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DISSERTAÇÃO Adoracao - A - Brasileira PDF
DISSERTAÇÃO Adoracao - A - Brasileira PDF
Matteo Ricciardi
2009
Matteo Ricciardi
Belo Horizonte
2009
Matteo Ricciardi
_________________________________________
Prof. Dr. Levy Da Costa Bastos – Orientador
___________________________________________
Prof. - Instituição
___________________________________________
Prof. - Instituição
À minha amada Aline, que soube abrir mão de parte do meu tempo e de minhas atenções,
para que eu pudesse dedica-las ao labor teológico para o avanço do Reino de Deus.
AGRADECIMENTOS
À minha família; a todos os professores, pastores e
colegas de caminhada. Pelo suporte, carinho e
perene incentivo.
RESUMO
O presente trabalho apresenta uma reflexão sobre a contextualização do culto brasileiro, suas
formas e conteúdos. A tese da qual se parte para a elaboração é que no Brasil não houve
contextualização da liturgia. Defende-se a idéia que o protestantismo brasileiro herdou a
forma de culto e a teologia das denominações de origem dos missionários, e não preocupou-se
em atualizar, revitalizar seus conteúdos e suas formas ao longo do tempo. O objetivo é
apresentar uma apreciação histórica da implantação do culto no Brasil, fundamentar
teologicamente as relevância do culto cristão e, finalmente, apontar para caminhos de
contextualização. A metodologia adotada é a pesquisa bibliográfica suportada pelo
conhecimento da vivência litúrgica. Finalmente, o trabalho apresenta possibilidades de
contextualização do culto evangélico brasileiro, na perspectiva da interação mútua com a
cultura local, à luz da implantação do Reino de Deus.
INTRODUÇÃO .....................................................................................................................7
CONCLUSÃO..................................................................................................................... 37
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................. 39
7
INTRODUÇÃO
O presente escrito se propõe analisar o culto evangélico, suas formas e conteúdos, à
luz da realidade brasileira. O problema constatado é que não houve um trabalho de
contextualização do culto, mas desde o período das missões evangélicas norte-americanas o
Brasil sofre a imposição de padrões estrangeiros nas celebrações, assim como na teologia; a
ausência de musicalidade e conteúdos brasileiros no culto evangélico é devida ao preconceito
com a própria cultura brasileira, fruto deste empreendimento missionário que está nas raízes
da formação do evangélico brasileiro.
A contextualização do culto, além de reavaliar as formas e os conteúdos, abarca a
recuperação da identidade dos membros para dentro da realidade cristã, tornando-os
conscientes da riqueza e da beleza que os faz brasileiros. Tornar-se cristão não significa
deixar de ser brasileiro: os anseios, as lutas e as esperanças que se vivem fora da igreja
podem, e devem, vir a fazer parte da celebração da comunidade. O canto e a música
representam fortíssimos instrumentos de comunicação, de celebração, de denúncia que a
comunidade deve resgatar entendendo que durante o canto também se coloca a realidade
vivencial perante o Deus todo-poderoso aguardando sua resposta fiel. A liturgia pode
proporcionar o encontro entre as necessidades da comunidade, as preocupações eternas dos
seres humanos e a providencia divina.
A arte é um catalisador da multiplicidade dos elementos da experiência humana no
mesmo momento, possibilita ao individuo participar da dinâmica da celebração como um
todo. Com este olhar, o culto se torna a ocasião de expressar publicamente a dimensão
espiritual e interior de cada crente ao mesmo tempo que como comunidade reunida se
estabelece a procura “dos rostos ausentes que estão esperando”1. “A música e o canto
representam para cada geração um lugar de encontro e de abertura para com o mundo e para
com Deus”2; esta arte possui um enorme potencial comunicativo, pois não transporta somente
o conteúdo emocional expresso pela melodia, mas principalmente as palavras de que se
constitui o cântico. Já dizia Jerônimo, que “não a voz, mas as palavras do cantor precisam
encontrar aprovação3”.
A xenofilia que existe amplamente difundida na maioria das áreas do conhecimento
encontra parceria até na religiosidade evangélica, que pelo contrario deveria representar uma
franja da contracultura cristã, que é na essência humanizadora e libertadora. A promoção de
1
GENRE, Ermanno. Il culto cristiano: una prospettiva protestante. Torino: Claudiana, 2004. p. 210.
