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100 anos

de Armistício
Grande
Guerra ANÁLISE

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Grande Guerra • Análises

ÍNDICE
Os jogadores de futebol que foram à guerra
Marco Vaza
LER ARTIGO

O regime presidencialista de Sidónio


anunciou o fim da República
Paulo Curado
LER ARTIGO

Angola – a frente esquecida


João Manuel Rocha
LER ARTIGO

A I Guerra Mundial deu “lucros! muitos


lucros!” à indústria das conservas
Ana Rute Silva
LER ARTIGO

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Cartas do soldado ao seu amor:


“Só pensava em Deus, via-me
cercado pela morte”
Andreia Sanches
LER ARTIGO

Quando a justiça militar mandou


fuzilar o soldado João de Almeida
Luís Villalobos
LER ARTIGO

Os 72 navios alemães que levaram


à entrada de Portugal na Grande Guerra
Luís Villalobos
LER ARTIGO

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Grande Guerra • Análises

Os jogadores de futebol
que foram à guerra
Durante a I Guerra Mundial, o exército britânico criou batalhões
compostos por futebolistas profissionais. Os desportistas
seriam os homens fisicamente mais aptos da nação e teriam
obrigatoriamente de se juntar ao esforço de guerra.

Análise de Marco Vaza

Soldados britânicos (“tommies”) equipados com máscaras de gás durante um jogo de futebol, em frança, 1916
AGENCE ROL/BIBLIOTHÉQUE NATIONAL DE FRANCE

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Grande Guerra • Análises

C
arta do Sargento Richard MacFadden, do 17.º Batalhão do
Regimento de Infantaria de Middlesex, escrita em Julho de 1916,
numa trincheira no bosque de Delvile, França. “O Willie virou-se
para mim e disse: ‘Adeus Mac. Boa sorte. Transmite o meu amor
à Mary Jane e um abraço aos rapazes do Orient’. Antes que eu pudesse
responder, ele já tinha saltado da trincheira. Não demorou muito para que
o meu amigo de há 20 anos morresse diante dos meus olhos.” A carta de
MacFadden era dirigida ao Clapton Orient (actual Leyton Orient), clube
londrino da segunda divisão inglesa, onde ele e Willie (William Jonas)
eram dois dos mais destacados jogadores antes de se oferecerem como
voluntários para combater na I Guerra Mundial. Quando a carta chegou a
Londres, alguns meses depois de ter sido escrita, MacFadden também já
tinha morrido em combate.
MacFadden, avançado, e Jonas, médio-ofensivo, foram dois futebolistas
que trocaram o campo de futebol pelo campo de batalha. Dois dos 213
futebolistas profissionais que morreram durante a I Guerra Mundial e
dois entre muitas centenas que combateram integrados nos chamados
Batalhões de Futebol, que também serviram como ferramentas de
propaganda e recrutamento. Os desportistas seriam os homens
fisicamente mais aptos da nação e teriam obrigatoriamente de se juntar
ao esforço de guerra. Seriam um exemplo e arrastariam os adeptos dos
clubes onde jogavam para o campo de batalha. “Venham ao jogo mais
importante, juntem-se ao Batalhão do Futebol”, exortava um cartaz de
recrutamento.
Ainda a dar os primeiros passos em quase todo o mundo, o futebol
já era uma coisa importante nas ilhas britânicas, com ídolos, adeptos
e rivalidades. Desde 1888 que existia um campeonato nacional (a
Football League), entre outras competições (FA Cup e o British Home
Championship, um torneio entre as selecções das ilhas britânicas). Até
1914, dez equipas já tinham sido campeãs, com destaque para o Aston
Villa (6 títulos) e o Sunderland (5), sendo que nenhuma formação de

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Grande Guerra • Análises

Um batalhão de futebol devidamente uniformizado DR

Londres ainda lá tinha chegado – o Arsenal seria a primeira, em 1931. Em


1913-14, a assistência média de um jogo da Football League era superior a
16 mil espectadores.
O futebol não parou quando começou a guerra. Já chegavam os relatos
dos confrontos sangrentos um pouco por toda a Europa, e todas as semanas
ainda se jogava futebol em Inglaterra. Até 12 de Setembro, já se tinham
alistado mais de 470 mil homens, mas muito poucos eram futebolistas.
Em editoriais e cartas publicadas nos jornais, jogar e assistir a jogos de
futebol era considerado antipatriótico. E era preciso seguir o exemplo dos
desportistas escoceses, que já se tinham alistado meses antes.
“Há uma altura para jogos, uma altura para os negócios e uma altura
para assuntos domésticos. Agora, é altura de apenas uma coisa: guerra.
Se um futebolista tem força nos membros, então que os use para servir e

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marchar no campo de combate”, chegou a escrever Arthur Conan Doyle,


criador de Sherlock Holmes, que também foi um futebolista amador
(como guarda-redes). “Cerca de dois mil homens, todos com idade para
combater e todos no auge da condição física, jogam todas as semanas em
desafios que atraem centenas de milhares de outros homens que também
deviam estar de uniforme”, escrevia-se, por seu lado, num editorial
do Daily Chronicle.
A 15 de Dezembro de 1914, numa reunião pública no Fulham Town
Hall, em Londres, desbloqueou-se a situação. Formou-se ali o 17.º
Batalhão do Regimento de Infantaria de Middlesex, que ficaria conhecido
como o Primeiro Batalhão de Futebol – haveria um segundo, o 23.º de
Middlesex. Nessa reunião, 35 jogadores alistaram-se de imediato, de
entre os do Arsenal, Tottenham, Chelsea, Bradford City, Clapton Orient
(MacFadden e Jonas também estiveram
entre os primeiros), Crystal Palace,
Os jogadores-soldados Luton Town, Watford, Brighton & Hove
tinham autorização Albion, Southend United e Croydon
Common. Várias centenas, de muitos
para estar nos jogos
outros clubes, seguiriam o exemplo nos
ao mesmo tempo que anos seguintes. West Ham, Liverpool,
cumpriam o treino Plymouth, Reading, Manchester United
militar antes de e dezenas de clubes amadores também
contribuíram com jogadores.
serem enviados para
Os batalhões de futebol seguiam o
a frente de batalha exemplo dos batalhões de amigos, uma
— o Everton seria o solução criada por Herbert Kitchener,
último campeão antes o Secretário de Estado de Guerra
britânico, para engrossar as fileiras
da interrupção da
do exército. O conceito era simples:
competição por três encorajar as pessoas a voluntariar-se
temporadas em conjunto com os amigos, vizinhos

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e familiares, com a promessa de que iriam combater juntos. Havia


batalhões formados por gente da mesma cidade, da mesma profissão,
ou que tinham andado na mesma escola. No caso do futebol, não foram
só jogadores. Os adeptos também foram atrás dos seus ídolos, tal como
treinadores e dirigentes também foram para a frente.
A época ainda foi até ao fim antes de serem cancelados os
campeonatos. Os jogadores-soldados tinham autorização para estar nos
jogos ao mesmo tempo que cumpriam o treino militar antes de serem
enviados para a frente de batalha - o Everton seria o último campeão
antes da interrupção da competição por três temporadas. Em Novembro
de 1915, o 17.º de Middlesex já estava a caminho da frente. O 23.º chegou
em Maio de 1916. Muitos não regressaram. O 17.º terá perdido cerca de
900 homens, o 23.º, cerca de 600.
Antes dos batalhões de futebol, alguns jogadores já estavam no campo
de batalha. William Angus, escocês, tinha feito apenas um jogo pelo
Celtic de Glasgow e estava numa equipa amadora quando começou
a guerra. Integrado no 8.º Batalhão dos Royal Scots, Angus foi para o
Norte de França e acabou numa trincheira perto de Givenchy-lès-la-
Bassée. A trincheira britânica estava relativamente próxima do inimigo,
mas os alemães tinham uma posição num monte que lhe permitia
controlar os avanços aliados. A 11 de Junho de 1915, um grupo de soldados
britânicos foi enviado para destruir esse ninho, os alemães anteciparam
o movimento e a missão falhou. Recuou para a trincheira, mas faltava o
oficial que comandou a investida, o tenente James Martin.
Martin tinha ficado para trás, ferido por uma mina. Mas ainda estava
vivo e à vista dos seus companheiros. Angus tomou a decisão de ir buscar
Martin. Saltou da trincheira com uma corda amarrada à perna, arrastou-
se até ao local onde estava Martin sem ser detectado, amarrou-lhe a corda
e conseguiu que ele se pusesse em pé. No caminho de volta, os alemães
perceberam que algo se passava, começaram a disparar na direcção de
Angus. Quando já estava suficientemente perto da trincheira, deu sinal

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Leigh Roose já era uma estrela do futebol antes da guerra DR

para puxarem Martin, que ele ia tentar atrair o fogo inimigo. Angus ainda
foi atingido 40 vezes antes de chegar à trincheira, quase morto. Mas
sobreviveu – e Martin também. Perdeu um olho e um pé, e recebeu a
Victoria Cross, a mais alta distinção atribuída pelo exército britânico por
bravura em combate.

Guarda-redes, médico e excêntrico


Angus teve uma carreira curta e pouco significativa como jogador, mas
distinguiu-se como soldado e só morreu em 1959. Entre os voluntários
estavam jogadores internacionais, verdadeiros ídolos da multidão, como
Frank Buckley, internacional inglês do Bradford, que, devido à sua
experiência, foi um dos oficiais do 17º de Middlesex. Ele foi um dos que
sobreviveu. Foi ferido em combate e regressou a casa, tornando-se num
treinador de sucesso ao serviço do Wolverhampton Wanderers.

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Grande Guerra • Análises

O galês Leigh Roose era uma estrela de primeira grandeza muito antes
da guerra, um guarda-redes brilhante e excêntrico que acompanhou a
sua carreira desportiva com uma formação em medicina. Foi, aliás, como
médico que Roose conheceu os seus primeiros campos de batalha, em
Galipoli. Mais tarde, integraria os regimentos de infantaria em França.
Roose começou a jogar em clubes amadores no País de Gales e tinha
um estilo muito próprio de guardar a baliza. Ao contrário dos seus
contemporâneos, Roose era um guarda-redes que gostava de sair da
sua grande-área para enfrentar os avançados adversários. Mas a sua
temeridade não se ficava por aqui. De acordo com as regras em vigor na
altura, os guarda-redes podiam jogar a bola com as mãos até à linha do
meio-campo desde que não fizessem transporte de bola. Era exactamente
o que o guardião galês fazia. Andava com a bola pelo seu meio-campo
como se fosse basquetebol, sem a agarrar.
No início do século, Roose foi para Londres estudar medicina e
continuou a jogar futebol, sem nunca assinar um contrato como
profissional. Jogava por quem lhe oferecesse mais incentivos – ajudas de
custo, viagens e outros benefícios -, desde que não interferisse com os
estudos. Começou no Stoke City e passou ainda pelo Bolton, Sunderland,
Everton, Huddersfield, Aston Villa e Arsenal. Esta era a sua filosofia de
jogo: “Se necessário, um guarda-redes deve sair da baliza, atirar-se de
cabeça contra os adversários que hesitam em pôr o pé, sem pensar nas
consequências.”
Roose também era um pioneiro no jogo psicológico. Ao intervalo, por
exemplo, ficava sentado na trave da sua baliza e contava anedotas aos
espectadores. Também fingia lesões para os adversários pensarem que
ele estava limitado e fazia autênticos números de circo para distrair o
adversário no momento do penálti. A sua carreira chegou praticamente
ao fim quando se lesionou com gravidade em 1912. Quando a guerra
começou já era médico quase a tempo inteiro, jogando ocasionalmente
em clubes amadores para rentabilizar o seu estatuto de “estrela”.

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Em Outubro, foi para


França trabalhar num
hospital de campanha e,
em Março de 1915, recebeu
ordens para ir para a
campanha de Galipoli, onde
o objectivo era a captura
aos turcos do estreito de
Dardanelos para um eventual
ataque a Istambul, capital
do Império Otomano. Dez
meses de combate resultaram
em mais de meio milhão de
Willy Angus recebeu a Victoria Cross por actos de bravura DR
baixas para os dois lados, e
pensava-se que Roose tinha
sido uma delas. Só depois da guerra é que se soube que não tinha sido
assim. Roose sobreviveu à campanha de Galipoli e foi combater para
França com um nome diferente, como Leigh Rouse, provavelmente
devido a um erro no registo. Numa das suas primeiras noites nas
trincheiras, Roose e a sua companhia foram atacados por soldados
alemães armados com lança-chamas. O antigo guarda-redes ainda sofreu
algumas queimaduras, mas a sua precisão em lançamentos de granadas
de mão ajudou a repelir o ataque. Roose acabaria por morrer na batalha
do Somme, em Outubro de 1916.

Duas vezes pioneiro

Walter Daniel John Tull teve um início de vida difícil. Aos nove anos de
idade, ele e o irmão mais velho já eram órfãos de pai, um carpinteiro
nascido nos Barbados, e de mãe, filha de camponeses de Kent. Ainda
assim, Tull conseguiu ser um pioneiro no futebol e na guerra. Ele foi

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Walter Tull, avançado goleador do Tottenham e do Northampton Town,


o segundo jogador negro a jogar na primeira divisão inglesa. E foi o
Segundo Tenente Walter Tull, o primeiro oficial negro da história do
exército britânico. Tull era tão respeitado pelos seus homens que estes,
quando ele caiu em combate, arriscaram a vida para tentarem resgatar
(sem sucesso) o seu corpo.
Edward, o irmão, fora adoptado por uma família de Glasgow, Walter
ficou em Londres e foi o futebol que o tirou do orfanato. Foi fazer testes
a um clube amador, ficou e deu nas vistas como avançado, atraindo
o interesse de vários clubes. O londrino Tottenham foi o seu destino
e foi lá que se tornou no segundo jogador negro/mestiço (o primeiro
foi um guarda-redes) a jogar no principal escalão do futebol inglês. No
Tottenham já ganhava dinheiro a sério
(para a altura), quatro libras por semana,
Tull provou ser um que era o máximo que um jogador
soldado excepcional. profissional ganhava.
Homem de Mas os dois anos que passou nos

personalidade forte e Spurs, entre 1909 e 1911, estiveram


longe de ser brilhantes, muito por
grande disciplina, era culpa dos insultos racistas dos adeptos
um candidato perfeito adversários, passando a segunda época
para ser oficial e foi quase sempre na equipa de reservas.
Saiu dos Spurs, foi para o Northampton
o que aconteceu em
Town, onde se notabilizou como um
1917, apesar de os prolífico avançado, e, assim que a
regulamentos não guerra começou, foi dos primeiros
permitirem que um futebolistas a voluntariar-se para

negro assumisse uma o combate, juntando-se ao 17.º de


Middlesex.
posição de comando Tull provou ser um soldado
no exército excepcional. Homem de personalidade

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forte e grande disciplina, era um candidato perfeito para ser oficial e foi
o que aconteceu em 1917, apesar de os regulamentos não permitirem que
um negro assumisse uma posição de comando no exército. Depois de ter
sobrevivido à carnificina do Somme, Tull juntou-se ao 23.º de Middlesex
e, em Março de 1918, foi enviado para Arras, no norte de França,
morrendo durante um ataque germânico. O seu corpo não foi recuperado
apesar dos esforços dos seus companheiros de batalhão. “Walter Tull
ridicularizou as barreiras da ignorância que tentaram negar às pessoas
de cor igualdade em relação aos seus contemporâneos”, é o que está
escrito num memorial que o Northampton dedicou a Walter Tull, o duplo
pioneiro.

Os bravos Hearts

A época 1914-15 começara da melhor maneira possível para o Heart of


Midlothian Football Club. A equipa de Edimburgo, que deve o seu nome
a uma novela de Walter Scott, conseguiu oito vitórias consecutivas,
incluindo uma por 2-0 sobre um dos grandes de Glasgow, o Celtic, logo
no primeiro jogo, apenas 11 dias depois de a Grã-Bretanha ter declarado
guerra à Alemanha, a 4 de Agosto de 1914. O Hearts já tinha sido duas
vezes campeão, mas o futebol escocês, já no início do século XX, era
quase só de duas equipas, o Celtic e o Rangers – até ao início da guerra,
os dois clubes de Glasgow já tinham ganho 19 dos 24 campeonatos; até à
última época, os dois já venceram 99 em 117.
Também na Escócia se travava uma batalha na opinião pública. Uma
carta publicada no “Evening News” de Edimburgo sugeria que o Hearts
mudasse de nome e passasse a chamar-se “Penas Brancas de Midlothian”,
sugerindo que os jogadores eram cobardes por “jogar futebol ao mesmo
tempo que milhares de compatriotas seus sacrificavam a vida”. Entra
em campo George McCrae, influente industrial de Edimburgo e antigo
parlamentar. Ele próprio iria dar o exemplo. Anunciou publicamente que

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Walter Tull foi para Arras, no Norte de França, e morreu durante um ataque germânico DR

se ia juntar ao exército e convidava os cidadãos de Edimburgo a fazer o


mesmo. Em seis dias, 1350 homens juntaram-se a McCrae, incluindo 16
jogadores do Hearts – outros cinco não foram considerados aptos. Cerca
de 500 adeptos do Hearts foram atrás dos seus ídolos para o campo
de batalha. Hibernians, Falkirk, Dunfermline e Raith Rovers também
contribuiriam com jogadores e adeptos para o 16.º dos Royal Scots, o
“Batalhão de McCrae”, que serviria de inspiração aos batalhões de futebol
mais a Sul.
Nenhuma equipa perdeu tanto na guerra como o Hearts. Nessa época
ficou em segundo lugar, não aguentando o ritmo do treino militar em
simultâneo com os jogos – muitas vezes, como descreve o historiador
Jack Alexander no seu livro McCrae’s Battalion (Mainstream Publishing,

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Grande Guerra • Análises

2003), os jogadores faziam marchas de dez horas nas noites que


antecediam os dias do jogo. Depois da mobilização, o Hearts venceu
apenas oito em 17 jogos e perderia o título nas últimas jornadas para o
Celtic, que, até então, pouco tinha cedido para o esforço de guerra. “Os
dois grandes clubes de Glasgow [Celtic e Rangers] não mandaram um
único jogador importante para o exército. Só há um verdadeiro campeão
na Escócia e tem camisolas castanho-avermelhadas”, queixava-se
o Evening News.
No início de 1916, o 16.º dos Royal Scots viajou para França e foi
integrado na 34.ª divisão do exército britânico. A 1 de Julho, o batalhão
de McCrae saiu das trincheiras no primeiro dia da batalha do Somme, a
mais sangrenta da I Guerra Mundial. Subiram 814 e, só no primeiro dia,
229 morreram e 347 ficaram feridos, a contar para os 20 mil mortos e os
40 mil feridos do exército britânico. Três jogadores do Hearts morreram
logo no primeiro dia e no mesmo minuto, desfeitos por rajadas cruzadas
de metralhadoras alemãs: Duncan Currie, Ernest Ellis e Henry Wattie,
o avançado que marcara um dos golos naquele promissor primeiro
jogo com o Celtic – o autor do outro golo, Thomas Gracie, morrera de
leucemia quase um ano antes, mas, apesar da doença, oferecera-se como
voluntário e ainda chegou a cumprir treino militar.
Sete dos 16 voluntários do Hearts morreram na guerra, outros tantos
foram gravemente feridos. No final de 1918, o batalhão de McCrae estava
reduzido a 30 homens. A guerra terminou e, a 16 de Agosto de 1919, o
Hearts cumpriu o seu primeiro jogo caseiro em tempo de paz. Dos onze
jogadores do Hearts, no tal jogo em Julho de 1914 com os católicos de
Glasgow, estavam dois nesse reencontro com o público de Tynecastle.
Um deles era Patrick Crossan, considerado o homem mais rápido da
Escócia, que também ganhava algum dinheiro extra em corridas. Crossan
também seria incrivelmente vaidoso. “O Pat pode passar a bola, mas não
é capaz de passar por um espelho e não olhar”, dizia um dos seus colegas
de equipa. Crossan foi duas vezes ferido em combate e esteve quase a

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Grande Guerra • Análises

perder um pé, mas um cirurgião alemão capturado evitou a amputação


e permitiu que Crossan voltasse a jogar pelo Hearts uma última vez. Mas
os seus pulmões tinham ficado destruídos pela guerra, e acabaria por
morrer de insuficiência respiratória em 1933, aos 40 anos, a última baixa
de guerra dos bravos Hearts.
Não se sabe se algum destes futebolistas-soldados esteve naqueles
que estarão entre os jogos mais famosos de sempre. Existem relatos de
soldados em várias frentes que servem de testemunho para os jogos de
futebol que terão ocorrido durante a trégua de Natal em 1914, que foi um
raro momento de confraternização e paz entre inimigos numa das guerras
mais sangrentas da história da humanidade. Não se sabe se foi um, se
foram vários, não se sabem resultados nem marcadores de golos. Não se
sabe sequer que é que levou a bola.
Uma carta anónima publicada no The Times em Janeiro de 1915
relata um jogo em que os soldados germânicos terão vencido por 3-2.
Mas o relato com mais pormenores veio de soldado Ernie Williams, do
6.º Batalhão do Regimento de Cheshire, que já estava em França na
altura da trégua. O soldado Williams fala de um jogo sem regras e sem
resultado, apenas inimigos a dar uns toques na bola, no meio da lama e
com pesadas botas de combate: “Não sei de onde veio a bola, mas acho
que veio do lado deles. Houve alguém que inventou uma baliza e alguém
que fez de guarda-redes. E, depois, estávamos só a dar toques. Acho que
éramos algumas centenas. Estávamo-nos a divertir, não havia má-fé entre
nós. Não havia árbitro, nem resultado. Aquelas grandes botas que nós
usávamos é que eram uma grande ameaça.”

