dever parecem dissolver-se, perder a cor e o
sentido, no ambiente mole e sujo destas areias, na atmosfera moral desta
desmoralizada tropa, à torreira deste implacável sol africano”, queixava-
se Carlos Selvagem. O pior, porém, estava para vir. Lá para Setembro
chegaria a hora de partir para uma nova tentativa de invasão da África
Oriental Alemã. Só então a terceira expedição conheceria os verdadeiros
horrores da guerra e se transformaria numa multidão de indigentes,
errando pelos areais de Palma ou pelos trilhos da selva apoiados em
bengalas improvisadas. Era a “expedição do pauzinho”.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

À procura do inimigo,
do outro lado do rio

Nesta estação, na maré alta, há uma ou duas viagens por dia num ferry que transporta, no máximo,
três automóveis e um camião em cada um dos sentidos da fronteira

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia), em Nevala, Tanzânia

Depois do fracasso de Namaca, os soldados portugueses


conseguem atravessar o Rovuma para o lado alemão em
Setembro de 1916. Com tanta facilidade que acreditaram poder
bater os alemães e regressar a casa antes do final do ano.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

O governo pressionava o comando para marchar, os cuidados


com o inimigo ou com o abastecimento de água e comida
relaxaram e, já bem dentro do território alemão, aconteceu
o inevitável. A pesada derrota em Nevala destruiu a maior
expedição enviada a Moçambique na Grande Guerra.

Q
uem passasse pela proximidade da foz do rio Rovuma na noite de
18 de Setembro de 1916 poderia avistar um dos mais imponentes
aparatos militares que o exército português alguma vez organizou
na sua longa presença em África.
Junto a Quionga, concentravam-se nessa madrugada de maré baixa
e luar ténue 120 oficiais e 4060 homens. A sua capacidade de fogo
apoiava-se numa linha de 2682 espingardas, 10 metralhadoras, 12 peças
de artilharia de montanha e um canhão de marinha que fora arrastado a
custo pelo mato e pelo capim até ao planalto de Namoto. Uma vez mais, as
tropas portuguesas tentavam a invasão do território alemão do outro lado
do rio, depois da travessia falhada de 27 de Maio.
O comando das operações estava disposto a conquistar a outra margem,
custasse o que custasse. Agora, e ao contrário do primeiro ensaio, as
forças estavam centradas num único ponto. Não haveria dispersão de
tropas, para além das que integravam a Coluna Negra, preparada para
atravessar o rio em frente a Nhica, 40 quilómetros a montante; não haveria
o risco de ensaiar a passagem em barcos que se tornavam alvos fáceis
para as metralhadoras alemãs; não haveria arraiais nocturnos nem outras
imprevidências capazes de despertar o inimigo. O general Ferreira Gil tinha
muitas dúvidas sobre as condições de combate daquela tropa, mas no que
estava ao seu alcance tudo faria para apagar da memória da derrota de
Namaca com uma vitória como a da conquista de Quionga.
Até chegar àquele dia, a tropa da terceira expedição a Moçambique
passara dois meses de vida calma. Alguns soldados arrancados às leiras
do Minho ou às serras da Beira encontravam-se isolados em postos

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

remotos instalados nas margens do rio que faz fronteira com a Tanzânia
ao longo de 730 quilómetros. A maioria, porém, aborrecia-se sob o calor
abrasador de Palma ou lutava por sobreviver aos frequentes ataques de
paludismo ou disenteria. O fracasso da tentativa de atravessamento do rio
em 27 de Maio deixara marcas no moral. Era preciso ter calma. O corpo

Picada no planalto de Namoto

expedicionário que a partir de Junho desembarcara nas praias da baía


do Tungue ganhava tempo, esturricando a pele na praia, entretendo-se
em batucadas noite fora ou apostando na razia que os leões haveriam de
causar no cercado onde os carregadores negros passavam a noite.
As prioridades do comando eram de pôr ordem num exército
indisciplinado, mal treinado e recrutado à pressa entre aldeões
da metrópole e indígenas que na maior parte dos casos nem falar

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

português sabiam. Alguns documentos existentes no Arquivo Histórico


Militar dão-nos conta dessa barafunda. Em Maio de 1916 o administrador
do concelho do Lago é ameaçado com uma pena de prisão de dez anos
se não reparar as estradas do município para facilitar o movimento de
tropas. De Quionga, onde o quartel-
general se encontrava estacionado
O Governo receava
em 23 de Junho de 1916, chega uma
que a guerra acabasse ordem para que o chefe de concelho de
sem que as tropas Mucoso mande fuzilar “todos os presos
portuguesas tivessem acompanhados de escolta que tentem
fugir” e os espiões. A 16 de Agosto 1916,
sido capazes de
o quartel-general em Palma pergunta
apresentar qualquer ao administrador do concelho de
conquista capaz de Tungue se o segundo cabo n.º 9 Guete
garantir ao país uma e o soldado n.º32 Sahide pertencem
ao corpo de Polícia Militar, ao que
posição favorável nos
administrador responde que não está
futuros acordos de paz habilitado a dar essa informação, que só
em Porto Amélia saberiam.
A devoção burocrática e a calma de Ferreira Gil tinham a seu favor
o facto de ter havido atrasos no desembarque de equipamentos.
“Só em 7 de Setembro é que principiou a desembarcar uma bateria
de montanha, a última da expedição e com ela no Amarante iam
quase todos os solípedes, arreios, lençóis impermeáveis, géneros
alimentícios, rações, condutores, tratadores, viaturas várias, etc.”,
recordaria o deputado oposicionista Vasconcelos e Sá, numa das
sessões secretas da Câmara dos Deputados e do Senado, que em
Julho de 1917 se dedicou a debater as agruras da Grande Guerra. Em
Lisboa, porém, instalara-se o nervosismo e a pressa. Em Agosto de
1916 aumenta a suspeita de que os alemães estavam a um passo de
sucumbir às ofensivas britânicas que o general sul-africano Jan Smuts

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

lançara no Norte e Leste da actual Tanzânia. O Governo receava


que a guerra acabasse sem que as tropas portuguesas tivessem sido
capazes de apresentar qualquer conquista capaz de garantir ao país
uma posição favorável nos futuros acordos de paz. Era, por isso,
“necessário iniciar ofensiva rapidamente, para não corrermos o risco
de chegar tarde ou de ser inútil a nossa acção”, sentenciava por essa
altura uma ordem assinada por António José de Almeida, Presidente
do Ministério (primeiro-ministro) e ministro das Colónias.

O prestígio da Pátria visto de Lisboa

Quando os rumores de que o exército alemão comandado por von


Lettow-Vorbeck estava no limiar da exaustão chegam à base de Palma, os
soldados começam a sonhar com o fim do suplício africano. “No jornal
da caserna dizia-se que lá para Novembro ou Dezembro todas as tropas
teriam embarcado para Portugal”, recorda o alferes Carlos Selvagem no
seu jornal de campanha, que seria publicado em 1924 sob a forma de livro
com o título Tropa d’África. O pior mesmo para os soldados era resistir ao
clima inóspito e às doenças que grassavam nos bivaques.
Dois meses apenas bastaram para que a terceira expedição sentisse
os seus efeitos. Palma tinha-se transformado num imenso hospital
onde tudo era precário. “Faltavam à expedição coisas essenciais, pois
ocasiões houve em que não existia uma gota de álcool, um grama de
quinino, ou uma seringa para infecção; mas Lisboa, solícita, enviava
pontualmente carregamentos de ferraduras”, recordaria o alferes
médico Américo Pires de Lima, sublinhando o ridículo das ferraduras,
inúteis para animais comprados na África do Sul que estavam destinados
a trilhar os solos arenosos da região.
Por essa altura, o general Ferreira Gil estava consciente do problema
que tinha em mãos e tratava de avisar Lisboa dos limites colocados pelo
estado de saúde das tropas à projecção de grandes ofensivas do outro

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Forte de Nevala

lado da fronteira do rio Rovuma. A 6 de Agosto envia um telegrama para


o Governo, prevendo que no espaço de dois meses 75% do seu efectivo
estaria arrasado pelas doenças.
Se o aviso do comandante tivesse sido levado a sério, a pressa em
mandar as tropas para o combate em território inimigo poderia ter
sido melhor ponderada. Mas não foi. O Governo insistia, o que um ano
mais tarde seria interpretado por Vasconcelos e Sá como um sinal de
“incompetência absoluta, inconsciência e indiferentismo pela vida
dos soldados”. Desesperado, Gil ensaia outros argumentos. A 15 de
Agosto informa que há “grandes dificuldades no desembarque do
material e do gado”. Acrescenta que continua à espera da chegada do
navio Amarante “com artilharia e do Beira com medicamentos”. Insiste
que “não tem camions ainda”. Sem sucesso.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

O general lançava alertas, mas decide iniciar os preparativos da ofensiva.


Concebe uma estratégia ardilosa que lhe permitia apresentar serviço a
Lisboa sem ser obrigado a mobilizar grandes recursos. Em Agosto envia
destacamentos para avaliar a possibilidade de se atravessar o Rovuma
a vau. Um dos eleitos foi Viriato de Lacerda, um dos mais prestigiados
oficiais das campanhas em Moçambique, que haveria de ser morto no
combate da serra Mecula, no final de 1917. Outro foi Jorge de Castilho, que
em 1927 se tornaria um dos novos heróis da Pátria por ter sido o navegador
do avião que fez a primeira travessia nocturna do Atlântico.
Apesar de alguns os incidentes e da morte de um cabo alvejado da
margem alemã, os destacamentos encarregados de descobrir pontos
de passagem a vau no Rovuma conseguiram os seus objectivos. Duas
rotas estavam traçadas. Uma, na embocadura do rio; a segunda, menos
importante, na zona de Nhica, onde a Coluna Negra devia passar para
a outra margem. Os erros tácticos cometidos na primeira tentativa de
cruzar o rio não se repetiram. A passagem a vau, e não de barco, de uma
coluna capaz de garantir uma testa-de-ponte na margem inimiga era
bem mais segura para as tropas invasoras. Uma vez na outra margem,
os planos consistiam em seguir pelo litoral, ocupando Mikidani (actual
Mtwara) e mais acima Lindi, onde a existência de portos permitiria um
fácil abastecimento de víveres e equipamento.
A garantia de que no Rovuma havia zonas relativamente fáceis de
cruzar a pé, porém, não bastava para apaziguar os receios e ansiedades
do quartel-geral de Palma. Dia após dia Gil continuava a tergiversar
e o tom dos telegramas que chegavam de Lisboa era cada vez mais
ameaçador. A 5 Setembro, o ministro das colónias telegrafa para Palma
afirmando que “governo inglês continua insistindo pela nossa imediata
ofensiva, realmente indispensável para afirmar o nosso prestígio”. Por
ora, o “Governo confia no general, esperando e desejando rápida e
feliz acção”. Mas como nada acontecesse, o discurso agrava-se. Em 8
Setembro, um telegrama assinado por Afonso Costa, então ministro das

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Na maré baixa, centenas cruzam a vau as zonas menos profundas e de bote nos curtos trechos de maior caudal

Finanças e líder do Partido Democrático, no poder, raia a acusação de


cobardia. “Governo sabe que V. Exª já tem à sua disposição meios de
transporte suficientes para avanço imediato das tropas portuguesas,
cabendo a V. Exª resolver se podem seguir já todas ou somente algumas.
É indispensável não esperar pelo desembarque dos navios nem a chegada
de mais camiões para começar a ofensiva, porque carece evitar que a
guerra acabe, estando aí parados. Seria uma vergonha para o Exército
e um desprestígio para a pátria. Em circunstâncias apertadas como as
actuais deve-se avançar em quaisquer condições. O Conselho de Ministros
confia na vossa atitude enérgica e pede comunique o que vai fazer”
Um dia depois, Ferreira Gil responde ao todo-poderoso chefe
republicano. Desculpa-se com os argumentos do costume, mas
finalmente avança datas concretas para a ofensiva. Um telegrama

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Mulheres cruzam o leito seco do rio a pé pela areia branca

enviado ao Governo expõe as suas condições e o seu estado de espírito:


“Não tenho neste momento meios [para] poder avançar pois está a
desembarcar material artilharia, metralhadoras – infantaria, não se
podendo mover sem ele. Trabalho incessantemente atravessar Rovuma
várias pontes dia 17 e seguintes, seguindo depois Mikindani e Lindi.
Em 14 e 15 começa avanço tropas. Farei tudo para seguir mais rápido
possível, pois prezo muito honra exército país”. Poucos dias depois, a
13 de Setembro de 1916, o comandante da expedição dá conta de uma
inevitável mudança de planos, uma vez que “navio almirante inglês lhe
comunicou estar Mikindani ocupado pela bandeira inglesa”, pelo que
se obrigava a pedir “instruções”. No actual estado de guerrilha entre a
tropa e a política era, porém, impossível adiar o envio de tropas para as
margens do Rovuma.

73
Grande Guerra • Grandes Reportagens

Por essa altura, a Schutztruppe de


O general Ferreira Gil von Lettow-Vorbeck tinha perdido as
suas posições no litoral. A 4 Setembro
estava consciente do
os ingleses instalaram-se em Dar-es-
problema que tinha Salam e daí ocuparam os portos de
em mãos e tratava Lindi e Mikidani. O que restava da força
de avisar Lisboa dos alemã encontrava-se refugiada algures

limites colocados pelo para lá do planalto dos macondes que


se prolonga da margem moçambicana
estado de saúde das após o intervalo criado com o
tropas à projecção gigantesco leito de cheia do Rovuma.
de grandes ofensivas Estava limitada uma coluna de 1620
europeus e 12 mil askaris (soldados
do outro lado da
indígenas), que facilmente se subdividia
fronteira do rio em destacamentos lendários pela sua
Rovuma audácia e mobilidade, como o do alferes
Sprockhooff ou o capitão Von Stummer,
que nos primeiros meses do ano se seguinte se entreteria, com a ajuda
dos indígenas da tribo Ajaua, a fazer razias nos territórios do Niassa para
reabastecer as colunas alemãs.
Pressionados pelas tropas inglesas, que reuniam colunas sul-africanas
e indianas, pelos belgas e pelos portugueses, podia-se facilmente
esperar que os alemães estivessem condenados a uma derrota a
curto-prazo. Quando escreveu a história da conquista de Nevala, o
coronel Azambuja Martins, chefe do estado-maior do general Ferreira
Gil, admitiria até que ponto essa constatação era errada. Escreveu
Azambuja Martins: “Os alemães retiraram em boa ordem, aproximando-
se da nossa fronteira, concentrados em dois núcleos, um a sudoeste
da sua colónia e outro, mais poderoso, sob o comando de Lettow, à
rectaguarda do rio Rufiji”. As suspeitas de uma derrota iminente dos
alemães estavam longe da verdade.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

A 14 de Setembro, o jornal Star de
Apesar de alguns os Joanesburgo tornava pública uma

incidentes e da morte convicção geral, considerando


que, face às debilidades do exército
de um cabo alvejado português, era improvável acreditar
da margem alemã, na tese do cerco aos alemães. “Se as
os destacamentos tropas portuguesas ao sul fossem por
qualquer forma eficientes, ou mesmo
encarregados de
até efectivas, como em teoria a sua
descobrir pontos de situação nos leva a imaginar, a sua
passagem a vau no cooperação no momento actual seria
Rovuma conseguiram do máximo valor para apressar o fim da
campanha. Infelizmente não há razão
os seus objectivos.
para se depositar muita confiança nas
Duas rotas estavam suas faculdades para prestar auxílio”,
traçadas lia-se no jornal. Havia ferraduras, mas
faltavam seringas, havia metralhadoras
mas faltava uma rede de etapas capazes de garantir os abastecimentos
para uma força de milhares de homens, havia espiões contratados (o
mais conhecido era Simba Ibrahimo Hadji “um homem hábil e esperto,
prestável, sujo de corpo, intrujão, ávaro e cupido” na opinião sempre
tingida de xenofobia de Carlos Selvagem), mas o comando vivia na estreita
dependência das informações, muitas vezes erradas, dos ingleses.

A passagem

Como prometido por Ferreira Gil, milhares de soldados tinham-se


concentrado no perímetro do triângulo de Quionga entre os dias 14 e
17 de Setembro. Com as conquistas britânicas de Setembro, os planos
estratégicos do comando português tinham sido alterados. Agora a nova
missão apontava para noroeste, para lá da escarpa que anuncia o planalto

75
Grande Guerra • Grandes Reportagens

Um aspecto do quotidiano de Nevala

dos macondes do lado tanzaniano. Empurrado pela pressão política,


Ferreira Gil não tinha escolha. “A epopeia da fome” ou “epopeia maldita”,
como a designaram Carlos Selvagem e António de Cértima, estava prestes
a começar.
O plano de travessia previa duas investidas diferidas no espaço de
um dia. Uma série de manobras de diversão seriam lançadas em Unde
e Mocímboa do Rovuma, dezenas de quilómetros acima da foz do
grande rio. Na zona de Nhica, a Coluna Negra, organizada com duas
companhias indígenas, uma companhia europeia de infantaria, quatro
metralhadoras, duas peças de artilharia e um pelotão de infantaria
montada (que incluía Carlos Selvagem) trataria de passar o vau o rio às
3h30 da madrugada do dia 18 – uma série de atrasos adiaria a partida
para as 11h da manhã. No dia seguinte, o grosso das tropas, compostas

76
Grande Guerra • Grandes Reportagens

por três colunas e uma coluna de reserva, passaria o rio a vau ou,
num segundo momento, em jangadas construídas pelas equipas de
engenharia militar. Uma vez na outra margem, todas as colunas se
deveriam juntar em Migomba, em frente de Namoto.
Com a excepção de uma breve troca de tiros na zona de travessia da
Coluna Negra, tudo decorreu na mais perfeita quietude. A tão temida
travessia do Rovuma, que teve lugar no dia 19 de Setembro de 1916, não
passou de “um passeio de recrutas para experiências de heroicidade”,
como ironizaria António de Cértima.
“Nem um tiro heróico, nem um boche
Governo sabe que para troféu da conquista. Apenas
V. Exª já tem à sua meia dúzia de negros, uma peça do
disposição meios de Konigsberg [navio de guerra alemão

transporte suficientes afundado em Dar-es-Salam em Julho de


1915], sem culatra, duas metralhadoras,
para avanço mobílias, um cofre de latão, ferro-
imediato das tropas velho, imbecilidades apreendidas nos
portuguesas, cabendo raids de exploração. De resto, belos
entrincheiramentos, abrigos cheios de
a V. Exª resolver se
sabedoria, redutos originalíssimos – um
podem seguir já todas curso esplêndido de táctica moderna e
ou somente algumas oportunismo militar”, notaria Cértima.
Afonso Costa, ministro Na zona de Quionga, o Rovuma
das Finanças e líder que corre na época seca (entre Maio e
do Partido Democrático
Novembro) é um rio estranho. As suas
margens de aluvião estão por esta altura
cheias de um capim alto, duro e, em alguns pontos, impenetrável. Depois,
seguem-se extensos areais recortados por pequenos braços de rio que
formam uma interminável rede de ilhotas ao longo do seu curso. Na zona
de Namoto e de Kilambo, onde existe um dos dois postos fronteiriços
entre Moçambique e a Tanzânia (o outro é o da Ponte da Unidade, em

77
Grande Guerra • Grandes Reportagens

Negomano), pode-se hoje imaginar a aventura de milhares de soldados


portugueses nessa noite de sucesso de Setembro de 1916. Na maré baixa,
centenas cruzam o leito seco do rio a pé pela areia branca, a vau nas
zonas menos profundas e de bote nos curtos trechos de maior caudal.
Nesta estação, na maré alta, há uma ou duas viagens por dia num ferry
que transporta, no máximo, três automóveis e um camião em cada um
dos sentidos da fronteira.
Não havendo alemães do outro lado, era fácil prever uma travessia
calma. Tão calma que a crença na derrota iminente dos alemães
encontrou naquele episódio um novo e maior fundamento. Ao nascer do
sol, a bandeira portuguesa foi finalmente hasteada em território alemão, a
cavalaria dedicou-se a missões de reconhecimento nas proximidades, mas
“as tropas, nessa noite, já com dificuldade mantinham as prescrições de
segurança regulamentares, convencidas de que a campanha terminara”,
recordaria Azambuja Martins. Havia agora que estabelecer contacto com
os britânicos, instalados a uns 60 quilómetros de distância, em Mtwara,
distância que um pelotão comandado por Carlos Selvagem venceu em
dois dias a cavalo apenas para constatar que “os ingleses nada tinham que
comer” e regressar à base.
Havia que fixar com rigor que passos dar. É então que, uma vez mais,
o Governo mostra a sua total incapacidade para perceber a realidade
do terreno. Uma nova ordem vinda de Lisboa insiste “na ocupação de
território na mais larga extensão, tanto para Norte junto ao mar, como
Noroeste em direcção a Mahenge e Oeste, a abranger toda a extensão
da fronteira até encontrar força aliada”. Entre a calma e, certamente,
o desespero, Ferreira Gil esclarece que Mahenge fica a mais de 400
quilómetros de distância do Rovuma. E sublinha que “é completamente
impossível qualquer destacamento internar-se centenas de quilómetros
sem meios de conduzir víveres e munições”. Sempre bem informado
sobre tudo o que se passava na frente de Moçambique, o deputado
Vasconcelos e Sá diria mais tarde que essa era “uma ordem criminosa”.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Entalados do outro lado do rio, cedo os soldados começaram a sentir


as consequências da negligência e da impreparação da campanha militar
que protagonizavam. Os relatos de falta de água e de comida ganham um
relevo crescente nos diários dos militares que chegaram até nós. Ferreira
Gil sabia dessas dificuldades e, uma vez mais, tenta introduzir uma nota
de realismo no delírio do governo. A 3 de Outubro, comunica a Lisboa
que o general Smuts tinha “informações seguras de que o inimigo se
moverá para sul para atravessar o território português e por isso não seria
prudente mover as forças portuguesas para Norte, deixando a fronteira
aberta ao inimigo”. Dias depois, informa que os camiões Kelly, cruciais
para o abastecimento, estão sem câmaras-de-ar. Nada feito. Nos círculos
da capital começam a circular suspeitas de incompetência. Na oposição
assinala-se o facto de ser um “oficial
desconhecedor de África, que aceitou
É completamente um comando tão sério e grave de coluna
impossível qualquer principiada a organizar pelo general
destacamento Garcia Rosado, esse conhecedor da
África Oriental, despedido com castigo
internar-se centenas
do comando à última hora”, notaria no
de quilómetros sem Parlamento Vasconcelos e Sá.
meios de conduzir Obrigados a prosseguir para noroeste,
víveres e munições os oficiais e soldados sabem pelo nome
dado à coluna principal que terão
General Ferreira Gil
de subir ao planalto, de “combater o
inimigo aonde o encontrar”, de conquistar o forte de Nevala, a uns 200
quilómetros da foz do Rovuma, e daí prosseguir mais 70 quilómetros
até chegarem a Masasi. A dureza do caminho que aguardava a Coluna
de Masasi ficou de imediato atestada numa missão de reconhecimento
do caminho até Nevala. A 4 de Outubro de 1916, um dia de “sol
excepcionalmente ardente e de calor intensíssimo”, a coluna começava
a avistar o forte alemão quando caiu numa emboscada, em Mahuta.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Morreram 33 soldados portugueses, e um capitão, um sargento


e 12 praças ficaram feridos.
O pior, porém, estava para vir. Como diria mais tarde no Parlamento
o deputado Vasconcelos e Sá na sua violenta denúncia das condições da
guerra em Moçambique, acreditou-se “nos dizeres da imprensa da União
Sul Africana, que dava como quase terminada, a curto prazo marcado,
a campanha na colónia oriental africana alemã e que daí, em política
que chamarei de bluff, ordenaram violentamente avanços, supondo-os
fáceis, absolutamente inexequíveis para forças insuficientes como as que
dispunha o general Gil, arrasadas, doentes, incapazes de se aguentarem,
em linhas de comunicações longas, num clima inóspito”. Se a segunda
expedição conhecera um triste epílogo em Namoto, a terceira teria em
Nevala o seu ocaso.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Nevala, um forte longe de mais