2
Ibidem. p. 77.
3
Jerônimo. Apud: BRUNNER, Peter. Worship in the name of Jesus: English edition of a definive work on
Christian worship in the congregation. St. Louis: Concordia, 1968. p. 265.
8
Na América Latina, uma suposta “cultura cristã” imposta pela evangelização causou
uma desvalorização do que é propriamente latino, deixando-o do lado de fora dos templos,
não incorporando-o nas suas celebrações. É necessário, então, um processo de “apropriação e
expurgo” para com a cultura que possa aproveitar elementos próprios do homem latino para
dentro do cristianismo evangélico.
O culto cristão sempre foi uma manifestação profundamente ligada ao contexto no
qual acontecia; a história da Igreja mostra como liturgia das mais diversas foram se
estabelecendo ao longo do tempo, adquirindo características próprias e singulares a partir do
lugar de implantação. A América latina não precisa depender de formulações e reflexões
teológicas estrangeiras, pois existe um núcleo pensante nela mesmo, núcleo este cônscio da
realidade experimentada pelos irmãos e irmãs, enquanto co-participante da mesma vivencia,
da mesma luta e das mesmas expectativas. A proposta é de dialogo, não trata-se aqui de
eliminar a herança e ficar só com o novo, nem vice-versa, mas sim tentar enriquecer a
celebração evangélica à luz da realidade na qual esta acontece.
4
COSTAS, Orlando. El protestantismo en América Latina hoy. ensayos del camino. San José: INDEF, 1975. p.
8.
9
A música, o canto e os irmão que estão encarregados de cuidar desta parte devem ser
entendidos como parte da ação da congregação, revestidos de uma função diaconal, de
serviço. E a Igreja toda que louva, que adora, que celebra a Deus. Constata-se, no entanto, um
mal entendimento quanto à função das “equipes de louvor” na atual conjuntura histórica que
precisa portanto ser repensada de um ponto de vista teológico alem de prático como tem sido
nos últimos tempos. Quando a Igreja se reúne, o propósito deve ser a edificação coletiva por
isso, todas as partas da celebração necessitam ser inteligíveis quanto às formas de expressão e
a ordem de acontecimento; uma liturgia bem organizada não pode deixar de se perguntar onde
o culto vai acontecer, quando, com que propósito e portanto quais conteúdos serão tratados.
5
BRAGA, Henriqueta Rosa Fernandes. Música sacra evangélica no Brasil: contribuição à sua história. Rio de
Janeiro: Kosmos, 1961. p. 129.
6
Ibidem. p. 195.
7
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. A nova religião. In: ______. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no
Brasil. São Paulo: ASTE, 2005. p. 171-240.
12
Ele releva que a hinologia deste período reflete a herança de uma “teologia do amor de
Deus” por todos os homens pecadores que aceitam pela fé a morte vicária de Cristo e
ingressam uma vida visível regenerada na expectativa da vida eterna no céu.
A isso somam-se novos elementos que se manifestaram especificadamente no Brasil e
que iriam distinguir profundamente o sucessivo desenvolvimento da Igreja. Vai se
formulando uma “teologia da Igreja espiritual”, marcada por uma preocupação com um outro
mundo diferente, paradisíaco e a-parte deste presente, e, por conseqüência disso, uma
supervalorização da vida futura; esta postura torna-se justificadora e conservadora do status
quo, projeta os interesses e os anseios dos fiéis somente para o porvir, e promove o não
envolvimento nas questões seculares. Esta elaboração é conseqüência das idéias da
peregrinação e do milenarismo que chegaram junto com os missionários.
Junto a isso, evidenciam-se certos traços da teologia do pietismo, com seu
emocionalismo característico que acompanharão o sucessivo avanço do protestantismo
brasileiro preparando um campo fértil para o movimento pentecostal . A ênfase pietista sobre
a intimidade com Deus manifesta-se num grande individualismo, pois incentiva-se a leitura
solitária da Bíblia e sua interpretação literal ou espiritualizada, rumo a uma experiência
individual da fé; além disso os traços típicos desta linha apresentam a contemplação espiritual
da cruz, descrevendo com detalhes o sofrimento vicário e exaltado-o com grande emoção;
finalmente, é marcado pela negação do mundo e desprezo dos prazeres da vida, evidenciando
uma fuga do material e do temporal.