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Grande Guerra • Análises

O regime presidencialista
de Sidónio anunciou
o fim da República
Um ano e nove meses depois de entrar formalmente na I Guerra
Mundial a República é varrida pela tempestade política de
Sidónio Pais. A “República Nova” que proclamou ruiria um ano
depois com o seu assassinato, mas a sua experiência política,
inovadora e insólita, deixaria marcas e seria um balão de ensaio
para soluções aplicadas posteriormente pelo Estado Novo

Ensaio de Paulo Curado

Sidónio Pais à entrada da Sé de Lisboa, onde assistirá aos ofícios religiosos por almo dos soldados portugueses
mortos em França na I Guerra Mundial, Maio de 1918 JOSHUA BENOLIEL/ARQUIIVO MUNICIPAL DE LISBOA

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A
5 de Dezembro de 1917, o que aparentava ser um vulgar golpe de
Estado em Lisboa com o objectivo primordial de afastar do poder
os democráticos de Afonso Costa depressa se transformou numa
experiência política tão inovadora como insólita em Portugal e na
Europa. À cabeça do movimento militar está o major Sidónio Pais, um
pouco conhecido professor de matemática e discreto membro da elite
republicana conservadora, com fugazes passagens pelos dois primeiros
governos constitucionais republicanos, nas pastas do Fomento e das
Finanças, e ex-embaixador em Berlim. Durante um ano conturbado,
instituiu uma “República Nova”, presidencialista e alicerçada no seu
carisma pessoal, que pretendia aberta a todos os portugueses. Um regime
híbrido, próximo dos regimes autoritários do pós-Grande Guerra, mas
mantendo os elementos próprios do republicanismo. A experiência não
sobreviverá ao seu mentor, assassinado na Estação do Rossio, em Lisboa, a
14 de Dezembro de 1918, mas nada voltaria a ser como antes.
A chegada de Sidónio Pais ao poder não foi antecipada por ninguém,
nem pelo próprio, mas fruto das circunstâncias ditadas por um dos
períodos mais dramáticos da história portuguesa do século XX. Foi uma
resposta directa aos problemas criados pela Grande Guerra, para os quais
o major docente procura encontrar soluções originais e urgentes, mas sem
um programa político pré-definido. No terrível ano de 1917, agudizaram-
se as ondas de choque provocadas pelo quarto ano do conflito mundial. A
falta generalizada de matérias-primas e géneros de primeira necessidade
e o consequente agravamento da inflação provocam o caos nos países
europeus beligerantes e neutrais. Sucederam-se quedas de governos, por
demissão ou derrube violento. Portugal não será excepção. A pressão das
condições provocadas pela I Guerra Mundial e a determinação inabalável
de Afonso Costa e do Partido Democrático (principais promotores da
participação portuguesa no conflito) em manter o poder, a qualquer custo,
vai adiando o inevitável, mas será impotente para contrariar a crescente
onda de impopularidade e contestação. Acentuavam-se todas as clivagens

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Grande Guerra • Análises

A cavalo nos Restauradores, Lisboa DR

que tinham caracterizado o regime republicano desde a sua implantação.


Ao longo do ano de 1917, com o agravar da crise económica, social
e política, vai-se ampliando a base social de oposição ao governo, ao
mesmo tempo que se estreita a sua base política, com divisões entre
os próprios democráticos. Com a radicalização dos protestos, vão
multiplicar-se as greves E os assaltos a lojas e armazéns, face à carestia
da vida e aos problemas da escassez de géneros de primeira necessidade
e do mercado negro. O Executivo afonsista entra em conflito aberto
com o movimento operário, com o mundo rural e com sectores urbanos
que haviam formado a sua base de apoio, como o pequeno comércio,
que contestava agora a política de tabelamento dos preços e a falta de
respostas governamentais para travar a crescente onda de assaltos.
Acossado por todos os lados, Afonso Costa inviabiliza qualquer via legal

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Grande Guerra • Análises

para a mudança. Sobrava a força para lhe retirar as rédeas de um país


que clamava por estabilidade e ordem.
Confirmado o sucesso do golpe militar a 8 de Dezembro, em redor
de Sidónio Pais vai reunir-se uma vasta fronda anti-afonsista, formando
uma ampla e heteróclita “coligação negativa”, que ia da extrema-
direita integralista (defensora da monarquia tradicional, orgânica e
antiparlamentar) à extrema-esquerda anarquista, comungando apenas o
ódio ao líder histórico democrático. O
lente de matemática foi surpreendido
O Executivo afonsista com banhos de multidão e aclamado
entra em conflito como um salvador. Interiorizou o
aberto com o papel. Numa conjuntura dantesca, de

movimento operário, guerra, fome e epidemia, ampliada por


insanáveis divisões e violência, Sidónio
com o mundo rural Pais vai improvisar no espaço de um
e com sectores ano um regime original, idealizado para
urbanos que haviam responder à conjuntura particular do
momento. Uma efémera “República
formado a sua base
Nova”, que ruiria com o seu último
de apoio, como o suspiro, mas que seria um balão
pequeno comércio, de ensaio para soluções aplicadas
que contestava posteriormente pelo Estado Novo.
Assumindo uma imagem de militar
agora a política
austero, descomprometido com a
de tabelamento situação política anterior, Sidónio Pais
dos preços e a propõe-se repor a ordem e os valores
falta de respostas tradicionais para salvar a “Pátria”. Uma

governamentais para mensagem recebida com entusiasmo


por um país desejoso de encontrar um
travar a crescente “messias” que liderasse a nação neste
onda de assaltos período conturbado.

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Grande Guerra • Análises

Lente de matemática e militar

Nascido a 1 de Maio de 1872, em Caminha, no Minho, filho de um tabelião


com poucas posses (que morre de pneumonia em 1883), Sidónio Pais
procura através de uma carreira no Exército financiar os seus estudos e
ajudar a família numerosa. Abandonará a carreira militar activa em 1899
(será graduado a major em 1916), ao ser nomeado lente na Faculdade de
Matemática da Universidade de Coimbra. Em termos políticos, prima
pela discrição. Mais tarde dirá que se tornou republicano aos 15 anos
(1887), mas só com o advento da República será notado. Com a cisão do
Partido Republicano Português (PRP), irá apoiar o Partido Unionista de
Brito Camacho, iniciando-se, em Fevereiro de 1911, na maçonaria, onde
adopta simbolicamente o nome de Carlyle, em homenagem ao filósofo
e historiador escocês Thomas Carlyle (que na sua obra glorificou os
grandes homens através da História, relevando a importância do heroísmo
na definição da ambição das nações e dos seus povos e estabelecendo
uma íntima relação entre heroísmo e mito). Esta militância política irá
promover-lhe duas curtas passagens pelos dois primeiros governos
constitucionais. Primeiro, como ministro do Fomento, no Executivo
de João Chagas (1911); depois, com a pasta das Finanças, no governo de
Augusto de Vasconcelos (1911-12).
Desiludido com a política nativa, será nomeado, a seu pedido,
ministro plenipotenciário de Portugal em Berlim (1912-1916). Após a
declaração de guerra da Alemanha a Portugal, a 9 de Março de 1916,
regressa a Lisboa, constatando o caos que se vive no país, agravado com
a entrada oficial na Guerra. Envolve-se em movimentos conspirativos
para derrubar Afonso Costa, acabando por liderar a preparação de um
golpe de Estado, mobilizando civis e militares para as suas fileiras. O
líder do Partido Unionista, temendo as consequências de um fracasso,
acabará por distanciar-se do movimento, mas Sidónio permanecerá
inamovível, ganhando crescente ascendente entre os golpistas, que se

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Grande Guerra • Análises

alargam aos meios independentes e até monárquicos para compensar


alguma desmobilização unionista. A conspiração ganha fôlego com o fim
do executivo da União Sagrada, que deixa os democráticos de Afonso
Costa mais isolados no poder. Muito provavelmente a par da conspiração,
o Governo opta por não agir, confiando numa vitória fácil quando o
movimento saísse para a rua e que legitimasse de seguida uma “caça” aos
seus adversários políticos.
Após garantir o financiamento de alguns grandes proprietários
alentejanos, nomeadamente António Sousa Fernandes (que se opunham
à política “guerrista” de Afonso Costa, contestando em particular o
tabelamento dos preços agrícolas que restringiam as margens de lucro),
o golpe avança na noite de 5 de Dezembro de 1917, com a participação
decisiva de unidades militares que se preparavam para seguir para
a frente de combate. Os revoltosos
concentraram-se no Parque Eduardo
Os revoltosos VII e Rotunda, cenários emblemáticos
concentraram-se no da revolução do 5 de Outubro de 1910.
A luta foi mais sangrenta do que aquela
Parque Eduardo VII
que depôs a Monarquia, com mais de
e Rotunda, cenários 100 mortos contabilizados. A vitória dos
emblemáticos da conspiradores será confirmada no dia 8
revolução do 5 de de Dezembro, face à rendição das hostes
“afonsistas”, que já não contam com o
Outubro de 1910.
apoio das “ruas”.
A luta foi mais No mesmo dia, o suplemento do
sangrenta do que Diário do Governo proclamou a “vitória
aquela que depôs da revolução”, através de uma nota
assinada por Sidónio Pais, em nome
a Monarquia, com
da Junta Revolucionária: “Cidadãos!
mais de 100 mortos Venceu a República contra a demagogia
contabilizados (…) A Revolução teve em vista restaurar

22
Grande Guerra • Análises

Numa das varandas do palácio de Belém, Sidónio Pais, lê à multidão o telegrama do rei de Inglaterra felicitando
Portugal pela sua participação na vitória dos aliados, 1918-11 JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA

a justiça e o Império da Lei, e, sendo feita contra a desordem do poder,


ela deseja a tranquilidade e o trabalho, e, tendo autoridade moral para
conseguir estes elementos de paz nacional, tem a força para os tornar
efectivos.” Após algumas tentativas falhadas para encontrar soluções
governativas no quadro dos partidos republicanos conservadores
oposicionistas aos democráticos, será o próprio líder “dezembrista” a
assumir o executivo, apoiado pelos militares vitoriosos.

Uma República sem democráticos

Assumindo desde a primeira hora uma linha republicana intransigente,


purgada da “demagogia” dos democráticos, o novo poder inicia a limpeza
do aparelho do Estado, a que não escapou o Presidente da República,

23
Grande Guerra • Análises

Bernardino Machado, que, acusado de cumplicidade com o executivo


deposto, será preso e posteriormente desterrado para França. Um acto
que, simbolicamente e na prática, abolia a Constituição de 1911 e, com ela,
a “República Velha”. Não havia espaço para contemplações ou equívocos:
pretendia-se uma viragem tão importante no país como a revolução do 5
de Outubro de 1910, eliminando o exclusivismo republicano aos órgãos de
poder e abrindo as portas do regime a todos os portugueses, sem olhar a
credos políticos ou religiosos.
Com a mais ampla base de apoio desde a instauração da República,
o primeiro governo sidonista incluirá os sectores republicanos mais
moderados e conservadores, com elementos do Partido Unionista, do
Partido Centrista (fundado ainda em 1917 por dissidentes do Partido
Evolucionista de António José de Almeida, e liderado por Egas Moniz,
futuro Prémio Nobel da Medicina),
do grupo de Machado Santos, um
“É ao mesmo tempo dos fundadores da República, e
Presidente da por independentes republicanos

República e presidente ligados às associações patronais. Mas


recolherá ainda o apoio de católicos
do Conselho e é duas e monárquicos (dos partidários da
vezes ministro – restauração da monarquia constitucional
ministro da Guerra e aos Integralistas) e até, ainda que de

ministro dos Negócios forma condicional e temporária, do


movimento sindical da União Operária
Estrangeiros, mas Nacional (UON), para além das
esta revoltante e principais associações económicas e
ridícula anomalia não comerciais nacionais. Forças fortemente
antagónicas (uma “manta de retalhos”
parece surpreender
como lhe chamaria Brito Camacho),
ninguém.” apenas sintonizadas no ódio ao Partido
João Chagas Democrático de Afonso Costa, e que

24
Grande Guerra • Análises

rapidamente vão entrar em choque. As várias alterações nos elencos


governativos que se seguirão ao longo de 1918, serão a consequência de
realinhamentos políticos, que irão tender para uma aproximação à direita,
face aos crescentes desentendimentos com o republicanismo “histórico”.
A política de atracção aos sectores mais conservadores passou
igualmente por aliviar a pressão sobre a Igreja Católica, alvo das
perseguições dos radicais democráticos desde a implantação da República.
Recebido com grande expectativa, Sidónio Pais foi encarado como um
“milagre político”, um “messias” antecipado pelas aparições de Fátima,
escassos meses antes. O governo sidonista vai corresponder com medidas
que visavam a pacificação religiosa, que culminarão com a revisão da
Lei de Separação da Igreja do Estado, de Afonso Costa, viabilizando o
reatamento das relações diplomáticas com o Vaticano. O poder político
voltava a reconhecer a importância do papel da Igreja na sociedade
portuguesa, procurando atrair os católicos para o interior do regime e
alargando desta forma a sua base social de apoio.
Em caminho contrário, seguiram as relações com o operariado. Se
ainda no Parque Eduardo VII, durante o golpe, Sidónio aceita o apoio de
trabalhadores sindicalizados (e a neutralidade de muitos outros), em troca
da libertação de companheiros detidos por questões sociais pelo governo
afonsista, depressa a União Operária Nacional (UON) se desilude com o
novo regime, face à falta de respostas às suas reclamações e à acção da
máquina repressiva do Estado, num crescente antagonismo que culminará
com uma greve geral, a 18 de Novembro de 1918.

A “Ideia Nova” presidencialista

As manifestações populares de apoio, numa dimensão sem paralelismo


na República, que Sidónio Pais irá testemunhar de Norte a Sul do país
convencem-no da disponibilidade nacional para uma ampla reforma do
sistema político. Na mente do novo líder e dos seus colaboradores mais

25
Grande Guerra • Análises

O Presidente Sidónio Pais, à esquerda o ministro da Guerra, general Amílcar Mota, a caminho do Hipódromo
de Belém, onde se realizaram exercícios de Cavalaria, 1918 JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA

próximos surge o esboço de um novo regime. Uma “Ideia Nova” que


ultrapassasse os obstáculos dos partidos republicanos tradicionais e do
sistema parlamentar, considerado esgotado. Em Fevereiro de 1918, depois
de ter a acumulado a chefia do governo, com as pastas dos Negócios
Estrangeiros e da Guerra e a presidência da República (27 de Dezembro de
1917), Sidónio irá expor brevemente o seu ideário em Évora e Beja. “A rotina
dos partidos é um mal. É necessário formar um partido constituído por todos
e para realizar a obra da República e assim se deve fazer.”; “É necessário
que o país se pronuncie sobre a forma de regime que deve adoptar: se
parlamentar, se presidencialista. O primeiro faliu; o segundo é a Ideia Nova!”
Mantinha-se a República e o sistema bicamarário (Senado e Câmara
dos Deputados), mas seriam revistos os fundamentos constitucionais

26
Grande Guerra • Análises

do regime parlamentar estabelecidos pela Constituição de 1911, que


atribuía ao parlamento a primazia legislativa e de regulação institucional
do sistema. Através dos Decreto de 11 e 30 de Março de 1918, estatuiu-
se o sufrágio universal masculino, para aprofundar a legitimidade da
representação democrática, alargando-o à eleição do Presidente da
República (até então eleito pelo parlamento), com o objectivo de libertar
o chefe de Estado das tutelas partidárias. Ao mesmo tempo, alterou-se a
composição do Senado, que passaria a integrar os interesses das classes
(associações patronais, sindicais, industriais e profissões liberais), num
esboço de representação corporativa.
Com estas alterações e mesmo antes de ser proposta a revisão
constitucional, Sidónio Pais será eleito Presidente da República, a 28 de
Abril de 1918, com meio milhão de votos (seria proclamado a 9 de Maio
na Câmara Municipal de Lisboa, tal como os reis, e não no Parlamento),
desempenhando estas funções em simultâneo com a chefia do Governo.
Instalava-se o regime presidencialista. Ao mesmo tempo decorreram
eleições para uma assembleia de deputados com poderes constituintes,
boicotadas pelos partidos republicanos tradicionais, com a vitória do
novo Partido Nacional Republicano, que absorveu o Partido Centrista
e integra os reformistas de Machado Santos. Fora deste movimento, de
iniciativa governamental, apenas os monárquicos e católicos estariam
representados. Um novo partido e um novo parlamento que estarão
subalternizados a Sidónio Pais, acentuando-se a feição de ditadura pessoal
da “República Nova”.
Esta personalização da política portuguesa avalizada pelo país não
escapou à pena mordaz de João Chagas, que seguia de Paris a evolução
dos acontecimentos. A 12 de Maio de 1918, o “histórico” republicano
qualifica no seu Diário a situação como uma aberração. “É ao mesmo
tempo Presidente da República e presidente do Conselho e é duas vezes
ministro – ministro da Guerra e ministro dos Negócios Estrangeiros, mas
esta revoltante e ridícula anomalia não parece surpreender ninguém.”