A fotografia do líder nacionalista Julius Nyere gasta pelo tempo foi esquecida numa esquina

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia), em Nevala, Tanzânia

Numa madrugada de Outubro de 1916 uma coluna de 1800


soldados portugueses avista ao longe o forte de Nevala, na actual
Tanzânia. Um mês de fome, sede e marcha dolorosa entre a
selva tinha-a transformado numa legião despedaçada. O forte
seria conquistado, mas a maior expedição de tropas nacionais
para África na Grande Guerra estava desfeita e pronta para o
golpe de misericórdia. Que viria em breve

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

A
fotografia do líder nacionalista Julius Nyerere gasta pelo tempo foi
esquecida numa esquina. Por cima de uma porta ficaram umas
algemas. Espalhados pelo chão foram deixadas folhas soltas de
autos policiais escritos em suaíli. O espectro de ruína que ameaça
o velho forte alemão de Nevala é uma boa sugestão para se imaginar a
sensação de abandono, desesperança e agonia que mais de um milhar de
soldados portugueses ali sentiram nos dias de cerco que durou entre 22 e
28 de Novembro de 1916.
Salehe Saidi Mawazo, 84 anos, diz que o “boma” (forte) foi construído
“por volta de 1893 para defender a cidade dos portugueses”, instalados
para lá do rio Rovuma, que se avista a uns 40 quilómetros de distância.
Salehe, o sábio da pequena cidade, nunca ouviu falar da sua conquista
pelos portugueses. Na sua memória, a dominação alemã que acabaria
em 1918 começa e acaba com a “brutalidade”, os “trabalhos forçados”,
a insistência “num governo pela força”. A curta passagem de 1800
portugueses por Nevala não se incrustou na tradição oral, mas haveria
de dar origem a uma das mais exuberantes manifestações de euforia e
depressão de toda a Grande Guerra na África portuguesa.
Entre 26 de Outubro e a madrugada chuvosa de 28 de Novembro de
1916 Nevala foi um símbolo da glória, do heroísmo, do valor da gesta
portuguesa. Duas colunas de soldados tinham conseguido atravessar
o Rovuma, foram capazes de bater a resistência alemã no seu próprio
território, subiram à serra de Nevala e conquistaram o seu forte. Para
um exército desmoralizado, doente, sem equipamento adequado,
atacado pela ausência de linhas de abastecimento que lhe garantisse
água e comida, a façanha merecia as homenagens e os elogios que
se ouviram e leram nas galerias do Parlamento, nos salões da gente
culta de Lisboa e do Porto ou nas páginas dos jornais. Um mês bastou
para que essas ilusões de glória efémera se desfizessem e Nevala se
transformasse na derrota que destruiu o maior e melhor equipado
contingente português enviado para África em toda a o conflito.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Transporte de água e refrigerantes no ferry que atravessa o rio Rovuma de Kilambo, Tanzânia,
para Namoto, Moçambique

Para se perceber o que esteve na base daquela loucura é preciso


esquecer as boas práticas dos códigos militares ou o mais elementar
bom senso e procurar respostas nas prioridades dos políticos. Mal
desembarcou os seus primeiros homens na baía rasa de Palma, em
Julho de 1916, o comandante da Expedição, general Ferreira Gil,
empenhou-se em pedir a Lisboa tempo e a substituição das tropas
que tinham chegado no ano anterior. O rigor do clima, o desgaste
das febres e as sequelas dos combates infrutíferos da Primavera para
atravessar o rio Rovuma tinham transformado este contingente numa
legião de incapazes para outra coisa senão a luta pela sobrevivência.
De Lisboa, porém, a ordem era a mesma e repetiu-se entre Julho e
Setembro em crescente tom de ameaça: as tropas que existiam eram
suficientes para atacar o inimigo no seu território e, assim, ganhar

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

trunfos para garantir a preservação do império e até, quem poderia


saber, novas anexações quando o dia da paz chegasse.
A travessia do rio deu-se a 19 de Setembro de 1916, mas logo depois
houve uma mudança de planos. As colunas portuguesas não seguiriam pelo
litoral, onde seria mais fácil serem abastecidas. Os ingleses tinham chegado
mais cedo e ocupado Mikidani, actual Mtwara, e a ambição do ministério
apontava agora para o interior dos territórios da actual Tanzânia. Nevala, a
200 quilómetros da foz do Rovuma, “nas abas de um maciço de escarpadas
montanhas, em pleno interior africano, sem caminhos, nem estradas,
nem qualquer outra etapa intermédia”, como a descreveu o alferes Carlos
Selvagem, surgiu assim naturalmente num mapa de desejos que chegou a
contemplar Mahembe, a uns impossíveis
400 quilómetros de distância pela selva.
A curta passagem
O objectivo acertado entre o Governo
de 1800 portugueses e a expedição previam, no imediato,
por Nevala não se a conquista do forte de Nevala para
incrustou na tradição se estabelecer um ponto intermédio
de apoio na campanha que depois
oral, mas haveria de
teria de seguir para Masasi, uns 70
dar origem a uma quilómetros mais a noroeste. Para se lá
das mais exuberantes chegar seria melhor regressar à margem
manifestações de portuguesa e reentrar na colónia alemã

euforia e depressão de numa zona mais próxima de Nevala.


Sempre se estaria mais perto da base
toda a Grande Guerra de abastecimentos. Ferreira Gil, porém,
na África portuguesa decidiu manter as tropas em território
inimigo. “Repugnava ao general mandar
retrogradar as suas forças para Palma, para depois marcharem pela margem
portuguesa, porquanto essas contramarchas enfraqueceriam ainda mais o
já fraco moral das suas forças”, escreveu o coronel Azambuja Martins, chefe
do Estado Maior da expedição e participante activo na operação Nevala.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Firmada a decisão, os portugueses procuraram de imediato cair nas


boas graças dos macondes que habitam a zona fronteiriça, seguindo a
mesmas estratégias de sedução que os alemães usavam com sucesso
no lado moçambicano. A tarefa não era difícil de realizar. O ódio aos
alemães, que Salehe Saidi Mawazo ainda hoje recorda, era provavelmente
generalizado. Uma proclamação aos “indígenas do norte do rio Rovuma”,
estranhamente redigida em português para destinatários falantes do
suaíli, anunciava: “Novamente os portugueses, que ocuparam Quíloa em
tempos mais felizes para os naturais, como provam ainda hoje as ruínas
nessa cidade, voltam agora a expulsar um povo estranho sem tradições,
que recentemente explorava a região”. Contrariando as expectativas,
porém, os soldados nada fizeram para evitar as pilhagens a que, “sob a
nossa flácida soberania”, como notaria Carlos Selvagem, os macondes de
Moçambique se entregaram na outra margem do Rovuma.

O pesadelo em Mahuta

Além da propaganda, a hora era de espera e de preparação. Foi preciso


quase um mês até que o movimento dos soldados se iniciasse em
direcção a Nevala. Primeiro havia que vencer a crónica dificuldade de
abastecimentos. Com as câmaras-de-ar dos camiões Kelly rebentadas
pela dureza das estradas arrancadas à selva, eram necessários
milhares de carregadores para fazer o transporte de água, comida e
equipamentos desde Palma, a mais de 100 quilómetros de distância,
até aos acampamentos instalados para além do gigantesco leito de seca
do Rovuma. A engenharia militar lançou uma ponte sobre o rio, mas o
grosso da coluna teve de recuar 30 quilómetros até Nichiriro, primeiro,
e Sicumbiriro, logo a seguir (a toponímia das fontes da época nem
sempre corresponde à actual). Seria nesta povoação perdida entre o
mato e o capim que bordeja o Rovuma que as tropas se concentrariam
antes da ofensiva final.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Várias missões de reconhecimento foram lançadas para se encontrar a


melhor forma de subir ao planalto dos macondes e descobrir vias de acesso
a Nevala. Numa dessas missões, os portugueses puderam constatar que os
esperaria tudo menos um passeio triunfal. A 4 de Outubro, uma coluna saiu
da sua base às quatro da manhã e seguiu um dos trilhos dos macondes que,
“entalados pelos matos altos, são as únicas estradas que levam a Nevala”,
na percepção de Carlos Selvagem. Nas imediações de Mahuta, a uns dez
quilómetros do forte, num desfiladeiro envolto numa mata de espinheiros,
cai numa emboscada. Eram quatro da tarde. “Os primeiros momentos
foram terríveis para os nossos. A estrada de marcha, de onde não se podia
sair, além de pejada de solípedes, era enfiada pelos fogos do inimigo”,
recordaria mais tarde Francisco Curado, um dos poucos oficiais que se
destacou pela lucidez e bravura na frente moçambicana, citado por Ricardo

Um aspecto do quotidiano de Nevala

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Marques no seu livro Os


Fantasmas do Rovuma.
Surpreendida pela
armadilha, a coluna demorou
a recompor-se. Os soldados
indígenas fugiram em
desordem. Até que, uma hora
e meia depois, o comando
consegue reestabelecer a
disciplina e definir posições.
“Quando o inimigo nos
julgava aniquilados e
desmoralizados, os nossos
atiradores rompem fogo por
descargas e por tal forma
que, desmoralizando o
inimigo, fizeram calar as suas
metralhadoras, permitindo
assim a nossa retirada”,
continua Francisco Curado.
Salehe Saidi Mawazo, 84 anos, diz que o “boma” (forte) Para trás tinham ficado 33
foi construído “por volta de 1893 para defender a cidade
dos portugueses”, instalados para lá do rio Rovuma, mortos, entre os quais três
que se avista a uns 40 quilómetros de distância
soldados europeus. Um
capitão, um sargento e 12 soldados ficaram feridos. Mahuta, ainda assim,
não fora uma derrota, nem uma vitória. “Por honra e glória das nossas
armas, o combate de Mahuta, que devia ter sido um dos nossos mais
trágicos desastres desta campanha, redundou apenas, mercê do valor de
alguns oficiais, numa escaramuça de avançadas, rijamente ferida de parte
a parte, com muitos mortos e dezenas de feridos”, diria Carlos Selvagem.
Constatou-se no entanto que não havia condições para seguir em
frente. “As nossas forças estavam exaustas pelo combate e sequiosas

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

pela falta de água, que se fez sentir


Repugnava ao general nas metralhadoras, tendo de se deitar
nos refrigeradores águas minerais da
mandar retrogradar
ambulância e até urinas”, recordaria
as suas forças para Azambuja Martins. A água das
Palma, para depois metralhadoras “tinha sido levianamente
marcharem pela bebida pelos soldados indígenas”.
Cinco dias depois, em Sicumbiriro
margem portuguesa,
ultima-se a concentração das forças
porquanto essas portuguesas. As tropas comandadas por
contramarchas José Pires e por Liberato Pinto juntam-se.
enfraqueceriam ainda A 13 de Outubro, a força sob as ordens
mais o já fraco moral pelo major Gama Lobo sai de Mironga
e chega ao final da tarde. A Coluna de
das suas forças Masasi começa finalmente a ganhar
Coronel Azambuja Martins contornos. Seriam ao todo uns 1800
homens prontos para cumprir a primeira
etapa da conquista até Nevala. A sua missão seria atacar a fortaleza pelo
Leste, deixando para um destacamento liderado por Azambuja Martins
a missão de liderar a ofensiva pelo Oeste. A estratégia poderia ser ideal,
mas, uma vez mais, acabaria por se perpetuar apenas com uma simples
ordem de serviço no papel.
Com a base e os depósitos de abastecimentos longe, a Coluna de
Masasi lutava contra a falta de alimentos suficientes para se aventurar
em mais uma etapa pelo mato. Para os soldados da Coluna haveria 600
rações de reserva no dia marcado para a partida. Para os cerca de 1200
carregadores e auxiliares o pessoal das provisões apenas se poderia
garantir grão e bacalhau para cozer. Ou seja, havia comida para, no
máximo, dois dias. Junto ao rio, a água não faltaria, mas nada garantia
que a houvesse lá acima, no planalto. Foi nesta incerteza que os soldados
da coluna iniciaram a sua marcha rumo ao forte, eram três da manhã do

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Por cima de uma porta ficaram umas algemas. Espalhados pelo chão foram deixadas folhas soltas de autos
policiais escritos em suaíli. Em cima, a fotografia do líder nacionalista Julius Nyerere gasta pelo tempo
foi esquecida numa esquina

dia 18 de Outubro. “Como pedir a um homem semimorto de fome e fadiga


que se bata com galhardia ou saiba morrer com heroísmo?”, perguntaria
nos dias seguintes Carlos Selvagem.
A ordem de serviço à coluna impunha-lhe um dia de marcha até às
proximidades de Nevala. Mas para cumprir essa agenda seria necessário
tomar o caminho de Mahuta onde, num dos seus desfiladeiros, a missão
de reconhecimento tinha sido emboscada duas semanas antes. Por
precaução, o comando opta por um caminho diferente. “Em lugar
de seguir por Mahuta e chegar a Nevala numa etapa de 36 km, foi
marchando hesitante pelas pantanosas margens do rio e só passados
oito dias a Coluna de Masasi viu Nevala”, lamentaria Azambuja Martins.
Não que a distância fosse muito maior – dos altos de Nevala avista-

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

se ao longe o curso do Rovuma. O que atrasou a marcha foi a falta de


comida, que obrigou a várias paragens. Em Pindimbe, onde se fez
um reabastecimento, chegaria não só comida mas até uma caixa de
chocolates enviada em nome do alferes Carlos Selvagem, um capricho
improvável numa coluna faminta a vaguear pelo mato.
Seguindo por outros caminhos, Azambuja Martins cumpriu a sua
missão de forma mais expedita e tranquila. No dia em que Carlos
Selvagem se deliciava com a encomenda de chocolates, o chefe de
Estado Maior da terceira expedição a Moçambique aproximava-se de
Nevala. Nessa manhã, “a nossa pequena coluna continuou avançando, e
a situação parecia indicar que nós tínhamos todas as probabilidades de
êxito a nosso favor, porque os indígenas da região estavam do nosso lado,
e eles estão sempre do lado do mais forte”, escreveria Azambuja. Pela
tarde, lançaria um ataque surpresa com os seus 50 soldados europeus
e 30 indígenas que privaria os alemães do controlo da água da ribeira
de Nevala, um pequeno oásis a uns cinco quilómetros do forte, onde
ainda hoje a população local se abastece nos meses de seca. Depois de
colocar as suas metralhadoras em lugares estratégicos em volta da ribeira,
Azambuja obrigou os alemães a retirar. No combate morreriam três
homens e 12 ficaram feridos.
Agora restava-lhe esperar pela Coluna de Masasi, que se arrastava pelas
encostas que ligam as margens do Rovuma ao planalto de Nevala. A 24, a
coluna deixa Pindimbe e no dia seguinte está a curta distância da posição
ocupada por Azambuja Martins. Carlos Selvagem deixa-a imobilizada e
tenta fazer a ligação com o destacamento de Azambuja. Pelo caminho
impressiona-se com o cadáver de um sargento alemão, “abandonado,
insepulto, no mato, meio podre, negro de gangrena, a desfazer-se em
pus e humores que escorriam, já secos, pelos buracos das balas que o
feriram”. Nessa manhã, estremunhado, avista entre um bocejo a pressa
da sua missão. “Lá no alto, bem longe, encarapitado na esplanada duma
aguda montanha, a silhueta airosa e geométrica do fortim de Nevala, com

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

as suas pardas muralhas, sua fiada de janelas, seu mastro esguio onde
arrogantemente drapejavam já na aragem matinal as cores da bandeira
alemã – vermelha, branca e negra”.
Descoberto o acampamento, o alferes procura o acampamento do
coronel Azambuja e recebe uma descompostura. “Não era por ali que nos
esperavam, mas sim pelo leste, pelos caminhos do planalto”, como rezava
a ordem do quartel-general em Palma. No dia seguinte está de regresso
com novas ordens. Pelo caminho tem de resistir a uma emboscada alemã.
O soldado José dos Santos Calhau é morto com um tiro na nuca. Prossegue
e ao chegar ao acampamento toma consciência do estado das tropas. Em
vez de uma coluna, o que ele vislumbra
é um bando de maltrapilhos. Após mais
Para Lisboa, a um dia de marcha intensa sem água nem
conquista de Nevala comida, a coluna deixara-se adormecer
seria por breves “no mais suave dos entorpecimentos”,
“sem uma sentinela, sem o menor
semanas o zénite
cuidado, como se deve dormir na mão
do brilho da jovem de Deus”. Outro dos participantes
República dessa odisseia, António de Cértima
afirmou mais tarde que o comandante
da coluna, capitão Liberato Pinto, “não fazia ideia onde se encontrava,
não se preocupando por isso com a disciplina da marcha nem com as
consequências que poderiam advir desta falta de critério militar”.
Com o frio da madrugada, a tropa desperta do sono retemperador
e põe-se de novo em marcha. O outro elo da ofensiva estará perto.
Às dez da manhã chegava à Ribeira de Nevala após uma semana de
etapas. De imediato, Azambuja refaz os seus planos. Gorado o plano
de ataque em pinça, três colunas sitiariam a fortaleza, mas antes lança-
se um apelo à rendição dos alemães. A resposta é um violento ataque
de artilharia que gera o pânico entre os portugueses. Um soldado em
transe grita pela “mãezinha”. O alferes Selvagem pergunta-lhe se estava

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Vista da serra de Nevala

ferido. Ele respondeu: “ainda não, meu alferes”. A ordem é imposta a


pontapé ou sob a ameaça da baioneta dos oficiais. Infelizmente não havia
possibilidade de se responder ao ataque. Toda a equipa de artilharia tinha
ido fazer uma missão de reconhecimento de posições.

Uma conquista, finalmente

Passada a surpresa das primeiras granadas, surge uma nova surpresa.


“Observou-se uma explosão inexplicável num dos ângulos do fortim”,
relataria Azambuja Martins. Os alemães desfaziam-se dos últimos
explosivos e incendiavam os abastecimentos que não podiam levar na
fuga. A tropa pôde finalmente subir em paz os cerca de 100 metros da
escarpa até ao forte. Os alemães tinham-no abandonado.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Para Lisboa, a conquista de Nevala seria por breves semanas o zénite


do brilho da jovem República. Um telegrama de Norton de Matos,
ministro do Exército, para Ferreira Gil dizia: “Em nome do Exército e em
meu nome saúdo e felicito V. Exª e forças do seu comando pela brilhante
ocupação de Nevala. Todos vamos acompanhando aqui com comoção
e entusiasmo o glorioso esforço, que com maior coragem e abnegação
as nossas tropas estão fazendo em África para conquistarem o mais
rapidamente possível grande porção do território inimigo, e vemos já as
etapas de Masasi e Lukuledi seguirem à de Nevala”. No terreno, porém, a
realidade era bem mais cruel.
Depois de hasteada a bandeira e de terem reconhecido o local,
os soldados caíram rapidamente na realidade. Nevala era, e é, uma
pobre localidade perdida na selva. O forte não passa de uma pequena
construção com um andar rodeado de um muro. As cisternas de água
que os alemães envenenaram com estricnina momentos antes de o
forte ser conquistado ainda se conservam. O celeiro, que entretanto
fora transformado em prisão, também. O melhor daquele lugar, ou
pelo menos certamente o mais belo, é a extraordinária paisagem que
se avista das suas traseiras. Um tapete denso de floresta e selva começa
na escarpa por onde os soldados portugueses treparam (e por onde
haveriam de fugir daí a um mês), estende-se dos pés do monte onde
o forte funciona como coroa até à outra margem do Rovuma, onde o
planalto dos macondes se reergue e prolonga para lá, até à histórica
localidade da Mueda.
Com o problema da água meio resolvido – sempre a havia na ribeira -,
os soldados entretiveram-se a vasculhar entre os despojos da ocupação
alemã à procura de comida. Mais do que festejar a vitória, importava
aplacar a fome. “Os homens, alquebrados de todo, o olhar riscado de
demências, trincavam o milho que se encontrara num casebre anexo
ao fortim, onde o alemão tinha o seu celeiro. Alguns, chorando até de
raiva, mordaçavam as folhas verdes do ananás saboreando a humidade

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

vegetal. O delírio da fome causava pavor”, recordaria António de


Cértima. Um soneto criado pelos soldados dava conta do estado de
espírito após essa estranha vitória. Felizmente não houvera combate,
infelizmente não havia comida.

Sonho que sou um mísero magala


Por cacimbos, por sóis, por noite fria,
Como um teso, lá vou também um dia
À conquista da praça de Nevala
Mas já me sinto desmaiar, sem fala
Rota a farpela já, tripa vazia
Quando na sua brutal alvenaria
Lá num alto me é dado enfim cocá-la
Com muitos tiros cá de longe, brado
Eu sou um pobre diabo, um desgraçado
Entrega-te fortim! Não sejas tanso!
Abrem-se as portas, quase sem sarilho;
E dentro, encontro só, com algum milho.
Silêncio e escuridão… Foi um descanso!

Para todos os efeitos, a primeira parte da missão estava em tese


cumprida. A “mísera escolta landim roendo peixe seco das rações e
fartando a sede com água do Rovuma” que, “resignadamente”, na
avaliação de António de Cértima, avançara em território inimigo, tinha
uma bandeira para agitar. Por ora. A factura chegaria mais tarde.
O que poderia fazer um exército de homens “quase descalços,
andrajosos, os uniformes em farrapos, os capacetes de feltro
esbeiçados, sem uma chispa no olhar, um belo riso na face, todos
quebrados já das fadigas, das fomes e das febres”, perguntava-se Carlos
Selvagem, olhando à sua volta para os soldados portugueses que “se
arrastam, arrimados a um bordão, como os mendigos das suas aldeias”.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Três meses de “lazeres” em Palma, “requentando ao sol nas areias do


Tungue, com mais um mês de marchas e bivaques, e grandes privações,
esforços inglórios, destroçaram, mais do que as balas alemãs, a fina
flor das nossas tropas europeias”, lamentava o alferes. O golpe de
misericórdia estava para breve.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Oito “negros e amargurados”


dias durou o cerco

A floresta na escarpa em frente ao forte de Nevala

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia), em Nevala, Tanzânia

No final de Novembro de 1916, a ambição de conquistar


território colonial alemão desfez-se em pó após a dramática
fuga do forte de Nevala. Desfeita a Coluna de Masasi, os
alemães lançam uma contra-ofensiva que devasta bases
em Moçambique e chega a ameaçar Palma. Um couraçado

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

britânico e as chuvas de Dezembro salvariam os destroços


da maior expedição enviada para África.