Uma terceira característica deste primeiro momento formativo é a do “protestantismo
guerreiro”. A ideologia da guerra é transportada do material para o espiritual: as forças em
jogo são a do bem e do mal, numa transposição invisível da guerra santa como figurada no
entendimento medieval. Cabe aqui pontuar como estes hinos diferem bastante da roupagem
da teologia da “batalha espiritual” que passaram a fazer parte do discurso e dos cantos
evangélicos ao final da década de 1980, e portanto objeto de análise num tópico mais adiante
deste trabalho.
O denominacionalismo recebido em herança pela obra do missionários norte-
americanos parece afetar os evangélicos no plano doutrinário e aproximá-los no plano
litúrgico.
Quanto à formulação litúrgica, o aporte de maior influencia deve-se ao missionário
escocês autônomo Robert Kalley. Ele produziu um conceito leigo de culto, estabelecendo
aqueles que seriam posteriormente definidos como “cultos de família”, “cultos domésticos”.
Autores apontam para esta formulação litúrgica mais uma técnica de evangelização de que
13
1.3 O pentecostalismo.
Uma segunda matriz de elementos relevados para a organização do culto evangélico é
o movimento pentecostal e suas ramificações. O termo pentecostal, no Brasil, abrange uma
enorme gama de manifestações e organizações eclesiais. Seria possível classificar o culto
pentecostal dentro dos movimentos não-litúrgicos acrescentando a estes o destaque que
adquire a ação do Espírito Santo.
Entre as várias classificações do movimento, adotar-se-á a de Paul Freston que divide
o desenvolvimento em três ondas:
8
MENDONÇA, António Gouvêa. O culto que chega ao Brasil. In: MARASCHIN, Jaci (Org.). O culto
protestante no Brasil, Estudos de religião, São Bernardo do Campo, Imprensa Metodista, ano 1, nº 2, out. 1985,
p. 34-35.
9
HAHN, Carl Joseph. Conceito e prática de culto no ministério dos primeiros missionários protestantes no
Brasil. In: ______. História do culto protestante no Brasil. São Paulo: ASTE. p. 132-83.
10
MENDONÇA, António Gouvêa. Igreja Congregacional. In: ______; VELASQUES FILHO, Prócoro.
Introdução ao Protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1990. p. 34-35.
14
11
FRESTON, Paul. Protestantes e politica no Brasil: da Constituinte ao impeachment. Campinas, Tese de
doutorado em sociologia, IFCS-UGRj, 1993. Apud: MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo
pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1999. p. 28-29.
12
BRAGA, Henriqueta Rosa Fernandes. Música sacra evangélica no Brasil: contribuição à sua história. Rio de
Janeiro: Kosmos, 1961. p. 220.
13
Ibidem. p. 221.
15
apresenta letras que se concentram muito mais na pessoa de Deus e pouco falam de seus atos
salvíficos. Campos Jr. declara que
a ênfase está colocada nos “dons” que os fiéis podem receber. As letras dos cânticos
enfatizam as experiências dos membros dos diversos grupos e a ação divina, de
forma especifica durante o culto.14
14
CAMPOS JÚNIOR, Luís de Castro. Pentecostalismo: sentidos da palavra divina. São Paulo: Ática, 1995. p.
143.
15
DARINO, Miguel Angelo. La Adoración: analisis e orientación. California: Dime, 1992. p. 87. Apud:
DORNELES, Vanderlei. Liturgia Pentecostal Rompe Barreiras entre o Religioso e o Popular. Disponível em:
www.musicaeadoracao.com.br/artigos/meio/liturgia_pentecostal.htm. Acesso em: 28 fev. 2009.
16
de avivamento ocorrido nas primeiras décadas do século XX nos EUA. Foi caracterizado pela
introdução da musicalidade popular, com ressalto das comunidades negras, no repertorio
sacro protestante.
No Brasil, no entanto, o termo demarca um período que começa no inicio dos anos 90,
com esporádicos precursores, que define-se pela mensagem: “ para os crentes, gospel é toda
música que fale de Deus, de seus atributos e propósitos”.16 Neste momento, acontece uma
incorporação da musicalidade pop dos EUA, mas não da brasileira que, mesmo começando a
ser explorada nas suas diferentes manifestações (alguma inserção de ritmos brasileiros como a
bossa- nova e o baião), continua relegada a espaços extra-cúlticos (festas, encontros diversos).