27
Grande Guerra • Análises

E vaticinará seis dias depois: “Embora por outros caminhos, Sidónio e a


gente que o acompanha segue a derrota do franquismo, cuja política de
provocação acabou pelo regicídio e pela República. Não me surpreenderia
muito que Sidónio acabasse como D. Carlos. Não entrevejo no seu destino
– o exílio.”
Em Portugal, a imagem do chefe carismático é cuidadosamente
encenada, aproximando-o de figuras que estarão nos anos seguintes
ligadas a experiências ditatoriais na Europa. Sidónio Pais foi o primeiro
político português a montar e a colocar ao seu serviço uma máquina
de propaganda, que transforma num instrumento fundamental para
a construção da sua própria imagem política, cimentada num carisma
populista inaudito. Era ao mesmo tempo o catedrático, o garboso militar
- envergando a sua farda (emprestada para o golpe militar e que não
mais tiraria) em tempo de guerra, encabeçando os constantes exercícios
e paradas militares – e o caridoso, preocupado com os desfavorecidos e
com os doentes da “peste” (a “gripe pneumónica”, ou “espanhola”, e o
tifo), que, em poucos meses (ao longo de 1918), irá ceifar muito mais vidas
do que as baixas provocadas pela guerra (estima-se que tenha vitimado
aproximadamente 60 mil pessoas, no total). Bem distante da imagem
republicana do político civil, Sidónio instala-se nos antigos palácios reais.
Será mais tarde apelidado de “presidente-rei”, pelo poeta Fernando
Pessoa, seu contemporâneo e confesso admirador, numa alusão ao líder
carismático escolhido pelo povo para o seu governo.

Desagregação do sidonismo

Ao mesmo tempo, vai-se degradando o bloco de apoio ao sidonismo,


nomeadamente com as insanáveis fracturas entre republicanos
e monárquicos e entre os defensores do presidencialismo e do
parlamentarismo. “O 5 de Dezembro foi um movimento feito por um
grupo de homens alheios a partidos políticos e, por isso, eu tenho a

28
Grande Guerra • Análises

hostilidade declarada das


esquerdas ao mesmo tempo
que a falta do apoio das
direitas”, dirá Sidónio numa
visita à “sua” Universidade
de Coimbra, a 30 de
Novembro de 1918, escassas
duas semanas antes do seu
assassinato.
De facto, a partir de
O Presidente Sidónio Pais ainda assistiu ao armistício que
acabou com a Guerra, mas na maior parte do seu curto Outubro de 1918, agravou-
mandato Portugal continuou a enviar homens e material
para a frente DR
se a contestação ao regime,
com constantes boatos sobre
conspirações para o seu derrube. O governo responde com uma política
repressiva, conduzida por um aparelho de segurança e policial que fora
amplamente reforçado nos primeiros meses do sidonismo, onde a principal
novidade passou pela eficácia dada à Polícia Preventiva (a primeira polícia
política portuguesa), que tinha como missão a vigilância política da
oposição. Mas não evitará o assassinato do seu líder, à segunda tentativa,
na Estação do Rossio. Após as longas e dramáticas cerimónias fúnebres
que se seguiram (no que seria o primeiro passo para a construção do
mito), o regime, que albergava inúmeras e inconciliáveis agendas políticas,
começou rapidamente a desagregar-se, órfão do seu elemento de coesão.
“Metade príncipe, metade condottiere, seduziu, passou como um
relâmpago e não deixou vestígios, porque a força que um momento o
ergueu até ao alto, se não era fictícia, desapareceu ao primeiro sopro. Os
monárquicos só podem desejar a Monarquia – e ele teve a existência que
têm sempre os homens que procuram conciliar forças adversas. Duram
um momento. Desaparecem num momento”, sintetizaria o escritor Raúl
Brandão, no terceiro volume das suas Memórias, intitulado “Vale de
Josafat”, publicado em 1933.

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Grande Guerra • Análises

A ordem encarnada e protagonizada por Sidónio esfumou-se com


o líder dezembrista e rapidamente pairou o espectro da guerra civil,
com a proliferação de “juntas militares” por diversas cidades do país.
No Porto, os monárquicos, desvinculados do compromisso de lealdade
para com o regime, após a morte de Sidónio, proclamam a “Monarquia
do Norte”, dividindo o país e reabrindo a “questão do regime”. Em
Lisboa, será desarticulada uma tentativa restauracionista, na célebre
“Escalada de Monsanto”. O mesmo fim, teriam os monárquicos a
Norte, em Fevereiro de 1919, face à mobilização dos republicanos nas
cidades, nomeadamente os democráticos, que regressam ao poder.
Reposta a Constituição de 1911 (que será revista em 1919, sendo atribuída
ao Presidente da República o poder de dissolução), os republicanos
voltavam a ser senhores do país, numa “nova República velha”, mas já
não havia como regressar ao passado.
Os líderes “históricos” da “República Velha” desaparecem quase
todos de cena (Afonso Costa não regressa do exílio, enquanto António
José de Almeida e Brito Camacho abandonam as hostes evolucionistas
e unionistas, com os dois movimentos a fundirem-se) e o Partido
Democrático sofre várias cisões, assistindo-se à emergência de pequenas
formações políticas fortemente marcados pela ideologia. Tudo contribui
para uma crescente fragmentação do sistema partidário. O Partido
Democrático irá, mesmo assim, sobreviver como partido dominante, até
ao golpe militar de 28 de Maio de 1926.
O sidonismo foi uma consequência da Grande Guerra, que aprofundou
as deficiências dos regimes políticos liberais, sustentados por partidos
políticos oligárquicos, eleitos por sufrágio restrito. As profundas
clivagens sociais decorrentes do conflito, reforçaram as contradições da
sociedade portuguesa, tornando o país ingovernável para a tradicional
estrutura política nacional. É a isto que Sidónio Pais procura responder,
institucionalizando uma ditadura presidencialista e plebiscitária,
autoritária, conservadora e com traços inovadores, que anteciparia

30
Grande Guerra • Análises

algumas das características das modernas ditaduras do pós-guerra.


Sidónio não teria a arte de equilibrar todas as correntes e tendências que
convergiram para o sidonismo, como mais tarde o conseguiria Oliveira
Salazar (que contará com o apoio de alguns antigos sidonistas), que não
ficou indiferente aos erros da “República Nova”.
Da experiência dezembrista sairá reforçado o exército, elemento central
da encenação de poder com Sidónio Pais. Apesar do desastre militar na
frente europeia da Grande Guerra, simbolizada na derrota de La Lys, sairá
do conflito e da “República Nova” com peso político reforçado, ainda que
dividido internamente. Nos governos que se vão seguir, será um factor de
pressão constante, promovendo inúmeros pronunciamentos militares, até
derrubar definitivamente o regime liberal republicano.

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31
Grande Guerra • Análises

Angola – a frente esquecida


Sem que Portugal e a Alemanha estivessem em guerra, em
Dezembro de 1914, Naulila, no Sul de Angola, é palco de uma
traumática derrota do exército português. Na maior colónia
africana, boa parte do esforço militar foi dedicado a restaurar
o domínio sobre africanos revoltados

Ensaio de João Manuel Rocha

Visita de Alves Roçadas a Humpata, Angola, 1914 FUNDO JOSÉ PASSAPORTE/ CENTRO PORTUGUÊS
DE FOTOGRAFIA/DGLAB/SEC,

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Grande Guerra • Análises

O
primeiro contacto do pelotão do alferes Manuel Sereno com
a pequena força germânica que tinha entrado em Angola não
terá sido amigável. Mas portugueses e alemães acabam por
pernoitar lado a lado e terão mesmo jantado juntos. Apesar
da desconfiança mútua, não se adivinha um cenário de confronto. É
no dia seguinte, 19 de Outubro de 1914, que ocorre o incidente que,
dois meses depois, culminará num dos mais marcantes combates do
exército português em território africano: o desastre de Naulila.
Quando é interceptado pelo pelotão português, a uma dúzia de
quilómetros do posto de Naulila, o grupo chefiado por Schultze-Jena,
administrador do distrito de Outjo, responde ao alferes que estava em
perseguição de um desertor e queria autorização do administrador de
Humbe para se deslocar a Lubango – escreveu em Naulila, livro editado
em 1922, Augusto Casimiro, escritor e militar português, participante na
guerra, na Flandres, mais tarde opositor do Estado Novo.
Manuel Sereno, que dias antes tinha apreendido carros de víveres
destinados ao Sudoeste Africano alemão, a Damaralândia, território
da actual Namíbia, escreverá que tinha ordens “para prender e
desarmar” os alemães, levando-os ao capitão-mor de Cuamato, António
Fernandes Varão. Tratava-se de cumprir o previsto pela declaração de
estado de sítio em vigor nos distritos do Sul de Angola, que previa o
desarmamento de tropas alemãs que entrassem no território.
Para os portugueses, o grupo alemão, umas duas dezenas de
homens, com o qual tinha já sido estabelecido contacto por uma
primeira patrulha, era apenas um contingente estrangeiro que está
ilegalmente em território angolano. As violações fronteiriças alemãs
não são inéditas. Os portugueses temem há muito a cobiça alemã – e
britânica – sobre os seus territórios coloniais. O ataque germânico
de Agosto a Maziúa, no Norte de Moçambique, mais não faz do que
aumentar o mal-estar. Os alemães têm agora liberdade de movimentos
condicionada em Angola.

33
Grande Guerra • Análises

Um relatório alemão afirmará que o grupo liderado por Schultze-Jena


era uma “missão” mandatada para estabelecer contacto com indígenas,
estreitar relações com os portugueses e apurar o destino de comboios
de víveres que aguardavam. Os alemães duvidam da neutralidade
portuguesa e estão com problemas nas comunicações com Berlim que,
até ao início da guerra, eram asseguradas pelo cabo submarino britânico.
Na conversa da tarde de dia 18, o alferes português, comandante de um
pelotão estacionado em Otoquero, e Schultze-Jena concordam que uma
pequena delegação alemã acompanhe no dia seguinte os portugueses até
ao capitão-mor de Cuamato para que a sua presença seja esclarecida. E
porque seria a ele a autorizar uma eventual ida a Lubango. O dia acaba
com os portugueses a jantarem no acampamento germânico. À refeição,
segundo o relato de Augusto Casimiro,
As violações fala-se, tanto quanto a barreira linguística
o permite, da linha de fronteira que
fronteiriças alemãs
continua a ser discutida e das novidades
não são inéditas. de Lisboa. O administrador de distrito
Os portugueses temem alemão tem um exemplar do jornal O
há muito a cobiça Século que noticia o envio de expedições
para Angola.
alemã – e britânica
Não é segredo o reforço das forças
– sobre os seus portuguesas em Angola. Um consenso
territórios coloniais alargado sobre a necessidade de
defender as colónias tinha levado,
logo após a eclosão do conflito na Europa, ao envio, em Setembro,
de forças expedicionárias para Angola e Moçambique. Para Angola
partiu um contingente de mais de 1500 homens comandado por Alves
Roçadas, tenente-coronel que se distinguira em Angola na campanha do
Cuamato, na primeira década do século, e regressa agora com a missão
de guarnecer o Sul, que faz fronteira com a colónia alemã. É também
incumbido de evitar levantamentos indígenas.

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Grande Guerra • Análises

Homenagem aos soldados mortos nas campanhas de África JOSÉ CHAVES CRUZ/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA

Em Novembro serão enviados mais 2800 homens para Angola e em


Dezembro outros 4300. Nos anos seguintes, o efectivo continuará a
ser reforçado. No início da guerra, a prioridade militar portuguesa é,
claramente, África.

O incidente

Na manhã de 19 de Outubro, como combinado, Schultze-Jena, os tenentes


Loesch e Roder, o seu intérprete dinamarquês, Jensen, e três africanos
da colónia alemã seguem com os portugueses para Naulila. E aí que
tudo se precipita. Segundo a versão fixada por uma sentença arbitral do
tribunal internacional de Lausanne, em Julho de 1928, ao chegar ao posto,

35
Grande Guerra • Análises

o chefe do grupo alemão estranha a ausência do capitão-mor, Varão.


Sereno procura explicar-lhe que o capitão está em Cuamato e que é lá
que terá de se encontrar com ele. O intérprete diz-lhe que Sereno está a
agir de acordo com instruções que recebeu. Schultze-Jena duvida. Insiste
em voltar ao seu acampamento – teria compreendido na véspera que a
situação seria esclarecida em Naulila e que não passariam dali. Trocam-se
palavras e ameaças e o incidente acaba com a morte dos três alemães.
Em Portugal 1914-1926: From the First World War to Military
Dictatorship, o historiador Filipe Ribeiro de Meneses escreveu que “os
alemães entenderam que foi uma armadilha portuguesa”, e que para os
portugueses o incidente foi provocado por um “mal-entendido linguístico
acompanhado pela recusa alemã de desarmar”. Para o também
investigador António José Telo, na versão portuguesa a morte dos alemães
“foi para contrariar uma tentativa de fuga; a versão alemã é que se tratou
de um assassinato friamente planeado”, escreveu, no livro Primeira
República I – Do Sonho à Realidade.
Um relatório sobre os acontecimentos de 19 de Outubro, encomendado
pelo então governador-geral de Angola, Norton de Matos, arderá dois
meses depois, no ataque alemão ao posto de Naulila. O tribunal concluiu
que, com os alemães já montados, Schultze-Jena apontou a carabina
a Sereno, desarmado, e Loesch sacou da pistola. E que nessa altura o
alferes português deu ordem de fogo aos seus homens. “É evidente que,
interpretando como ameaça o gesto de Schultze-Jena e o do tenente
Roeder, Sereno, desarmado, acreditou agir em legítima defesa”, de
acordo com a sentença de 1928.
O tribunal de Lausanne concluiu que o incidente de Naulila foi
causado por mal-entendidos provocados pelas más traduções de
Jensen e pelo gesto de Schultze-Jena. Embora dê razão a Portugal não
acolhe os seus argumentos de que a missão alemã tinha propósitos
de espionagem e de preparação de uma invasão. Em 1930 será fixado
um montante a pagar pela Alemanha pelas suas acções directas e

36
Grande Guerra • Análises

indirectas nas colónias africanas, mas em 1933 o governo de Berlim é


desobrigado do pagamento da indemnização.

Ataque a Cuangar

O incidente de 19 de Outubro dá origem a retaliações que culminarão


com o ataque de 18 Dezembro. O primeiro sinal de que os alemães
desejam vingar a morte de Schultze-Jena e dos dois tenentes chega dias
depois. A 31 de Outubro, uma força germânica ataca a guarnição do
posto de Cuangar. São mortos dois oficiais portugueses, um sargento,
cinco soldados e um comerciante. A restante guarnição foge para o mato,
segundo Luís Alves Fraga no livro Portugal e a Grande Guerra - 1914-1918,
coordenado por Aniceto Afonso e Carlos
de Matos Gomes.
Alves Roçadas passa Nas sessões secretas que a Câmara
a privilegiar a dos Deputados dedicará à participação
defesa de postos portuguesa na guerra, em 1917, o
deputado Brito Camacho, republicano
fronteiriços. A tropa
de direita, fundador do Partido
metropolitana, Unionista, adepto apenas de um
mal preparada, envolvimento na guerra nas colónias,
faz centenas de dirá que a “chacina” de Cuangar foi
motivada por “não ter o respectivo
quilómetros em
comandante recebido notícia do
direcção à fronteira incidente de Naulila, e ter confiado
Sul, atravessando numa informação de Portugal, expedida
terrenos inóspitos, directamente de Lisboa, dizendo-lhe que
estávamos em estado de neutralidade”.
sofrendo os efeitos
Na mesma região, ao longo do Rio
do calor húmido Cubango, os alemães expulsam os
e da sede portugueses dos postos de Bunja,

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Grande Guerra • Análises

Sambio, Dirico e Mucusso. A presença colonial de Portugal torna-se ainda


mais rara numa Angola de colonização tardia e pouco expressiva.
As retaliações alemãs levam Roçadas – cujas forças tinham desembarcado
em Moçâmedes a 27 de Setembro e 1 de Outubro – a ajustar a missão inicial,
que consistia em proteger a fronteira e assegurar a obediência indígena.
O comandante da força expedicionária passa a privilegiar a defesa de
postos fronteiriços. A tropa metropolitana, mal preparada, faz centenas de
quilómetros em direcção à fronteira Sul, atravessando terrenos inóspitos,
sofrendo os efeitos do calor húmido e da sede.
Em Novembro, a 19 ou 23, consoante as fontes, há notícia da entrada
em território angolano de uma numerosa e bem armada força alemã. Na
incerteza sobre o objectivo dos invasores, Naulila ou o posto de Dongoena,
Roçadas divide os seus efectivos. Para a defesa de Naulila confia ao capitão
Mendes dos Reis três companhias de infantaria que somam cerca de 550
homens, uma bateria de metralhadoras, uma de artilharia com três peças e
um esquadrão de dragões – soldados de cavalaria preparados também para
combater a pé – chefiado pelo tenente Francisco Aragão. Louvado à época
pelo desempenho militar em Naulila, Aragão será, por declarações políticas
feitas à chegada a Portugal, após o cativeiro alemão, pretexto para um texto
de Fernando Pessoa: Carta a um herói estúpido.
Ainda que admitisse que Naulila fosse um objectivo alemão, por vingança
do incidente de Outubro, o comandante português pensaria que a intenção
da força invasora seria progredir para Norte. “Parece claro que Roçadas
sobrestimou a ameaça alemã e que não acreditou que as fortificações
fronteiriças fossem o seu objectivo final”, escreveu Ribeiro de Meneses.