U
ma ironia cruel da natureza, ou do destino, fez com que chovesse
em Nevala na noite de 29 de Novembro de 1916. Em torno do
pequeno fortim instalado no cimo de uma escarpa voltada para
a selva que segue até às margens do Rovuma, muitas centenas de
soldados portugueses resistiam há uma semana ao cerco que os alemães
haviam montado. Após “oito negros e amargurados dias”, na descrição
do alferes Carlos Selvagem, a fome e a sede começavam a entupir as
trincheiras de cadáveres. Todas as tentativas do quartel-general, a 200
quilómetros de distância, para romper o cerco tinham fracassado.
“Nada havia a esperar, pois. Nem mais uma noite na fortaleza maldita”,
desejava o alferes António de Cértima, autor da memória Epopeia
Maldita. Estava na hora de abandonar Nevala. Na noite escura de 29
de Novembro, quando os soldados se preparavam para a fuga, choveu
finalmente e os soldados puderam mitigar a sede acumulada há dias.
Mas era tarde de mais para ficar.
A saga dessa noite dava matéria suficiente para um sem número de
ensaios, de novelas e de filmes. Por horas viveu-se a angústia do medo
e a euforia da libertação, o desejo de abandonar o forte e a ansiedade
sobre o que se esconderia pelo caminho, a necessidade de matar a fome
e o risco de entrar num território desconhecido onde nada houvesse
para comer. Do forte de Nevala avista-se, ao longe, o vale do rio Rovuma,
onde haveria água e, na margem sul, bases do exército português onde
se poderia sobreviver. Mas para os soldados habituados a três meses de
caminhadas pela selva esse cenário estava longe de ser uma garantia e
ainda menos um conforto. O manto verde e impenetrável que se estende
por detrás do forte, a selva dura de África, é tão belo como enigmático,
tão exuberantemente colorido como ameaçador.

97
Grande Guerra • Grandes Reportagens

A Quivambo figura entre os lugares do heroísmo português na gigantesca estátua dedicada aos soldados
que morreram na Primeira Guerra Mundial em Moçambique que ainda hoje se encontra em Maputo, mesmo
em frente à velha estação de caminhos-de-ferro

Para o que restava da Coluna de Masasi, porém, não havia escolha


possível. Há oito dias que estava isolada, com a primeira linha de
trincheiras alemãs a apenas 200 metros do posto avançado. Pelo lado do
ligeiro declive que fica em frente ao forte, a fuga teria de romper essas
linhas, uma missão irrealizável por uma tropa desmoralizada e faminta.
Restava a descida da escarpa íngreme voltada para o sul, a primeira
escada de um caminho que levaria até à selva e, com sorte, ao Rovuma.
Os sitiantes, que faziam parte dos destacamentos Heinrichs, Sprockhooff
e Rothe seriam uns 500, cerca de metade da força portuguesa, e tinham
deixado os rijos combates no Norte contra os britânicos e sul-africanos
para acabar com as veleidades portuguesas. Mas podiam ser abastecidos.
E por volta do dia 27 soube-se que tinham instalado a cinco quilómetros

98
Grande Guerra • Grandes Reportagens

o temível canhão do Konigsberg, um


couraçado afundado em Julho de 1915
Saltando à escarpa
em Dar-es-Salam, após cinco horas de
da vertente a coluna bombardeamento inglês, e entretanto
de retirada por aí se arrastado pelo mato por milhares
esgueirou, na treva da de carregadores indígenas, capaz de
efectuar disparos até 13 km de distância.
noite, esfarrapando-
Quando a noite caiu sobre o forte,
se nos galhos agudos começaram os preparativos. Tudo
do mato, rasgando as o que não pudesse ser transportado
carnes, as mãos e as seria destruído. Atónitos, os soldados
famintos vêem entrar no rol vinho,
faces, caminhando
latas de conserva, leite em pó ou tabaco
agachada, sem norte, francês, que tinham estado reservados
sem bússola, ao acaso, aos oficiais, apesar da fome devastar
em demanda das a tropa. “Enquanto, sob seu mando,
um arsenal cerrado de comestíveis
areias claras do rio
especiais e colunas de Milk das melhores
Carlos Selvagem,
firmas da Holanda dormiam nas pilhas
em “Tropa d’ África”
soberbas dos depósitos, os miseráveis
que no frio lamacento das trincheiras
velavam pelo nome e glória da pátria emborcavam copos de urina salgada
e mastigavam, aflitos, folhas tisnadas de vegetais”, lamentaria, revoltado,
António de Cértima, um dos alferes sitiados em Nevala.
Às dez da noite de 29, colocam-se mantas em paus nas balaustradas
do forte para simular a presença de sentinelas. A grande fuga estava
para começar. Em silêncio, cerca de mil homens reúnem o que podem,
amparam-se e embrenham-se na noite escura. “Saltando à escarpa da
vertente a coluna de retirada por aí se esgueirou, na treva da noite,
esfarrapando-se nos galhos agudos do mato, rasgando as carnes, as mãos
e as faces, caminhando agachada, sem norte, sem bússola, ao acaso, em

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

demanda das areias claras do rio”, recordaria Carlos Selvagem na sua


memória Tropa d’ África. Poucas horas mais tarde, uma companhia do
Regimento 21, comandada por Francisco Curado, é a última a deixar
o forte. Portugal tinha perdido o seu mais valioso troféu da campanha
africana. E, com ele, ficaria esgotada a fina flor da sua mais importante
expedição a Moçambique.

Objectivo: Masasi

Quem visse esses homens poucas semanas antes não teria dificuldades
em imaginar o que os esperava. Um mês de marchas forçadas pela selva
desde que, a 19 de Setembro, tinham atravessado o Rovuma e pisado
o solo da colónia alemã da África Oriental, que na altura abrangia a
região dos Grandes Lagos e o Tanganica, tinham arrasado as tropas.
Uma semana depois de terem dominado o forte, que tacticamente
fora abandonado pelos alemães, as baixas por doença assumiram uma
proporção assustadora. Sete dias bastaram para que todos os oficiais do
Estado-Maior tivessem de retirar para a base, em Palma, com problemas
de saúde, deixando o comando temporariamente entregue a Torre do
Vale. António de Cértima notava que “os contingentes tinham-se reduzido
assombrosamente. A infantaria branca apresentava um efectivo de 22
espingardas; a negra de 300, aproximadamente”.
A 4 Novembro, o general Ferreira Gil, comandante da expedição, envia
um telegrama para Lisboa avisando que “o estado de saúde das tropas
é péssimo”, pelo que as “operações terão de interromper-se em fins de
Novembro”. Em Lisboa, porém, as prioridades militares do momento
colocavam a frente do Rovuma numa linha remota de prioridades. A
preparação dos primeiros embarques do Corpo Expedicionário Português
para as trincheiras da Flandres, que aconteceriam daí a dois meses (a 30
de Janeiro de 1917), era nesse momento o foco das atenções do Governo
e das altas patentes de Lisboa. Não haveria reforços tão cedo. A 15 de

100
Grande Guerra • Grandes Reportagens

Novembro, é o próprio comandante Ferreira Gil a avisar o Ministério da


Guerra que “junta de saúde dá como incapaz de continuar ao serviço das
colónias, devendo recolher à metrópole”.
A recusa, ou incapacidade, de Lisboa em enviar novos contingentes
nesse momento em que o exército português tinha conseguido
estabelecer uma ponte no coração do território inimigo seria mais tarde
vista como um atestado de incompetência do Governo. “Foi a falta deste
reforço de homens válidos que o general Gil insistentemente pedira para
entrar em Palma nos princípios de Novembro que fez com que as forças
cercadas em Nevala não pudessem ser socorridas com força suficiente
e se desse o escorraçar de todos os postos que tínhamos em território
alemão”, protestaria meio ano mais tarde o deputado oposicionista
Vasconcelos e Sá, médico, capitão-de-mar-e-guerra e republicano

Travessia do Rovuma

101
Grande Guerra • Grandes Reportagens

moderado. “Então para França calcula-se e convenciona-se com a


Inglaterra o envio mensal de 4000 homens para manter os efectivos
no nosso sector e para África não se manda sequer um soldado para
substituir os doentes e ordenam-se avanços loucos de profundidade de
centenas de quilómetros?”, acrescentaria em tom inquisitório o deputado
nas suas invectivas contra o Governo.
Em Palma, Gil ia gerindo a situação como podia. A 2 de Novembro sai
para Nevala um novo contingente comandado pelo capitão José Maria
Pereira. Vão de camião, por estradas entretanto abertas. Seis dias depois,
porém, ainda estavam a caminho. Chegaram a Mahuta e souberam que os
alemães rondavam o forte. O substituto do capitão Liberato Pinto tinha
entretanto sido nomeado, no que foi uma das poucas boas notícias para
os soldados e oficiais nesse interminável compasso de espera de um mês
em Nevala. Leopoldo da Silva, major, chegou ao forte e impressionou
os soldados “com o seu aspecto viril e inquieto, com o seu séquito de
artilheiros todos rútilos e altivos nas fardas vistosas”, na descrição de
António de Cértima. Era “a mais pura alma de soldado que pisara aquelas
areias hostis”, na avaliação de Carlos Selvagem.
Com o novo comandante não seguiram apenas reforços, mas um
pesado caderno de encargos. Pela moderna estação de TSF, instalada a
uns 400 metros do forte, chegavam ordens reiteradas de Palma para que
a Coluna de Masasi regressasse à ofensiva e ocupasse a cidade homónima,
a uns 70km no noroeste de Nevala. Ferreira Gil era impotente para conter
a megalomania de Lisboa. Limitava-se a pedir o que lhe exigiam, cada
vez com menos resistência – a sua saúde deteriorava-se e as más-línguas
diziam que passava os dias entretido em partidas de bridge com os seus
oficiais, em Palma. No ponto terminal da cadeia de comando, Leopoldo
da Silva era quem tinha de suportar as consequências do delírio da guerra
pensada nos gabinetes.
O capitão Francisco Curado, que na altura era já o mais respeitado oficial
de todo o exército português em Moçambique, tenta chamá-lo à razão. Dá-

102
Grande Guerra • Grandes Reportagens

Rio Rovuma

lhe conta das dificuldades em criar uma força capaz de avançar no terreno
difícil da actual Tanzânia. Lembrou-o que o Inverno estava à porta e que,
após as chuvas, Nevala ficaria isolada, entregue à sua sorte, impossibilitada
de receber o que quer que fosse de Palma. As memórias dos que
participaram nesse dilema garantem que o major não dormiu nessa noite.
Mas as ordens são para cumprir e a 8 de Novembro, por volta das quatro
da manhã, pouco antes do nascer do sol na África tropical, a coluna parte
para Masasi. Seriam uns 23 oficiais, 347 praças europeias e 399 indígenas,
com 330 carregadores, 486 espingardas, quatro metralhadoras e duas
peças de artilharia. “Um punhado de maltrapilhos agarrados na véspera ao
acaso, sem discussão, sem recusas e, cegos pela vontade férrea do chefe,
electrizados pela sua grande alma, acompanhando-o como escravos”, na
descrição sempre cínica de António de Cértima.

103
Grande Guerra • Grandes Reportagens

A meio da manhã estão em Lulindi, a Quivambo que figura entre


os lugares do heroísmo português na gigantesca estátua dedicada aos
soldados que morreram na Primeira Guerra Mundial em Moçambique
que ainda hoje se encontra em Maputo, mesmo em frente à velha
estação de caminhos-de-ferro. Se
seguiram a mesma estrada que hoje
O círculo fechou-se liga Nevala a Masasi tiveram de subir e
num anel de fogo, descer montes sinuosos, entre o mato
crepitante, raivoso, ou por trilhos poeirentos, nos primeiros
quilómetros do percurso. À frente iam o
feroz. Enfim,
capitão Melo e o alferes Craveiro Lopes,
estávamos cercados futuro presidente da República. Lopes é
António de Cértima, nas o primeiro a detectar o inimigo. O pavor
memórias “Epopeia Maldita”
de uma emboscada como a de Mahuta,
um mês antes, instala-se com a troca
dos primeiros tiros. À ordem dos comandantes, os soldados organizam-
se em posições defensivas. Como quase nunca acontecera até então,
parecem um exército moderno e competente.
Logo depois, o impensável acontece. Leopoldo da Silva tenta uma
manobra de envolvimento. As munições começam a faltar. O major chega-
se à linha da frente, acompanhado por soldados que transportavam
cunhetes de pólvora. “Duas balas certeiras atingem-no logo em cheio,
uma sobre o ventre, outra sobre o ombro”, recordaria Carlos Selvagem
- além de Leopoldo da Silva, um outro soldado português foi vítima das
balas alemãs. Sem comandante, quem deveria comandar era o oficial mais
antigo, o capitão Baptista, que recusa, “alegando sei lá que pessoalíssimas
razões”, como ironicamente assinalaria António de Cértima. Ainda
assim, os soldados resistem e ripostam com energia. Seis horas depois, o
combate prosseguia e os refrigeradores das metralhadoras tinham de ser
enchidos com urina. É então que os alemães do comando Sprockhooff se
retiram por falta de munições.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Ao longe avistava-se Masasi. Mas faltava tudo para prosseguir. À uma


da manhã, a coluna regressa a Nevala. “Sorrateiramente, solenemente,
o bivaque levantava para Nevala, em ordem, sem deixar uma correia
ou fivela de bornal. Era a primeira retirada”, diria António de Cértima.
Quando chegaram, Carlos Selvagem viu uma fila de homens “exaustos e
trôpegos”, mas que guardavam “por consolação única a memória de uma
tarde gloriosa em que gente portuguesa soubera ainda ter a alma dos
antigos soldados, soubera ainda bater-se e morrer”.

O assalto ao forte

O consolo, porém, era pouco. Sabia-se que os alemães estavam cada vez
mais perto do forte. No mesmo dia da emboscada de Quivambo, tinham
atacado o posto de Mahuta, onde uma forte resistência lhes causou 17
baixas, entre as quais dois soldados europeus. A proximidade era prova
que o limite da missão da Coluna de Masasi tinha ficado circunscrito
a Nevala. Por enquanto, ao menos. Von Lettow-Vorbeck, o genial
comandante alemão, investe tempo a recompor as suas tropas, perdidas
em destacamentos algures no interior planáltico do Tanganica. As suas
sucessivas missões de reconhecimento traçam um retrato do poder
de fogo dos portugueses. De acordo com as memórias de guerra dos
alemães, haveria 500 homens em Mahuta, entre 300 e 400 no interior
do forte, 800 junto à ribeira de Nevala, onde havia também artilharia,
calculavam os seus espiões.  
No dia 19, o novo comandante da coluna, o major Aristides Cunha, está
em Quivambo e apercebe-se que, do lado alemão, algo de importante
está para acontecer. Regressa célere a Nevala e prepara-se para o pior.
Na madrugada do dia 22, os alemães estão nas imediações do forte. “O
círculo fechou-se num anel de fogo, crepitante, raivoso, feroz. Enfim,
estávamos cercados”, constataria António de Cértima. Para começar,
os alemães deram o mesmo passo que os portugueses um mês antes:

105
Grande Guerra • Grandes Reportagens

Interior do forte de Nevala

atacaram a Ribeira de Nevala, o ponto estratégico que dava acesso a água


potável. Após 12 horas de combate, que chegou a envolver luta corpo-a-
corpo e assaltos com baioneta, os portugueses tiveram de retirar por falta
de munições. O alferes Pires de Matos tombou no combate. O tenente que
comandava a força foi derrubado com uma coronhada e ficou preso.
Onze soldados escapam da chacina, improvisaram uma bandeira
branca e correram até à escarpa. Foram recebidos de braços abertos,
como “pobres foragidos”, diria António de Cértima. Agora, só um milagre
vindo de Palma capaz de romper o cerco poderia salvar a coluna que
se amontoava em volta do forte e nas trincheiras do pequeno planalto
que lhe é sobranceiro, onde hoje se situa o bairro dos polícias de Nevala.
Desesperado, Ferreira Gil, que adiara o seu regresso por baixa a Lisboa,
avisa o Governo a 25 do que se estava a passar. Diz que “os alemães têm

106
Grande Guerra • Grandes Reportagens

concentrado forças contra Nevala tendo cortado comunicações”. Pede


que digam a data do embarque da expedição de 1917, “com o fim de
reanimar tropas”. De Lisboa, uma vez mais, o silêncio.
Com o passar dos dias do cerco, a situação agrava-se. A água começa
a faltar, a estação da TSF, colocada a 400 metros do forte, estava a ser
alvo de ataques do inimigo. Por desgraça, a chuva não caía. Em Palma,
Ferreira Gil pede voluntários para uma “Coluna de Socorro a Nevala”.
Azambuja Martins e Viriato de Lacerda, outro oficial do escasso rol
de heróis da Primeira Guerra em Moçambique, que viria a morrer na
ofensiva alemã de 1917 em Mecula,
oferecem-se. Há mais dois sargentos e
A infantaria dormia,
um cabo que dão um passo em frente.
comia, vivia todas as No essencial, porém, Palma não passava
suas horas alapada de um imenso hospital. Os escassos
nas trincheiras, homens preparados para combater que
sobravam da terceira expedição estavam
sem poder quase
encurralados em Nevala.
deitar a cabeça, O comandante recorre então a
um braço, de fora medidas extremas. Considera válidos
Carlos Selvagem, todos os homens em convalescença.
em “Tropa d’ África” Consegue assim formar uma força de
11 oficiais e 252 praças que correm para
Nevala. Era uma “coluna de inválidos”, diria Américo Pires de Lima,
oficial médico que assistiu a toda a angústia desse final de Novembro
em Palma. A missão de socorro ainda chegou a Mahuta, onde trava um
combate feroz com os alemães. Mas não consegue passar. Ao longe,
os sitiados ouviam as descargas. Sem esperança. “Pouca confiança
púnhamos já no resultado da luta”, recordaria António de Cértima.
Dentro do perímetro cercado, a situação chegava ao limite. A
proximidade das linhas da frente dos alemães impedia qualquer
movimento. “A infantaria dormia, comia, vivia todas as suas horas

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

alapada nas trincheiras, sem poder quase deitar a cabeça, um braço,


de fora”, escreveria Carlos Selvagem. O pior, porém, era a sede. “Logo
aos primeiros dias a falta de água começou a toldar das suas tintas de
tragédia a vida da pobre gente sitiada. E esgotados os cantis, os sacos de
lona, todos os recursos, foi à água suspeita de duas cisternas da fortaleza
(em que ninguém havia tocado até então pela certeza de estarem
envenenadas) que se recorreu”, continua o alferes. Foi necessário colocar
uma sentinela nas cisternas para travar o desespero.
Exaustos, os soldados deixavam-se cair no fundo das trincheiras, e
“por mais pontapés, por mais ameaças que se lhes fizesse de pistola
em punho, os míseros a nada se moviam e acabavam por encolher
os ombros, insensíveis a tudo, numa voz já moribunda: ‘Pode o meu
alferes matar-me, porque eu já não posso mexer-me’”, lembraria Carlos
Selvagem. “Às vezes, quando era preciso ir de uma trincheira a outra,
tinha-se a impressão de caminhar entre náufragos: dezenas de mãos
fincavam-se como garras às nossas pernas, segurando-nos, detendo-
nos, enquanto um elegíaco clamor de catacumba se entornava em
lágrimas, a pedir água, suplicando água… pelo amor de Deus, pela
Santíssima paixão do Senhor! E entontecidos, com a piedade rota numa
asfixia de angústia, nós fugíamos, fugíamos, apavorados”, escreveria
António de Cértima.
Ao sétimo dia, o comando percebera que o tempo de espera e a
capacidade de resistência dos soldados tinha acabado. Uma granada tinha
destruído a estação de TSF, tornando o cerco ainda mais doloroso. “Os
negros morriam, atulhando as trincheiras da esplanada, aonde por fim se
tropeçava indiferentemente nos seus cadáveres amontoados”, lembraria
Carlos Selvagem. A falta de água, agravada pelo calor de Novembro,
propagava ataques de loucura. De noite, os que tinham alguma réstia
de energia saltavam das trincheiras para molhar os lábios com as gotas
de orvalho na folhagem das árvores. No dia 27, fica decidido que os
sobreviventes partiriam no dia seguinte.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Para todos os efeitos, a ousadia de romper o cerco descendo a escarpa


sinuosa que fica nas traseiras do forte foi um sucesso. A maioria salvou-
se, da morte ou da prisão, mas o custo foi elevado. A viagem pela
selva de uma multidão de homens cambaleando fez-se com actos de
solidariedade, mas muitas vezes impôs-se o mais elementar sentido de
sobrevivência. Os homens tentam agarrar no dólman do que segue em
frente, para não se perderem no matagal. Na pressa da fuga, porém, nem
sempre havia lugar para a compaixão com os feridos. “Transportados
em machila por carregadores negros, lá acompanharam a coluna.
Esta, porém, por motivo da escuridão e pelas dificuldades do terreno,
desorganizou-se a breve trecho. Os carregadores, livres de vigilância dos
brancos, deram largas ao instinto da própria conservação, abandonando

Carregadores de mercadoria em Kilambo, na Tanzânia

109
Grande Guerra • Grandes Reportagens

alguns desgraçados a uma morte lenta e horrível no meio da floresta


virgem”, escreveria Américo Pires de Lima nas suas memórias.
Alguns conseguiriam chegar às margens do Rovuma nessa
madrugada. Estavam salvos. “Foram minutos, foram sofreguidões que
não se esquecem mais”, recordaria Carlos Selvagem quando mergulhou,
“louco de alegria”, nas águas quentes do rio. Francisco Curado chega
ao Rovuma às duas da tarde. Mas António de Cértima perde-se, dá uma
volta na escuridão e de madrugada apercebe-se que tinha regressado
a Nevala. No dia 30 à noite podia finalmente matar a sede nas águas
duvidosas do rio, ainda hoje um foco permanente de disenteria que
causa vítimas entre a população ribeirinha.