O processo de assimilação da musicalidade popular que acontecera nos EUA não parece
interessar à geração gospel que aceita o padrão estrangeiro sem o menor constrangimento, já
que o produto que chegou ao Brasil já tinha passado por um processo de sacralização; o
mesmo não aconteceu com a cultura autóctone. Aconteceu a sacralização de instrumentos
antes considerados profanos e, trilhando o caminho do pentecostalismo, abriu-se espaço para
o instrumental popular, como as guitarras e as baterias; no entanto o fenômeno não chega a
participar da liturgia na vertente popular brasileira.
A musicalidade que caracteriza o movimento é de fácil melodia, versos curtos, ritmo
animado. A estrutura das músicas foi simplificada, o que permite uma assimilação mais
rápida, ao passo que as melodias saíram do domínio da congregação para torna-se palco de
prova dos solistas.
Os cânticos são definidos por Denise Frederico como doxológicos, de batalha
espiritual e de teologia da prosperidade17. Além disso constata-se uma ênfase no Deus
soberano, recuperando a teologia do AT ligada à tradição sustentadora do templo e dos reis, e
a linguagem mística da tradição do apocalipse. A pregação recalca os mesmos assuntos dos
missionários: conversionismo individual, milenarismo, piedade pessoal, negação do mundo,
sectarismo, anti-ecumenismo.
A herança pietista encontra nesta fase seqüência direta, pois o movimento é
caracterizado pela ênfase na emoção e no sentimentalismo em contraposição com a razão, e
pelo individualismo. Isso acarreta um novo traço que manifesta-se na intimidade com Deus,
que apresenta-se em declarações como entre amantes, nas quais a menção ao nome de Deus é
quase inexistente. A isso soma-se o uso de repetir frases de auto-afirmação nos moldes da
16
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola,
1999. p. 213.
17
FREDERICO, Denise. A música na igreja evangélica brasileira. Rio de Janeiro: MK, 2007. p. 184-188.
17
auto-ajuda, “pregando a idéia de que o sucesso depende de ações que estão ao alcance de
todos, contrariando a própria realidade econômica e culturalmente competitiva e desigual de
nossa sociedade”18.
Uma das marcas que delineia o movimento consiste em “refazer as linhas divisórias
entre o sagrado e o profano, condenando a música secular”19; longe de ser um movimento
tipicamente popular e que instaure um diálogo crítico com a cultura a fim de enriquecer os
próprios conteúdos teológicos e musicais, o movimento gospel representa uma “cultura de
manutenção e não algo novo, transformador, desafiador, que responda às demandas
sóciopolíticas-econômicas-culturais do tempo presente”20. O gospel não representa somente
uma manifestação eclesiástica, mas se estabelece como fenômeno que transcende os limites
da igreja e insere-se na dinâmica do mercado musical nacional.
Numa análise do movimento, Magali Do Nascimento Cunha afirma que
Há uma utilização ideológica da teofania das tradições monárquicas de Jerusalém
[...] A tradição é utilizada para se reconstruir, no século XXI, uma noção de religião
templária, intimista, centrada no louvor e na adoração, que se contrapõe à teologia
mosaica, e cristológica, do pastoreio e do serviço à comunidade.21
É neste momento que no lugar dos grupos musicais começam a aparecer os ministérios
de louvor e adoração; estes assumem papel fundamental não somente na liturgia, mas na
própria vida do povo gospel. A música é entendida como veiculo para se chegar a Deus;
segunda as palavras do mentor do movimento Tommy Tenney “a adoração é mais importante
que a pregação”. Neste modelo, o ministro de louvor, pode e deve pregar mensagens
(“ministrar”) e fazer orações entre uma música e outra, assumindo um papel estratégico na
liturgia, tornando o louvor a parte mais importante do culto. O trânsito dos fiéis entre uma
igreja e outra deve-se em grande medida às preferências musicais que encontram respaldo
neste ou naquele ministério de louvor, muito mais que por questões doutrinárias ou
teológicas.
18
CUNHA, Magali do Nascimento. A explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre o cenário
evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. p. 129.
19
Ibidem. p. 131.
20
Ibidem. p. 32.
21
Ibidem. p. 186-187.