Escaramuças

A 12 e 13 de Dezembro há escaramuças e alguns feridos entre a


guarda avançada alemã e patrulhas portuguesas. É aprisionado um
soldado alemão pelos dragões de Aragão. Vasconcelos e Sá, militar,

38
Grande Guerra • Análises

médico e político, que integrava a expedição de Roçadas, afirmará


na Câmara dos Deputados, nas sessões secretas de 1917, que o militar
capturado declarou que o objectivo da força invasora seria arrasar
Naulila e tomar depois Humbe. “Deixámo-los em paz, refazerem-se
e concentrarem-se adentro do que é nosso, sem nos dias 13 a 18 de
Dezembro os atacarmos, nós, com energia. Pensara-se talvez ainda
na nossa neutralidade…”, lamentou o parlamentar, então membro do
Partido Evolucionista. Augusto Casimiro escreveu que os portugueses
poderiam então ter derrotado as forças alemãs, beneficiando do
efeito surpresa, mas que o comando ficou paralisado pela indefinição
política. “Os alemães sorriram, em território nosso, da nossa
inexplicável inércia.”
No seu relatório, Alves Roçadas explica a atitude dos militares
portugueses com as últimas instruções recebidas por telegrama, de
Lisboa, com data de 25 de Novembro, nas quase era sublinhado que
Portugal não estava em guerra com a Alemanha: “É necessário todos,
oficiais e praças saibam, não estamos em guerra com Alemanha, e tomar
medidas nossas patrulhas não entrem sequer zona neutra”.
A 17 de Dezembro, o grosso da coluna germânica instala-se na margem
esquerda do Cunene. Tem um número semelhante ao efectivo português
colocado em Naulila. São duas companhias de infantaria montada, seis
peças de artilharia, duas metralhadoras pesadas, equipamentos de
telégrafo e uma ambulância – um total de 450 soldados europeus, 150
auxiliares africanos, quatro dezenas de oficiais. Os alemães contariam
a seu favor com outros trunfos: eram comandados por um conhecedor
da região, o major Franck, que tinha a seu lado um líder dos indígenas
cuamato, que lhe garantiu passagem segura por zonas potencialmente
hostis, abastecimentos, e que contribuiria para a deserção de auxiliares
africanos das forças portuguesas.
Erguido num terreno argiloso, em Maio de 2012, para substituir o forte
Henrique Paiva Couceiro, que os alemães alegavam estar em território

39
Grande Guerra • Análises

Oficial experimentado nas campanhas coloniais, Alves Roçadas, aqui na sua visita a Humpata, foi escolhido
para comandar a expedição de 1914 FUNDO JOSÉ PASSAPORTE/CENTRO PORTUGUÊS DE FOTOGRAFIA

seu, a um quilómetro do Cunene, na sua margem esquerda, o posto de


Naulila ficava num lugar ligeiramente sobranceiro ao rio. À volta, terreno
quase plano, povoado de mato espesso. Foi concebido para afirmar a
presença portuguesa.
Na véspera do ataque alemão a Naulila, o comando português chega
a estudar uma acção ofensiva contra o acampamento de Franck.
Mas os desenvolvimentos da noite seguinte precipitam o rumo dos
acontecimentos. Depois de se aproximar durante a noite de Naulila, por
volta das 5h de dia 18, a força alemã inicia o ataque.

40
Grande Guerra • Análises

“Alemães em toda a parte”

O tenente António Marques, cujo pelotão estava no interior do posto,


contou que à hora da distribuição do café ouviu “tiros de alarme” de
efectivos colocados no exterior. Disse também, ao diário republicano
da noite “A Capital”, a 24 de Agosto seguinte, que rapidamente a
primeira linha de defesa retirou para o quartel, deixando livre um flanco
onde foram colocadas peças de artilharia alemã. E que as “granadas
começaram logo a cair sobre as palhotas” do interior de Naulila, onde o
paiol acabou por ser atingido.
Os momentos que se seguiram ao primeiro tiro foram, naturalmente,
sentidos de modo diferente do outro lado. “Imediatamente caiu sobre
nós um chuveiro de balas”, escreverá, citado por Casimiro, Rittmeister
Richard Hennig no volume Deutsch-Südwest im Weltkrieg, edição de
1920. “O fogo inimigo teria causado enormes baixas no espesso novelo de
homens e animais, se os exaltados meridionais não tivessem as pontarias
demasiado altas”, acrescentou.
As metralhadoras portuguesas encravam com frequência, a
pontaria dos atiradores deixa a desejar. Os alemães reagrupam-se e
retomam a iniciativa. Sob fogo intenso de parte a parte, desfazem-se
e reconstituem-se linhas defensivas. Há recuos e tentativas de avanço.
As forças portuguesas dividem-se, algumas ficam no local, outras
fogem do campo de batalha. Roçadas comanda um grupo que se dirige
ao campo de batalha mas não conseguem alcançar Naulila. Chega a
fazer o que Casimiro qualifica como uma “nova avançada, audaciosa,
desordenada e inútil”. A determinada altura o tiroteio é interrompido
por minutos, continuando depois com intensidade. Os portugueses
esperarão reforços de um destacamento comandado pelo major
Alberto Salgado, que não chegam, permanecendo na posição que lhe
fora ordenado ocupar, Caloeque, a aguardar ordens, apesar do som da
batalha, a uns 12 quilómetros.

41
Grande Guerra • Análises

Augusto Casimiro traça um quadro de grande desorientação das forças


portuguesas. “Não há direcção, não há comando, embora a grande
maioria das forças empenhadas se batam, durante quatro horas, com
energia, tenacidade e valor. Há comandos vários, esforços dispersos, que
nunca chegam a termo”.
Num jornal de Windhoek, o Sudwest, a 12 de Janeiro de 1915, um texto
assinado por Vageler – membro de uma missão alemã que, antes dos
confrontos de 1914, fora autorizada a fazer estudos científicos no sul de
Angola – fala da última tentativa portuguesa para fazer face à tomada de
Naulila. “Pouco mais ou menos duzentos metros diante do forte fez o
inimigo a última e enérgica resistência”, escreveu.
Ribeiro de Meneses considera que independentemente da
“ausência de instruções claras sobre como lidar com os alemães”,
os comandantes no terreno ficaram “fortemente amarrados às
suas posições” e que “nenhuma
consideração política os absolve do
Não há direcção, não fracasso na preparação para a batalha”,
há comando, embora escreveu. “Um exército português
habituado a combater indígenas em
a grande maioria das Angola, Moçambique e Guiné vê-se
forças empenhadas subitamente confrontado com uma
se batam, durante força com liderança e equipamento
europeu”, disse ao PÚBLICO.
quatro horas, com
O historiador francês René Pélisser,
energia, tenacidade na obra As Campanhas Coloniais de
e valor. Há comandos Portugal 1844-1941, diz que Roçadas
vários, esforços deu ordem aos sobreviventes para
evacuarem Naulila, mas que em vez de
dispersos, que nunca
uma retirada se deu uma debandada
chegam a termo” de dezenas de quilómetros. António
Augusto Casimiro José Telo descreve o sucedido após

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Grande Guerra • Análises

a derrota de Naulila como um “desastroso recuo geral do dispositivo


militar na fronteira sul”. Para trás, um combate intenso e sangrento
de quatro horas, que custa a vida a 69 portugueses, causa ferimentos
em 76, obriga 36 a sete meses de cativeiro e deixa o Sul de Angola em
alvoroço. Do lado alemão os mortos serão 12 ou 19, consoante as fontes,
e os feridos cerca de três dezenas.
Perdida Naulila, as forças portuguesas da região retiram para Dongoena.
O paiol do Forte Roçadas explode acidentalmente. Convicto de que o
avanço alemão continuará, Roçadas tem agora o objectivo de fixar uma
linha de resistência na área Cahamas-Gambos. Mas os atacantes não irão
mais longe. Fosse porque consideravam vingado o episódio de Outubro,
fosse porque o combate também os debilitou – uma das baixas que sofrem
é a do seu comandante Franck, que morre de ferimentos em combate.
Regressam a território alemão e não haverá novos combates até porque, em
Julho de 1915, a Damaralândia se rende a forças da União Sul-Africana, o que
põe também indirectamente fim à ameaça alemã a Angola.
Portugal e Alemanha não estavam, e continuariam a não estar, em
guerra declarada. “Na maioria dos casos, Naulila levaria a um estado
de guerra mas o que acontece é que a batalha coincide com um conflito
político em Portugal que resulta no Governo do general Pimenta de Castro
e ele é contra a guerra”, afirma Filipe de Meneses. “Não há espaço político
para uma declaração de guerra e os dois países chegam a acordo para não
levar a questão mais longe.”
Nas sessões secretas da Câmara dos Deputados e do Senado da
República, Vasconcelos e Sá, defenderá que os “desastres tremendos”
sofridos em África, como os de Naulila, “foram devidos principalmente à
má organização das expedições e às ordens da metrópole”. O parlamentar
afirma então que os desastres seriam previsíveis face ao que considera
uma “política híbrida” e “inércia receosa”.
Norton de Matos, que na altura das sessões secretas, em Julho e Agosto
de 1917, ocupa o cargo de ministro da Guerra, contraria nessa altura a

43
Grande Guerra • Análises

ideia de que foi a falta de instruções que levou à derrota de Naulila. Fala
nas “contradições das informações de Roçadas” que, em seu entender,
“perdeu a serenidade e caiu em completa desorientação”. “Viam-se
alemães em toda a parte”, afirmou, atribuindo a informação ao tenente-
coronel comandante das forças portuguesas no Sul de Angola. “Segundo
ele [Roçadas], os nossos soldados teriam fugido como carneiros”, disse
aos deputados, num debate muito marcado também pelo posicionamento
político dos intervenientes.

Submeter populações

No Senado, Norton de Matos afirmará que o combate de Naulila “não


foi um desastre completo porque se o fosse o exército inimigo invadiria
todo o nosso território”. Mas a derrota tem consequências sérias: ateia
o rastilho de sublevações indígenas que tornam a actuação militar
portuguesa numa nova campanha de submissão das populações e na
reactivação dos postos abandonados.
As incursões alemãs tinham estimulado a revolta dos povos locais, cuja
“pacificação” fora conseguida pouco antes da Grande Guerra. O período que
se segue à batalha de Naulila, e boa parte do esforço militar português vai
ser dirigido para a restauração da autoridade portuguesa – missão atribuída
ao forte contingente militar chefiado pelo general Pereira d’Eça, que chega
a Angola em Março de 1915. Há revoltas no Sul mas também, nos anos
seguintes, até 1918, noutras regiões. É mais do mesmo: Pélissier, que estudou
as campanhas militares portuguesas no Sul de Angola no final do século
XIX e início de XX, contabilizou pelo menos 45 expedições e operações
diversas entre 1881 e 1916 que, somadas, se prolongaram por 30 meses.
Marcos importantes dessas campanhas no pós-conflito luso-alemão serão a
recuperação de Humbe e os combates de Môngua, em Agosto de 1915.
“O recuo português, juntamente com as armas distribuídas pelos
alemães, dá origem a um renascer da revolta das populações na zona do

44
Grande Guerra • Análises

Humbe. A campanha militar portuguesa continua em Angola até ao fim


da guerra, mas desde meados de 1915 visa somente submeter de novo as
populações e recuperar a linha dos postos abandonados”, afirma Telo.
No livro“Impérios em Guerra, Filipe de Meneses lembra que,
para a reocupação dos territórios do Sul de Angola, Pereira d’
Eça recorreu a mais de 7500 soldados, que levaram a cabo uma
campanha “extremamente brutal”. Passada a batalha de Naulila,
Portugal em Angola “vai estar a combater não contra os alemães mas
contra a população local”, afirma. As baixas oficiais portuguesas em
Angola totalizarão durante a I Guerra 810 mortos, 683 feridos, 200
desaparecidos, 372 incapazes, 68 prisioneiros (números de “Portugal e a
Grande Guerra 1914-18).
Nas sessões secretas de 1917, o deputado João Tamagnini Barbosa, que
viria a chefiar o Governo após o assassínio de Sidónio Pais, referiu-se às
“barbaridades e selvajarias que, por aí dizem à boca cheia, terem sido
praticadas em Angola pelas nossas tropas” e propôs um inquérito que foi
rejeitado. Tomás Rosa, deputado da maioria que apoia o governo da altura
desses debates, liderado por Afonso
Costa, lê testemunhos perturbantes que
Do ponto de vista denunciam enforcamentos, morte de
global a derrota de mulheres grávidas e de crianças, muitos
Naulila é um episódio enterrados ainda vivos.
Do ponto de vista global a derrota
menor no contexto da
de Naulila é um episódio menor no
Grande Guerra. É a contexto da Grande Guerra. É a nível
nível local que os seus local que os seus efeitos mais se fazem
efeitos mais se fazem sentir, com as revoltas subsequentes

sentir, com as revoltas e a sua repressão. Mas a luta na frente


angolana tem também, no entender
subsequentes e a sua de Ribeiro de Meneses, um efeito
repressão traumático para militares portugueses.

45
Grande Guerra • Análises

“Mandam-nos mal preparados e culpam-nos pelo que se segue –


Naulila está para a república como Goa esteve para o Estado Novo”,
disse ao PÚBLICO.
Depois do que acontece em Angola, quando vão para França, muitos
militares portugueses partem já “com grandes dúvidas sobre a capacidade
que têm, sabendo que serão sempre responsabilizados pelo que aconteça”,
afirma o historiador. “Grande parte do exército não acredita que Portugal
possa contribuir para a vitória pelo número diminuto” do seu efectivo
no quadro europeu e tem dúvidas também devido à “demonstração de
fragilidade” evidenciada pelo desastre de Naulila.

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46
Grande Guerra • Análises

A I Guerra Mundial
deu “lucros! muitos lucros!”
à indústria das conservas
As conservas portuguesas alimentaram os soldados nas
trincheiras, mas a voragem do lucro e as fraudes no produto
conduziram ao descrédito do sector no final do conflito.

Ensaio de Ana Rute Silva

Pesca de atum DR

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Grande Guerra • Análises

É
difícil imaginar um soldado a combater numa guerra, com fome e
frio, preparado para abrir uma lata de conserva de sardinha e só lá
encontrar serradura. Ou talos de couve. Ou cabeças de peixe.
A indústria portuguesa das conservas estava ao rubro com
o aumento da procura. A conservação de alimentos permitida pela
esterilização era perfeita para alimentar os milhares de homens atirados
para as trincheiras e, se vender para o estrangeiro já antes era uma
realidade para os empresários, com a I Guerra Mundial o sector teve o seu
arranque definitivo. Contudo, para alguns, a ânsia do lucro foi mais forte.
Joaquim Vieira Rodrigues, professor do ensino secundário que dedicou
a sua tese de mestrado ao estudo da indústria no Algarve, recorda que 80
a 90% das conservas já antes do conflito eram destinadas à exportação, até
porque em Portugal “ninguém tinha dinheiro para as comprar”. A região
sul foi o berço da nação conserveira: foi aqui que, em 1865, se utilizou pela
primeira vez o processo de “appertização” numa fábrica de atum em azeite
da Ramirez, em Vila Real de Santo António. Este método de conservação
de alimentos foi descoberto pelo francês Nicholas Appert e aperfeiçoado
pelo inglês Peter Durand, que patenteou a lata de metal para conservar
comida em 1823. Pasteur demonstrou, mais tarde, os princípios científicos
do processo, daquela que foi a primeira versão de alimento pré-cozinhado
da história da humanidade, como refere Chagas Duarte, num artigo que
escreveu para a Associação do Espaço de Património Popular (Aldraba). Em
1880, a sardinha em conserva é produzida pela primeira vez em Setúbal,
onde nas duas primeiras décadas do século XX se produziam dois terços de
toda a conserva nacional.
Com a guerra de 1912-1918 as vendas para o estrangeiro aumentaram,
“em quantidade mas, sobretudo, em valor”, recorda Joaquim Rodrigues,
que se doutorou em História Económica e Social Contemporânea. As
conservas eram enviadas não só às tropas portuguesas que combatiam em
África e na Flandres, mas também aos exércitos de países aliados contra a
Alemanha. Inglaterra, França e Itália eram os principais destinos.

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Grande Guerra • Análises

Num pequeno artigo publicado em 1949, o tenente médico veterinário


Álvaro Joaquim Fernandes Ferreira, enaltece as vantagens da comida
enlatada na alimentação das tropas em campanha. Recorda que “a
duração de uma contenda é difícil de prever” e, por isso, as conservas
oferecem vantagens “sem paralelo” porque permitem “distribuir a cada
soldado uma série de rações de prolongado período de conservação
que, aliado ao seu reduzido volume e peso, lhes garante por muitos
dias autonomia alimentar - exigência humana que se torna necessário
satisfazer para o bom desempenho das missões bélicas”. O autor cita,
sem identificar, “um famoso oficial que participou nas campanhas
contra Napoleão” que declarava: “O apetite, eis a primeira exigência do
exército”. Na guerra de 1914 essa exigência esteve longe de ser cumprida.  
Fisicamente longe do conflito, a indústria aproveitava a oportunidade.
A exportação - cerca de 90% era de sardinha, mas também incluía atum e
outro peixe não especificado - passou de 25.794 toneladas em 1913, para
40.838 toneladas em 1919. Os dados disponibilizados pelo INE mostram
ainda que, em valor, as vendas valiam 2484 contos um ano antes da
guerra. Um ano depois do conflito, em 1919, tinham aumentado para
22.937 contos. Em 1920, as exportações de sardinha chegaram a valer
40.949 contos, mesmo que em quantidade o país tivesse exportado
consideravelmente menos.
“Perante a crise e no início do conflito, o governo republicano
autorizava a instalação de armazéns gerais em Setúbal, Olhão, e Lagos.
Seriam ali depositadas conservas, sujeitas a análises e exames”, que iam
desde provas de soldadura ou cravação, ao estado do conteúdo da lata,
escreve Joaquim Rodrigues. Os armazéns financiavam as conserveiras e as
novas fábricas surgiam como cogumelos.
Amadeu Henrique Nero mudou o negócio familiar de peixe salgado
e seco (que exportava para Itália ou Espanha) para a produção de
conservas em Sesimbra em 1912, ou seja, quatro anos antes de Portugal ter
entrado formalmente em guerra com a Alemanha. Nessa altura, estavam

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Grande Guerra • Análises

Conservas portuguesas numa exposição intrenacional: um negócio impulsionado pela guerra DR

registadas no país 106 unidades, quase metade na região de Setúbal,


conta José Nero, neto do industrial. Em 1916 o número aumentou para 110,
um ano depois, para 188 e, em 1918, chega às 223 fábricas.
“Há muitas que aparecem mas desaparecem no final da guerra porque
era o negócio da altura. Houve até uma fábrica em Setúbal dentro de
um barco velho e encalhado”, recorda. Durante o conflito, as marcas
criadas pelo avô, Catraio (atum) e Georgette (sardinha), eram exportadas
para França, Itália e Inglaterra, numa altura em que a “indústria estava
desorganizada e em que cada um fazia o que queria”. José Nero, que
em 2010 trouxe de volta ao mercado as duas marcas históricas, recorda
os relatos de latas recheadas de talos de couve, serradura ou mesmo
vazias, que os industriais mais ambiciosos não hesitavam em enviar para
os clientes. Por seu lado, Joaquim Rodrigues conta que há referências

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Grande Guerra • Análises

de barcos afundados ao largo do Cabo de São Vicente para que os


empresários pudessem ser compensados pelos seguros. O contexto era de
verdadeira euforia.
O investigador diz que durante a guerra, e até 1922, só no Algarve o
número de fábricas triplicou. A depreciação do escudo e o fácil acesso ao
crédito deram o empurrão necessário para esta produção descontrolada.
As “casas comerciais e bancárias forneciam desde os materiais até
ao dinheiro para comprar peixe, com a condição de receberem em
consignação todas as conservas fabricadas”, refere no seu estudo, citando o
número 133 do Boletim do Trabalho Industrial. Havia dinheiro, mas muitos
empresários usavam-no para o “luxo, jogo e passeios”, outros para comprar
propriedades e casas luxuosas e “poucos foram os que, pensando no
futuro, trataram de preparar as suas fábricas com alguns melhoramentos
indispensáveis para poderem trabalhar depois da guerra, em concorrência
com o estrangeiro que, de dia para dia, ia aumentando a produção”.
Em 1917, Manuel Ramirez já tinha traçado um rumo estratégico para a
empresa, que ainda hoje perdura ligada à mesma família. Em vez de se
limitar à exportação queria fidelizar mercados e, por isso, apostava nas
suas marcas para ganhar clientes de forma sustentável. Uma delas era a
Cocagne, lançada em 1906 a pensar no mercado belga e que ainda existe.
No momento da guerra, a Ramirez “aumentou a sua produção mas ao
contrário de outros fabricantes, que visavam apenas o lucro imediato,
não aumentou desordenadamente os seus elementos de produção,
sem atender a que o consumo era anormal e transitório”, lê-se no livro
“Ramirez, Memórias de Cinco Gerações”, editado pela empresa.
Mas a exportação enriqueceu os empresários. Não só Manuel Ramirez,
como também Júdice Fialho, que chegou a ser o maior industrial nacional
e ibérico das conservas. No Algarve, “não havia braços que chegassem
para a laboração das fábricas”, com homens, mas sobretudo, mulheres e
crianças a garantirem a produção a baixo custo, conta Joaquim Rodrigues.
A população aumentou, agravando problemas de habitação, higiene