O pânico em Palma

No dia seguinte à fuga, pela madrugada, os alemães começaram a


bombardear o forte com o canhão do Konigsberg e surpreenderam-se
com a ausência de reacções. Quando se apercebem da fuga, lançam a
perseguição aos foragidos. Primeiro procuram-nos nas imediações, mas
constatam que levavam várias horas de vantagem. Em Mahuta encontram
os destroços fumegantes do posto abandonado. Os portugueses tinham
regressado ao seu território. Seria lá que os destacamentos de von Lettow-
Vorbeck os iriam procurar e combater. A ousadia da invasão teria um
preço para os portugueses. Altíssimo.
Em Nangade, o posto onde a maioria dos fugitivos chegou dois dias
depois da fuga, vivia-se o caos. “Havia uma única tenda Tortoise com
uma lotação máxima de 15 camas, que teve de alojar levas de 50 a 100
homens”, lembraria ao Governo, em jeito de vexame, o deputado
Vasconcelos e Sá. É para lá que os alemães se dirigem. Durante 48 horas,
os carregadores negros arrastam pela selva o canhão do Konigsberg e no
primeiro dia de Dezembro estão em condições para cumprir a vingança.
Da outra margem, disparam com tal precisão que logo Azambuja Martins

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Picada entre Masasi e Nevala

suspeitou que “o adversário estava perto” e que “o combate iria ser


travado em desfavoráveis circunstâncias para nós, pelo esgotamento das
nossas forças e pela acção de surpresa que sofríamos”.
“Ao segundo tiro, uma granada de grosso calibre”, recordaria
Carlos Selvagem, “arrasa desde logo todo e qualquer propósito de
reorganização”. O pânico instala-se e a ordem possível no aquartelamento
só pode ser restaurada com a ameaça de armas. Muitos fogem para a
base de Alto da Serra. “Ficaram apenas, com meia dúzia de soldados
mais fiéis ou mais dignos, os oficiais, alguns médicos, um ou outro
sargento, os enfermeiros da ambulância”, recordaria Carlos Selvagem.
Nangade desfazia-se. “Pela noite dentro, moleques e carregadores macuas
trepavam as fragas do posto a cair de bêbados, numa grita de selva,
vomitando à farta a vasa infecta de vinho que horas antes não quiseram

111
Grande Guerra • Grandes Reportagens

distribuir à tropa branca. E


nos crepes da treva estrelar,
lá em baixo, uma coluna de
fogo subia, orgíaca, para o
céu, como taça de festim que
se partisse e incendiasse no
espaço, rubra e azul… Era
Nangade a arder”, descreveria
António de Cértima.
Num ápice, o boato de
que os alemães já tinham
atravessado o rio propaga-se.
De novo em fuga, desta vez
descontrolada, o que restava
da coluna de Nevala dirige-se
agora para Matchemba, a 35
kms, por ordem de Azambuja
Martins, que descreve esse
êxodo: “Uns iam rotos,
outros descalços, outros
Carlos Selvagem, em 1916, no norte de Moçambique DR
ainda com algum retalho
de saco a servir de tanga, à maneira indígena, e todos mais ou menos
com uma infinidade de objectos, colhidos nos cestos das ambulâncias,
pendendo dos equipamentos”. Chegam a 2 de Dezembro e descobrem
um campo desolado, sem defesas preparadas, sem lugar para acolher
os soldados exaustos. Ficam aí cinco dias, até que o alarme de que os
alemães estavam a sete quilómetros levam a coluna a fugir uma vez mais,
uns para Pundanhar, a única base que restava antes de Palma, outros para
Mocímboa da Praia, uns 100 quilómetros mais a sul.
Na base que albergava o comando olham-se com estupefacção os
soldados que iam chegando em grupos dispersos. Pires de Lima recebeu

112
Grande Guerra • Grandes Reportagens

400 desses homens deprimidos pela derrota e gastos pela odisseia da


fuga. “É indescritível o estado de miséria em que chegaram; fardas
esfarrapadas, o capacete amolgado, com os pés a saírem pelos buracos
das botas, faces chupadas e macilentas, olhos brilhantes de febre,
infundiam piedade aos mais empedernidos”. Um grande número deles,
inquiridos sobre a sua doença, respondia apenas: “É só fome, senhor
doutor”. Três meses depois de saírem de
Palma, os soldados estavam de regresso
Os negros morriam,
em jeito de “turba em debandada”,
atulhando as carregada de “andrajos e de opróbrio”,
trincheiras da diria Carlos Selvagem.
esplanada, aonde A chegada aflitiva do que restava do
exército prenunciava o pior. Um ataque
por fim se tropeçava
alemão a Palma seria tão fácil como fatal.
indiferentemente “Viveram-se horas amargas em Palma
nos seus cadáveres nos dias que se seguiram à retirada de
amontoados Nevala. Praticamente não havia soldados
válidos, de modo que pareceu irrisório
Carlos Selvagem,
em “Tropa d’ África” cavar alguns quilómetros de trincheiras,
que pobres doentes, a tiritar de febre,
ocupavam durante a noite”, escreveu Pires de Lima. Como notaria Carlos
Selvagem, a base “encontrava-se justamente à mercê do inimigo, entregue
à mão de Deus, com os seus barracões, os seus depósitos, todo o seu
precioso recheio”. Em desespero, o comando lança mão de todos os
meios para a defender. O vapor Moçâmedes, que largara Palma carregado
de feridos e doentes rumo a Lourenço Marques, é mandado regressar.
Todos os que pudessem andar foram mobilizados para o que se esperava
ser o combate definitivo. Conseguem-se 500 soldados, entre os doentes
menos graves. Os que se tinham em pé.
Mas, onde andariam os alemães? Em Nangade, em Pundanhar, em
Matchemba? Com a rede de postos laboriosamente montada nos dois

113
Grande Guerra • Grandes Reportagens

últimos anos destruída, ninguém sabia ao certo, ninguém podia saber.


Inventa-se então um ardil para se tirarem as dúvidas. Envia-se uma
delegação, comandada pelo capitão de artilharia Ferreira da Silva, com
bandeira branca e intérprete para “dessa forma astuta e fácil, sem se
trocar um tiro, reconhecer a situação, efectivo e intenções do boche”,
contaria Carlos Selvagem. O pretexto seria enviar roupas e medicamentos
para os feridos e prisioneiros e obter o cofre com o testamento do infeliz
major Leopoldo da Silva.
A operação parece correr bem. Mas no regresso de Sicumbiriro, já de
noite, quando o Buick da delegação cruzava o posto de Matchemba, é
alvo de um ataque alemão, dirigido pelos mesmos oficiais que a recebera.
Ferreira da Silva é abatido. Câmara Leme, o intérprete, salva-se depois de
gritar as suas credenciais aos oficiais alemães, que suspendem o fogo e o
libertam – os relatos não nos permitem saber se o ataque foi um acidente
ou uma acção deliberada.
A presença alemã em Matchemba, a menos de 100 km de Palma,
agrava o pânico no alto comando. “Na lividez da manhã, Palma acorda
mais lívida na ansiedade do que acontecerá esse dia, de como findará
esse dia”, diria Carlos Selvagem. Ferreira Gil envia um telegrama para
Lisboa no qual avisa “que pediu ao general Smuts [comandante das tropas
britânicas] algumas companhias das tropas inglesas para reforço e defesa
de Palma”. Os alemães, avisava ele, “dispunham de uma força de 1000
indígenas, ocupam os nossos postos de Nangade e Matchemba, ameaçam
atacar o de Pundanhar, manifestando ter por objectivo Palma.” Para
salvar o que fosse possível, anuncia ao Governo que tentaria embarcar
“a bordo do Chinde e do Moçâmedes a máxima quantidade de material
de guerra, víveres e munições” Repetindo a sua permanente receita,
acrescentava ainda que “o moral e saúde das nossas tropas são péssimos”.
Ernesto Vilhena, ministro das Colónias, argumentaria na sessão
secreta do Parlamento da República, a 17 de Julho de 1917, que Ferreira Gil
manifestou “incompetência e temor” porque, segundo informações do War

114
Grande Guerra • Grandes Reportagens

Office, a força dos alemães seria constituída por “apenas 300 espingardas”.
Talvez esta previsão fosse a mais correcta. Mas, mesmo sabendo que as
forças portuguesas seriam facilmente batidas apesar do seu número, os
alemães não atacaram. Por dificuldade de recursos, mas também pela
exaustão de um exército que andava há dois anos a vaguear pelo coração
do continente, em permanente combate com belgas, ingleses, sul-africanos
e portugueses. Quando o couraçado britânico Princess e mais dois navios
de guerra fundeiam na baía de Tungue, era improvável que um exército
que que sempre preferiu a guerrilha ao embate frontal ousasse atacar.
A 17 de Janeiro de 1917, uma nota da Presidência do Ministério,
publicada no Diário do Governo, notava que “num desses fluxos e
refluxos que tem sido a característica da guerra actual”, os portugueses
foram forçados a “ceder momentaneamente algum terreno” na colónia
alemã. Mas com o mesmo tom de irrealismo e propaganda de sempre,
o ministério da União Sagrada garantia que, “em breve, as nossas tropas
recuperarão todo o terreno que tiveram de abandonar por um incidente
de campanha, e farão novos avanços, batendo completamente os alemães
no seu próprio território, e hasteando ali, definitivamente vitoriosa, a
bandeira de Portugal”.
Contrariando esta visão idílica, em Palma dão-se graças pela presença
dos ingleses e fazem-se preces pela bondade da chuva. O inverno
torrencial dos trópicos em breve tornaria o Rovuma inultrapassável e
as estradas em rios de lama intransitável. A expedição estava salva. Ou
o que restava dela. “Frangalhos de sete a oito mil homens, mil contos
de material de guerra abandonado ao inimigo, a certeza melancólica
de decisivos reveses”, na descrição de Carlos Selvagem, era tudo o que
poderia levar na memória quando chegasse a hora de partir.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Os soldados privados
do eterno descanso

Na baía de águas azuladas, ainda hoje há dezenas de pequenos barcos de vela triangular como os que
escoltaram os navios portugueses

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia), em Mocímboa da Praia

Em 1956, o Estado Novo decide homenagear os mortos na


Primeira Guerra em Moçambique e constrói um mausoléu em
Mocímboa da Praia, onde deposita os restos mortais de soldados
tombados em Quionga ou nos territórios dos macondes. Esse
ossário foi profanado e hoje os esqueletos dos soldados estão ao

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ar, no interior de um templo corroído pelo tempo e pelo viço da


natureza tropical. Com a cumplicidade do estado e da nação,
para eles não houve lugar ao eterno descanso.

“D
ulce et decorum est pro Patria mori”. O verso de Horácio que atesta
a beleza e a nobreza da morte ao serviço da pátria dificilmente
poderia soar mais vazio e mentiroso do que na porta de
entrada no mausoléu em ruínas no cemitério de Mocímboa da
Praia, erigido pelo Estado Novo para perpetuar a memória dos soldados
portugueses que tombaram na I Guerra Mundial no Norte de Moçambique.
O mausoléu conserva ainda a imponência da estátua de uma figura
feminina que segura a espada com a mão direita e ampara um escudo com
as armas nacionais com a esquerda. Mas, no seu interior devastado pelo
tempo, pelo saque, pela natureza e pelo esquecimento, as tumbas onde se
encontram depositadas as ossadas dos soldados que caíram em Mocímboa,
em Quionga ou no território dos macondes são a prova de que nada, nem a
paz eterna, fez sentido naquela guerra. As pesadas pedras de mármore que
tapavam as sepulturas no interior do mausoléu foram arrastadas e restos de
fémures, de caveiras, de cúbitos assim ficaram ao ar, como testemunho do
abandono cultivado num país desmemoriado e ingrato.
Mocímboa da Praia é hoje uma pequena cidade instalada na coroa
de uma baía cruzada por barcos com as velas triangulares típicas do
Índico que há muito esqueceu o tempo em que acolheu a base da Quarta
Expedição das tropas portuguesas em guerra com os alemães na fronteira
do rio Rovuma. Já ninguém designa o promontório do norte da baía
por “Ponta Vermelha”, com os soldados portugueses faziam há cem
anos por comparação com o relevo similar que se encontra em Maputo.
Nenhuma das instalações militares construídas à pressa para receber as
tropas em 1917 resistiu à prova do tempo. Hoje, na sua parte alta e central,
Mocímboa continua a ser a cidade que os portugueses deixaram por

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alturas da independência. Uma cidade bem desenhada, com edifícios


esbeltos e bem construídos. Só o cemitério e o ossário ficaram como
testamento de duas guerras, a mundial e a colonial. Ambos foram votados
à ruína e ao esquecimento.
Amisse Juma, 76 anos, vive desde sempre na avenida que segue o Clube
de Mocímboa, o espaço de convívio dos tempos coloniais, e acaba no
cemitério. Olhos estranhamente claros e vivos, dono de um português de
nível raro nestas paragens onde o suaíli e os dialectos locais dominam,
ele lembra-se dessa guerra distante, conhece a história do ossário e do
cemitério. “Nesse tempo, a guerra andava de um lado para o outro e não
havia tempo para enterrar os mortos um a um. Faziam uma vala e por
lá ficavam”, diz. Até que, “em 1955”, se construiu aquele mausoléu para

Em 1955, construiu-se o mausoléu para acolher os restos mortais dos soldados dispersos por Quionga e pelos
territórios dos macondes

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“Dulce et decorum est pro Patria mori”.

As pesadas pedras de mármore que tapavam as sepulturas no interior do mausoléu foram


arrastadas e restos de fémures, de caveiras, de cúbitos assim ficaram ao ar, como testemunho
do abandono cultivado num país desmemoriado e ingrato.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

acolher os restos mortais dos soldados dispersos por Quionga e pelos


territórios dos macondes, no interior, para, juntamente com os que
pereceram em Mocímboa da Praia, lhes garantir o eterno repouso. Ele
lembra-se desses dias de obras e solenidade, como se lembra de fazer
perguntas aos mais velhos sobre essa guerra estranha e antiga.
Amisse acerta nas datas, lembra-se das memórias dos antigos que falam
de uma localidade de pescadores subitamente invadida por milhares de
soldados brancos, consegue indicar o local dos aquartelamentos, mas não
se recorda que o mausoléu foi inaugurado em 1956 pelo então presidente
da República, Craveiro Lopes, ele próprio
um dos militares que sofreu as agruras da
Os ossários
guerra nos combates em torno de Nevala.
permanecem com No ossário, não ficaram os restos mortais
as pesadas tampas de todos os soldados – “alguns foram para
arrastadas, com os Portugal”, diz este ancião, sentado no
chão de entrada da sua palhota, com um
esqueletos ao ar, sem
cofió na cabeça a indicar a sua devoção
que ninguém se tivesse ao islão, exibindo com uma ponta de
preocupado em dar vaidade o português que aprendeu no
o mínimo sentido ao curso de tipografia tirado na escola de
artes e ofícios da Ilha de Moçambique.
verso de Horácio que
E depois? Depois, “veio a
glorificava a morte independência e aquilo ficou para ali”,
pela pátria diz Amisse, que pelo meio troca umas
palavras com Shafi Sahid em suaíli
para lubrificar as recordações. Os portões de entrada enferrujaram
e o tempo apagou as armas portuguesas que lá estavam inscritas. No
cemitério, o mato tomou conta das campas onde a custo se lêem o nome
de colonos ou de soldados que morreram em combate nas operações
militares dos anos 60 e 70. No mausoléu, as raízes das árvores entraram
pela estrutura e ameaçam engolir tarde ou cedo o edifício. As janelas

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No cemitério, o mato tomou conta das campas onde a custo se lêem o nome de colonos
ou de soldados que morreram em combate nas operações militares dos anos 60 e 70.
E, 30 anos passados, os ossários assim permanecem, com as pesadas tampas arrastadas,
com os esqueletos ao ar

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e as portas há muito que desapareceram. Mas o pior, o que causa


arrepios no seu interior, é verificar que alguém profanou os túmulos,
o que, na opinião de Amisse e de Shafi, terá acontecido logo depois da
independência. E, 30 anos passados, os ossários assim permanecem,
com as pesadas tampas arrastadas, com os esqueletos ao ar, sem que
ninguém se tivesse preocupado em dar o mínimo sentido ao verso de
Horácio que glorificava a morte pela pátria.
Não é difícil imaginar as razões que

Nesse tempo, a guerra levaram as autoridades do Estado Novo a


escolher Mocímboa da Praia para acolher
andava de um lado o principal monumento em memória das
para o outro e não vítimas da Primeira Grande Guerra em
havia tempo para Moçambique. Foi nas suas colinas, nos

enterrar os mortos um barracões das tropas e nos hospitais de


campanha que a explosiva combinação
a um. Faziam uma do clima, das doenças tropicais, da falta
vala e por lá ficavam de higiene e de meios sanitários provocou
Amisse Juma o maior número de mortes de toda a
campanha militar em África. Descrita
como a “Sintra do Niassa” pela beleza
da sua baía e pelo cenário verde das suas colinas, Mocímboa escondia
um perigo. Américo Pires de Lima, um alferes médico, percebeu-o pouco
depois de registar na sua memória a visão idílica da “Sintra do Niassa”.
Escreveu: “Mocímboa repousava sobre um grande pântano subterrâneo…
Daí a vegetação luxuriante, que lhe fez atribuir uma designação tão pouco
merecida. Daí o facto de as roupas e o calçado, tirados à noite, aparecerem
de manhã húmidos e bolorentos”. A existência de pântanos implicava a
proliferação de mosquitos e a proliferação de mosquitos daria nervo ao
pior inimigo das tropas portuguesas em Mocímboa: a malária.
Quando se discutiram os planos da campanha para 1917, porém,
esse perigo subterrâneo não entrou nas contas da operação. No final

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de 1916, a derrocada da ofensiva portuguesa em território colonial


alemão tinha trazido o inimigo até às portas de Palma, a sede da
anterior base, e ninguém queria viver de novo esses dias de pânico que
só acabaram quando o couraçado britânico Princess atracou ao largo
dos aquartelamentos e as chuvas de Dezembro imobilizaram as tropas
germânicas. O novo comando militar, que depois da partida de Ferreira
Gil para Lisboa, no Natal de 1916, seria entregue às mãos do governador
de Moçambique, Álvaro de Castro, considerou mais prudente basear a
expedição que se preparava na metrópole um pouco mais longe da linha
de fronteira. Porto Amélia (actual Pemba), a uns 300 quilómetros do
Rovuma, era distante de mais. Mocímboa, a cerca de 100, era a solução
ideal. Depois, como Palma ou como Porto Amélia, Mocímboa situa-se na
coroa de uma baía que permite a ancoragem de navios de grande porte.
Em Fevereiro de 1917 já a sede do novo comando se tinha aqui instalado
e as primeiras tropas frescas desembarcavam do vapor Portugal. Três
meses mais tarde, no dia 14 de Maio de 1917, o oficial médico Américo
Pires de Lima recebeu ordens para se deslocar de Palma para o Quartel-
general em Mocímboa e, após uma viagem de 36 horas para vencer cerca
de 80 quilómetros numa machila transportada por 16 carregadores que
se revezavam sob a vigilância de um sipaio (polícia indígena), chegou à
Ponta Vermelha, do outro lado da baía, e viu “lá ao fundo a famosa Sintra
do Niassa”. O cenário não seria muito diferente do actual. Na baía de águas
azuladas, ainda hoje há dezenas de pequenos barcos de vela triangular
como os que escoltaram os navios portugueses. No porto de pesca que
os acolhe, até o ponto onde chega a maré alta, o peixe e os frutos do mar
são preparados e vendidos num dédalo de vielas pavimentadas com
restos de marisco e conchas, onde o odor do sal se tempera como o do
peixe, das especiarias e dos detritos de incontáveis origens. A sonoridade
de diferentes dialectos, da costa e do interior, e do suaíli, a profusão de
indumentárias, de negros, hindustânicos ou islâmicos, atestam a vocação
ancestral de Mocímboa para atrair as diferentes faces da cultura do Índico.

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A morte no 31 do Porto

Nesse mês de Maio já tinham chegado os primeiros contingentes


que, desejava-se, haveriam de limpar do registo as pesadas derrotas
militares de 1916. Em Fevereiro chega o Portugal com um batalhão
de infantaria de Braga. Em meados de Março o Moçambique traz
um esquadrão e oficiais que se dedicariam a instruir companhias
indígenas. Em Abril vêm regimentos do Porto e de Bragança. Como a
maioria das tropas recrutadas para África, os soldados desconheciam
em absoluto o que os esperava. Os cerca de mil homens do regimento
31 do Porto podiam suspeitar que tinham ido para as costas do Índico
como castigo pelas sublevações em que tinham participado no Outono
de 1916. Mas era impossível sequer imaginar que, três meses depois de

O Clube de Mocímboa, o espaço de convívio dos tempos coloniais

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chegarem a Mocímboa, dissessem com naturalidade e resignação: “Sou


do 31, tenho de morrer”.
A saga do mais desafortunado corpo militar que participou na Grande
Guerra em África começa nos dias 9 e 10 de Outubro de 1916, nas ruas do
Porto. A meio da tarde de domingo, 9 de Outubro, o que parecia ser uma
rixa normal entre um soldado, José Júlio de Mascarenhas, e um polícia faz
estalar dois dias de tumultos que alastram pelas ruas e deixam a cidade
em estado de sítio. No final da tarde do dia seguinte, uma multidão de
pessoas iradas e famélicas concentra-se na Praça do Coronel Pacheco e
desafia os polícias que se haviam refugiado no interior da 13ª esquadra
(que ainda hoje se encontra ali instalada). Segue-se uma troca de tiros. Um
polícia é barbaramente assassinado com disparos à queima-roupa. Outros
quatro são feridos.
Um inquérito policial acompanhado de perto pelo Ministério do
Interior constata que as responsabilidades pela insubordinação e da
violência cabem a soldados de dois regimentos baseados na cidade. Um
deles é o 31. Um cabo e dois soldados deste corpo são presos. O Jornal
de Notícias do dia 12 daria conta que outros três militares do regimento
tinham recebido assistência hospitalar na sequência da rebelião. No
inquérito, um depoimento, de Manuel José de Catalão, confirma que o
31 foi o regimento que mais se destacou nos distúrbios, mas notava “que
o souberam fazer, pois que o comandante até elogiou os praças por se
terem portado bem quando eles foram os piores”. Ao final de dois dias de
confrontos entre a polícia e os soldados, tinham morrido duas pessoas,
60 ficaram feridas e a polícia procedeu a 177 prisões.
Minado pela indisciplina, o regimento era um viveiro de criminosos
de delito comum que se dedicavam ao roubo, dentro e fora do quartel,
e aos ataques a polícias. A incapacidade de pôr a tropa na ordem levara
à demissão do comandante da região militar do Porto, o general José
Ribeiro Júnior. Correia Barreto, que o substituiu, não conseguiu melhores
resultados. Em Abril de 1917, o regimento registava 79 desertores entre

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Amisse Juma, olhos estranhamente claros e vivos, dono de um português de nível raro nestas paragens

as suas fileiras. Nessa altura, porém, o seu destino estava traçado. Como
acontecera na terceira expedição com 432 praças do regimento de
infantaria 21 e oito sargentos, as tropas do 31 foram muito provavelmente
transferidas para as Colónias nos termos do Regulamento Disciplinar.
Sousa Rosa, que comandaria as tropas portuguesas em Moçambique
depois de Setembro de 1917, lamentaria no seu relatório que os
contingentes que tinha ao serviço “eram mais elementos de perturbação
e indisciplina do que forças a aproveitar contra o inimigo”.
Chegados a Mocímboa, os soldados do regimento começaram a morrer
em catadupa. O médico Américo Pires de Lima, também ele do Porto,
tinha vivido o flagelo das doenças tropicais em Palma, tinha cuidado
de uma multidão de soldados famintos e arrasados moral e fisicamente
após a derrota de Nevala e tinha sentido o pânico que assaltou o Quartel-

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Na baía de águas azuladas, ainda hoje há dezenas de pequenos barcos de vela triangular como os que
escoltaram os navios portugueses

general das tropas portuguesas quando, em Dezembro de 1916, os


alemães se encontravam em Matchemba, a menos de 100 quilómetros
de distância. Mas seria em Mocímboa que viveria “as horas mais trágicas
que passei em Moçambique, as quais foram derivadas da hecatombe,
que exterminou quase completamente o batalhão do 31”. Ao contrário
da expedição anterior, desta vez não tinha havido qualquer vacinação
nem preparação prévia dos soldados para os riscos das doenças tropicais.
A abundância de pântanos criava condições terríveis de salubridade.
Cedo os soldados começaram a baixar às enfermarias com paludismo,
com destaque para a forma cerebral, disenterias, incluindo a disenteria
amibiana, e anemias, entre outras doenças causadoras de mortes.
Pires de Lima vivia ao lado desse drama. Nos seus primeiros dias
de estadia em Mocímboa, o que mais o parecia preocupar eram os