18
A partir da análise efetuada pode-se inferir uma dupla matriz litúrgica da igreja
evangélica brasileira contemporânea: por um lado é nítida a herança do protestantismo de
missão, quanto aos conteúdos e a impostação não-litúrgica das celebrações; do outro, a marca
tipicamente pentecostal da ênfase nas manifestações extáticas e de poder do Espírito Santo,
que pretende ser entendido como aquele que dirige a espontaneidade nos cultos. A marca
pentecostal que perpassa as mais diversas denominações limitou-se a um destaque das
manifestações de poder do Espírito Santo (línguas, curas e milagres) deixando de lado as
outras características da ação da terceira pessoa da Trindade, como aquele que sustenta a
criação, que renova o intelecto e torna-o conforme a vontade de Deus. Alem disso, constata-se
uma preponderância da ação do Espírito em detrimento da trindade.
Duas palavras poderiam resumir as conseqüências que os cultos evangélicos
proporcionam: alienação e preconceito.
A evangelização dos missionários norte-americanos lançou profundas raízes dualistas:
a dicotomia entre espiritual e “carnal”, o confronto entre razão e fé, a separação entre igreja e
mundo secular, o afastamento do presente mundo maligno e para o futuro reino celestial. Ao
participar do culto, o crente evangélico é convidado a deixar do lado de fora as suas
preocupações, os seus anseios, como se entrando na “casa do Senhor” estivesse entrando
numa dimensão completamente diferente. Bem afirma Costas ao dizer que
um culto que provê uma experiência libertadora termina alienando os seus adeptos
porque os faz escapar do mundo e de seus conflitos. [...] O culto representa um
afastar-se do mundo, um refugio, que permite à comunidade de fé de desvincular-se
por completo dos problemas da sociedade. [...] Numa sociedade convulsionada
como a América Latina, o culto pentecostal apresenta uma igreja indiferente ao
problemas da opressão, injustiça, exploração, fome e miséria que vive o continente.
Isto é completamente inconseqüente em relação à experiência libertadora que os
fieis vivem durante o culto.22
Posto desta forma, o culto não pode ter a prerrogativa de pregar um Cristo Encarnado
no mundo-da-vida dos fiéis, um Deus próximo que conhece a realidade e inspira a
transformação. Costa ainda releva que
este tipo de culto revela uma igreja que vive alienada da sua cultura e dos problemas
da sociedade à qual pertence. No caso de muitas igreja missionárias, o culto é
vertical, dualista e desencarnado. É um culto escapista que reúne os fieis para
transporta-los à presencia de Deus. Está presencia é definida com categorias
metafísicas com expressões culturais estrangeiras.23
O resultado destas posturas poderia-se formular como uma suma das duas matrizes, de
herança missionária e pentecostal, que dá origem a “uma força conservadora que se opõe à
22
COSTAS, Orlando. El protestantismo en América Latina hoy. ensayos del camino. San José: INDEF, 1975. p.
26.
23
Ibidem p. 14.
19
mudança e ao surgimento de um novo amanhecer nesta América Latina que sangra de dor,
que pede justiça, paz e amor”24.
Quanto à formatação da liturgia, é mais que verificado que enquanto o louvor celebra
determinados assuntos, a pregação que a isto segue não trata dos mesmos, a palavra de Deus
que chega em resposta à palavra dos homens não parece fazer parte do mesmo dialogo, chega
absoluta como se não importasse o que a comunidade acabou de cantar, de apresentar a Deus
em louvor e adoração. A liturgia parece muito mais uma justaposição de partes caracterizada
pela concentração no oficiante, seja ele o pastor ou o ministro de louvor, derivante da não
formulação/reflexão teológica do culto, evidente desde a implantação protestante de missão.
A participação ao culto aparece não integrada, e, mesmo reconhecendo a legitimidade do
caráter não litúrgico25 das igrejas de origem missionária, percebe-se a necessidade de melhor
elaborar a ordem dos acontecimentos na narração cúltica evangélica.
24
COSTAS, Orlando. El protestantismo en América Latina hoy. ensayos del camino. San José: INDEF, 1975. p.
28.
25
Para uma definição do termo, consultar VELÁSQUEZ FILHO, Prócoro. O protestantismo, segundo a tradição
cúltica. In: MARASCHIN, Jaci Correia (org.). O culto protestante. Estudos de religião, São Bernardo do Campo,
UMESP, ano 1, n. 2, p. 70-74, out.1985.
20
26
DARINO, Miguel Angel. La adoración y la Biblia. Disponível em:
http://www.convencionbautista.com/dr__darino.htm. Acesso em: 28 fev. 2009.