51
Grande Guerra • Análises

e salubridade. Ao mesmo tempo, a subida constante dos preços das


conservas compensava as crises de matéria-prima.
Em 1917, a Inglaterra permitia a importação de folha-de-flandres
(necessária para revestir a lata e evitar a ferrugem) em quantidades
muito limitadas e, um ano depois,
o governo regulava o acesso à folha
e ao estanho através de um decreto
de lei para que houvesse uma
“distribuição equitativa pelas empresas
conserveiras”. Os ingleses temiam que
o estanho pudesse ser vendido aos
alemães e o embargo levou mesmo ao
encerramento de fábricas.
O azeite também era escasso. O
governo republicano quis conciliar os
interesses das colónias portuguesas
(que produziam, por exemplo, óleo
de amendoim que era usado nas
Os ingleses temiam conservas), com os industriais do azeite

que o estanho pudesse da metrópole e os conserveiros, “em


pleno crescimento das exportações”,
ser vendido aos continua Joaquim Rodrigues. O preço
alemães e o embargo do azeite aumentou e a especulação
levou mesmo ao de comerciantes e intermediários
levou a Direcção-geral de Economia
encerramento de
e Estatística Agrícola a questionar
fábricas as fábricas sobre as quantidades
consumidas. A falta desta matéria-
prima também fechou unidades e despoletou protestos de operários.
O professor algarvio encontrou descrições da voragem do lucro em
textos do Boletim Industrial escritos por técnicos da Direcção-geral das

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Grande Guerra • Análises

Indústrias. Neles, fala-se no “descrédito internacional” pelas fraudes


e falta de cuidado da produção: “A grande maioria dos conserveiros
portugueses pôs absolutamente de parte todos os princípios de higiene
e tendo unicamente como objectivo fabricar muito e vender depressa –
porque então tudo se vendia para os países em luta – começou a encher as
latas de qualquer espécie de peixe”.
“Lucros, muitos lucros! Fábricas, muitas fábricas! Era verdade que o
escudo desvalorizava quase de dia para dia, que os preços das matérias-
primas subiam vertiginosamente, que os escudos que recebiam pela
venda da conserva não chegavam para fabricar a mesma quantidade
de mercadoria. Mas ninguém, ou poucos, se preocupavam com essas
ninharias”, escreve também Francisco José Guerra, em A indústria das
conservas nos contratos colectivos e no pós-guerra.
Nos anos 1920, os governos republicanos aplicaram vários regimes
de taxas sobre as exportações de conserva de sardinha, publicando
sucessivos decretos-lei. Joaquim Rodrigues conclui que o Estado, devido
às dificuldades atravessadas no final do conflito, teve a “tendência para
aumentar os direitos de exportação das conservas”. Mas quando a
guerra acabou, os preços das conservas caíram, os lucros “e as fortunas
esvaíram-se em fumo”. E apareceram as reclamações pelas fraudes
praticadas. As latas não se vendiam, os bancos começaram a pressionar
os empresários para o pagamento dos juros e comissões, apropriando-
se de muitas fábricas. Joaquim Rodrigues encontrou uma intervenção
do deputado José Luís Supico na Assembleia Nacional de 1935 em que se
fala da “prosperidade artificial” da guerra e do pós-guerra gozada pela
indústria. Em pânico, os industriais chegaram a pedir ao governo para
que “os delegados à Conferência da Paz recomendassem o consumo
de conservas portuguesas de peixe nos países que os aliados tivessem
submetido à paz”.
São tempos conturbados, com reformas económicas que incluem
a valorização do escudo a partir de 1924, que levaria a uma queda

53
Grande Guerra • Análises

acentuada das exportações. “A conserva perdeu o poder que tinha nos


mercados e houvesse muito desemprego. Só em Olhão, em 1925, havia 60
fábricas encerradas”, conta Joaquim Rodrigues.
Das 400 unidades registadas em 1926, restaram 158 em 1938. A II
Guerra Mundial iria trazer de volta um novo período de ouro, mas nem
mesmo nessa altura foram ultrapassados os números de exportação
alcançados em 1923, de 53.599 toneladas.
A histórica indústria tem resistido às intempéries e, hoje, está
representada em 20 fábricas, a maioria concentrada no Norte do país.
Exporta entre 60 a 65% da sua produção e, em 2013, conseguiu estar, pela
primeira vez desde 2009, entre os três produtos mais exportados (depois
do vinho e do azeite), ultrapassando as cervejas. O ano passado, as vendas
internacionais ultrapassaram os 206 milhões de euros, mais 15,6% do
que em 2012. Não só manteve clientes fiéis na Europa, como cativou o
mercado interno.

Bibliografia: Rodrigues, Joaquim Vieira - A indústria de conservas de peixe no Algarve (1865-1945), 1997; 
Ferreira, Álvaro Joaquim Fernandes - As conservas enlatadas na alimentação das tropas em campanha,
1949; Ramirez, Memórias de cinco gerações, 2011, edição da empresa

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54
Grande Guerra • Análises

Bilhete postal enviado por João Francisco Rosa à namorada no ano de 1917

Cartas do soldado ao seu amor:


“Só pensava em Deus, via-me
cercado pela morte”
Ficou para trás na batalha de La Lys, a 9 de Abril de 1918. E deu
consigo rodeado de alemães. “Desde o dia 9 que não sei por
onde ando nem sei ainda qual será o meu destino.” Estes são
excertos de cartas de um soldado-telegrafista que o filho, hoje
com 85 anos, quer homenagear. Contam a Grande Guerra na
primeira pessoa, com palavras ora animadas, ora tristes, ora
patrióticas, ora desesperançadas, mas sempre ternas para com
o seu amor, Maria.

Análise de Andreia Sanches


55
Grande Guerra • Análises

O
montinho de cartas a Maria, com os carimbos da censura, esteve
até há não muitos anos atado com uma fita, intocado. São muitas
as cartas, centenas de páginas, letra bem desenhada, em papel
amarelecido, porque o jovem João Francisco Rosa, soldado-
telegrafista, escrevia com regularidade à sua noiva, às vezes com
dois ou três dias de intervalo apenas. “Minha boa Maria...”, “Minha
querida...” No início, contava coisas bonitas. Nem parecia que tinha ido
para a guerra. 

França, 3 de Junho de 1917: “Tenho a dizer-te que tive uma viagem muito


linda, tanto por mar como por comboio. Escrevi-te um postal ilustrado
quando marchei de Lisboa, peço que me desculpes por não escrever carta,
não tive tempo para isso. Estou muitíssimo encantado com as terras
de França, passei por cidades muito bonitas. Os campos estão tão bem
preparados que se parecem com os jardins de Portugal. Até à data não tenho
mal nenhum a dizer, somos muito bem tratados. As francesas e os franceses,
quando o comboio [chegava], vinham-nos esperar à estação e davam pão,
café e flores (...) peço-te que mandes esta direcção à minha mãe porque
aquela que lhe mandei não ia bem (...) é a seguinte: João Francisco Rosa,
soldado telegrafista n.º 431, Infantaria 15, CEP, França (...)”

Os primeiros homens do Corpo Expedicionário Português (CEP) tinham


chegado a França no início de 1917. E em Abril desse ano, João Francisco
Rosa, nascido a 15 de Julho de 1893, no Carvalhal do Pombo, freguesia
de Assentiz, concelho de Torres Novas, embarcava também. Tinha 23
anos. Pouco depois, já mandava cartas para Maria, de quem esperava
retribuição, como fazia questão de notar. 

França, 3 de Julho de 1917: “Não te descuides a escrever que a maior alegria


de um soldado é receber a carta de uma namorada ou de uma mãe (...)”

56
Grande Guerra • Análises

Parecia animado nessa altura. Só mais tarde haveria de falar do frio, do


cansaço, da morte que o rodeava, dos perigos que enfrentava, de algumas
injustiças. Ai se Maria soubesse... Nem tudo se podia dizer nas cartas, que
passavam pela censura antes de fazerem o seu caminho. Por exemplo,
não se podia mencionar nomes de terras. Tudo acontecia, portanto, nessa
grande terra chamada França.
As letras verdes impressas nos
sobrescritos usados pelos soldados
do CEP estabeleciam regras: “O
remetente deverá assinar a declaração
seguinte: ‘Certifico sob minha honra
que o conteúdo deste sobrescrito não
se refere senão a assuntos de família e
particulares.’ (...)”
Na aldeia do Outeiro Grande, freguesia
de Assentiz, Portugal, onde vivia Maria
Lopes Pereira, a noiva de João, as cartas
chegavam à loja do Sr. António Alves —
um armazém onde se vendia de tudo um
pouco, de ferragens a mercearias. Ao
fim da tarde, as pessoas esperavam à
João Francisco Rosa antes de partir para
França DR porta do armazém para saberem se
havia carta para elas. António Alves
gritava os nomes dos destinatários em voz alta. O de Maria soava muitas
vezes. Como sinal de reconhecimento, João Rosa mandava sempre uma
“recomendação ao Sr. António Alves e família”.
Maria era a mais velha de quatro irmãos. Ajudava a família, em casa,
nos dias de semana, e aos domingos ia às ameixas e às pêras. Era católica
praticante, como João Rosa, cuja profissão até ir para a guerra não é
conhecida, mas que, imediatamente depois de regressar, se dedicou a
um negócio de tratamento de peles de ovelha. Ela não tinha tanto jeito

57
Grande Guerra • Análises

para as letras quanto ele — que, ainda assim, só fizera a quarta classe,
apesar do vocabulário, da consciência política e da escrita parecerem
ser de alguém mais letrado. Mas ia respondendo, cartas e cartões, que
chegavam a demorar 20 dias até chegar a terras francesas. Isto quando
não chegavam de todo. Mas nesta altura, Verão de 1917, João Rosa era
ainda um soldado tranquilo que não
se impacientava. Depois da agradável
viagem por terra e mar, esteve no
quartel-general a “receber instrução
de telegrafista”, porque aquela que
levava, feita na tropa, uns anos antes,
em Portugal, já não era adequada
aos aparelhos que naquela guerra se
usavam, conta ele numa das missivas.
Em Julho, encontrou mais rapazes
portugueses, conhecidos. E estava
animado. Até usava de ironia nas
palavras à amada.

França, 3 de Julho de 1917: “Por estes


dias vou pela primeira vez fazer uma visita
Postal com bordado enviado por João Rosa a
12 de Janeiro de 1918: "Maria, estimo que es- às trincheiras, vou apertar a mão a um
tejas de saúde, e todos os teus, que eu bem
felizmente..." DR alemão! (...)”

João F. Pereira, hoje com 85 anos, é filho de João Francisco Rosa.


Guarda tudo com cuidado: as cartas, os sobrescritos timbrados, as
fotografias da época, um cartão com um cesto de flores bordado, um
passe que permitia ao pai uma saída do quartel entre 12 e as 17 horas de
um dia de Janeiro de 1919, já a Guerra tinha acabado — e ele ainda em
França...
Sabe de cor várias frases que constam das centenas de páginas escritas

58
Grande Guerra • Análises

pelo pai — “fora as que se extraviaram”, sublinha. Por exemplo, conta


que numa de Julho daquele ano de 17, o pai pedia a Maria para que lhe
fizesse chegar notícias do que se dizia que tinha acontecido em Fátima (as
aparições). “Vi que se estão passando casos muito interessantes, quando
escreveres manda-me dizer alguma coisa acerca disso.”
Há cartas com a letra direitinha e outra mais torta, cartas escritas a
horas tardias, cartas com borrões, desabafos, muitos, frases patrióticas.
“Quando virá esse dia tão desejado por milhões e milhões de soldados
que nesta hora se estão batendo pela Pátria e pelo Direito?” —
questionava-se João Rosa numa delas. “Queremos uma paz vitoriosa para
nós Portugueses.”
Para com Maria, havia, sempre uma grande delicadeza, muita ternura.
E as cartas terminavam quase invariavelmente com “um aperto de mão
apertado”, que mais não era permitido.

França, 17 de Agosto de 1917: “Maria escrevo-te esta carta não porque


tenha de dar resposta a alguma das tuas, porque a última que recebi foi só há
três dias, e logo te respondi a ela. Mas escrevo-te sim, porque o meu coração
não me autoriza que eu esteja muito tempo sem te escrever (...)”

E assim se aproximava o primeiro Natal longe de casa. As cartas dos


dias e semanas seguintes deixavam transparecer um crescente cansaço. 

França, 24 de Dezembro de 1917: “Estou há 7 meses em França e ainda


não tive dia que tanto me lembrasse e que tanta paixão me desse como o dia
e noite de amanhã. Um dia tão belo e tão santo, dia de grande festa, e ver-me
assim tão longe de toda a família, e de ti que és a pessoa que neste momento
mais adoro (...) é quase meia noite, estou a ir para a missa do galo celebrada
pelos capelões portugueses que aqui se encontram (...)”

Depois de voltar a Portugal, João Rosa não gostava de falar da sua

59
Grande Guerra • Análises

participação na I Guerra Mundial, prossegue João Pereira, o filho. “Penso


que é um traço comum a muitos dos que lá estiveram.” Contou, no
entanto, um episódio que acabaria por levar João Pereira a procurar mais
informações sobre o passado do pai, muitos anos depois dele morrer:
sobrevivera ao 9 de Abril de 1918 — o dia em que o CEP foi completamente
destroçado numa vasta ofensiva alemã, na Flandres.
Daquela que ficou conhecida como batalha de La Lys resultou um grande
número de baixas, milhares de prisioneiros e um recuo das forças aliadas
(1). Foi a maior ofensiva que as tropas portuguesas suportaram em qualquer
teatro de operações. E João Rosa sobrevivera em circunstâncias especiais,
como se verá adiante. Poucos dias antes do desastre, escrevia uma vez
mais à sua “boa Maria”. Dizia que por aqueles dias, não faltava a quem
acontecessem fatalidades. “Tenho tido pouco descanso” e poucas alegrias,
contava de forma lacónica. Maria parecia esforçar-se para animá-lo.

França, 26 de Maio de 1918: “Cá recebi o que vinha dentro da carta,


o botãozinho de rosa com o laço de fita de seda, fico-te obrigado que são
lembranças muito apreciadas por mim (...) recebe mil saudades e um aperto
de mão deste que te ama muito (...)”

Na última carta que João Rosa escreveu antes da batalha, a 5 de Abril,


o tema era a sua tristeza por ter percebido que muito do que escrevia
a Maria, à mãe, a tanta gente, não chegava ao destino. “Não posso
nem imaginar qual terá sido o destino de tanta carta.” Nos dias que se
seguiram a essa desabafo, João Rosa não escreveu mesmo.
“Os telegrafistas não ficavam na frente de batalha”, conta João Pereira.
E terá sido isso, acredita, que fez com que o pai sobrevivesse ao 9 de Abril.
O que o próprio contou, quando regressou a Portugal, é que estava na
trincheira quando a dada altura deixou de ouvir os tiros, as granadas, os
bombardeamentos. E que se instalou um silêncio terrível. Mandou então
o ajudante ver o que se passava. E foi assim que perceberam que estavam

60
Grande Guerra • Análises

no interior das linhas alemãs. “Na debandada das forças portuguesas os


telegrafistas tinham sido esquecidos”, conta João Pereira. “E o meu pai era
um deles.” O soldado terá então comunicado para o Comando. “Disseram-
lhe que ficasse quieto. Em silêncio.” Esperava-se ma contra ofensiva. E
durante dois dias, diz João Pereira, ficou na trincheira à fome e ao frio, em
silêncio. Até ser resgatado, “creio que por
tropas britânicas”, conta.

França, 16 de Abril de 1918: “Sei que


deves estar um pouco admirada e também
ansiosa por não teres notícias minhas
e, no entanto, julgo que à data em que
esta receberes se saiba um pouco mais
ou menos o que aqui se passou no dia
9. Pois posso dizer-te [que] ainda estou
vivo de certo por ter andado debaixo da
protecção de Deus. Desde o dia 9 que
não sei por onde ando nem sei ainda
qual será o meu destino e o de muitos
(...) De muitas coisas que tinha só pude
salvar o meu corpo, e bem mal vestido
João Rosa (assinalado), em França DR
(...) saí da pequena caverna onde estava
em trajes menores. Calcula que nem o teu retrato e outros que mais tinha,
coisas que eu estimava, nem isso eu pude salvar (...)  um desses rapazes que
está na fotografia que te mandei, que é o namoro da rapariga de Assentiz,
desapareceu e ainda outros nossos vizinhos, que não falo no nome deles
porque não tenho ainda a certeza do que é feito deles. O João Santos foi
homem de muita sorte, onde ele andou também escapou. O João de Juncais,
não o vi mas sei que está bom. Em breve te tornarei a escrever e darei notícias,
principalmente dos nossos vizinhos (...)”

61
Grande Guerra • Análises

João Pereira só desatou a fita que juntava as cartas do pai à mãe quando
em 2008 no jornal O Almonda, de Torres Novas, onde vive, “insistiram”
para que o fizesse, porque queriam assinalar com algo especial o
aniversário da batalha de La Lys. Concordou, analisou as missivas e os
postais e assinou um pequeno texto sobre o pai, que morrera em 1961, aos
70 anos, em Lisboa: “Um soldado torrejano” — foi assim que chamou ao
artigo. Alguns excertos das cartas foram então publicados.

França, 23 de Abril de 1918: “Tenho escrito menos porque não tenho tido


vagar e estive pelo menos 8 dias que nem papel tinha, nem tintas (...). Dizes
que tinham por aí notícias pouco boas. Quando chegarem a saber tudo, bem
então é que podem dizer que são pouco boas. Coitado do Afonso lá-se foi (...)
um dia antes estive a falar com ele. Eu por mim é que estava protegido por
Deus (...)”

A certa altura, João Pereira decidiu procurar saber mais sobre a vida do
progenitor que, se sobrevivera à mortífera batalha de La Lys talvez, quem
sabe, tivesse recebido algum reconhecimento, uma medalha, qualquer
coisa. “Fui ao Arquivo Militar para ver se havia alguma referência ao meu
pai. Afinal ele foi lá abandonado [no campo de batalha].” Não encontrou
nenhuma distinção. Pelo contrário... mas já lá vamos. O fantasma do dia
9 permaneceu presente nas cartas de João Rosa durante muito tempo. 
França, 26 de Abril de 1918: “Quem sabe se me espera também sorte igual
à que alguns tiveram no dia 9 deste mês (...)”
No aniversário de Maria, o 21.º, escreveu-lhe um cartão bonito, com
um cesto de flores bordado. Quis dizer-lhe que apesar de estar longe, não
deixava nunca de pensar nela — “Como se estivesse na tua presença.”