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Um carregador em Mocímboa da Praia

frequentes ataques de leões ao acampamento. A noite, “entrecortada


pelos temerosos rugidos do leão e pelo ruído fantástico dos mil
carregadores espavoridos”, não o deixava dormir. Pouco depois, a
morte frequente de indígenas desprotegidos tornou-se irrelevante para
a tragédia que se avolumava nos barracões das tropas brancas. “O meu
quarto fazia parte do corpo da enfermaria, estando separado dela por
uma parede que não atingia o tecto. Lá passei atrozes noites de insónia,
provocadas pelos horríveis ruídos que constantemente ouvia – gemidos
dos doentes, estertores dos moribundos, tudo isto acompanhado por um
cheiro pestilencial, que da enfermaria fechada exalava”. Quando, lá para
o final de Maio, a estação seca se instalou, Mocímboa transformou-se num
imenso campo de morte.
“Quando morreu o primeiro soldado (era do 30)”, recorda Pires de

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Duas mulheres em Mocímboa da Praia

Lima, “foram ao enterro o próprio comandante, major Carneiro, vários


oficiais e um grande número de praças. Pouco depois ia apenas uma
pequena deputação de soldados com um sargento. Mas como as mortes
fossem frequentes, os enterros passaram a fazer-se de noite, para não
espalhar o alarme. Finalmente, acabou a madeira para caixões, nem havia
quem os fizesse. Foram construídas duas tumbas que, transportadas
numa carroça, lá levavam, em sucessivas viagens, os cadáveres para o
cemitério. Finalmente, todo o pudor se desvaneceu, e a sinistra carroça,
puxada por uma mula e guiada por um preto, constantemente girava
entre a casa mortuária abarrotada de cadáveres e o cemitério”.
Passados apenas três meses desde a chegada, o 31 do Porto, sem dar um
tiro nem participar em qualquer operação militar, tinha 30% de baixas. Um
mês mais tarde, a 18 de Agosto, 203 dos seus 1074 homens tinham morrido

129
Grande Guerra • Grandes Reportagens

e 511 estavam hospitalizados. Até ao final da campanha, o 31 deixou em


África 445 homens. “Todas as manhãs faltavam vários soldados à chamada,
e o sargento de serviço, que ia abaná-los à cama para os despertar, ia
dar com eles mortos. Dias houve [como o dia 3 de Julho de 1917] em que
apareceram assim mortos dez soldados”, escreveria Pires de Lima.
Condenados à inactividade enquanto se curavam as feridas da derrota
da campanha anterior e se preparavam as bases para a ofensiva de
Setembro, os soldados habituaram-se a conviver de perto com a doença
e a morte. Os critérios de escolha da
base, a impreparação e a negligência,
Passei atrozes tornaram-se anedóticas, deixaram de
noites de insónia, contar. “Acampámos num cemitério.
provocadas pelos Perguntei esta manhã a um negro o
que são estes pequenos montículos
horríveis ruídos que
de terra, alinhados diante da minha
constantemente ouvia palhota, dentro do perímetro do nosso
– gemidos dos doentes, acampamento. Explicou-me que cada
estertores dos pedaço de terra cobre o corpo de um

moribundos, tudo isto morto. Aqui se enterravam, antes dos


brancos escolherem este acampamento,
acompanhado por um os negros que morriam lá em baixo,
cheiro pestilencial, em Mocímboa”, contaria o alferes
que da enfermaria Cardoso Mirão, que ali passou uma
curta temporada antes de partir para
fechada exalava
essa odisseia louca e inútil em que se
Pires de Lima, médico
transformou a Coluna do Lago Niassa.
Os soldados derretiam ao sol,
aborreciam-se com os cânticos corânicos, entretinham-se com as
m’namukas (mulheres), esmeravam-se em denegrir os “monhés”
(moçambicanos de origem indiana), assistiam incrédulos ao tratamento
dado aos indígenas que não pagavam o m’soco (o famigerado imposto de

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

palhota) e passavam o resto do dia a ver uma expedição militar a desfazer-


se em doenças. Foi ali que a maioria soube o que era o paludismo e
sentiu o efeito das suas febres: Cardoso Mirão deixou-nos a sua própria
experiência desse horror: “Anunciam-se por um ligeiro mal-estar, um
arrepio, e logo após, calafrios pelo corpo todo. Estes calafrios aumentam,
põem-nos num tremor constante, sacodem-nos da cabeça aos pés,
atirando-nos para um canto impossibilitados de todo o equilíbrio. Assalta-
nos então um frio intenso, glacial e insuportável, que nos faz tiritar
compulsivamente, sem poder ou força de vontade, incapazes de nos
dominarmos”.
Pires de Lima habituara-se a isso, mas não esconde a sua emoção e
perplexidade quando descreve o horror do embarque de doentes para os
hospitais de Lourenço Marques. “O que eu tinha presenciado em Palma,
na ocasião da retirada de Nevala, e que me parecera o máximo da miséria
orgânica que o homem podia sofrer, ficava a perder de vista, comparado
com o espectáculo daquele embarque. Faces macilentas, olhos febris,
fardas a oscilar em cabides, verdadeiros cadáveres ambulantes se
dirigiam, em trágica procissão, para a ponte de embarque”. Muitos
morriam antes de entrar no navio. Houve um dia em que ficaram pela
praia os cadáveres de três doentes. Os médicos não os quiseram privar da
“última e suprema ilusão” de estarem a caminho da pátria.

Próximo destino: Negomano

Depois de Maio, a preparação militar para a campanha que se avizinhava


acelerou. Nesse mês os oficiais que haveriam de criar quatro companhias
de soldados indígenas partiram para a Beira, com a missão de criaram a
Coluna do Lago. Outras duas colunas estavam a ser organizadas com o
que restava das tropas desembarcadas, a Coluna de Negomano e a Coluna
de Mocímboa do Rovuma. O estado sanitário das tropas, porém, não
permitia grandes veleidades ao governador Álvaro de Castro. O estado de

131
Grande Guerra • Grandes Reportagens

Hoje, na sua parte alta e central, Mocímboa continua a ser a cidade que os portugueses deixaram por alturas
da independência: bem desenhada, com edifícios esbeltos e bem construídos.

ânimo, ainda menos. A expedição de 1916 estava de regresso à metrópole,


deixando mortos em Moçambique 6% dos seus 4483 soldados e 159
oficiais. A sua substituição estava já em curso. Por essa altura, em Julho,
o ministro do Exército, Norton de Matos, afirmava ao Parlamento: “Se
juntarmos aos contingentes europeus as forças indígenas que armámos
em Angola e Moçambique e as guarnições coloniais, podemos declarar
que temos um exército nas nossas colónias de 45 mil homens”. Por essa
altura, o efectivo das tropas nacionais em Moçambique era superior ao
dos alemães, reduzidos a um máximo 1600 soldados europeus e 12 mil
indígenas (os temíveis askaris).
Além de soldados, a expedição receberia equipamento com o
qual as tropas alemãs, há muito isoladas de qualquer contacto com
a metrópole, nem sequer ousavam sonhar. Nos primeiros navios de

132
Grande Guerra • Grandes Reportagens

1917 seguiram 53 camiões, quatro postos de telegrafia sem fios e uma


esquadrilha de aviação. Nem isso fez mover o ânimo da expedição, que,
por falta “impulso e alma”, acabaria por ser “pior do que as outras” na
avaliação suspeita do coronel Azambuja Martins, chefe do Estado-maior
do contingente de 1916. Por falta de assunto, a montagem dos aviões
Farman F-40 que vieram desmontados em peças tornou-se um assunto
de enorme expectativa.
Jorge Gorgulho, na descrição de Pires de Lima um “rapaz robusto, de
olhar rectilíneo e aspecto decidido”, tinha-se formado na Aeronáutica
Militar de Vila Nova da Rainha e foi para Moçambique para ser o primeiro
português a voar em África. Um dia, conta Pires de Lima, Gorgulho
“elevou-se majestosamente no ar e todos nós sentimos orgulho em que o
céu africano fosse violado por asas portuguesas. Só um homem abanava a
cabeça, apreensivo, perante as arrojadas manobras do aviador português.
Era o mecânico. Quando lhe gabaram a coragem e a perícia do piloto, ele
limitou-se a responder: ‘On ne fait pas cela!’”. No dia seguinte, o médico
estava no hospital e ouviu um estrondo. “No início de uma ascensão
audaciosa, o aparelho viera a estatelar-se no solo, explodindo e ficando
envolto em chamas. Acorreram os assistentes, desvairados, vendo sair
cambaleante, de entre os destroços ardentes, o infeliz aviador, a arder ele
próprio como um archote. O resto foi uma lenta e atroz agonia”.
A 12 de Setembro chega a Mocímboa da Praia o novo comandante da
expedição, o coronel Sousa Rosa. Meses antes, entre Fevereiro e Maio,
os  alemães tinham entrado sucessivas vezes no território nacional,
destruíram uma vez mais o forte de Maziúa, passaram a serra Mecula,
chegaram a Metarica, ameaçaram Montepuez, bem dentro do território
de Moçambique. Acossados no norte pelos britânicos, destacamentos
alemães passeavam pacatamente por Moçambique. As ordens de von
Lettow-Vorbeck eram claras: “Devastar bem o inimigo no Rovuma e
a sul do mesmo e obter comida e equipamento. Viver tanto quanto
possível, exclusivamente, do inimigo”. Em Outubro, numa missiva

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

dirigida ao governador da colónia alemã, precisaria que, “apesar de


todas as dificuldades de abastecimento que em breve se iriam fazer
sentir na África Oriental Alemã, a guerra pode e deve continuar. Uma
das possibilidades que se oferecia era deslocar a base de operações para
território português”.
A percepção do perigo impunha decisões. Tinha chegado a hora de
deixar Mocímboa e de partir para mais perto da frente. Os ingleses
recomendaram o reforço da linha defensiva do Rovuma e Sousa Rosa
parte para Chomba à cabeça do seu Estado-maior com uma força de
“praças de engenharia a quem só ensinaram canto coral”, de “praças
de artilharia que nunca fizeram fogo” e “praças de infantaria que
mal sabiam carregar a espingarda”, como depois lamentaria. A 20 de
Novembro, o comando move-se de novo para Nacature, um pouco a
sul da actual Mueda. Cinco dias depois, numa operação fulminante,
os alemães invadem o território português em Negomano e destroem
para sempre todas as expectativas de uma saída gloriosa para o
exército no Norte de Moçambique.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

A coluna dos penitentes

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia), em Mocímboa da Praia

A Coluna do Lago partiu de Mocímboa para subir o rio


Zambeze e combater com os ingleses na zona do Niassa. Mas os
ingleses recusaram a aliança e 1000 homens em armas viram-
se esquecidos e obrigados a caminhar 900 km pela selva, em
quatro meses de uma odisseia inútil. As memórias que nos
chegaram evocam a sua luta diária de resistência à fome e à
sede, o combate contra formigas e leões ou um embate contra
indígenas que acabou num horrível festim de brutalidade.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

N
uma manhã de Setembro de 1917, o segundo sargento Cardoso
Mirão esquece-se por um momento dos leões e das hienas que
o atormentaram nessa noite passada no forte de Milange e, num
momento de improvável relaxamento, deslumbra-se a ler jornais
de Portugal que alguém lhe enviara por correio. Os jornais eram antigos,
muito do que lá se escrevera fora já sujeito à erosão do tempo e à vertigem
da mudança num país e numa Europa em guerra. Mas, para o sargento
Mirão, esse mundo retratado nos jornais fora das poucas oportunidades
que tivera nos últimos meses para escapar a um absurdo quotidiano de
privações e de caminhadas extenuantes. Mesmo velhos, as suas páginas
eram “como janela aberta de par em par sobre o céu azul e o jardim
florido da nossa terra”, escreveria.
Até Milange, no território do Niassa, o sargento que integrava a Coluna
do Lago tinha caminhado uns 700 quilómetros, sofrera o ataque das
febres, passara fome e sede, as suas botas estavam desfeitas e deixavam os
dedos negros do pó à mostra, percebera que toda aquela campanha que
mandou para o mato quase mil soldados carecera de estudo, de inteligência
e de sentido de utilidade, sentira na pele as desavenças no comando.
Algures entre o nada e lugar nenhum, sabia que a paragem naquele forte
era passageira, que seria necessário continuar a caminhar dias e dias em
direcção a um destino impreciso e sem sentido. A Coluna do Lago estava
condenada a ser o mais brilhante testemunho do absurdo e do fracasso
em que as campanhas militares em Moçambique na Primeira Grande
Guerra se tinham transformado. Essa odisseia chegaria até nós através
dos apontamentos que os sargentos Cardoso Mirão, o alferes José Teixeira
Jacinto e o sargento Ernesto Moreira dos Santos nos deixaram.
A sorte da Coluna do Lago começa no Porto, algures nos meses finais
de 1916. A 21 de Dezembro desse ano, o governador de Moçambique envia
um telegrama ao Governo no qual diz que, “em vista da doença das tropas
europeias, julga vantajoso recorrer ao emprego de tropas indígenas”, pelo
que serão necessários “quadros e material de guerra” para a criação de

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

865751Coluna apeada de reabastecimento de géneros, entre Mocímboa do Rovuma e Negomano, em 1917 AHM

20 companhias. Álvaro de Castro tem pressa e pede a Lisboa que mande


a sua encomenda “no primeiro paquete”, porque as ofensivas de 1917
poderiam começar a ser lançadas após o fim da estação das chuvas, lá
para “fins de Março”.
Por essa altura, já todos tinham percebido com os sucessos militares
dos alemães que valia mais uma força indígena bem treinada e
equipada do que muitos contingentes de soldados brancos enviados à
pressa da metrópole. A adaptação dos indígenas ao clima, à escassez
de alimentos da dieta europeia e às doenças tinha sido um dos trunfos
da enorme mobilidade germânica nos dois primeiros anos da guerra.
Fora essa mobilidade, que mais tarde haveria de figurar como caso
de estudo nos manuais de guerrilha do século XX, que permitiu
aos alemães escapar durante quatro anos à pressão dos britânicos,

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dos belgas, dos sul-africanos e dos portugueses que as suplantavam


largamente em número.
No final do ano, o governo de Lisboa prepara então a criação de novas
companhias indígenas. Jacinto, Mirão e Moreira dos Santos partem
no Moçambique, a 15 de Fevereiro de 1917, para as instruir. Um mês e meio
mais tarde estão já na Beira, onde tinham chegado recrutas de Sofala,
Sena e Manica. O aspecto inicial dos futuros soldados da República não
gera grande entusiasmo. “Aquela gente rude, de tangas curtas entre as
pernas e carapinha suja na cabeça, eram soldados apanhados a monte
pelas machambas (plantações), gente recrutada a laço pelas roças e pelos
sertões, acorrentados pela cinta uns aos outros, em longas filas presas
por arames e conduzidos para o quartel sob a ameaça constante das
espingardas. Era gente apanhada de surpresa, como se apanham gazelas à
ratoeira ou feras ao redil”, dizia o instrutor Cardoso Mirão.
A maioria não falava uma palavra de português nem conseguia
perceber o que lhes pediam para fazer. À primeira oportunidade,
desertavam. Muito tempo teria de passar até que a avaliação do alferes
médico Américo Pires de Lima fizesse sentido: “Sendo o preto, em regra,
tímido, desde que se lhe vista um uniforme e se lhe ponha ao ombro uma
espingarda, mesmo descarregada, toda a sua timidez desaparece e é
capaz de afrontar os maiores perigos, com a maior naturalidade”. Tinham
passado apenas 15 dias de formação e o pessoal das quatro companhias
indígenas da Beira em formação teve de dar provas do seu valor na asfixia
da rebelião que estalou entre as populações do Barué, Zambézia, contra o
recrutamento forçado de trabalhadores e soldados.  

A visita de cortesia a Mocímboa

Um mês e dez dias de instrução foram considerados suficientes


pelo comando, que então dá a formação por encerrada. As quatro
companhias indígenas da Beira são embarcadas para Palma, mas

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A coluna do Lago PÚBLICO

pelo caminho chegam novas ordens e o desembarque aconteceria em


Mocímboa da Praia. A indecisão que denunciava falta de planeamento
começa a provocar incómodos. Afinal, o que esperava os soldados em
Mocímboa era mais treino sob o sol escaldante e o vazio operacional. Ali
passam duas ou três semanas até que, surpreendentemente, uma nova
ordem os faz regressar ao sul, até Chindo, na foz do Zambeze, por onde
tinham passado poucos dias antes. Na nova linha defensiva traçada ao
longo do rio Rovuma, as quatro companhias indígenas da Beira iriam
ocupar a posição mais extrema, lá para as proximidades do Lago Niassa.
Só que, em vez de trilharem os caminhos já desbravados pelo planalto
dos macondes ou pelas margens do rio, o comando destinava-lhes
uma nova experiência: do Chindo subiriam o rio Zambeze num vapor,
tomariam a linha de caminho-de-ferro que sobe a Niassalândia (actual
Malawi), combinariam com os ingleses uma estratégia de actuação
conjunta e atravessariam o lago para a orla moçambicana.

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O alferes José Teixeira Jacinto Memórias do alferes Jacinto

O plano, que supostamente fora negociado pelos altos comandos,


parecia aceitável, se fosse exequível. Não era. Não se sabe se por
dificuldades operacionais ou por birra dos britânicos, não haveria
viagem de comboio além de Blantyre e todas as tentativas de articular
uma estratégia com os aliados rapidamente se goraram. Após uma
negociação entre o comandante da Coluna do Lago, João Henrique de
Melo, e o general Notherly, chefe das forças britânicas estacionadas
na zona do lago, conclui-se que não haverá cooperação, que os dois
exércitos actuariam de forma separada. No compasso de espera, uns
dez dias, os soldados portugueses acomodaram-se como puderam sob a
torrente do sol, sendo alvos fáceis para “mosquitos de fraca raça que de
imediato produziram baixas por paludismo”, recordaria o alferes Jacinto.
Depois de chegarem a Blantyre de comboio, as companhias começam
a caminhar. Chegam a Luchanza, topónimo que hoje não se consegue

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Embondeiro próximo das margens do Rovuma, em Negomano

localizar no mapa, mas que ficava nas margens de um rio cavado, que
foi atravessado pelas colunas a vau ou através de uma ponte de madeira
que deixou os nervos dos soldados em estado de sítio. O sentido da
marcha, para leste, indicava ainda assim um propósito. A Coluna do Lago
regressava ao território colonial português.
Todas as memórias coincidem em notar o estado de irritação do
capitão Melo e dos seus oficiais com este episódio. Fracassadas as
negociações com os ingleses, o comandante combina com um obscuro
administrador da Companhia do Niassa, Guerra Laje, a instalação das
tropas no forte de Milange. Aqui disporiam de tempo até reunirem
condições para avançar. Destino: a frente do Rovuma. A mais de 900
quilómetros de distância. E não sabiam como a percorrer. Instala-se
o conflito e a divisão entre os oficiais. O Governador de Moçambique,

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Álvaro de Castro, diria anos depois que,


Aquela gente rude, de se o capitão Melo não se tivesse decidido
tangas curtas entre as mandar avançar para Norte a coluna de
alimentos a tempo, seria envenenado
pernas e carapinha pelos seus próprios oficiais. Longe
suja na cabeça, das guerras palacianas, os soldados e
eram soldados oficiais de baixas patentes registavam
as primeiras mortes entre os soldados
apanhados a monte
brancos. A 19, pela manhã, morre o
pelas machambas sargento Carvalho, que Cardoso Mirão
(plantações), gente considerava “o melhor rapaz do grupo
recrutada a laço dos sargentos”; de tarde perece o cabo
Raul de Almeida. A causa foi comum:
pelas roças e pelos
paludismo.
sertões, acorrentados Lá para o final do mês de Julho
pela cinta uns aos chegam mais mil carregadores com
outros, em longas arroz, feijão cafreal e umas 30 “vacas
esqueléticas e manhosas”, na apreciação
filas presas por
do alferes Jacinto, que entretanto fora
arames e conduzidos nomeado provisor da Coluna do Lago,
para o quartel sob a cabendo-lhe a gestão de todos os bens
ameaça constante das alimentares. Por essa altura, “todos os
dias morriam dois a três cavalos que
espingardas
eram montadas dos oficiais e começa
Memórias do segundo
a haver muitas deserções das praças
sargento Cardoso Mirão
indígenas, fuga de carregadores e o
pessoal começa a ser atacado pelas
febres”, notaria o sempre minucioso José Teixeira Jacinto. Ainda assim,
em breve teriam de marchar. Não havia viagem de regresso pelo Zambeze.
Esperavam aquela enorme coluna com mais de 1000 soldados e uns 800
carregadores uma verdadeira odisseia pelo sertão do Niassa.

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A 15 de Julho estão em Mecanhelas e admiram-se com a beleza da


paisagem do lago Chirua. Tinham percorrido pouco mais de 150 km
e “os carregadores encontravam-se em estado deplorável, com os
ombros e a cabeça cheio de chagas produzidas pelos volumes que
transportavam”, recordaria José Teixeira Jacinto, então com 36 anos.
Joaquim Martins, um agricultor português perdido na vastidão da
região do Lago, ajuda-os a procurar caça. A cada passo chegam novos
carregadores exaustos após as longas viagens desde o Malawi. Alimentar
uma coluna em marcha com aquela dimensão não era, porém, tarefa
fácil. “A ração do pessoal indígena começou a ser reduzida a metade e
[a] dos carregadores limitava-se a um quarto de quilo de carne por dia”,
notaria o provisor da Coluna.
Até Amaramba, as longas filas da tropa em marcha seguem sempre
a orla dos lagos que antecipam o Niassa. Tinham percorrido uns 220
km, de acordo com o estudo feito pelo coronel Armando Jacinto, neto
do alferes Jacinto, que nos anos 70 desempenharia funções militares
nessa zona. A fome aperta e a extensão das linhas de abastecimento
torna-se cada vez mais longa. O comandante autoriza a tropa a tirar o
que pudesse nas machambas. Nas árvores há frutos, mas só se ingerem
depois dos indígenas confirmarem que são comestíveis. “De tudo
lançamos mão, tamarindos, acaju, mangas, bananas, frutos estranhos e
exóticos, sementes doces e adocicadas como a alfarroba, frutos grandes,
compridos como abóboras e que pendem dos largos ramos dos baobás”,
recordaria Cardoso Mirão.
O pavor com os elementos de uma natureza estranha e agressiva
aumenta. Uma noite, o sargento Leão grita por socorro. Mirão acode-o.
No delírio, o sargento agonizava, aterrado, dizendo que se estava a afogar.
Mirão julgou que fosse mais um delírio provocado pelas febres. Entra
na palhota e na escuridão consegue ver o sargento de joelhos sobre a
cama, com “dois olhos, brilhantes, febris, esbugalhados pelo terror”.
Tacteia à procura de um toco de vela, acende-a e vê um espectáculo

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Pescador em Mocímboa da Praia

que o horrorizou: “Leão tinha sido atacado por milhões de formigas


que o cobriam totalmente, que o devoravam por todos os lados, que lhe
entravam por todos os orifícios”.
Na solidão e distância do Niassa, aconteciam porém pequenos milagres.
Em Amaramba, o capitão Melo contrata três caçadores cuja biografia
merecia ser conhecida. Chegam assim à coluna Regina Pietro, o “Pitala”,
um italiano do Piemonte, “fino com o vime e rijo como o aço, há muitos
anos perdidos pelas florestas negras do Niassa”, na descrição de Cardoso
Mirão, Elias, grego, “um corpo alto e mal feito, de orelhas recortadas em
renda de bilros”, e Kassan, “um indiano negro e pequenino, mas muito
vivo e inteligente”. Nos dias que se seguiram, as caçadas destes três seres
errantes pelas savanas próximas dos lagos seriam fundamentais para a
sobrevivência da coluna.