21
afirmações dos Evangelhos pode-se inferir uma promessa que manifesta a disponibilidade e
assegura a presença dele em meio à comunidade celebrante. Kirst pontua que Jesus
coloca-se livre e generosamente à disposição da comunidade, para que ela o
encontre onde e quando quiser, bastando que invoque o seu nome. É graças a essa
irrestrita e graciosa disponibilidade que uma comunidade cristã pode marcar um
horário e um lugar de culto, e confiar que o Senhor comparecerá ao encontro.27
A igreja que se reúne para celebrar encontra seu fundamento na obra de Jesus Cristo,
pois a sua vida litúrgica “é ao mesmo tempo humana e divina”31. A humanidade de Jesus
Cristo é inspiradora e oferece à assembléia celebrante um modelo da relação com o divino e
com o humano que é a essência do próprio cristianismo. O relacionamento que Jesus
experimentou com Deus durante a sua vida possui a mesma intensidade do que vivenciou para
com o seu próximo; poderia-se até dizer que os dois estão diretamente ligados, na medida que
o relacionamento com o Pai só encontra sua realização e expressão no ato amoroso para com
o outro ser humano. É necessário ressaltar que já que “o culto é um processo contínuo pelo
27
KIRST, Nelson. Liturgia. In: HARPPRECHT, Christoph Schneider (Org.). Teologia Prática no Contexto da
América Latina. São Paulo: ASTE, 2005. p. 121.
28
ALLMEN, Jean Jacques von. O culto cristão: teologia e prática. São Paulo: ASTE, 2005. p. 25.
29
Idem. p. 23.
30
HOON, Paul Waitman. The integrity of worship: ecumenical and pastoral studies in Liturgical Theology.
Nashville: Abingdon, 1971. p. 184. Tradução livre do autor.
31
Ibidem. p. 185.
22
qual assumimos um compromisso com Jesus e seus valores”32, nunca pode se negligenciar
uma compreensão da humanidade de Jesus Cristo em sua expressão no encontro do outro
como modelo de práxis, tanto litúrgica quanto vivencial.
Quanto ao Cristo da glória, este pode ser entendido como primícia da nova
humanidade resgatada para a genuína adoração ao Pai e como eterno sacerdote. Sanches
afirma que
a vida de Jesus é o próprio sacrifício, constituindo-se sua morte no centro da sua
oferenda sacerdotal. Na entrega do seu corpo, Jesus cumpriu seu dever sagrado
sacerdotal e habilitou-se a permanecer sacerdote para sempre [...] instituído como
novo guia da adoração da humanidade redimida.33
32
COCKSWORTH, Christopher. Santo, Santo, Santo: o culto ao Deus trinitário. São Paulo: Loyola, 2004. p.
215.
33
SANCHES, Sidney de Moraes. Hebreus: espiritualidade e missão. Belo Horizonte: Lectio, 2003. p. 17.
34
CULLMAN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Liber, 2001. p. 133.
35
SANCHES, Sidney de Moraes. Op. cit. p. 17.
36
ALLMEN, Jean Jacques von. O culto cristão: teologia e prática. São Paulo: ASTE, 2005. p. 25.
37
SANCHES, Sidney de Moraes. Op. cit. p. 20.
38
DARINO, Miguel Angel. La adoración y la Biblia. Disponível em:
http://www.convencionbautista.com/dr__darino.htm. Acesso em: 28 fev. 2009.
23
vivificado, o corpo de Cristo se entende como uma antecipação e como o início da nova
criação de todas as coisas”39. O culto representa tanto a lembrança da salvação em Jesus
Cristo, que ao mesmo tempo projeta a própria esperança para o encontro definitivo da
consumação dos tempos, quanto caracteriza-se como instrumento da proclamação perante o
mundo desta mensagem. Consequentemente o presente parágrafo abordará esta dimensão
teológica em relação à Igreja, ao futuro e ao anúncio para o mundo.