França, 21 de Maio de 1918: “Alguma lágrimas chorei também a ver-me


perdido e desgraçado durante as horas tão terríveis que passei, onde só
pensava em Deus, porque via-me cercado [pela] morte. Pensava também muito

62
Grande Guerra • Análises

em vós, meu único bem, e na família que me resta ainda. Nestas horas aflitas
que passei, pensei e lembrei-me das últimas horas junto de ti, na véspera da
minha despedida. Naquela data, sem saber o que era a guerra, mas pensando
tudo ruim, interroguei-me se te tornaria a ver ou não. Pois daqui a uns dias
faz um ano que cheguei a França e ainda hoje mesmo pergunto ao futuro
se nos tornaremos a ver juntos (...) Por hoje não te enfado mais, dá muitos
cumprimentos à tua família e recebe milhares de saudades e um aperto de mão
bem apertado deste que tem esperança de te ver em breve (...)”

O Verão que se seguiu foi difícil. Havia dias em que João parecia animar-
se. Noutros impacientava-se. Porque não lhe enviava Maria o retrato que
ele tanto pedia nas cartas? O outro, que ele trazia sempre com ele, ficara
nas trincheiras. “Infelizmente ainda não o quiseste ou pudeste mandar.
Pois estou muito ansioso que ele chegue”, pedia João nos primeiros dias
de Junho, mês em que foi promovido a Cabo — “Agora que estou quase
a ir para Portugal”, dizia, sem grande
entusiasmo. “Tenho tanta fé que ainda
vou ajudar a comer as uvas e os figos”,
No dia 11 quando
acrescentava noutra carta. E noutra
chegámos a Lille, ainda: “Oh! Que dias tão felizes e alegres
recebemos a notícia de eu espero passar junto de ti, meu querido
que tinha acabada a Anjo!...” As notícias que chegavam de
casa, contudo, não eram as melhores.
guerra. Não calculas
a grande alegria (...). França, 27 de Julho de 1918: “Fiquei 
Para me ficar esse muito triste pela ruim notícia que me
dia bem assente na deste (...) sofro por saber que não gozas
de saúde, julguei que essa maldita febre
memória, apanhei
espanhola que dizes ter não tivesse
uma grande tascada atingido também as províncias (...)
com vinho branco tenho lido que essa febre não é das mais

63
Grande Guerra • Análises

perigosas mas também que é preciso cautela (...) desejo as tua rápidas
melhores. Adeus, até um dia.”

No Outeiro Grande, começavam a circular notícias de que os soldados


estavam para voltar. E, de facto, João via alguns dos seus colegas partirem.
Não é certo que tarefas lhe cabiam na altura — mas a História conta que
depois de 9 de Abril de 1918 o quotidiano dos restos das tropas nacionais
(que já antes de La Lys se encontravam exaustas) se alterou bastante.
Por ordem do Alto Comando Britânico, os soldados portugueses eram
usados em trabalhos de engenharia, como abrir estradas, e “passaram a
viver em tendas, em zonas mais ou menos recuadas da frente, com um
empenhamento pouco honroso” (2).
França, 29 de Julho de 1918: “Não te escrevi carta há mais tempo por
mudar de terra onde estava (...) andamos com mudanças há alguns dias,
mas agora posso dizer que estou numa situação que tenho vagar para
tudo, estou num pequeno posto telefónico com mais 3 colegas, fica um
pouco distante de terra aonde está a Brigada e o Batalhão do 15, mas todos
os dias lá vamos buscar géneros para nós aqui cozinharmos (...) Estou a
ver que não volto mais para Portugal. Têm ido alguns para lá têm, mas
têm ido a maior parte destes que têm estado sempre na retaguarda (...)
Agora os que têm sido martirizados cá vão ficando à espera talvez de
outro 9 de Abril (...)”
O tema das supostas das injustiças — a ideia de que nem todos eram
tratados de igual forma — tornou-se recorrente nas cartas do soldado. 

França, 7 de Agosto de 1918: “Ainda mais arreliado fiquei por me mandares


dizer que tinhas deixado de escrever por dizerem que nós íamos a caminho de
Portugal. É que tão pouco jeitos vejo de para lá marchar, porque já faz dois
meses no dia 15 deste mês que o João Santo d’aqui marchou com destino a
Portugal e ainda não passou do porto de embarque (...) Já soube que o Luiz do
Outeiro Pequeno tinha chegado a Portugal. Esses assim é que são homens de

64
Grande Guerra • Análises

sorte, que vêm para França e não passam da Base. Não chegam tão pouco a
saber o que é a guerra... Agora eu também já não me ralo, já deitei o coração
ao largo, quando eu esteja mal seja como agora, a minha vida é comer,
passear e dormir. O perigo também não é muito porque ainda estou um
pouco retirado da frente (...)”

Tudo o que João queria era que a guerra terminasse depressa, com
uma vitória dos aliados, e voltar a ver Maria. Mas tornava-se evidente
que “já não ia comer as uvas e os figos” desse ano. Via-se a envelhecer.
“Quando chegar aí a Portugal já de certo não me queres porque levo cara
de velho.” Chegou a ponderar mandar tirar um retrato novo, para mandar
para a terra, com medo de que quando lá chegasse a namorada já não o
reconhecesse.... 
Sentia tanto a falta dela que, se fosse “uso” na aldeia, até lhe daria um
abraço, se a visse, um abraço como daria à mãe e à irmã, claro, esclarecia
numa carta. Mas apesar de todas as cautelas de João, Maria não gostou da
referência ao abraço, que considerou abusiva. Ofendeu-se e zangou-se na
carta de resposta.Acabariam por casar-se, mas só em 1925 — antes, João
Rosa quis construir uma casa para a família. Depois nasceria uma menina
e mais tarde, em 1928, João Pereira. Em 1930 iriam viver para Lisboa e ele
integraria a Empresa União Gráfica — proprietária do jornal Novidades,
órgão oficial da Igreja Católica —, como funcionário administrativo.
Teriam uma vida boa. Mas ainda faltava...

França, 30 de Agosto de 1918: “É verdade que partiram para Portugal


alguns Batalhões e que estão a chegar novas tropas. Já me deram por notícia,
apesar de não ser boa, que ainda terei de cá ficar três ou quatro meses junto
aos novos que vieram (...)”

O Armistício que pôs fim à guerra foi assinado em Novembro de


1918. João Rosa só regressaria a Portugal em Abril de 1919. Não trouxe

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Grande Guerra • Análises

ferimentos para curar. Nem nenhuma doença de maior, relata o filho, João
Pereira. Que se lembra, contudo, de ver o pai, por vezes, ter uns ataques,
umas tremuras, que depois passavam. Maria costumava explicar que era
por causa dos gases tóxicos que ele tinha inspirado na guerra.

França, 26 de Novembro de 1918: “No dia 10 deste mês fiz uma viagem de


55 km que foi de Isbergues para Lille (...). No dia 11 quando chegámos a Lille,
recebemos a notícia de que tinha acabado a guerra. Não calculas a grande
alegria (...) Para me ficar esse dia bem assente na memória, apanhei uma
grande tascada com vinho branco (...) Já por aqui vêm chegando muitos
prisioneiros franceses que estavam na Alemanha. Ainda ontem aqui chegou
um filho da casa onde estou alojado. Pois não calculas a alegria que esta
família teve, principalmente a mãe dele. Eu presenciei tudo e não pude conter
sem que me viessem as lágrimas aos olhos (...)”

Há uns anos, quando foi ao Arquivo Histórico Militar, João Pereira


não encontrou nenhum registo que distinguisse, de algum modo,
a participação do pai na batalha de La Lys. Em vez de palavras de
reconhecimento encontrou um castigo: “Cinco dias de detenção por ter
sido apanhado na rua com os botões do capote aberto, já depois de ter
sido assinado o armistício”, conta com um sorriso.
Na folha do Registo Disciplinar (assim se chama o documento) de
João Rosa, lá está: pena imposta a 2 de Dezembro de 1918 “por ter sido
apanhado pelo 2.º comandante” com “o capote desabotoado”.

França, 18 de Fevereiro de 1919: “Vai-te preparando para me receberes que


se Deus quiser será mais depressa do que nós pensamos.”

João Pereira gostava de saber mais, mas as suas tentativas para obter
informações não resultaram. Na véspera dos 90 anos de La Lys, que se
assinalaram em 2008, escreveu à Liga dos Combatentes. Haveria dados

66
Grande Guerra • Análises

oficiais que sustentassem a informação oral transmitida pelo pai? “Não


tive resposta.” Arrumou os documentos que recolhera. Mas por estes dias
de Verão começou a ler no PÚBLICO o suplemento dedicado aos 100 anos
da I Grande Guerra e voltou ao montinho das cartas do pai à mãe atadas
com uma fita, aos documentos, aos cartões...
Com 85 anos, João Pereira tem tido uma vida cheia — herdou do pai
o gosto pela escrita, o interesse pela política (é militante do PS, tendo
chegar a ser coordenador do partido em Torres Novas), é um convicto
praticante de um estilo de vida saudável... mas faltava contar esta história.
É o que ele acha.
Por isso agarrou em todos aqueles documentos, que têm fragilidade dos
seus quase 100 anos, e aceitou divulgá-los, apesar de o pai sempre ter sido
um homem reservado que gostava pouco de falar da guerra. Quer prestar-
lhe homenagem. E quer que os seus filhos, netos de João Rosa, e os filhos
dos seus filhos, bisnetos, saibam que houve um homem na família que
lutou na I Grande Guerra e foi “um exemplo de coragem, de alguém que
não se rendeu”.

Notas: (1) e (2): informações retiradas do Memorial ao Mortos na Grande Guerra, desenvolvido pelo Arquivo
Histórico Militar (http://www.memorialvirtual.defesa.pt)

Os excertos das cartas de João Rosa foram editados

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67
Grande Guerra • Análises

Quando a justiça militar


mandou fuzilar o soldado
João de Almeida
João de Almeida estava apenas há seis meses no palco de guerra
da Flandres quando foi condenado à morte por deserção para
o inimigo e fuzilado na fria manhã de 16 de Setembro de 1917. O
soldado motorista, natural do Porto, ficou para a história como o
único caso português onde a pena capital foi aplicada no conflito

Análise de Luís Villalobos

Ingleses em combate. As condenações à morte entre as tropas britânicas chegaram às 306 ALBERTO CARLOS
LIMA/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA

68
Grande Guerra • Análises

F
altavam cerca de 15 minutos para as oito da manhã quando a
ordem de disparo foi dada por um tenente e as espingardas
quebraram o silêncio, pondo fim à vida do soldado motorista
João Augusto Ferreira de Almeida, de 23 anos. O pelotão de
fuzilamento, formado por quatro soldados, quatro cabos e quatro
sargentos, fora incumbido, naquela madrugada de 16 de Setembro
de 1917 na Flandres, de cumprir a sentença proferida dias antes pelo
Tribunal de Guerra. Todos eram do Batalhão de Infantaria nº 14,
ao qual João de Almeida pertencera antes de ir para a unidade de
automóveis, e, convocados de véspera, tinham sido escolhidos entre
“os menos impressionáveis” e recebido “conselhos sobre a forma de
proceder”. Acusado de tentar passar para as linhas inimigas, João
de Almeida fora condenado à morte por fuzilamento, entrando para
a história como o único caso de execução durante a intervenção
portuguesa na guerra de 1914-1918, o que fez dele também o último
homem que sofreu a aplicação da pena capital.
Pelo seu carácter inédito, e por ser tudo menos uma decisão
consensual, os responsáveis do Corpo Expedicionário Português (CEP)
colocaram um batalhão de prevenção em Laventie, uma localidade
próxima, para a eventualidade de reacções adversas por parte dos
soldados.
O batalhão não foi utilizado, mas o episódio não ficou isento de
incidentes, já que, das doze armas que compunham o pelotão de
execução, apenas onze dispararam. O local escolhido, junto a um muro
em ruínas na zona de Picantin e perto da estrada de Bacquerot, fazia
já parte da frente de combate, pelo que quem não obedecesse à ordem
de comando podia também incorrer na pena de morte. Verificadas as
armas, comprovou-se que uma das espingardas, empunhada por um
sargento, não abrira fogo. Este acabou por ser ilibado, após se concluir
que um problema com o fecho de segurança impediu o tiro, mas não
terá ganho para o susto.

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Grande Guerra • Análises

O acto de justiça militar, que ficou a cargo do Major Horácio Severo de


Morais Ferreira (comandante do 14º batalhão e director da execução),
contou com várias testemunhas, que receberam uma ordem de serviço
para estarem presentes no local. Aos combatentes dos vários batalhões da
3ª brigada (9º, 12º e 15º, além do 14º batalhão), assistentes forçados e que
desconheciam o porquê da convocatória para essa manhã, mostrava-se
uma execução que deveria servir como exemplo.
Isabel Pestana Marques, no seu livro Das trincheiras com saudade,
destaca que “o acto de matar um expedicionário, pelas autoridades
portuguesas, foi legitimado ao revestir um carácter punitivo de uma
acção desconsiderada e ilegítima, desencadeada pelo militar fuzilado, e
um carácter exemplar e modelador de comportamentos dos restantes
expedicionários (implicando uma afirmação da autoridade disciplinar
e judicial ao definir e impor coercivamente comportamentos)”. Assim,
diz a historiadora, “a morte é assumida, pelas autoridades militares,
como um instrumento punitivo de comportamentos ilegítimos e
persuasor de comportamentos legítimos, ou seja, é um poder e uma
tentativa de controlo”.
Por outro lado, destaca Isabel Pestana Marques, “o acto de morrer,
sancionado pela justiça militar, reflecte a minimização do interesse
individual no conjunto colectivo, o valor absoluto da autoridade
do Estado (aqui representado pela autoridade e justiça militar) em
detrimento da liberdade privada e a frustração da tentativa individual em
ultrapassar essa autoridade sufocante (fracasso da tentativa de deserção,
autêntica intenção de fuga da realidade opressora vivenciada)”.

“Atmosfera de piedade”

O ambiente emocional do fuzilamento é relatado pelo segundo sargento


enfermeiro Manuel Baptista, um voluntário condecorado com a Cruz
de Guerra (ao lado do famoso soldado “Milhões”) que publicou as suas

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Grande Guerra • Análises

memórias em 1933. “De súbito um automóvel que chega, ao mesmo


tempo que um frio de pena paira sobre serranos portugueses. Do
auto desce um rapaz ainda novo, vinte e dois anos, talvez. Enverga
o fardamento de chauffeur, dólman de oficial e calção à chantilly.
Acompanha-o um capelão militar. É o
condenado. Ao descer, encara com uma
espécie de terror a força armada que o
rodeia e, no seu olhar triste, há qualquer
coisa de angústia pungente”.
Por esta altura, já todos os que ali
estavam sabiam o que se ia passar.
“Uma atmosfera de piedade envolve,
então, a assistência, que já não vê
nele um traidor, um inimigo, mas sim
um camarada que a lei, inexorável e
inflexível, puniu com a pena de morte.
Lágrimas correm-lhe pelas faces. Fita o
padre, que carinhosamente o ampara, e
A justiça militar tem palavras de saudade para os seus”.
Caminha a vacilar para o local da
inglesa foi mais severa
execução, acompanhado pelas palavras
do que a portuguesa do capelão. “Chorando, num repelão,
durante a I Guerra pede, suplica, que lhe poupem a face,
Mundial, com que o não desfigurem”.
A sentença é lida em alta voz por
destaque para o ciclo
um oficial, a venda é colocada nos
inicial do conflito olhos do condenado. “A ansiedade
entre portugueses, pela primeira vez
assistindo a tão impressionante espectáculo, é enormíssima. Todos
anseiam pelo final do tristíssimo drama. Torna-se necessário terminar”.
Soam os tiros, e o corpo de João de Almeida cai inerte no chão. Foi

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Grande Guerra • Análises

enterrado no cemitério local de Laventie, perto de Lille. Mais tarde o seu


corpo foi levado para Richebourg, onde ocupa o covão 19 da fila 6, no
talhão B, ao lado de muitos outros combatentes portugueses.

Estratégia mortal

Quando embarcou para a Flandres, a 16 de Março de 1917, João de


Almeida, natural de S. João da Foz do Douro (Porto), deixava para trás
um emprego na casa de um cidadão alemão que vivia na zona da Foz.
Solteiro, filho de João Ferreira de Almeida e de Angelina Augusta, a sua
aventura no teatro de guerra não durou mais de seis meses.
Após o desembarque, e uma vez instalado na zona da Flandres,
ausentou-se sem autorização por 24 horas quando estava colocado na
secção automóvel, encarregue do transporte de água para as tropas do
CEP, ficando com o número de chauffeur 502. A 22 de Julho é punido com
60 dias de prisão correccional por se ter ausentado com o veículo entre
os dias 8 e 9 desse mês. A pena foi efectivada com a incorporação na 1.ª
Companhia do Regimento de Infantaria 23, colocada na linha da frente
e em risco de ataques do inimigo (embora numa fase em que os piores
combates ainda não tinham ocorrido). Uma semana depois, o seu destino
começou a ser ditado.
A 30 de Julho, um soldado do Batalhão de Infantaria 23, António Rei, foi
chamado pelo capitão Mousinho de Albuquerque, a quem informou que
João de Almeida andava a tentar saber qual era o melhor caminho para
chegar às linhas alemãs.
João de Almeida acabou então por ser aprisionado de facto. Depois de
terem sido ouvidas várias testemunhas e após o parecer do juiz auditor,
Joaquim de Aguiar Pimenta Carreira, foi levado a Tribunal de Guerra por
indicação do comandante do CEP, o general Tamagnini.
Ao todo, foram ouvidos nove militares como testemunhas, dos quais
sete eram soldados e dois sargentos. Através deles, ficou registado que

72
Grande Guerra • Análises

João de Almeida afirmava nas trincheiras que não fazia intenção de


cumprir os sessenta dias de pena, e que, no dia 29 de Julho, andava a
perguntar qual a melhor forma de chegar às linhas alemãs.
Para atingir tal objectivo, dizia já ter pago a um outro soldado para este
o ajudar, sem sucesso, e tentara fazer parte de uma investida em direcção
ao inimigo, com a intenção de depois ali ficar.
De acordo com uma das testemunhas, João de Almeida afirmou que tinha
estado empregado em casa de um alemão, e que “nunca tinha encontrado
uma pessoa que o estimasse tão bem”. Por isso, dizia, talvez esse alemão já
fosse oficial, e que logo que chegasse às linhas inimigas “perguntaria por ele
e ele o empregaria no quartel-general ou em qualquer serviço”.
Como prova ficaram ainda os bens que levava quando foi revistado,
após ter levantado demasiadas suspeitas de forma ostensiva: uma pistola,

Batalhas longas e mortíferes como a do Somme, em 1916, levavam soldados de todos os exércitos a tentativas
de deserção ARCHIVE OF MODERN CONFLICT LONDON/REUTERS

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Grande Guerra • Análises

um carregador com balas, uma navalha, uma chave mecânica, um


pequeno mapa da zona de Pas de Calais e duas cartas topográficas da
região à escala de1:1000. Através destas últimas, suspeitava-se, João de
Almeida pretendia dar informações ao inimigo sobre as posições militares
portuguesas.
O julgamento sumário ficou marcado para o dia 15 de Agosto, data em
que se reuniram em Roquetoire, além do juiz auditor e do presidente
do Tribunal de Guerra, o coronel António Luís Serrão de Carvalho, o
promotor de Justiça, o capitão Herculano Jorge Ferreira, o júri (compostos
por dois alferes, dois capitães e um major), o defensor oficioso e o
secretário do tribunal. Eram sete os quesitos sobre os quais o júri tinha
de se pronunciar. Alguns ficaram por provar, como a ideia de que João
de Almeida pretendia indicar os locais ocupados pelo CEP. No entanto,
bastou o facto de o júri considerar que o arguido se preparava para
desertar para as linhas do inimigo.
A decisão, que passou com o voto contra de um alferes, Arnaldo
Armindo Martins, deu lugar à sentença, redigida pelo promotor de
justiça: “Julgo, pois, procedente e provada a acusação e nos termos do
artigo 1º do decreto de 30 de Novembro condeno o réu à morte com
exautoração”. A pena de morte já tinha sido abolida em Portugal mas
fora reinstalada no Código de Justiça Militar por causa do conflito, em
Novembro de 1916. Esta só podia ser aplicada no caso de guerra com
outro país e no local dos combates, através de fuzilamento.