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A barbárie em Maúa

Chegara a hora de rumar para o interior, até ao território do régulo


Maúa. Entravam agora numa zona mais remota, mais inóspita, que entre
Abril e Maio tinha sido varrida pelo destacamento alemão do capitão
von Stümmer. Esperava-os um trajecto de cerca de 200 quilómetros.
Demorariam quase 20 dias a percorrê-los.
Pelo caminho, encontrariam ao acaso uma daquelas figuras lendárias
que, como o famoso capitão Neutel de Abreu, passaram a vida a errar
pelo interior de África. O alferes Almada Negreiros, dois sargentos
europeus e um cabo seguiam à frente de uma milícia de 250 indígenas
namarrais e macuas, acompanhados das famílias e de carregadores.
Eram uma das colunas de “irregulares” que ora agiam por conta
própria, ora serviam os planos dos governos ou da Companhia do
Niassa, que desde o final do século XIX explorava todo o Norte de
Moçambique. Os métodos de Almada Negreiros perturbam até soldados
embrutecidos pela dureza do clima e das marchas. Cardoso Mirão
recordaria que o alferes “comandava a sua malta de varapau” e os
seus sargentos à bofetada e ao pontapé. Para ele, aquela multidão não
passava de uma “quadrilha do mata e rouba”.
Pela primeira vez no seu percurso, os soldados estavam prestes a
assistir a um dos seus primeiros episódios de brutalidade da guerra.
Sabia-se que o régulo Maúa era aliado dos alemães. Poucas semanas antes,
fora cúmplice no ataque ao posto administrativo português, que acabaria
incendiado. Nas imediações todos os bens foram escondidos, nada havia
para comer. Nas aldeias restavam idosos e inválidos. A proximidade
da coluna fez com que o régulo se refugiasse com a sua população nos
montes circundantes. À noite, os soldados avistavam ao longe pequenas
luzes trémulas que indicavam a existência de fogueiras. Com um pouco
mais de atenção, podiam escutar vozes. Para os intimidar, a artilharia
ensaiou um bombardeamento. Mas as granadas caíam longe do alvo e

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motivavam aos indígenas ruídos de desdém que enervaram a coluna.


João Henrique de Melo decide então punir Maúa – ou pacificá-la, no
jargão colonial da época. No dia 5 de Setembro de 1917 são presos três
supostos espiões, um velho e “três rapagões”. Organizou-se “um batuque
de guerra infernal” e as sevícias a que foram sujeitos foram tão brutais
que o alferes Jacinto se absteve de as relatar. Os espiões acabariam
enforcados em lugares visíveis, dois em cada margem do rio Maúa.
Cardoso Mirão recordaria o processo
sumário contra um outro indígena
Sendo o preto, em suspeito de espionagem que revela sem
regra, tímido, desde contemplações a brutalização acelerada
que se lhe vista um da Coluna do Lago. “Interrogámo-lo,
nada. Emudecera. Apoquentámo-lo,
uniforme e se lhe
teimámos, persistimos e nada. Batemos-
ponha ao ombro lhe mesmo. Era inútil. O negro cerrara
uma espingarda, os lábios, olhava-nos com rancor e
mesmo descarregada, conservava-se teimosamente mudo”,
conta Mirão. Lançaram uma corda por um
toda a sua timidez
embondeiro para simular a preparação do
desaparece e é seu enforcamento. Nada, ainda. À volta,
capaz de afrontar os “a soldadesca batia cadenciadamente o
maiores perigos, com pé na terra, em atitude hostil, ululando
a maior naturalidade insultos, rindo e gritando”. O suposto
espião acabaria por ceder. Ernesto Moreira
Américo Pires de Lima, médico
dos Santos, um dos sargentos da Coluna,
explicaria porquê: após ter sido ameaçado
de que seria coberto com uma pele de porco, o que, sendo maometano,
o condenaria a vaguear pela eternidade no Inferno, o espião acabaria por
sucumbir. E falou. Que tinha ido ali por ordem do régulo Maúa, para ver os
nossos efectivos e se trazíamos artilharia. Que o Maúa estava perto, numa
povoação, à espera das suas informações, nessa mesma noite.

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O régulo continuava a desafiar as tropas. No alto de uma montanha,


gritos de provocação chegavam ao acampamento. O alferes Negreiros e as
suas tropas tomam conta da situação. “Durante três noites foi um horror
ao qual foi preciso pôr cobro, por os irregulares castrarem as vítimas e
transportarem os seus apêndices para o acampamento no qual faziam
festas em sinal de regozijo”, relataria o alferes Jacinto. Cardoso Mirão e
Ernesto Moreira dos Santos também registaram nos seus cadernos estas
noites de horror. Uma vez, a milícia de Negreiros chega à noite, à hora
de jantar, e interrompe o repasto do alferes com o comandante exibindo
“nos lábios grossos um sorriso de vitória”. Abriram então as sacas de
pele mal curtidas e “entre a ‘punga’ (arroz) e a ‘mapira’ (milho moído)
da refeição, misturados com galinhas mortas do ‘capiango’ (roubo), os
auxiliares iam tirando e espalhando pelo chão orelhas, narizes e até…
variadas partes do aparelho sexual, ainda pingando sangue, de muitos
insurrectos maúas que eles tinham deixado pendentes nos ramos grossos
dos embondeiros”, escreveria Cardoso Mirão.
Maúa fora castigado. Desde sempre que aquela zona, habitada pelos
ajauas, era hostil aos portugueses e assim continuaria. Em Abril de 1916
um relatório enviado ao comando em Palma dava conta de um inquérito
a Asseone, uma indígena “das terras do régulo Larange”, no qual a
mulher dizia que nas terras dos alemães “a abundância é tanta que toda
a gente usa, pelo menos, dois panos e nem o próprio sal falta, além
que as brancas tratam os pretos optimamente”, enquanto no território
português “os próprios panos são cascas das árvores”. No ano seguinte,
o ódio aos portugueses facilitaria a invasão alemã até às portas de
Quelimane. Dois anos depois, os alemães passariam por ali um inverno
tranquilo sob os bons auspícios dos locais.
Em redor de Maúa, e nas etapas seguintes e direcção ao Rovuma,
o que esperava a coluna era, por isso, aldeias abandonadas, campos
agrícolas destruídos. Uma zona devastada, que levaria os soldados até
ao limite. Logo a 9 de Setembro quando a coluna se põe em marcha para

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Agricultores macondes num arrozal em Mocímboa da Praia

Metarica, uma etapa de seis dias, foi possível reparar que só com medidas
desesperadas se podia avançar. Os prisioneiros no posto de Maúa, 50
mulheres e 30 idosos, foram obrigados a servir como carregadores.
Algumas mulheres estavam grávidas e quando davam à luz ficavam
ao abandono. Os velhos, “verdadeiros esqueletos”, eram amarrados
à cintura em grupos de cinco e forçados a marchar por um soldado
irregular que os fustigava com um chicote de pele de hipopótamo.
Caminhavam até ao limite, acabando por ser deixados no caminho
quando se esgotavam. Quando a coluna indigente e esfarrapada chegou
a Metarica podemos imaginá-los com a visão que Carlos Selvagem teve
deles na missão do ano anterior: “Olho-os com piedade, angulosos, nus,
esquálidos, tiritando de frio debaixo dos pobres farrapos da manta,
aglomerados em rebanho nos seus cercados de capim, deslocando-se

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

lentamente, em lentas filas de comboios,


Misturados com ajoujados sob os fardos que os esmagam,
e passivos, sonâmbulos, mecânicos, o
galinhas mortas do
olhar ausente, a face vaga, como quem
‘capiango’ (roubo), vaga no indefinido dum sonho remoto,
os auxiliares iam duma remota visão de palhotas e aldeias
tirando e espalhando natais”.
Metarica, margem esquerda do rio
pelo chão orelhas,
Lugenda, Niassa, quatro e meia da
narizes e até… tarde de 16 Setembro. A vanguarda
variadas partes do da coluna chega ao forte. O resto das
aparelho sexual, tropas, que se arrasta, vai chegando.
Uns pelo ocaso, outros pelo jantar, ainda
ainda pingando
outros já era noite escura. Pelas duas da
sangue, de muitos manhã “apareceram no acampamento
insurrectos maúas alguns soldados indígenas e irregulares
que eles tinham espavoridos, contando o que estava
a passar na rectaguarda”, recordaria
deixado pendentes
José Teixeira Jacinto. Uma matilha de
nos ramos grossos leões tinha atacado o gado e os guardas.
dos embondeiros Quando uma equipa de socorro chegou
Memórias do segundo sargento ao local, já de madrugada, assistiu
Cardoso Mirão então a “um sinistro macabro”: “Alguns
soldados e irregulares que protegiam
o gado e o comboio apareceram
esquartejados em várias direcções”. As margens do Lugenda tanto
forneciam água a uma multidão de sôfregos como um perigo que tirava o
sono aos soldados: as proximidade das feras. Em Metarica, os ruídos dos
leões ressuscitaram os pesadelos de Mocímboa da Praia. Não se dormia
de noite. Quando o comandante da coluna ordena o regresso a casa dos
carregadores menos válidos, estes recusaram. Preferiam ficar, “com

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Pescador em Mocímboa da Praia

medo das feras e também de receio de passar pela região de Maúa em que
seriam mortos pelos seus habitantes como represália dos factos que se
haviam passado com as forças da Coluna”.
No caminho para Metarica a coluna perdera toda a aura de uma força
militar. O cansaço apoderara-se dos corpos, minara a organização,
desfizera a disciplina. A coluna espraiava-se por quilómetros de
extensão, numa marcha arrastada. “Mais do que vergonhosa, a minha
indumentária é ridícula”, registaria Cardoso Mirão. “Trago o chapéu
num bolo, a farda rota, os joelhos nus e as botas, o meu último par de
botas, de bocarras enormes, escancaradas, sem solas, sem palmilhas,
a mostrarem desalmadamente os dedos negros e sujos do pó”. Neste
estado de penúria, os soldados surpreenderam-se quando viram o que
os alemães haviam deixando para trás após a sua curta permanência

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

em Metarica. “São petulantemente comodistas, estes alemães! Em tão


pouco tempo que aqui estiveram, fizeram verdadeiros arruamentos, com
palhotas-Palaces, pequenos bungalows construídos em bambu e capim,
com segurança e conforto como nós nunca sonháramos. Estas palhotas
são amplas, práticas, higiénicas, bem arejadas, com uns três metros de
altura, e comportando duas divisões”, onde não faltava um lavatório e até
cabides para pendurar a roupa, espantar-se-ia Cardoso Mirão.
Em Metarica era já possível para a maioria acreditar que a saga da
coluna estava perto do fim. A contabilidade das mortes entre soldados
brancos ou indígenas não parava de aumentar. No pequeno forte perdido
na selva foi preciso enterrar o sargento Freire de Artilharia e o cabo
sipaio João. Mas a coluna podia, ao menos, ter um primeiro contacto
com o mundo. Sacos de correio e de jornais chegaram para os soldados,
depois de cumprirem uma interminável viagem desde Lisboa via
Lourenço Marques, Beira, Mocímboa, Chinde, Chíndio, Luchenza, Fort
Johnston, Zomba e Blantyre. Na hora de responder a tempo de aproveitar
um correio que ia para o Estado-maior, “o pessoal deu-se pressa em
esquecer por momentos a guerra, a selva, a fadiga e as privações, para
pensar afincadamente nas páginas de recomendações, beijos e saudades
a mandar à família com a afirmação, quantas vezes falsa, duma saúde
que não existia”, recordaria Cardoso Mirão. Nesses momentos fugazes,
notava o sargento, “deixávamos o ar selvagem e brutal que a selva
nos emprestava para nos tornarmos de novo homens, enternecidos e
sentimentais, revendo a casa, a terra, os amigos, emocionados pelas
recordações da família e mais que nunca saudosos da pátria e do lar”.

O princípio do fim da coluna

Aquela massa errante de soldados e de carregadores estava prestes a


cumprir a sua última etapa. Em Metarica, as companhias indígenas da
Beira sabem que vão ter destinos separados. A Coluna do Lago desfazia-

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

se, cumprindo assim exemplarmente a sua inutilidade e demonstrando


com crueza o erro que tinha sido a sua criação e, ainda mais, a sua
missão. Ordens do quartel-general, agora instalado em Chomba, a sul da
actual Mueda, mais perto da linha da frente, mandavam a 4ª Companhia,
com quatro oficiais, quatro sargentos, quatro cabos, 250 soldados
indígenas e 300 carregadores caminhar para Muemba. Um dia depois é
a vez de partir a 3ª Companhia em direcção a Maziúa, o posto remoto na
margem do Rovuma que os alemães tinham assaltado e incendiado a 24
de Agosto de 1914. As forças restantes caminhariam até Nanguar, a 160 km
de distância, onde se reuniriam com uma coluna proveniente de Porto
Amélia ou da Ilha de Moçambique.
Em marchas duras, a fila de tropas e carregadores que resta da outrora
imponente Coluna do Lago tem de cumprir etapas de 25 quilómetros por
dia por serras pedregosas, debaixo de um calor extremo que torna o ar
irrespirável, onde a exuberância da natureza se suspende para dar lugar a
uma paisagem ardente e inóspita. Ao chegarem a Nanguar as dificuldades
com a comida aumentam. “Em Nanguar não há absolutamente nada,
a região é pobre e tudo se encontrava raziado pelo inimigo e apenas o
rio dava carne de hipopótamo”, recordaria José Teixeira Jacinto. “Era
o fim. Chegáramos ao auge do desespero”, notaria Cardoso Mirão. O
comandante tinha ataques de delírio, mandava tocar a fogo, gritando
contra os alemães. Regina, o caçador italiano, queixava-se: “Nada.
Região árida, região maldita, sem um preto nem um bago. Sem a mais
insignificante peça de caça ou indício de fera”.
No dia seguinte, porém, chegou com a coluna avançada das forças
do major José Feio Quaresma o 1º cabo indígena Tiar, que sabia onde
tinham sido escondidos mantimentos na floresta. Estavam enterrados
desde Maio, quando os alemães entraram pelo território da então
colónia de Moçambique. Foram desenterradas então 10 caixas de latas
de sardinha, duas de atum, duas latas de petróleo, 2 caixas de sabão,
6 garrafões de vinho, 2 caixas de vinho do Porto, entre outros bens. Os

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

cereais tinham apodrecido. “Naquele dia tivemos rancho melhorado e


vinho ao almoço”, lembraria Cardoso Mirão.
Nas encostas desoladoras de Nanguar, o destino final da força que
entretanto reunira mais de 1000 soldados e um número incalculável de
carregadores começava a concretizar-se. As companhias que estavam
em Nanguar iriam ser dissolvidas num destacamento comandado pelo
major Feio Quaresma. Tinham feito em vão quase 900 km de marchas
entre a selva, ao longo de quase quatro meses. Se não tivesse havido um
superior em delírio ou um gabinete inconsciente a mandar aquela força
pelo Zambeze acima para chegar ao Niassa, se a coluna tivesse seguido
a mesma rota das tropas que tinham acabado de chegar a Nanguar,
Henrique de Melo, José Teixeira Jacinto e os seus soldados teriam
partido de Mocímboa da Praia, teriam seguido os trilhos do planalto dos
macondes e percorrido uns 250km. Caminhariam quase quatro vezes
mais, por territórios mais inóspitos, desabitados e desconhecidos.
Se não fossem condenados a essa longa e vã travessia da selva, teriam
evitado a morte do sargento Carvalho ou do sargento Freire, o ataque
de formigas que por pouco não matou o sargento Leão, o massacre em
Maúta e as fomes terríveis de Amaramba, Metarica e Nanguar. Os soldados
que ali chegaram deram conta dessas incongruências, mas engoliram em
seco antes de partirem de novo, agora para a guerra. O capitão Henrique
de Melo era agora um símbolo do destino cruel a que ele e os seus homens
tinham sido votados. “Hoje não é um homem, não é um soldado; é um
vencido, um doente, um velho. Venceu-o a selva, a vida, a ingratidão
dos homens. Não fez a guerra, marchou apenas. E o mato também
envelhece”, escreveria Cardoso Mirão.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Tudo se desmoronou
em Negomano

Trincheiras junto ao Rovuma

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia), em Negomano

Na manhã do dia 25 de Novembro de 1917 as tropas alemãs


passaram o Rovuma, cruzaram o leito seco do Lugenda
e apanharam desprevenidas as forças portuguesas que,
placidamente, estavam estacionadas em Negomano. Para os
alemães, a conquista permitiu-lhes acumular as armas, munições

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

e víveres que lhes bastariam para alimentar um passeio de dez


meses por Moçambique. Para os portugueses, Negomano foi o
primeiro passo de um golpe que acabaria de vez com os devaneios
dos militares na Primeira Grande Guerra em África.

A
travessa-se o centro de Negomano, com a sua esquadra da polícia
e o seu posto administrativo a recordarem a persistência da
arquitectura colonial portuguesa, caminha-se em direcção às areias
do Rovuma e, à esquerda, um extenso campo aberto até onde o
rio Lugenda acaba o seu curso desafia-nos a imaginar o que ali aconteceu
entre as 10 da manhã e as três da tarde do dia 25 de Novembro de 1917.
Na pequena aldeia de muitas palhotas e poucas casas de alvenaria, as
memórias da guerra estão ainda presentes, mas não vão para lá de 1960,
quando Negomano se tornou a sede de um destacamento no qual umas
centenas de soldados do exército colonial resistiram a anos e anos de
ataques da Frelimo. Só Santos Salimo Mundogwan, de 61 anos, sabe que
ali, naquele triângulo plano formado pelo encontro de dois rios, teve
lugar uma das batalhas mais terríveis da Primeira Guerra Mundial no
Norte de Moçambique. Porque ele é o chefe de posto da aldeia e é o fiel
depositário das memórias do seu avô, o régulo Malunda, que há cem
anos sentiu na pele as agruras desses dias violentos que acabaram de vez
com qualquer possibilidade de os portugueses saírem de África com um
mínimo de dignidade.
Para a posteridade, Negomano seria para Portugal o que Alésia foi para
os gauleses de Astérix. Um lugar maldito, que convinha a todo o custo
esquecer. No campo aberto que Santos Salino Mundogwan nos mostra
houve em tempos uma placa a indicar que ali tinham sido sepultados os
oficiais e soldados portugueses que foram cercados e dizimados pelos
alemães até que alguém (não se sabe bem quem) decidisse acabar com o
martírio tocando o cornetim do cessar-fogo. Todos esses corpos seriam

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

exumados em 1954 ou 1955 e transladados para o mausoléu de Mocímboa


da Praia que hoje está em estado avançado de ruína. Em Negomano ficou
uma placa, apenas, a deixar à posteridade o registo dessa batalha decisiva
para a sorte das armas portuguesas em Moçambique. Mas, mais tarde,
“essa placa foi arrancada e levada para Mueda”, diz Santos, a localidade
emblemática do nacionalismo moçambicano.
Após uma viagem de 180 km pela selva até Mueda, por uma estrada
esburacada e poeirenta, onde são frequentes as descidas aos leitos
dos rios secos para suprir a inexistência das pontes que desabaram
no último Inverno, com a presença frequente de hienas, babuínos e
macacos na orla, descobre-se esse monumento, que o chefe de posto de
Negomano diz ter sido arrancado do seu lugar original por volta de 1963.
A inscrição há muito que ficou ilegível pela combinação do tempo, das
intempéries e da vandalização. Mas lá sê lê Negomano, percebe-se uma
data, entende-se que é uma homenagem a combatentes valorosos que
perderam a vida ao serviço da Pátria. Não deixa de ser estranho que esse
desejo de perpetuação da memória dos soldados portugueses resista na
orla de uma praça onde todos os anos o governo da Frelimo comemora
“o massacre de Mueda”, o acontecimento de 1962 que serviria de
rastilho à guerra colonial.

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Santos Mundogwan ainda consegue apontar as linhas das trincheiras que o seu pai lhe revelou em criança

No campo de batalha de Negomano, com uma extensão de uns quatro


ou cinco hectares, é possível perceber o que aconteceu naquele dia
fatídico. A densa cortina de capim onde os askaris (soldados indígenas
do exército comandado por Paul Emil von Lettow-Vorbeck) instalaram as
suas espingardas e metralhadoras não seria muito diferente da que existia
em 1917. A vala onde, à pressa, se instalou o comando dos portugueses e o
hospital de campanha para se furtarem às rajadas que varriam o campo de
batalha continua lá. O lugar é plano, aprazível, a dois passos da aldeia e das
águas do Rovuma. Algumas árvores emprestam-lhes a sombra indispensável
para amenizar o sol abrasador do Niassa. Um bom lugar para passar uma
temporada. Nunca para se instalar um exército em posição defensiva.
Para isso havia bem acima da aldeia um pequeno fortim. Apesar de
ficar num terreno que mais tarde seria agricultado, Santos Mundogwan

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ainda consegue apontar as linhas das trincheiras que o seu pai lhe revelou
em criança. Deste ponto, a curta distância da ponte que surge como uma
miragem entre duas estradas de terra batida para ligar Moçambique e a
Tanzânia (chama-se, simbolicamente Ponte da Unidade e foi construída
pelos chineses), não era difícil observar os movimentos das tropas
inimigas, na outra margem. Ali, não haveria qualquer possibilidade
de os portugueses serem apanhados sob o intenso fogo cruzado que
em escassas horas arrasou todas as tentativas de defesa da linha do
Rovuma. O efeito de tenaz, que os ingleses em perseguição dos alemães
acreditavam poder acontecer se essa linha defensiva resistisse, não
passaria de desenhos vagos nos mapas de campanha. Sob todos os pontos
de vista, Negomano foi apenas mais um exemplo de impreparação e
incompetência. Mas foi um exemplo que, do ponto de vista militar, teve
a mesma consequência que a saga-fuga de Nevala, em Novembro do ano
anterior: arrasou todas as expectativas de sucesso da quarta expedição de
tropas portuguesas para a Primeira Guerra no Norte de Moçambique.