A comunidade que se reúne para o culto tem como pressuposto a mesma fé no evento
salvífico de Cristo, que os torna iguais perante Deus e os possibilita à adoração. Ao elaborar
este assunto, Allmen no capítulo “O culto, epifania da Igreja”40 apresenta uma série de
atributos que o culto revela acerca da Igreja. Entre os cincos apresentados, serão abordados
somente dois para a finalidade contextual a este escrito. Ele caracteriza a Igreja como
comunidade batismal, pois “a comunidade dos batizados que o culto manifesta é de fato uma
comunidade de homens, mulheres e crianças que renunciaram ao mundo e morreram para o
pecado”; a reunião litúrgica é fruto de uma decisão voluntária, cuja finalidade é a adoração e
o encontro com Deus. Nas palavras do autor é “o povo escatológico reunido para encontrar-se
com o seu Senhor”. Prosseguindo, Allmen recupera o conceito da Igreja como Esposa de
Cristo ao defini-la como comunidade nupcial: segundo dois pólos esta é por um lado
motivada pela fé no Salvador e, por outro, pela esperança da sua vinda. Isso é motivo para
continuar a presente reflexão no horizonte escatológico.
Ao proclamar a salvação em Jesus Cristo, a comunidade ressalta uma dupla realidade:
por um lado existe a lembrança do ato histórico, cabal da morte e ressurreição de Jesus; por
outro, permanece a expectativa da sua volta. Desta forma, “a adoração da Igreja aponta para a
consumação futura que está sendo preparada no paraíso com Deus”41, pois a Igreja é “a
comunidade daqueles que em razão da ressurreição de Cristo esperam o reino de Deus e são
determinados em sua vida por esta esperança”42. Esta característica está presente desde as
comunidades primitivas como denota Bosch ao descrever o trabalho missionário de Paulo,
afirmando que “é justamente reunindo-se para celebrar liturgicamente a vitória já alcançada e
para orar para a vinda do Senhor, que estas pequenas e frágeis comunidades paulinas se
tornam conscientes [...] da tensão entre o já e o ainda não”43. É pela ação do Espírito que é
39
MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida: uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 74.
40
ALLMEN, Jean Jacques von. O culto cristão: teologia e prática. São Paulo: ASTE, 2005. p. 41-54.
41
BRUNNER, Peter. Worship in the name of Jesus: English edition of a definitive work on Christian worship in
the congregation. St. Louis: Concordia, 1968. p. 32.
42
MOLTMANN, Jürgen. Teologia da Esperança. São Paulo: Editora Teológica, 2003. p. 384.
43
BOSCH, David J. La trasformazione della missione: mutamenti di paradigma in missiologia. Brescia:
Queriniana, 1997. p. 207-208.
24
possível esta dupla articulação, que atua como uma ponte entre passado-presente-futuro; nas
palavras de Moltmann é a “pneumatologia que estabelece a união entre a Cristologia e a
escatologia [...] Nele, (no Espírito) origem e acabamento se encontram presente”44. A respeito
deste assunto, Allmen desenvolve a idéia do culto como recapitulação pois
“resume e confirma sempre de novo a história da salvação [...] O passado e o futuro,
o evento capital da história da salvação e sua manifestação triunfante, estão
realmente presentes”45.
Nestes mesmo termos, Allmen declara que “o culto cristão é um dos agentes mais
importantes da história da salvação”48 e Cocksworth, numa reflexão sobre a conexão entre
culto e missão, pontua que
a comunidade que pratica o culto personifica o Reino de Deus [...] A missão de
Deus torna-se visível e tangível em uma comunidade de pessoas reconciliadas com
Deus, entre si reciprocamente e com o restante da criação. O culto da Igreja deveria
ser um testemunho vivo do conteúdo da mensagem de Deus.49
44
MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida: uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 74.
45
ALLMEN, Jean Jacques von. O culto cristão: teologia e prática. São Paulo: ASTE, 2005. p. 32-34.
46
COSTAS, Orlando. La misión como celebración. In: ______. Compromiso y misión: reflexión sobre la misión
de la iglesia en este mundo de incertidumbre en que vivimos. San José: Editorial Caribe, 1979. p. 141-153.
47
Ibidem. p. 148.
48
ALLMEN, Jean Jacques von. Op. cit. p. 40.
49
COCKSWORTH, Christopher. Santo, Santo, Santo: o culto ao Deus trinitário. São Paulo: Loyola, 2004. p.
223.
25
de Jesus Cristo, da afirmação de ser humano, será necessária uma reavaliação da concepção
de homem no seu relacionamento com Deus. As implicações deste nova abordagem, que
melhor seria definida como uma mudança de paradigma, são fruto da discussão do século XX
e continuam objeto de pesquisa. Para o seguinte tópico far-se-á referência às elaborações de
Karl Barth, Wolfhart Pannenberg e Jürgen Moltmann.