Tentativa de defesa

A defesa, no entanto, jogou um trunfo e ganhou tempo, já que a pena


acessória de exautoração, através da qual se retirava a um militar as
insígnias ou divisas que recebera, já não estava em vigor. Com base
nessa falha, é marcado novo julgamento para 12 de Setembro, o que dá
margem à defesa para um contra-ataque, entregando um requerimento

74
Grande Guerra • Análises

para que fosse feita uma análise à saúde mental de João de Almeida. A
vida do soldado motorista, que propagara aos sete ventos a sua intenção
de querer fugir do CEP e entrar no sector controlado pelos exércitos do
Kaiser, dependia agora de argumentos legais e exames médicos, num
combate travado por palavras escritas.
De acordo com a defesa, o soldado motorista seria filho de um doido,
o que poderia ser atestado pelo juiz auditor, teria mostrado indícios de
insanidade após ter sido condenado, e até mesmo antes disso. Conforme
relataram Aniceto Afonso e Marília Guerreiro no artigo da revista de
História Clio, em 1981, “tais circunstâncias tinham sido referidas em
público pelo próprio chefe do serviço de saúde, tenente-coronel médico,
Dr. José Gomes Ribeiro, pelo que o requerente solicitava que fosse feito
exame médico-legal às faculdades mentais” de João de Almeida.
No entanto, tal não aconteceu. O auditor geral defende, numa
análise relâmpago, que o requerimento não tem efeito por ausência
do “documento comprovativo do facto de dar indícios de alienação
mental após a sua condenação, o que leva a concluir que é menos
exacta semelhante alegação”. Para
todos os efeitos, foi considerado que
A morte é assumida, o requerimento tinha o objectivo de
“protelar a resolução de um crime
pelas autoridades
gravíssimo”. A partir daqui, era
militares, como um apenas uma questão de tempo até ao
instrumento punitivo fuzilamento de João de Almeida.
de comportamentos O julgamento decorreu na data

ilegítimos e persuasor marcada, confirmando-se a sentença,


que sofreu apenas uma pequena
de comportamentos alteração: o soldado não seria
legítimos.” exautorado, mas sim expulso. Um novo
Isabel P. Marques in “Das auditor, José Maria de Magalhães Pais
trincheiras com saudade” Pinheiro, ditou as palavras finais: “Julgo

75
Grande Guerra • Análises

procedente e provada a acusação e, consequentemente, condeno o réu à


morte, com expulsão”. Quatro dias depois, João de Almeida caia morto,
vítima das armas dos seus próprios camaradas.

Um caso marcante

Apesar de não ter ficado provado que tentara passar informações vitais
para o inimigo, a ideia de desertar para as linhas alemãs fez com que o
processo de investigação das autoridades militares não parasse com o
fuzilamento de João de Almeida.
A 21 de Novembro de 1917, uma carta do comandante do CEP
endereçada ao ministro da Guerra justifica a “necessidade de conhecer
alguns antecedentes do soldado” para pedir “as providências necessárias”
para se averiguar, no Porto, “as casas onde ele serviu, ligações que
porventura teve com súbditos inimigos e quaisquer outros detalhes que
sejam de interesse e que só a policia daquela cidade pode investigar”.
A missiva, classificada como “confidencial” e “urgente”, recebe
resposta a partir de Lisboa, com data de cinco de Fevereiro de 1918,
quase três meses depois. O chefe da 1ª Secção da Polícia Judiciária,
através do Estado-maior do Exército, informa que “apesar das diligências
empregadas não foi possível averiguar a identidade do chauffeur” João
de Almeida. Após terem sido questionados outros motoristas do Porto,
diz a polícia, “presume-se que o indivíduo era apenas um serviçal que
tratava da limpeza de automóveis da casa do súbdito alemão de nome
Hôfle da Foz desta cidade, tendo também estado ao serviço, em tempos,
do chauffeur João Vieira, que actualmente se encontra em França e que
trabalhava na referida casa Hôfle”.
Doze anos após a morte de João de Almeida, o seu fuzilamento ainda
era assunto de conversa no seio do exército português. No início de
Junho de 1929 o coronel Azambuja Martins envia várias questões sobre
os acontecimentos que culminaram na morte do soldado motorista na

76
Grande Guerra • Análises

Flandres ao capitão Raul Roque. Desconhece-se o porquê das perguntas,


mas o capitão, que estivera no conflito e estava agora ligado ao gabinete
do comandante da 1ª Bateria Indígena de Metralhadoras, faz o seu relato
dos acontecimentos com vários pormenores. “Ainda tenho bem presente
os acontecimentos”, diz, embora sublinhe que não tinha estado presente
no julgamento. “Entre os oficiais e em geral entre todo o CEP havia
várias opiniões e portanto discussão a respeito do fuzilamento”, recorda.
Se uns diziam que a decisão era “justa e absolutamente necessária”,
outros mostravam-se “absolutamente contra”. Pelo meio, havia quem
argumentasse que João de Almeida apenas tinha sido morto por pressão
do Alto Comando Inglês.
O capitão Raul Roque revela então que “ao princípio houve algumas
pressões junto ao nosso Alto Comando para se aplicar a pena de morte

Regresso a Lisboa das tropas do Corpo Expedicionário Português que combateram na Flandres, em Janeiro de
1919. Para muitos, o desejo do fim da guerra e do regresso a casa eram factores dissuasores da deserção ou da
automutilação ATRIBUÍDO A JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA

77
Grande Guerra • Análises

a casos não expressos no nosso Código e portanto de gravidade que não


justificava essa pena”. “O certo é”, acrescenta, “que essas pressões não
obtiveram o resultado que desejavam. Mesmo a ter havido no caso em
questão pressão ou imposição de qualquer espécie, e em que eu não
acredito, essas pressões nenhuma acção poderiam ter na consciência
dos julgadores”. Quanto a Raul Roque, este não tinha quaisquer dúvidas:
“Se tivesse feito parte do júri eu tinha dado o meu voto condenando-o e a
minha consciência ficaria absolutamente tranquila”.
O processo de João de Almeida, como refere Isabel Pestana Marques,
não foi incluído, apesar do seu carácter especial, nos registos oficiais de
uma forma distinta pelos serviços de estatística, “devido ao processo de
‘branqueamento histórico’ ocorrido nos anos 30”.

Reabilitar o passado

A justiça militar inglesa, referida pelo capitão Raul Roque, foi de


facto mais severa do que a portuguesa durante a I Guerra Mundial,
com destaque para o ciclo inicial do conflito. Estima-se tenham sido
executados 306 combatentes (outros 750 mil morreram em combate).
Aqui, verificaram-se vários casos, incluindo acusações de “cobardia”
que levaram à morte de 18 homens, numa altura em que o conceito
de Shell Shock (“nervos desfeitos” pelo efeito da guerra, numa tradução
à letra) não era tido em conta pelos superiores militares. Também
a deserção, o crime mais comum (casos que implicam a passagem
para o inimigo eram a excepção), merecia a pena capital, embora o
conceito tivesse de ser devidamente provado (como premeditação, e
não ausência temporária). Também assassinatos, motins, mutilações
voluntárias e desobediência às ordens eram punidos com a morte.
No seio do CEP, houve várias dezenas de casos de deserções (para a
retaguarda) e pelo menos oito homicídios voluntários, além de revoltas.
João de Almeida manteve-se como o único fuzilado.

78
Grande Guerra • Análises

Ao longo da I Guerra Mundial, registaram-se diversas injustiças,


como comprovam os casos em que se tirava à sorte, entre um grupo de
combatentes, quais os que seriam fuzilados por, supostamente, terem
quebrado as leis militares. Houve execuções sumárias, e casos em que o
julgamento, rápido, nem dava direito à uma defesa digna desse nome.
Apesar de tudo isto, Cathryn Corns e John Hughes-Wilson, autores
de Blindfold and alone – British military executions in the Great War,
destacam que nove em cada dez dos condenados pela justiça militar do
exército inglês acabaram por ver comutada a pena de morte.
Os fuzilamentos ocorreram em vários outros exércitos, como o alemão
(com 48 casos registados), o italiano e o francês. Neste dois últimos
países, o conceito de fuzilamentos para se dar o exemplo foi amplamente
utilizado. No exército italiano chegou-se a um número brutal, com 750
casos. Em França, o destaque vai para
os primeiros meses da guerra, altura
Julgo procedente e em que a mão pesada da justiça militar
provada a acusação mais se fez sentir. Os mais sangrentos
e, consequentemente, foram Setembro e Outubro de 1914 que,
juntos, somam 132 fuzilamentos. Ao
condeno o réu à
todo, nos últimos cinco meses desse ano,
morte, com expulsão” foram contabilizados 199 casos e, no ano
seguinte, houve mais 296 fuzilamentos
(entre 481 condenados à morte). Um deles foi o do cabo Théophile
Maupas, que se recusou a enviar os seus homens para uma investida
suicida no Marne. A sua mulher lutou depois, com sucesso, pela sua
reabilitação. Após o debate que se seguiu logo após o fim do conflito sobre
os fuzilados e os casos em que se considerou que a justiça militar falhou, o
tema perdeu o pó e voltou à ribalta nas últimas três décadas.
A Nova Zelândia, por exemplo, avançou com um amnistia geral,
processo que Cathryn Corns e John Hughes-Wilson rejeitam, por não
separar os casos tidos como justos (assassinos, por exemplo) dos injustos.

79
Grande Guerra • Análises

Em Portugal, a questão nunca se colocou, pelo menos até agora. Numa


altura em que se comemora o centenário da I Guerra Mundial, a Liga
dos Combatentes pretende avançar com um pedido de perdão, a título
póstumo, do crime a que João de Almeida foi condenado, e que marcou a
história do CEP.

Principais fontes e bibliografia: Das trincheiras com saudades, Isabel Pestana Marques, A Esfera dos Livros,
2008; Um soldado português fuzilado na Flandres, Aniceto Afonso e Marília Guerreiro, revista Clio, 1981; Blind-
fold and alone – British military executions in the Great War, Cathryn Corns e John Hughes-Wilson, Cassel & Co,
2001; A minha cruz de guerra – memórias de campanha 1917-1918, Manuel Baptista, Minerva, 1933; Processo de
João Augusto Ferreira de Almeida, Arquivo Histórico Militar.

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Grande Guerra • Análises

Os 72 navios alemães
que levaram à entrada
de Portugal na Grande Guerra
A apreensão dos navios alemães que estavam nos portos
portugueses com as suas cargas levou à guerra com este país.
Recebeu-se um empréstimo inglês, e criou-se a Intendência
dos bens dos inimigos, que vendeu diversos bens dos súbditos
alemães. Mas, vinte anos depois, ainda havia contas por pagar

Análise de Luís Villalobos

Arrear da bandeira alemã JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA

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Grande Guerra • Análises

A
salva de 21 tiros dada no rio Tejo pelo navio Vasco da Gama, da
Marinha de Guerra, marcou o final da tarde de 23 de Fevereiro
de 1916, altura em que Portugal tomou posse dos 38 navios
alemães ancorados em Lisboa. O primeiro foi o Santa Úrsula,
depois rebaptizado de Estremadura, com 3771 toneladas brutas. O acto,
com pormenores beligerantes, foi seguido depois em outros portos, e
conduziu à declaração de guerra por parte da Alemanha.
O primeiro passo para o envolvimento oficial de Portugal na I Guerra
Mundial, envolvendo num conflito directo com as forças do Kaiser e
com o Império Austro-Húngaro, tinha sido dado no início de Fevereiro
de 1916. No dia sete desse mês, o Governo republicano publicou uma lei
onde, entre outros aspectos, ficava estabelecido que poderia requisitar,
“em qualquer ocasião”, as “matérias-primas e os meios de transporte que
forem indispensáveis à defesa ou economia nacional, que se encontrem
nos domínios da República”.
No dia 23 foi dado o segundo passo, com a entrada a bordo nos navios
alemães ancorados em Lisboa. Na mão, os emissários portugueses
levavam uma carta pró-forma de notificação da requisição dos navios,
com base numa lei publicada nesse mesmo dia. Esta alegava que a
requisição se tornara necessária devido à falta de navios para transporte
marítimo, o que dificultava o acesso do país a muitos produtos
indispensáveis para a subsistência da população (facto que já dera origem
a vários distúrbios em diversas localidades). De acordo com nova lei, que
conta com a assinatura de Bernardino Machado (presidente) e Afonso
Costa (chefe do Governo), caberia ao Ministério da Marinha avaliar os
navios e todos os seus pertences.
Ao todo, foram apreendidos 72 navios e respectivas cargas, espalhados
por todos os territórios portugueses, como Angola e Moçambique , mas
com destaque para Lisboa (onde estavam mais de metade). No Porto,
por exemplo, estava apenas uma embarcação, o Vesta. Diversos vapores
precisaram de reparações, já que, embora sem incidentes, o processo

82
Grande Guerra • Análises

de requisição confrontou-se com peças escondidas ou danificadas pelas


tripulações alemãs.
As relações comerciais entre Portugal e a Alemanha tinham-se
intensificado no virar do século, à medida que o Kaiser tentava ganhar
espaço no palco europeu e mundial.
Em 1910, dois anos após a assinatura de um acordo comercial entre
os dois países, os alemães ultrapassam os ingleses. Nesse ano, conforme
destaca Sacuntala de Miranda, “para 906 navios britânicos, com
tonelagem de 1.594.969, entram em Portugal 723 navios alemães, com
tonelagem de 1.598.449”. Por essa altura, a Alemanha tinha doze linhas de
navegação comercial a fazer escala regular em Lisboa, e vários cidadãos
alemães viviam na capital portuguesa e na cidade do Porto.
Quando se dá a requisição dos navios, que tinham ficado estacionados
nos portos portugueses com o eclodir da guerra, a decisão já estava mais
do que tomada ao nível do governo de Afonso Costa, em articulação
com os ingleses. Era só uma questão de saber quando é que se avançava.
Publicamente, numa entrevista ao jornal O Século, a 10 de Fevereiro, o
deputado Leote do Rego defende de forma vincada o “aproveitamento
temporário” dos vapores alemães. “O governo não deve hesitar em fazê-
lo, embora preze aos germanófilos, aos seus falsos medos de zeppelins,
de complicações, de açoites de qualquer Von, medos que se escondem
atrás das lamúrias de certos loiros Falstaffs, sobre a sorte dos pobres
soldadinhos, que terão de deixar o amanho das suas vinhas.”

Os receios ingleses

O governo de Afonso Costa, formado nos finais de 1915, queria entrar no


conflito ao lado dos aliados, promovendo assim o regime republicano
e protegendo os territórios em África. A falta de navios por parte dos
ingleses acabou por proporcionar essa intervenção. O historiador Luís
Alves de Fraga refere que, após várias negociações, o gabinete de guerra

83
Grande Guerra • Análises

britânico invocou, a 16 de Fevereiro, de modo formal, a aliança com


Portugal para requisitar os navios alemães.
Existiam no entanto, vários receios por parte do gabinete de guerra
britânico. Num relatório classificado como “secreto”, datado de dia 12
de Fevereiro e onde se analisam as possíveis consequências da iniciativa
portuguesa, refere-se ser provável que tal acto justifique a declaração
de guerra por parte da Alemanha. Esta, por sua vez, poderia levar a
confrontos em Moçambique (como
aconteceu) mas poderia também levar
Conforme refere
Espanha a apoiar a Alemanha e o
Luís Alves de Fraga, Império Austro-Húngaro.
a apreensão dos O clero espanhol, constatava o
navios alemães relatório, era fortemente pró-alemão,
e esta poderia ser uma ocasião para
fornece a Portugal
a Espanha tentar voltar a deter o
uma tonelagem domínio da Península Ibérica. “Se o
bruta superior à da exército espanhol é mau, o português
marinha mercante é certamente muito pior”, sublinhava-
se, realçando que, com a requisição dos
nacional. No
navios, a Inglaterra ficava moralmente
entanto, o acordo responsável por apoiar Portugal, o
com a Inglaterra que poderia implicar o envio de “uma
pressupunha a considerável força expedicionária
para Portugal”, numa nova frente de
passagem para os
combate.
britânicos da maior A requisição dos navios poderia
parte dos navios, “envolver a Grã-Bretanha em pesadas
embora navegassem responsabilidades militares”, e
proporcionar a Portugal a justificação
com bandeira
para pedir empréstimos de grande
portuguesa dimensão. “Se os navios em questão são

84
Grande Guerra • Análises

tão essenciais para o esforço de guerra de modo a justificar o preço que


poderá ter de ser pago é uma questão para ser decidida pelo governo de
sua majestade”. A Espanha acabou por se manter neutral, aliviando assim
o nível de risco.
A falta de navios de transporte era encarada como um grave problema
pelo lado inglês. Um outro documento do gabinete de guerra, este
classificado de “muito secreto” e datado de 11 de Fevereiro, alertava
para o facto de o Almirantado ter informado que havia sérios atrasos
no programa de construção naval, devido, nomeadamente, à falta
de pessoal qualificado. “Tendo em conta a actual insuficiência de
tonelagem disponível e a probabilidade de maior actividade por parte dos
submarinos inimigos no curto prazo”, o gabinete de guerra defende que a
resolução deste problema é de “importância primordial”.
Conforme refere Luís Alves de Fraga, a apreensão dos navios alemães
fornece a Portugal uma tonelagem bruta superior à da marinha mercante
nacional. No entanto, o acordo com a Inglaterra pressupunha a passagem
para os britânicos da maior parte dos navios, embora navegassem com
bandeira portuguesa. Foi, aliás, a passagem de muitos das embarcações
para as mãos inglesas que levou Portugal ao estado de guerra com a
Alemanha. A 2 de Março de 1916, Sidónio Pais, então responsável da
República portuguesa junto do governo do Kaiser, enviou um telegrama
para Lisboa onde sustentava que ainda se podia chegar a uma solução
pacífica caso fosse “assegurado que navios não se destinam a inimigos da
Alemanha”. Uma semana depois, no dia 9, o ministro plenipotenciário
alemão em Portugal, o barão Otto Karl Von Rosen, entregou finalmente a
declaração de guerra do seu país.