Um alerta que ninguém quis ouvir

Às primeiras horas do dia da batalha, as sentinelas repararam no pavor


com que alguns habitantes de Negomano fugiam das margens do rio.
Tinham levado o gado a beber e avistaram alemães do outro lado. No
forte, riram-se com a notícia. Os ingleses tinham informado que os
alemães fugiam em debandada de Masasi, a uns 80 quilómetros da
fronteira, e estavam cercados em Nevala. Dias antes, o comando britânico
admitira que poderiam entrar em Moçambique para atacar a praça de
Negomano, mas logo a seguir desfizeram essa informação e anunciaram
que agora o eixo da sua fuga acabaria para os levar até Chomba, onde
estava o quartel-general. As tentativas para tirar a limpo essas informaões
tinham-se gorado. A missão do sargento Cardoso Mirão ao Unde, um
posto combinado para se encontrar com um mensageiro britânico,

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A memória dos soldados portugueses resiste na orla de uma praça onde todos os anos o governo da Frelimo
comemora “o massacre de Mueda”, o acontecimento de 1962 que serviria de rastilho à guerra colonial

não foi além de uma viagem inútil de três dias e de um susto perante a
proximidade de um leão que quase o surpreendeu. Mas nem a falta de
garantias absolutas sobre a veracidade dos rumores britânicos levou o
comando do major Feio Quaresma a tomar precauções. Pelo contrário.
Negomano era um campo de lazer.
Entretanto, os alemães estavam em marcha. Desgastada pelos
britânicos a Norte, a força comandada por von Lettow-Vorbeck tinha
decidido a 19 de Outubro mudar de estratégia, transferindo o teatro
operações para o território colonial português. A 20 Novembro descera
de Masasi e está em Nevala, a uns 100 km de Negomano. A 21 de
Novembro avança de Nevala para sul com as forças que restavam
dos seus corpos originais após o desgaste de dois anos de guerra
– restavam-lhes 300 europeus, 1700 soldados indígenas e 3000

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carregadores. A Schutztruppe era, nesta


Deste ponto, a curta fase do conflito, um exército acossado,
com falta de mantimentos e munições,
distância da ponte
incapaz de retomar o protagonismo dos
que surge como uma dois anos anteriores
miragem entre duas Pouco depois do primeiro aviso, um
estradas de terra grupo de sargentos decide finalmente
passar os olhos pelo Rovuma. E confirma
batida para ligar
o pavor dos habitantes da aldeia. Os
Moçambique e a alemães atravessavam o rio, a vau ou
Tanzânia (chama- servindo-se de pedras para permitir a
se, simbolicamente marcha dos cavalos. Com tanta calma
e displicência que von Lettow-Vorbeck
Ponte da Unidade e
registaria nas suas memórias que
foi construída pelos alguns aproveitaram até para tomar
chineses), não era banho. Tentando gerir o pânico, o
difícil observar os comando manda formar as companhias,
determina as suas posições à volta do
movimentos das
acampamento, decide abrir à pressa
tropas inimigas, na abrigos individuais com os sabres das
outra margem baionetas por falta de ferramentas
mais apropriadas. “Só então se reparou
que os muros do forte ficavam lá acima distantes, ao sol, e a água, os
depósitos, os géneros, as munições, todo o acampamento enfim se
achava ali entaipado, à sombra da floresta e entre o capim, escondido no
mato sem um campo de tiro, sem uma trincheira, sem uma banal defesa
qualquer. Só então repararam que estavam encurralados num vale”,
notaria nas suas memórias o sargento Cardoso Mirão.
Por volta das nove da manhã, o dispositivo alemão continuava a
atravessar o Rovuma e o Lugenda e, calmamente, ultimava o cerco ao
acampamento português. Lettow não sabia se ali estavam portugueses

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A Ponte da Unidade, construída pelos chineses, ao fundo

O ponto onde os rios Lugenda e Rovuma se encontram em Negomano

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ou ingleses à sua espera, mas não era isso que mais o preocupava –
o comando de von Taffel andava perdido e perdera a ligação à sua
coluna havia dias. Cardoso Mirão, entretanto, estava prestes a chegar
a Negomano, após a sua missão inútil ao Unde. A alguns quilómetros,
a correria de nativos a que assiste alerta-o para o pior. Ao chegar ao
Lugenda, ouve tiros ao longe e vê negros
em fuga em direcção a sul. “Kimbia
A bala perdera- Vitá” (fugir à guerra), dizem, em pânico,
se no espaço e o “seminus, encostados ao grosso cajado
alferes, desvairado, de bambu, as mulheres mal cobertas
com uma rude serapilheira, de casca de
de olhar esgazeado,
árvore à volta da cintura, ajoujadas sob
mergulhava os dedos o peso dos seus poucos haveres, os filhos
crispados nos seus enrolados às costas, a manquejar sobre
cabelos negros e as duras de areia do leito descoberto
do Lugenda, todos em direcção a sul,
arrancava-os aos
pelo território do Niassa a dentro”. Logo
punhados, à procura depois, já nas imediações de Negomano,
dos seus soldados, é parado por “oito, 10, 15 askaris altos
da sua honra, da sua como barrotes e negros como carvões”,
que “surgiram das entranhas do mato,
vida. Estava louco
com os olhos a chamejarem ódio e os
Memórias de Cardoso Mirão
gestos a proclamarem guerra”. Foi
desarmado. Estava preso.
Os primeiros tiros tinham surgido da frente sul por volta das dez da
manhã. Camuflados da cabeça aos pés com camadas de capim, os askaris
eram uma força invisível. Os primeiros sinais de pânico são coincidentes
com as primeiras balas. “Acachaparam-se os cozinheiros, abandonando
as ‘mess’ e as cozinhas, e logo por todo o acampamento se espalhou o
cheiro acre e desagradável a refogado queimado”, recordaria Cardoso
Mirão. O major Teixeira Pinto tenta rumar contra a desorientação, chega-

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Após cinco horas de combate, o ameno campo que regista o cruzamento das águas do Lugenda com
as do Rovuma, tornara-se um desolador cenário de sofrimento e morte

se à primeira linha de tiro, descobre o lugar mais pressionado e começa a


ordenar fogo por descargas. Acabaria por ser atingido mortalmente. Nos
minutos que se seguiram o mesmo acontece ao cabo Alberto. O tenente
Ponces Leão cairia logo a seguir. O Alferes Leão tenta suicidar-se, encosta a
pistola à cabeça e só com um salto o sargento Ernesto Moreira dos Santos
consegue evitar a sua morte. “A bala perdera-se no espaço e o alferes,
desvairado, de olhar esgazeado, mergulhava os dedos crispados nos seus
cabelos negros e arrancava-os aos punhados, à procura dos seus soldados,
da sua honra, da sua vida. Estava louco”, relataria Cardoso Mirão.
Os oficiais, instalados a monte na ravina que os poupava às balas
alemãs, não sabem o que fazer. “Só uma Companhia se conservou calma
e com sangue frio, enfrentando heroicamente o inimigo: a Companhia
Mista de Landins, comandada pelo tenente Pais Gomes e já duramente

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experimentada nos duros combates de Maziúa, Mahuta e Nevala”,


recordaria Cardoso Mirão. A derrota era iminente. Seria consumada
quando soou o toque de cessar-fogo. Eram três da tarde. Após cinco
horas de combate, o ameno campo que regista o cruzamento das águas
do Lugenda com as do Rovuma, tornara-se um desolador cenário de
sofrimento e morte. “Há de tudo! Uma perna esfacelada, um braço
retalhado, olhares vítreos, esgares diabólicos”, registaria Cardoso Mirão.
Os alemães entram no acampamento e num ápice os askaris iniciam o
seu assalto final aos bens dos derrotados. À frente seguia o general Taft
Otto von Lebel, logo depois era o próprio von Lettow-Vorbek a avaliar no
terreno as consequências de uma vitória estratégica de incomensurável
valor. Agora seria possível voltar as costas aos britânicos, ganhar fôlego e
recompor as suas tropas em território português.
Lettow tenta travar o saque que se segue. Nas suas memórias da
campanha na África oriental alemã notaria: “Vergastei pelo menos sete
vezes um carregador que conhecia, mas de todas as vezes ele escapou
e imediatamente se juntou ao saque noutro local”. A orgia de violência
dá origem a uma orgia de roubos. Cardoso Mirão perdeu tudo. “Malas,
roupas, relógios, lembranças, cartas, tudo, tudo”. No campo de batalha
espalham-se “cartas enlameadas, fotografias ultrajadas, trapos sujos
dispersos, cartas de família, desabafos de mães, segredos de noivas,
castelos de amor derrubados pela brutalidade dos negros depois de nos
terem despojado de todos os haveres”, escreveria o sargento.

Os despojos de Negomano

Estava na hora de fechar o capítulo Negomano. Os alemães e os


seus askaris entretinham-se agora a partir uma a uma as armas dos
portugueses que não lhes interessavam ou não podiam transportar. Von
Lettow regozijava-se entretanto com o produto da conquista e com os
bens que encontrara no depósito de Negomano. “Capturámos algumas

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Negomano é uma pequena aldeia de muitas palhotas e poucas casas de alvenaria

centenas de askaris [soldados indígenas que seriam forçados à condição


de carregadores], grande quantidade de medicamentos de valor que tão
necessários eram, todos de excelente qualidade, o que era de esperar
pela experiência de séculos dos portugueses em campanhas coloniais,
e ainda alguns milhares de quilos de víveres europeus, grande número
de espingardas, seis metralhadoras e cerca de trinta cavalos”, registou o
comandante alemão. Com estes bens e com os que arrebanharia sete dias
depois no depósito de Nanguar, von Lettow poderia encarar com algum
optimismo mais alguns meses de resistência. Tinha valido a pena apostar
no assalto à frente portuguesa.
Entre os sobreviventes do exército nacional, o estado de espírito era
devastador. “Oficiais, sargentos, soldados, num abatimento incrível,
desprovidos de tudo, sem malas, roupas nem haveres, aglomeravam-se

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numa multidão indisciplinada e miserável, sentados uns, deitados outros


sobre a terra pelo capim disperso e que lhes servia de cama. Envolvia-
os a todos o círculo de arame e guardavam-nos duas sentinelas negras”,
recordaria Cardoso Mirão. Alguns tinham conseguido fugir e sobreviver
depois de estabelecerem contacto

Capturámos algumas com o quartel-general de Chomba ou


com os postos de serra Mecula. Outros
centenas de askaris, pereceriam na selva. O sargento Pratas
grande quantidade nunca mais se soube dele. O sargento
de medicamentos Carvalho acabaria por ser encontrado
por indígenas tempos depois. Morrera
de valor que tão
“desvairado, louco, perdido, aos
necessários eram, encontrões pela selva, a boca cheia de
todos de excelente areia e o cérebro vazio de toda a razão”,
qualidade, o que contaria Cardoso Mirão.
Para os soldados e sargentos
era de esperar pela
que permaneciam no perímetro da
experiência de séculos batalha, a sorte estava traçada. Seriam
dos portugueses em libertados. É assim que 63 afortunados
campanhas coloniais, recebem ordem de marcha com um
salvo-conduto. Os alemães dispõem-
e ainda alguns
se a conceder o mesmo tratamento
milhares de quilos aos oficiais, desde que jurem não mais
de víveres europeus, combater os invasores. A ideia podia ser
grande número de atractiva, mas alguém lembra o artigo
102 do Código de Justiça Militar que
espingardas, seis
diz: “O oficial prisioneiro de guerra que
metralhadoras e cerca aceitar a sua liberdade sob a promessa
de trinta cavalos de não tomar armas contra o inimigo
O comandante será condenado a presídio militar de
Von Lettow-Vorbeck seis anos e um dia a nove anos”. É então

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Metralhadora das tropas portuguesas junto ao rio Rovuma


Paul von Lettow-Vorbeck DR

que, resignados, os oficiais ficam ali


retidos, “em magote, embrulhados no
próprio invólucro do seu infortúnio e
atados pelo fio dilacerado do arame
farpado, com sentinelas negras à vista”.
Todos acabariam mais tarde por ser
libertados. Para um exército que fez a
sua glória através do ataque surpresa e
da rapidez de movimentos, interessavam
carregadores negros. Prisioneiros
brancos eram um obstáculo.
Para fechar o capítulo, havia ainda
que enterrar os mortos. Pelo menos 14

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soldados e 8 oficiais europeus, na contabilidade duvidosa do exército.


Fazem-se três filas de covas e os soldados abatidos ali ficam. Alguém se
lembra de escrever os seus nomes nos troncos das árvores. O general
von Label vai arrancar a um arbusto próximo um ramo de folhas verdes
que deixa cair no túmulo de Teixeira Pinto. Em breve, a maioria dos que
assistiam às cerimónias fúnebres estariam em marcha. Para trás ficariam,
abandonados às hienas e aos abutres, os cadáveres dos negros. Fontes do
exército falam na morte de 28 indígenas. Uma visão que os testemunhos,
dos soldados portugueses ou do comando alemão, desmentem. Cardoso
Mirão recordaria: “Só os negros – e eles são cerca de 500 - continuam
dispersos pelo acampamento, em atitudes patéticas, corpos sangrentos
colados ao chão, estendidos para sempre, sem dois palmos de terra a
cobri-los, corpos sem dono, à espera que os corvos, os abutres e as hienas
os venham disputar em grunhidos de ferocidade e prazer, festim macabro
de podridão e gangrena”.

A selva, outra vez

Os sobreviventes libertados deixam Negomano com a morte na alma e


os montículos das sepulturas dos que lá morreram na memória. Cardoso
Mirão e Ernesto Moreira dos Santos faziam o balanço de oito meses em
Moçambique, desde que desembarcaram na Beira para instruir soldados
indígenas e foram obrigados a percorrer 900 km na odisseia vã e fútil
da Coluna do Lago. “Fora para ali que se caminhara durante oito meses
intermináveis, de posto em posto, de serra em serra, sofrendo sede e
provações, desgostos e privações, desgostos e injustiças”, notava Mirão.
Nada havia a fazer: “Nesta coisa da guerra, os alemães eram melhores
do que nós”. Ou, seguramente, menos caóticos, imprevidentes e
incompetentes.
De regresso às caminhadas, os sobreviventes tentam encontrar ajuda
em algum posto português das imediações. Em vão. Em Nazombe

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

encontram de novo alemães. Mostram-lhes os seus salvo-condutos e


pedem água. Cardoso Mirão, que falava inglês, é levado a uma tenda,
ao fundo do acampamento, onde encontra von Lettow, “sentado num
caixote, diante de uma mesa portátil”. O general invencível era afinal
a “figura modesta e simples de um
homem, de estatura regular, olhar
Só os negros – e eles
sereno e firme, uma barba loira, em
são cerca de 500 - bico, a apagar a suavidade de dois vincos
continuam dispersos desenhados aos cantos dos lábios”.
pelo acampamento, Com maior ou menor dificuldade, esta

em atitudes patéticas, coluna errante de derrotados acabaria


por contar na primeira pessoa o que
corpos sangrentos acontecera em Negomano. O aviso de
colados ao chão, pouco serviu. A velocidade do ataque
estendidos para alemão, que no dia 2 de Dezembro,
sete dias depois de Negomano, está
sempre, sem dois
em Nanguar e no dia 3 inicia o assalto
palmos de terra a às fortificações da Serra Mecula, não
cobri-los daria grande tempo ao comando-geral
Memórias de Cardoso Mirão de Sousa Rosa para reflectir sobre o
que acontecera. Entre os que tinham
desfilado no famoso Destacamento de Nanguar, porém, a explicação
parecia fácil: além da negligência que levara o comando a acreditar no fim
próximo dos alemães, a divisão das forças por vários postos ao longo da
fronteira tornara mais fácil a sua investida fulminante. A responsabilidade
por essa decisão desastrosa coube ao comando do coronel Sousa Rosa,
que, por este erro e pelos fracassos no combate à invasão alemã de 1918,
seria alvo de um inquérito. Mas, quando as conclusões foram publicadas,
em 1926, já ninguém queria vasculhar as dolorosas memórias da
Primeira Guerra. “Nas condições em que o coronel Sousa Rosa assumiu
o comando da expedição, já não seria fácil evitar que erros e deficiências

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

anteriores viessem a ter uma perniciosa influência no prosseguimento das


operações”, lia-se no apaziguador relatório da Comissão.
Mas, apesar do branqueamento póstumo, a decisão de dividir as forças
por Nanguar, Negomano, serra Mecula, Montes Oizulo e Montes Mocolos
persistiria na memória dos combatentes como um erro indesculpável.
O capitão Francisco Curado, um dos poucos oficiais portugueses que
regressou da Primeira Guerra em Moçambique com a aura de competente
e corajoso, recordaria o “grande desânimo e a surpresa de todos ao
termos conhecimento da ordem que mandou marchar para Negomano
o major Quaresma, com parte das forças do seu comando, a reforçar
o destacamento de Teixeira Pinto, e a distribuição das restantes em
pequenos núcleos isolados ao longo da fronteira (Mecula, Oizulos e
Macolos) e distanciados mais de 150 km uns dos outros” (a citação lê-se na
obra Fantasmas do Rovuma, do jornalista Ricardo Marques). Curado terá
chegado a dizer ao major Quaresma que, se fosse ele o comandante, “não
cumpriria a ordem recebida”.
Dias mais tarde, Quaresma poderá ter recebido uma contra-ordem do
comando, recomendando-lhe que se mantivesse em Puxa-Puxa, no sopé
da serra Mecula, onde nos últimos meses os soldados portugueses se
haviam dedicado a construir trincheiras e outras posições defensivas. Não
se sabe se isto é verdade. Nenhum inquérito foi aberto para determinar o
que aconteceu. O que é facto é que o major manteve o sentido da marcha
para Negomano, onde chegou um ou dois dias antes do assalto alemão.
Com as forças dispersas e incapazes de suster a eficiência germânica,
o que aconteceu em Negomano não passou do primeiro episódio de
uma clamorosa derrota cujos efeitos persistiriam até ao final da guerra.
Novembro de 1917 seria, como Novembro de 1916, um momento fatídico
para a campanha militar dos portugueses no Norte de Moçambique.
Nos meses que se seguiram os alemães entretiveram-se a passear pelo
território nacional. O comando do que restava das tropas portugueses foi
cedido aos ingleses.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Negomano seria para a posteridade uma data negra para um exército


com ambições coloniais. Santos Mundogwan aprendeu com o avô
e com o pai a ler nos sulcos que restam das trincheiras do fortim ou
no descampado bucólico na margem do Rovuma os sinais de uma
batalha que inscreveu o nome da aldeia na história da Primeira Guerra
Mundial em África. Os soldados portugueses que por lá passaram na
guerra colonial, pelo menos os que o PÚBLICO contactou, não sabiam
da existência do forte nem do campo de batalha. Nunca ninguém
lhes dissera. Nessa nova frente de guerra no Rovuma era conveniente
desconhecer uma derrota assim.

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A última derrocada

Manuel Carvalho (texto) e Manuel Roberto (fotografia), em Negomano

Depois de Negomano, os alemães assaltam Nanguar, daqui


saltam para a serra Mecula e num ápice toda a linha defensiva
construída em 1917 caiu como um castelo. Desbaratado o
exército português, as tropas do mestre guerrilheiro von
Lettow entram em Moçambique, onde passariam dez meses.
Agora, a defesa da colónia estava nas mãos dos ingleses.
De regresso a Lisboa, o alto comando dedicava-se a tentar
perceber o nexo de tantas derrotas. E a preparar golpes contra
os culpados da República.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

A
meio da tarde de 20 de Abril de 1918, um grupo de homens e
mulheres exaustos e andrajosos aproximou-se da linha de defesa do
comando militar português de Muirite, no Norte de Moçambique. À
cabeça da caravana que por esse momento integrava um impedido,
um cabo, 17 indígenas armados, três refugiados, as respectivas mulheres
e um guia estava o alferes José Teixeira Jacinto. Todos ficaram reféns.
Só o oficial seria autorizado a avançar até ao comandante do posto.
Para provar a sua qualidade de soldado da quarta expedição tinha uma
narrativa extraordinária para contar.
E começou: desde que as tropas alemãs começaram a desbaratar as
linhas defensivas portuguesas em Negomano, a 25 de Novembro de 1917,
nunca mais tivera contacto com os seus comandantes; que fora o único
oficial português a escapar incólume à razia alemã; que tinha conseguido
transferir a companhia que comandava nos Montes Macolos, na frente
ocidental, quase junto ao lago Niassa, para a base segura de Unango; que
se juntou às forças britânicas do coronel Clayton com as quais combateu
os alemães; que aí, semanas antes, soubera que as tropas portuguesas
estariam em Muirite; que, depois de entregar a sua companhia a outro
oficial, passou “19 dias pela floresta lutando pela vida” até ao limite, até se
poder apresentar aos seus superiores.
A vida errante de José Teixeira Jacinto pela selva do Niassa, pelas
escarpas de Nanguar, no caminho para os montes Macolos e no regresso
até ao conforto de uma base portuguesa durou dez meses e fez-se ao
longo de mais de 2000 quilómetros a pé. Quando chegou a Muirite, já as
tropas portuguesas se tinham transformado num apêndice das manobras
do exército inglês, que agora liderava o combate aos alemães instalados
bem no coração da colónia portuguesa. O que restava da expedição de
1917, a quarta que Lisboa enviou para a frente do Rovuma, acumulava-
se nos quartéis à espera do final das suas comissões de serviço. A
imprevidência, incapacidade e incompetência que soldados e oficiais
tinham mostrado transformaram-nos em mais do que num peso morto

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

A epopeia do alferes Jacinto, PÚBLICO

para a guerra em África: tinham sido até preciosos aliados dos alemães,
que com delícia se apropriaram de toneladas de armas, munições,
víveres, medicamentos e carregadores que os portugueses deixavam nos
campos de batalha onde foram derrotados.
Para José Teixeira Jacinto, o regresso a uma base portuguesa era
redentor. O que passara nos últimos meses raiava o limite da capacidade
de resistência. Nas suas viagens vira e vivera um pouco de tudo: penou
com a morte de companheiros, estarreceu-se com os corpos esventrados
após ataques de leões, passou fome e sede, assistiu e obedeceu a ordens
e contra-ordens de um comando desnorteado e incompetente, caçou
hipopótamos para comer e uma jibóia de seis metros e meio para lhe
guardar a pele, mandou pilhar comida aos indígenas, cavou trincheiras,
enterrou e desenterrou alimentos escondidos aos alemães e, no final,
manteve uma luta renhida com o Estado para reclamar o Colar da Ordem
da Torre e Espada pelo seu heroísmo em Moçambique que, por engano,

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

fora entregue
a outro oficial.
Porque afinal ele
comandou a única
companhia que se
salvou da razia do
ataque alemão de
Novembro de 1917
e foi até capaz de
a guiar até uma
base inglesa onde
permaneceria em
campanha.
Quando a
Coluna do Lago
chegou a Nanguar,
em Outubro de
1917, Teixeira
Jacinto teve razões
para suspeitar
que o calvário
das caminhadas
pela selva iria
continuar.
Aí soube que
O Monumento aos Mortos de Negomano em Mueda passaria a ser o
comandante da 2.ª
Companhia Indígena da Beira, que treinara. E soube também que tudo
aquilo por que passara não entrava nos planos do seu novo comandante.
Na primeira reunião formal com os seus oficiais, o major Feio Quaresma
que acabara chegar do litoral a Nanguar, deixara um aviso sério e grave:

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

“A ordem e a disciplina serão a divisa deste comando e não admitirei


que elas se discutam, mas apenas que se cumpram (…) Para aqueles que
ousem retroceder, ou no momento de perigo tentem voltar as costas
ao inimigo, eu tenho esta pistola para os obrigar a retomar a frente
ou para os abater como se abatem os cães traidores”. Entre os oficiais
gera-se uma vaga de indignação e de fúria. Feio Quaresma sugeria que
aquela coluna de maltrapilhos precisava mais de um chefe duro do que
fardas e alimentos. Fazia-o desprezando o capitão Henrique de Melo, o
comandante da Coluna do Lago, que estava gravemente doente.
Como se a falta de apoio a uma multidão de homens que acabara de
vaguear 900 km pela selva não bastasse, Quaresma acrescentaria que,
doravante, a própria Coluna do Lago deixaria de existir. Iria ser fundida
com as tropas que vinham com Quaresma no Destacamento de Nanguar
que, 15 dias depois de ser criado, estava pronto para marchar para a
frente. Era composto por 36 oficiais, 63 sargentos, cabos e soldados
europeus, 1167 soldados indígenas, 250 soldados irregulares, 50 sipaios
e guias, três caçadores e 1500 carregadores. Eram ao todo 3069 homens,
uma força considerável, capaz de combater de igual por igual com as
temíveis forças do general alemão Paul Emil von Lettow-Vorbeck, que se
suspeitava estarem a caminho do território colonial português.
Mas, numa decisão incompreensível, logo a seguir o quartel-general
decide repetir os erros da Primavera de 1916. Em vez de apostar em
núcleos defensivos fortes, decide-se pela multiplicação de pequenos
destacamentos isolados ao longo de uma fronteira enorme. As
trincheiras que a 2.ª Companhia Indígena comandada pelo alferes
Jacinto tinha cavado em Puxa-Puxa, na zona da serra Mecula, não seriam
ocupadas pelos seus homens. Eles teriam de regressar ao caminho,
de fazer mais uns 450 quilómetros por território desconhecido até
os Montes Macolos, que os indígenas conheciam por Guala-Guala, no
extremo ocidental do Niassa. Levariam comida para 30 dias de marcha
e 46 mil cartuchos de reserva. Teriam de construir aí uma fortificação

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e vigiar a margem direita do Rovuma numa extensão de dois dias de


marcha para cada lado do seu posto.
“O novo comandante”, seguindo “uma política muito sua, segundo uns,
cedendo às exigências de uma política partidária, segundo outros, ou a
uma política internacional imposta pelos nossos aliados ingleses, segundo
muitos, distribuira uma série de telegramas, ordens e contra-ordens,
esfacelando todo o nosso dispositivo, disseminando-o em pequenos
núcleos dispersos por toda a província, mas sem autonomia, sem ligações
nem condições de defesa possíveis”, criticaria o sargento Cardoso Mirão
nas suas memórias da guerra. Se Jacinto foi para os Macolos, a 4ª Indígena
da Beira, as metralhadoras, com os tenentes Viriato de Lacerda e Benard
Guedes e o médico Valadares, ficariam na serra Mecula; o capitão Curado
e alguns dos seus sipaios regressaram por breves dias a Nanguar, onde

Em Setembro, dez meses depois de Negomano, os alemães atravessam de novo o Rovuma

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ficariam a guardar 200 mil cartuchos e 150 toneladas de géneros; e o


major Quaresma, com todo o seu estado-maior, a 3ª Companhia da
Beira e a 21ª indígena partiram para reforçar Negomano. Era a guerra
nos trópicos a ser feita com “a táctica de gabinete exportada pela nossa
burocracia das ‘Arcadas’”, criticaria Cardoso Mirão.
Dia 7 de Novembro de 1917, José Teixeira Jacinto está novamente em
marcha. Não levava panos nem dinheiro para negociar com os indígenas.
Não tinha sequer um mapa rudimentar que lhe indicasse o caminho. Até
atravessar a serra Mecula levaria como guia o filho do régulo de Puxa-
Puxa. Depois ficaria entregue à sua sorte.