Diferentes destinos

Depois de ter cedido os navios à Grã-Bretanha, como estava estipulado, à


disposição do governo republicano ficaram embarcações que somavam

85
Grande Guerra • Análises

No Picador, içando a bandeira portuguesa, Março de 1916 JOSHUA BENOLIEL

85.208 toneladas, o equivalente a 35% do total. Em troca, Portugal


entraria na Guerra com o apoio inglês, o que significava apoiar a formação
e manutenção de um corpo expedicionário e um empréstimo financeiro,
25 anos após a bancarrota do país.
Vários dos navios apreendidos sofreram um destino algo irónico,
afundados por submarinos alemães. Foi o caso do Leça e do Cascais,
alvos, em Dezembro de 1916, dos torpedos lançados pelo UC 18,
comandado por Wilhelm Kiel, perto da costa francesa.
Entre os navios que acabaram por ficar em mãos portuguesas
houve destinos diversos. Alguns, poucos, serviram de apoio à Armada
portuguesa, como o cruzador auxiliar Gil Eanes. Vários entraram para a

86
Grande Guerra • Análises

empresa de Transportes Marítimos do Estado. Há, ainda, casos especiais,


como o do Flores, que após ter sido devolvido pelos ingleses foi utilizado
pela Marinha Portuguesa como navio-escola com o nome de Sagres (o
actual navio foi construído também na Alemanha, mas em 1937).

Carga preciosa

Após a declaração de guerra da Alemanha o Governo republicano muda,


inevitavelmente, de tom. A 20 de Abril são banidos os súbditos alemães
de ambos os sexos, aos quais são dados cinco dias para saírem do país.
A excepção são os homens entre 16 e 45 anos, que, para não poderem
participar no esforço de guerra, “serão conduzidos para o lugar que for
designado pelo Governo”. Ou seja, são aprisionados.
Proíbe-se todo o comércio com o inimigo e inicia-se uma intervenção
sobre os bens dos cidadãos tidos como súbditos da Alemanha. Quanto à
carga dos navios apreendidos, estabelece-se que “as mercadorias sujeitas
a deterioração, ou de difícil guarda e conservação, podem ser vendidas
em hasta pública por intermédio das alfândegas”, com o respectivo
encaixe financeiro a ficar depositado na Caixa Geral de Depósitos (CGD).
Embora fosse difícil perceber quem eram os verdadeiros proprietários
das mercadorias (se alemães ou se estas tinham sido pagas por um outro
país, aliado ou neutral), foram vendidos diversos produtos que estavam
nos navios, como aveia, sacas de café, placas fotográficas, barricas com
anilina ou cimento, tabaco e tanques com ferro galvanizado.
Pelo meio, houve uma carga mais preciosa: a bordo do Cheruskia
(depois Leixões), um dos navios apreendidos em Lisboa, estavam diversas
peças arqueológicas de Assur, antiga Mesopotâmia, como uma estátua
suméria e pequenas placas com inscrições cuneiformes e um cofre com
mais de 3000 anos. O espólio, reencaminhado para a Universidade do
Porto, era suficientemente importante para, após o final da guerra, em
1926, as autoridades alemãs o quererem reaver. Em troca, deram cerca de

87
Grande Guerra • Análises

600 várias outras peças de valor histórico, com destaque para o espólio
egípcio. Hoje, parte dessas peças estão expostas no Museu Natural da
Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

O ataque aos “bens dos inimigos”

A necessidade de organizar o que eram os bens de cidadãos residentes


em Portugal considerados agora adversários, levou, a 4 de Maio de 1917,
à criação da Intendência dos bens dos inimigos. A este organismo, que
funcionou no âmbito do Ministério
das Finanças, cabia “superintender a
A necessidade de
administração dos bens arrolados” e
organizar o que eram “promover a liquidação dos bens dos
os bens de cidadãos inimigos sempre que dela não resulte
residentes em inconveniente”.
O processo foi tudo menos simples
Portugal considerados
e rápido e marcou fortemente, pela
agora adversários, negativa, diversas famílias enraizadas
levou, a 4 de Maio no país, algumas das quais com grande
de 1917, à criação da peso na sociedade portuguesa, como
os Burmester e os d’Orey. Neste último
Intendência dos bens
caso, os membros da família eram
dos inimigos descendentes de um exilado alemão
que se instalara em Portugal 65 anos
antes. Logo no dia em que foi publicada a lei que estabeleceu quem
era considerado súbdito inimigo, três membros da família d’Orey, Rui,
Waldemar e Guilherme (irmãos), apresentaram, como refere Maria
João da Câmara, autora de um livro sobre os Orey, um requerimento no
Ministério dos Negócios Estrangeiros no qual reafirmam a nacionalidade
portuguesa. No entanto, não há resposta, e têm de sair do país. Estes
responsáveis pela empresa de transportes de pessoas e mercadorias, que

88
Grande Guerra • Análises

estavam ligados também ao comércio de ferro, “vêem-se obrigados a


partir para Espanha, a 10 de Maio de 1916, rumo a Pontevedra”. A firma,
que mantém a sua actividade, fica então nas mãos de um depositário-
administrador, José Augusto Prestes, ficando José Antunes dos Santos
como gerente.
Um documento da Intendência dos bens dos inimigos, cujo arquivo está
hoje na Torre do Tombo (mas ainda em fase de tratamento), demonstra
que, no início de Junho, Waldemar d’Orey e outro membro da família
entregam um pedido de subsídios de alimento. A análise do valor a
atribuir ficava a cargo de José Augusto Prestes. Pelo meio, e segundo
Maria João da Câmara (que é também bisneta do fundador da firma), José
Antunes dos Santos tentava “adquirir a empresa através de manobras
pouco edificantes”.
Após uma recolha de assinaturas onde se pedia a revogação da
expulsão dos membros desta família, “com dezenas de carimbos de
firmas lisboetas”, a interdição acaba por ser retirada a 20 de Outubro. É o
regresso dos Orey, cerca de seis meses depois. Diferente destino tiveram
várias outras empresas.

Evitar especulações

Ao todo, foram abertas 1148 cadernetas individuais na CGD, ligadas a


contas bancárias de pessoas identificadas como inimigas do Estado
(incluindo pessoas e empresas portuguesas que tinham relações
próximas com os indivíduos referenciados pelas autoridades). Nessas
contas constam valores em numerário, títulos e objectos preciosos
arrolados e depositados no banco público pelos respectivos depositários-
administradores. No arquivo da Intendência dos bens dos inimigos estão
também cerca de 890 processos ligados aos arrolamentos dos bens. Entre
as empresas e instituições afectadas, além da família Burmester, estão o
Clube Alemão de Lisboa, o Deutsche Bank, a Igreja Evangélica Alemã, a

89
Grande Guerra • Análises

Bayer, a Siemens, o Colégio Alemão e o Consulado Alemão, apenas para


dar alguns exemplos. São vendidos móveis e imóveis, além de diversos
produtos (como sal, vinhos em pipas e garrafas, cortiça, produtos
químicos, couros e automóveis). Aos antigos donos eram devolvidos
objectos como roupas, retratos e quadros de família.
As hastas públicas devem ter sido aproveitadas por algumas pessoas
em negócios pouco claros, já que, no final de Setembro de 1917, são
dadas indicações para que uma venda de activos de uma empresa fosse
feita em bloco para evitar conluios e especulações que resultassem “na
adjudicação dos bens do inimigo por preço diminuto ou muito inferior
ao seu valor”.
Pelo meio houve casos em que os antigos proprietários tentaram
passar a tempo a propriedade, no papel, para cidadãos não conotados
com o inimigo, colocando assim os seus bens a salvo. No arquivo da
Intendência dos bens inimigos é relatado um caso, da firma Wimmer,
na qual, segundo o documento enviado ao Tribunal do Comércio de
Lisboa, se recorreu a “verdadeiras manigâncias para simular passagens
de negócios a outras entidades”.
Neste processo, nem a CUF, um dos maiores grupos empresariais
naquela época, ficou imune. A Inglaterra suspeitava das simpatias alemãs
de Alfredo da Silva, e já tinha congelado as importações de produtos
do patrão da CUF. A pressão aumentou com a declaração de guerra da
Alemanha. Foi exigido o afastamento do alemão Martin Weinstein, sócio e
amigo de longa data de Alfredo da Silva. Weinstein vende as suas acções a
Alfredo da Silva e parte para Madrid onde virá a falecer.
A contra-gosto, o empresário português acede a uma análise do
seu grupo, que conta com a participação do presidente da Câmara do
Comércio Inglês, Garland Jayne. No dia 10 de Março de 1916, fica inscrito
nas actas da empresa que “o Sr. Garland Jayne (...) disse que quer pela
inspecção do perito contabilista, quer pelo que ele estava vendo agora,
reconhecia que na CUF havia e há sempre a maior correcção, não tendo

90
Grande Guerra • Análises

ela feito coisa alguma contrária aos interesses da Grã-Bretanha e dos seus
aliados”. O perigo fora afastado.

Pagar no futuro

Pesando apenas as questões económicas do impacto e do envolvimento


de Portugal na 1ª Guerra Mundial, fica evidente que as contas do país
ficaram a perder.
Com a requisição dos navios alemães ficou aberta uma linha de
crédito inglesa para o esforço de guerra, cuja soma, em 1918, segundo
o historiador António José Telo, era de 15,6 milhões de libras. Sete anos
depois, esse valor subira para 22,7 milhões de libras, devido aos juros
acumulados e ausência de amortizações. Ou seja, um aumento de 45,5%.
Os encargos começaram logo em 1914-1915, com a inscrição de
despesas extraordinárias para “material de preparação para a guerra”.
O Orçamento do Estado para 1916-1917, datado de 26 de Maio de 1916,
refere a abertura de uma conta especial, no Ministério das Finanças, de
75 milhões de escudos. Esta, denominada de “despesas excepcionais
resultantes da guerra”, era a conta à qual seriam deduzidas “todas
as despesas de carácter militar, económico e financeiro, não
compreendidas no orçamento normal do Estado”. As despesas
ordinárias para 1916-1917 estimadas para a Metrópole eram de 77,7
milhões de escudos. A dívida pública era então de 30,6 milhões. Dos
75 milhões disponíveis para a guerra, as principais fatias cabiam ao
Ministério da Guerra (40 milhões), ao Ministério da Marinha (12 milhões)
e ao Ministério das Colónias (10 milhões).
No orçamento do ano seguinte (1917-1918), datado de 6 de Setembro
de 1917, as “despesas excepcionais”, “durante o estado de guerra e por
motivo de guerra”, eram já de 150 milhões de escudos, cabendo ao
Ministério da Guerra 100 milhões. As colónias ficavam agora com 20
milhões e a Marinha com outros 8 milhões (parte dos quais seria para

91
Grande Guerra • Análises

pagar o início da construção de três submarinos). Para tal, o governo


ficava autorizado a realizar “empréstimos e outras operações de crédito”.
Em 1918-1919 (já com o conflito terminado), o valor das despesas
extraordinárias com a guerra é de 100 milhões de escudos. Nesta altura
era já Sidónio Pais quem governava, ficando o Ministério da Guerra com
59,6 milhões, o das Colónias com 15 milhões e, em terceiro lugar, no
lugar da Marinha, vinha o Ministério das Finanças, com 10,3 milhões
de escudos. Entre as suas despesas inscritas estava a contabilização
dos “juros e amortizações da dívida de guerra”. A dívida pública era
agora contabilizada em 31,6 milhões de escudos, pouco mais do que em
1916-1917. Que as contas ligadas à guerra ficaram algo descontroladas
é evidenciado por uma lei de 7 de Janeiro de 1924, onde se estipulava
que, a partir da publicação desse decreto, passava a ser “absolutamente
proibido requisitar ao Ministério das Finanças (...) quaisquer
importâncias em conta da verba descrita no Orçamento do Estado, sob
a rubrica ‘despesas excepcionais resultantes da guerra’”. De acordo com
a nova lei, ficavam “civil e criminalmente responsáveis os organismos do
Estado e respectivos funcionários que procederem em contrário”.

As contas de Salazar

Em 1926, oito anos depois do fim da guerra, ainda foi aberto “um crédito
especial” de 2,2 milhões de escudos para liquidar “todas as despesas
excepcionais” anteriores ao ano económico de 1924-1925. Já em Março
de 1927, após a queda do regime republicano (na sequência do golpe
militar de 28 de Maio de 1926), e de acordo com um outro decreto, faz-se
a “consolidação” nas contas públicas da dívida de guerra contraída por
Portugal junto da Grã-Bretanha.
Era, refere-se, “necessário proceder às indispensáveis operações
de escrita a fim de se transferir da conta ‘operações de tesouraria’
para a competente conta de receita e despesa, inscrevendo-se,

92
Grande Guerra • Análises

consequentemente, no Orçamento Geral do Estado, em receita, a soma


a consolidar avaliada no citado acordo de 20.133.589 libras”. Feito o
câmbio, eram 90,6 milhões de escudos (numa conta que não sugere a
inclusão de juros). Ao Ministério das Finanças era aberto um crédito de
11,8 milhões de escudos, soma que ficou inscrita sob uma nova rubrica:
“Dívida de guerra de Portugal à Grã-Bretanha, primeira prestação da
anuidade de 1927”. O empréstimo ia demorar a ser pago.
Entre 1919-1920 e 1920-1921 a dívida pública mais do que duplicou,
chegando ao redor dos 50 milhões de escudos. Em 1921-22 já era superior
a 100 milhões, chegando a 1928-1929

Com a requisição dos acima do patamar dos 400 milhões de


escudos. Nem tudo, obviamente, foi por
navios alemães ficou causa do envolvimento directo na guerra
aberta uma linha de (há todo o ambiente económico derivado
crédito inglesa para do conflito mundial, como o aumento
de preços e diferenças cambiais, com
o esforço de guerra,
destaque para os produtos alimentares,
cuja soma, em 1918, num ambiente de crise económica e
segundo o historiador financeira) mas este está certamente
António José Telo, incluído nas contas da derrapagem.
No final de 1939, quando a Europa
era de 15,6 milhões
vivia o início de uma 2ª Guerra Mundial,
de libras e certamente por causa disso, Salazar
manda os organismos públicos fazerem
um levantamento urgente sobre as repercussões da guerra de 1914-1918
nas receitas e despesas do Estado. A análise feita pela Direcção Geral da
Contabilidade Pública refere que o conflito “pouco influenciou as receitas
do Estado”, e, num comentário critico, sublinha que “só desde princípios
de 1918 começaram a ser publicados vários diplomas com a intenção
especial de ocorrer às excessivas despesas do Estado que de ano para ano
vinham aumentando em sensível progressão”.

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Nesse ano, tomam-se medidas como a subida dos direitos sobre alguns
tipos de tabacos e imposto de selo, “aumentam-se em 5% as taxas do
imposto de rendimento sob os vencimentos dos funcionários públicos”, e
é instituído “o imposto sobre os lucros excepcionais derivados do estado
de guerra” do qual “não consta, porém”, execução em contas públicas.
Os organismos públicos do Estado Novo destacam que após ter
sido “declarada a guerra entre Portugal e a Alemanha, em 1916, é que
começam verdadeiramente as despesas excepcionais resultantes da
guerra e se começa a esboçar o agravamento do custo de vida”. Ao
mesmo tempo, não terá havido a preocupação em “procurar aumentar as
receitas públicas para fazer face ao aumento das despesas públicas”.
A ideia geral, refere-se, é que depois do fim da guerra os preços
voltariam a estabelecer-se tal como antes de 1914. No entanto, é no
início do ano económico de 1918-19 que “as despesas públicas começam
propriamente a sofrer a influência da guerra”. Em 1919-1920, as receitas
do Estado ascendem a 217,2 milhões de escudos, dos quais 8,3 milhões
são receitas extraordinárias derivadas do conflito. Já as despesas somam
315,8 milhões de escudos, dos quais 87,8 milhões são encargos da guerra
devidos pelos ministérios da Guerra e das Finanças. 

As últimas indemnizações

Na década de 1930 já os cidadãos alemães tinham recebido os “bens


imobiliários e créditos não cobrados que se achavam sequestrados e
arrolados”. No entanto, faltava ainda pagar diversas indemnizações a
cidadãos portugueses lesados pelo conflito.
Um advogado, Levy Marques da Costa, publica uma petição em Junho
de 1934 sobre os “sinistrados civis portugueses da Grande Guerra” (como
em Angola e Moçambique), que depois irá remeter a Salazar, e onde dá
conta que Portugal já recebera da Alemanha 2,3 milhões de escudos
(embora as indemnizações ficassem bastante abaixo do esperado por

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Grande Guerra • Análises

Portugal). Aos sinistrados que ainda não tinham sido ressarcidos o Estado
devia cerca de 22,6 milhões de escudos. “Os encargos da guerra, qualquer
que seja a sua natureza, que não puderem ser pagos pelas indemnizações
obtidas do inimigo, devem ser suportados por toda a Nação”, defende
Levy Marques da Costa.
Finalmente, no Verão de 1937, já com a guerra civil a atravessar
Espanha, é publicada uma lista com mais de 300 nomes de pessoas e
entidades, civis e militares (ou seus familiares), com o valor da respectiva
indemnização a ser paga. É o caso, por exemplo, de Francisco Marques
Vieira, residente na vila de Chibia (sul de Angola, perto de Lubango) e que
foi um dos vários civis afectados por “prejuízos materiais causados pelo
combate de Naulila, e conjuntamente pela subsequente revolta indígena”.
Duas décadas depois da intervenção militar de Portugal na I Guerra
Mundial, as contas ainda estavam a ser fechadas.

Principais fontes e bibliografia: Orçamentos do Estado de 1914 a 1919; Jornal O Século; Diário do Governo


(vários anos); Arquivo Intendência dos bens dos inimigos/Torre do Tombo (ainda em fase de tratamento arquiv-
ístico); Arquivo Oliveira Salazar/Torre do Tombo; The National Archives (Reino Unido); Portugal: O círculo vicioso
da dependência, Sacuntala de Miranda, Editorial Teorema, 1991; http://uboat.net/wwi; Homens, doutrinas e
organização – 1824-1974, António José Telo, em História da marinha portuguesa, Academia de Marinha, Lisboa,
1999; Os navios alemães – declaração de guerra, Luís Alves de Fraga, em Portugal e a Grande Guerra, Aniceto
Afonso e Carlos de Matos Gomes, Verso da História, 2013; Alfredo da Silva, o maior industrial português, Luís
Villalobos, Empresários do Século XX, separada da revista Fortunas & Negócios; Orey, uma família, uma em-
presa, 1886-2006, Maria João da Câmara; A colecção de antiguidades egípcias do Museu de História Natural da
Universidade do Porto, Maria José Cunha e Rogério Ferreira de Sousa, revista História da Faculdade de Letras, III
Série, vol.7, Porto, 2006.

Agradecimentos: A Odete Martins e Teresa Resende, da TT, pelas facilidades no acesso à documentação 

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