A ordem e a disciplina Em Maziúa, onde chega após seis dias de


marcha, visita o posto onde os alemães
serão a divisa deste abateram o 2.º sargento enfermeiro
comando e não Costa, em Agosto de 1914. A caminho
admitirei que elas se para Mecaloge, as tropas regozijam-se

discutam, mas apenas com um banho retemperador no rio


Lichiringo e excitam-se com o abate
que se cumpram de uma jibóia com seis metros e meio
Major Feio Quaresma de comprimento. Nas terras do régulo
Missé, Jacinto notaria o regresso das
febres que atacam com força os soldados brancos da expedição. Um deles
pedia-lhe: “Meu alferes, puxe da pistola e dê-nos um tiro ou abandone-
nos que lhe perdoamos a morte”. Já não havia quinino. Os doentes
seguiriam em machilas transportadas por carregadores negros.
Dia 24 de Novembro, Jacinto chega à sua “encantada posição”. Estava
a 700 km de selva do quartel-general em Chomba, a 500 de Negomano,
a 400 da serra Mecula, a 70 dos montes Oizulo. Estava, portanto,
isolado do mundo e da frente. Para enviar uma mensagem para o chefe
do Destacamento de Nanguar, em Negomano, seriam necessários
15 dias de viagem em cada sentido. As más notícias, porém, correm
céleres e a que dava conta da devastação alemã em Negomano, a 25

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de Novembro, chegara menos de dez dias depois. Nem duas semanas


após a sua instalação nos Macolos, Jacinto pressente que toda a linha
defensiva do Rovuma, na qual a sua companhia ocupava a posição mais
ocidental, entrara em colapso.

O princípio do fim

Depois de Negomano, os alemães correram para Nanguar, onde entram


de surpresa – supostamente o chefe do posto, alferes Salgado, e o do
depósito, tenente Mesquita, estavam a dormir, embora as memórias do
general alemão Lettow-Vorbeck refiram que o capitão Stermmermann
teve de cercar os depósitos “durante dias” e que o seu perímetro foi
“valente e vigorosamente defendido”, acabando por sucumbir apenas
depois de acabar a água aos sitiados. É para lá que o comandante alemão
marcha em ritmo acelerado desde Negomano, chegando a Nanguar
“a tempo de superintender na divisão das provisões capturadas”. Os
alemães voltam a deliciar-se com uma dádiva preciosa para a sua
capacidade de manter a guerra em África. “Rearmámos quase metade
das nossas tropas com espingardas portuguesas, e fez-se uma lauta
distribuição de munições. Apoderámo-nos de cerca de 250.000
carregadores, número que se elevou a um milhão durante o mês de
Dezembro”, notaria nas suas memórias o general Lettow-Vorbeck após o
assalto ao depósito de Nanguar.
Daqui, o próximo objectivo dos alemães era a serra Mecula, onde, de
acordo com os planos iniciais do quartel-general português, se deveria
criar uma força suficientemente sólida para travar uma invasão alemã
cada vez mais provável após a derrota que os britânicos lhes impuseram
em Masasi, no final de Outubro. Desde esse momento crucial que os
soldados portugueses ali se tinham concentrado na missão de construir
uma barreira inexpugnável. O local não podia ser melhor. Havia o declive
da serra na qual “a água brotava espontânea por entre as fragas onde nós

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Uma picada em Negomano

alcandorávamos”, na descrição de Cardoso Mirão. E a escassa distância,


na povoação do régulo Puxa-Puxa, junto a um pequeno rio, os soldados
puderam abrir um extenso campo de tiro e construir abrigos e trincheiras
de ligação. Um trabalho que deixou os soldados embevecidos. “É digno
de nós, e podemos afirmar que estamos apostados em fazer frente ao
inimigo, com todas as vantagens a nosso favor”, notava Cardoso Mirão.
No vaivém das ordens e contra-ordens que denunciava falta de
planeamento e insegurança, Mecula e Puxa-Puxa ficariam relativamente
desprotegidas quando as suas forças foram encaminhadas para
o atoleiro de Negomano e para os postos estabelecidos à pressa a
ocidente. Nada faria por isso prever que, depois das facilidades de
Negomano e do assalto a Nanguar, Mecula se transformasse num
dos raros momentos de relativa glória do exército português. A 3 de

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Dezembro de 1917, um destacamento alemão comandado pelo general


Kurt Wahle lança as primeiras tentativas para conquistar as posições
portuguesas na serra. Encontra uma tenaz resistência. Para Cardoso
Mirão, ali se escreveria “a página mais brilhante de nossa acção em
África”. A guarnição portuguesa, mesmo estando em inferioridade
numérica, resistiria ao assalto dos alemães durante quatro intermináveis
dias. A 8 de Dezembro, por volta do meio-dia, as munições dos
sitiados estavam a acabar. Os alemães começam a usar a artilharia que
entretanto fora desviada para o local. A resistência duraria apenas mais
alguns momentos.
O que aconteceu na serra Mecula, dizem-no todas as memórias e
relatórios oficiais, explica-se pelo facto de, por uma rara vez, as tropas
portuguesas terem manifestado vontade de combater. Mais, combateram
com método e organização. O que só se explica pelo perfil e currículo do
seu comandante, o capitão Francisco Curado, um oficial experimentado
das campanhas de 1916 na travessia no Rovuma ou da conquista/fuga do
forte alemão de Nevala. Ou de por lá andar o tenente Viriato de Lacerda,
um oficial já com dois anos de guerra que se recusara terminar a sua
comissão de serviço em Moçambique. Viriato de Lacerda seria abatido
por soldados alemães do destacamento Wahle quando tentava destruir
uma metralhadora para evitar que caísse nas mãos dos alemães. O seu
funeral nas faldas de Mecula mereceu honras militares dos alemães. O
governador da África Oriental Alemã, Heinrich Schnee, esteve presente.
Postumamente, Viriato de Lacerda seria promovido e agraciado com
uma Cruz de Guerra “pela sua grande valentia, sangue frio, desprezo
pela vida e acrisolado patriotismo”, lê-se numa Ordem do Exército
datada de 27 de Agosto de 1920.
A partir da conquista da serra Mecula, já não havia salvação possível
para o exército português. Perdera todas as condições de se recompor
e de retomar a sua organização defensiva. A surpresa e eficácia do
ataque alemão transformaram as suas companhias numa multidão em

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Uma travessia no rio Rovuma

debandada. O capitão Francisco Curado apercebe-se da gravidade da


situação e, a 6 de Dezembro, em pleno assalto a Mecula, envia um ofício
para José Teixeira Jacinto no qual o avisa que “o inimigo tomou Negomano
apoderando-se de grande quantidade de víveres e material de guerra
e fazendo prisioneira toda a guarnição”. Em consequência, Francisco
Curado ordena-lhe que retirasse “para um lugar que julgue conveniente,
mandando destruir todos os depósitos de géneros que possua”. Enquanto
a ordem era cumprida, os refugiados da ofensiva alemã iam chegando
às posições ocupadas pela 2.ª Companhia Indígena da Beira, nos Montes
Macolos. A 15 de Dezembro, eram já 350, “quase todos com aspecto
esquelético, devido à fome que tinham passado”.
Dois dias depois, a 17, calmamente, o grosso da coluna comandada
por von Lettow avança para o interior do Niassa e instala-se em

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Metarica. A estação das chuvas estava a chegar e uma missão enviada


pelo general bóer Jacob Van Deventer, que o convida a uma rendição
honrosa, era a melhor prova das dificuldades dos seus inimigos. A
instalação do grosso das suas tropas em território português (só a coluna
do capitão Taffel se tinha rendido depois de andar perdida a Norte
do Rovuma), colapsara a estratégia
britânica e portuguesa. A lama que em
Rearmámos
breve alagaria as estradas e os trilhos, a
quase metade água que impediria a travessia dos rios
das nossas tropas e a circulação nas ravinas, jogava agora
com espingardas a seu favor – no ano anterior tinha salvo
a vulnerável base portuguesa em Palma
portuguesas, e
de um ataque que seria tão fácil como
fez-se uma lauta fatal. Para o perseguirem de novo com
distribuição forças capazes, ingleses e portugueses
de munições. teriam de investir em meses de
preparação.
Apoderámo-nos de
Em Metarica, Lettow cura as sequelas
cerca de 250.000 de um ataque de matacanha, um insecto
carregadores, número que na descrição do alferes médico Pires
que se elevou a um de Lima, um dos integrantes da terceira

milhão durante o mês expedição, “tem o péssimo hábito de,


quando fecundada, perfurar a pele e
de Dezembro introduzir-se, de preferência, debaixo das
Memóriasd o general unhas dos pés” onde “o seu ventre cheio
Lettow-Vorbeck
de ovos incha até atingir as proporções de
uma ervilha, o que dá sempre incómodos
e, por vezes, complicações graves”. Tem todo o tempo do mundo para
recuperar e preparar uma nova fase da sua campanha. Organiza uma
linha de produção de salsichas para fazer esquecer o consumo de carne
de hipopótamo. Teve até possibilidade de semear algum cereal. De resto,

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os ajauas que viviam na região, notou o historiador francês René Pélissier


com base nas memórias alemãs da guerra, acolheram os alemães como
salvadores da crueldade e violência dos portugueses.
Durante este período de relaxamento alemão, José Teixeira Jacinto
trabalhava sob as ordens dos ingleses. Até Março de 1918, ele e os seus os
soldados participam em missões de reconhecimento ou em operações
logísticas. Havia três meses que deixara os Montes Macolos, arrastando-
se e arrastado a sua companhia e a horda de fugitivos que acolhera até
à base de Unango. Uma pequena força avançada dos ingleses tinha-se
entretanto aí instalado e assistiu à sua chegada. “O aspecto da força mais
os fugitivos era desolador, pelo que fomos apelidados de ‘Companhia
Pirata’, todos com o cabelo e barba de mais de dois meses por cortar,
idem os fatos e o calçado dos europeus a cair aos pedaços, e os soldados
indígenas quase todos seminus, sendo os casacos tristes farrapos em
cima do dorso. O oficial inglês ficou espantado”, escreveu o alferes
em 18 de Dezembro. Acedendo ao convite do chefe civil da localidade,
Jacinto instala-se no forte. No final dos anos de 1960, esse mesmo lugar
seria chefiado pelo seu neto, o coronel na reserva Armando Jacinto, na
altura capitão, sem que este imaginasse sequer a coincidência.
Nas bases portuguesas, primeiro em Chomba, depois Mocímboa da
Praia e mais tarde em Porto Amélia, o desnorte é total. Durante cinco
meses ninguém soube o que acontecera à 2.ª Companhia Indígena
da Beira nem aos sobreviventes que se lhe tinham juntado. Muitos
acreditavam que tinham morrido. Sobre eles contavam-se já lendas.
Finalmente, a 15 de Março de 1918, José Jacinto recebe um telegrama
assinado pelo comandante Sousa Rosa: “Um abraço para todos vós e
todos os camaradas. Felicito a vossa conduta”. Uma “alegre notícia”,
que provava que “as forças portuguesas não tinham sido totalmente
aniquiladas, como se dizia”, escreveu Jacinto.
Na primeira oportunidade, o alferes trata de planear o seu regresso ao
quartel-general português. Entrega o comando da 2ª Companhia a Paulo

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

“grande safari” dos alemães, PÚBLICO

Bernard Guedes, que tinha ficado prisioneiro dos alemães na serra Mecula
e viria a ser Governador-geral na Índia nos anos 50. No final de Março
parte para a sua última grande travessia do território do Niassa com seis
carregadores, um 2.º cabo, dois soldados indígenas e um guia. Jacinto e os
seus companheiros percorreram nessa última etapa talvez 500 quilómetros
até Muirite. Como nas anteriores deambulações, o seu relato da viagem
está repleto de referências a momentos de fome, de cansaço, de desespero.
Foi encontrando pequenos pelotões de portugueses que o abasteceram, o
alimentaram e lhe permitiram saber, via TSF, que a guerra na Europa estava
a um passo do fim. Soube também que tinha sido promovido a tenente.

O “grande safari” alemão

Enquanto Jacinto caminhava para leste, Von Letow dirigia-se para Sul.
Em Abril está de novo em Maúa, onde menos de um ano antes o alferes
Jacinto se horrorizara com o castigo imposto aos indígenas da região

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pela sua colaboração com os alemães. Daqui começaria o que René


Pélissier designaria por “Grande Safari”. Desde o final de 1917 que os
ingleses concentravam forças em Porto Amélia. No outro extremo de
Moçambique, as tropas britânicas e africanas passam o Niassa e criam
uma nova frente a leste. Para coroar esta estratégia, os portugueses fariam
uma barreira no rio Lúrio, a sul. Entre Abril e Maio sucedem-se pequenas
escaramuças entre as colunas avançadas dos três exércitos. Quando
percebe que o cerco se aperta, von Lettow-Vorbeck inventa mais um dos
seus golpes de génio. Deixa para trás os seus feridos e tudo o que travava a
mobilidade da coluna, fura a barreira do Lúrio, atravessa o rio a vau e, em
Junho, já está pronto para atacar uma fortificação portuguesa no distrito
de Quelimane, apanhando “os oficiais a tomar café na varanda do posto”.
A notícia da presença alemã naquela zona gerou um novo alarme na
colónia. Como recordaria o general Azambuja Martins nos seus escritos
sobre a Primeira Guerra em África, uma coisa era os alemães atacarem
pequenas aldeias de palhotas no Niassa; outra, diferente, era pôr em
perigo Quelimane e ameaçar a Zambézia, um dos pilares económicos da
colónia. Era, no entanto, para aí que o que restava da Schutztruppe de
von Lettow-Vorbeck caminhava. No final de Junho, a coluna avançada dos
alemães estava já nas margens do rio Licungo, a uns 40km de Quelimane.
Na margem sul, em Namacurra, onde terminava um ramal de caminho-
de-ferro que seguia até Quelimane, cria-se uma linha defensiva com três
companhias portuguesas e duas inglesas. O comando inglês sossega as
hostes e, a 30 de Junho, avisa que “não há notícias do inimigo” e mesmo
que houvesse “o Rio Licungo não se pode atravessar a vau”. Um dia mais
tarde, os soldados da guarda avançada do capitão Müller desfazem a
convicção e atravessam-no com a água pelo pescoço.
Ainda nessa tarde os alemães começam a assaltar os três quilómetros
de trincheiras construídos à pressa em Namacurra. No primeiro dia, os
portugueses resistem durante três horas de árduos combates ao avanço
alemão, numa façanha que seria elogiada pelo general Van Deventer no

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

José Jacinto foi encontrando pequenos pelotões de portugueses que lhe permitiram saber, via TSF,
que a guerra na Europa estava a um passo do fim. Soube também que tinha sido promovido a tenente.
Aqui posto de TSF em Nacarute AHM

seu relatório. Dois oficiais e um sargento são abatidos. Onze oficiais são
prisioneiros. No dia seguinte, o combate, agora com von Lettow-Vorbeck
a comandar os alemães, foi mais equilibrado. Mas na madrugada do dia
3 de Julho de 1918 uma nova ofensiva desgasta as posições defensivas
dos aliados e, pela tarde, a artilharia alemã entra em acção. Gera-se o
caos. Portugueses e ingleses fogem em desordem para o rio, onde uns
100 soldados africanos e quatro europeus, entre os quais um tenente-
coronel britânico, morrem afogados. Uma vez mais, von Lettow-Vorbeck
sairia invencível. Como troféu, apreenderia em Namacurra equipamento
militar moderno, incluindo metralhadoras, umas 500 toneladas de bens
essenciais e até um vapor com abastecimentos que entretanto subira o
Licungo em socorro das tropas aliadas.

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

Quando a notícia chega a Quelimane, o medo instala-se. A cidade


estava indefesa, perdera a sua única barricada em Namacurra. O coronel
Sousa Rosa ordena a retirada de mulheres e crianças. Os bens existentes
nos bancos são arrolados e enviados para sul. Suspeita-se que o próprio
Sousa Rosa se terá retirado para lugar seguro, versão que este refutaria
mais tarde. Todos os homens válidos são alistados. Alimentando-se
da turbulência, os alemães sabem como instigá-la. Fazem saber que é
para Quelimane que se dirigem. Pura
manobra de diversão. Reabastecidas,
Ainda assim, no dia
as colunas de von Lettow-Vorbeck
seguinte, no acto de recuam até Angoche. Daí, em vez de
rendição, o general rumarem a Nampula ou Moçambique,
alemão ofereceria inflectem para o interior e prosseguem
no território que melhor conhecem e
como prova do
que, desde o início, melhor as acolheu: o
seu poder bois aos sertão e a selva.
ingleses famintos Em Setembro, dez meses depois de
Negomano, que estreou a sua viagem
pela colónia portuguesa, os alemães atravessam de novo o Rovuma junto
à foz do Luchiringo e embrenham-se nos territórios da Rodésia (actual
Zimbabwe). A cada dia que passa vão perdendo capacidade operacional.
A 18 de Outubro von Lettow-Vorbeck vê-se obrigado a deixar no caminho o
velho general Kurt Wahle, o artífice da vitória na serra Mecula, por doença.
A 2 de Novembro, a coluna ainda tem vigor para atacar um forte e roubar
400 bois aos britânicos. Mas quando a 12 de Novembro um motociclista
enviado pelas tropas inglesas apanha o comandante alemão a andar de
bicicleta e lhe comunica o fim da guerra, os alemães eram uma força
limitada a 176 europeus e 1487 soldados indígenas. Ainda assim, no dia
seguinte, no acto de rendição, o general alemão ofereceria como prova do
seu poder bois aos ingleses famintos. Rendera-se com a paz na Europa, sem
nunca ter sido derrotado com a sua reduzida força de europeus e askaris

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

por um conjunto de exércitos que, na avaliação que os próprios ingleses lhe


transmitiram, mobilizara 137 generais e uns 300.000 homens.
Depois de os alemães atravessarem o Rovuma, a guerra estava
acabada para os portugueses. Sousa Rosa pedira a exoneração e chegara
entretanto a Lisboa com a fama de “cobarde”, até mesmo de “traidor”.
O seu longo relatório, que os altos comandos tratariam de subscrever,
dirigiria todas as culpas por mais uma expedição que falhara do primeiro
ao último momento para o Governo e para o regime da República. Em
Muirite, José Teixeira Jacinto fora por essa altura declarado incapaz de
continuar no activo por “fraqueza geral, paludismo, bronquite e uma
hérnia inguinal direita” e fica à espera de embarque para Portugal.
Entretanto, foi convidado, e aceitou, montar um posto de etapas. Antes
do final de 1918, adia de novo o regresso para administrar o concelho
de Amaramba, junto ao Lago Niassa. O pior tinha passado. Em 23 de
Novembro desse ano passa à reserva com o posto de capitão e foi
nessa condição que se prestou à sua última grande batalha: reclamar a
condecoração de Cavaleiro da Ordem de Torre e Espada que tinha sido
entregue a um oficial que se tinha limitado a trazer a sua companhia
desde o Unango até Mocímboa da Praia. O Exército reconheceria o erro
em 1931, mas, por falta de verbas, o colar da Torre e Espada com palma só
seria entregue em 1947. Dois anos depois de ter falecido, aos 64 anos.
Quando o general Gomes da Costa chegou a Moçambique à frente de
uma nova expedição, já o armistício tinha sido assinado na Europa. Estava
na hora de voltar a “pacificar” os indígenas sobressaltados com o apoio
alemão e acertar as contas com os responsáveis por três anos de derrotas
sucessivas, o que o general fez com especial zelo no seu livro A Guerra
nas Colónias, que publicaria quatro anos antes de encabeçar o golpe de 28
de Maio de 1926 que acabaria com a Primeira República. Mas se o general
pôde dedicar-se a enumerar esse interminável rol de erros, omissões e
fraudes e a avaliar a dimensão da falta de organização, a negligência e a
incompetência, o Estado Novo trataria de evitar que outros o fizessem

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Grande Guerra • Grandes Reportagens

– Kináni, Quem vive?, a memória de Cardoso Mirão, só seria publicada em


2001. Depois do surto de memórias que se se sucedeu logo após o final da
Guerra, o novo regime empenhou-se em esquecer esses dias sórdidos em
Angola e, principalmente, em Moçambique. Os cemitérios abandonados e
profanados onde os restos mortais das vítimas desses erros apodrecem ao
ar são a prova de que esse esquecimento ainda continua.

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