A obra de Jesus Cristo, entre outras peculiaridade, apresentou à História o homem. Na
sua própria vida, comum, simples, mas ao mesmo tempo única e extraordinária revelou aquilo
que era o plano de Deus para a humanidade. Jesus “realiza em si mesmo a determinação
inicial do homem para a comunhão com Deus. Ele, portanto, é o homem novo pela maneira
especial como se apresentou enquanto homem comum”50. Auler lembra que
no centro da fé cristã está a pessoa histórica de Jesus Cristo. Só conseguiremos olhar
para Deus, olhando para Jesus como ser humano. Lá, vemos Deus e vemos também
a nós mesmos. Jesus Cristo torna-se a referência de Deus e conseqüentemente a
referência do ser humano. O mistério da encarnação tem este
objetivo, revelar Deus e revelar o novo ser humano.51
A própria condição de ser do culto deve-se à realidade do novo ser humano. É esta
nova humanidade que se reúne para oferecer culto ao Deus Salvador que a restaurou para a
sua adoração. Esta nova condição, uma re-criação, a recapitulação segundo o novo Adão é
obra do próprio Deus que neste ato a “reveste de toda a glória de sua própria natureza divina,
com seu poder, dignidade, justiça e santidade”54. Ainda que colocado nestes termos, seria uma
presunção e uma enorme desconsideração achar que a comunidade atual expresse estas
qualidades em plenitude; existe uma expectativa escatológica na qual o presente estado de
humanidade será exaltado, assim como aconteceu com Jesus Cristo, para revestir
50
PANNENBERG, Wolfhart. Fundamentação cristológica da antropologia. Concilium, n. 10, jun. 1973, p. 746.
51
AULER, João Paulo. O corpo na liturgia do culto cristão. 2003. Mestrado profissionalizante em Teologia -
Área de concentração: liturgia. Escola Superior de Teologia, São Leopoldo. p. 18.
52
PANNENBERG, Wolfhart. Op. cit. p. 732.
53
BARTH, Karl. Dádiva e louvor: artigos selecionados. São Leopoldo. Sinodal, 1996. p. 364.
54
Ibidem. p. 366.
26
A mudança de perspectiva é tanta que a própria possibilidade de ter relação com Deus
é reavaliada; no relacionamento de Deus com o homem, aquele é para este criador e portanto
garante desta união. O pecado, ainda que possa atrapalhar, não tem poder de destruir este
vinculo, pois só Deus tem autoridade para suprimir e suspender57.
A dimensão antropológica, exposta aqui nestes termos, apresenta a sua importância no
fato de que a comunidade cristã que se reúne tem como pressuposto a possibilidade de
comunhão com Deus; isso é possível pois
quem crê no Cristo, se torna imagem do Cristo, do Deus que se fez homem, do
Verbo que se tornou carne, portanto também o seu corpo se torna templo do espírito
santo. Ao longo do processo de redenção e aperfeiçoamento, o homem se torna
imago Dei “tam in corpore quam in anima.58
É a partir desta nova concepção antropológica que será possível ressaltar e incorporar
à liturgia do culto cristão elementos expressivos da humanidade, derivantes da cultura e do
contexto onde o ser humano ser encontra. Seria dilacerante conceber um culto no qual se peça
ao fiéis de deixar se der ser humano para ser tornar algo diferente para adorar.
À luz de quanto exposto até aqui, manifestou-se como o Evangelho não possui caráter
normativo nas questões litúrgicas, mas permite uma rica gama de possibilidades e diretrizes
(ou dimensões como até aqui conceituadas) que norteiam a prática da comunidade. O próximo
capítulo tentará apontar para possíveis rumos de contextualização do culto evangélico no
Brasil, em nível de formas e conteúdos.
55
PANNENBERG, Wolfhart. Fundamentação cristológica da antropologia. Concilium, n. 10, jun. 1973, p. 739.
56
MOLTMANN, Jürgen. Dio nella creazione: dottrina ecologica della creazione. Brescia: Queriniana, 1986. p.
258-59.
57
Ibidem. p. 272.
58
Ibidem. p. 279.
27
Por isso não pode-se pensar que a absoluta espontaneidade, a justaposição de partes e
a idéia que o culto aconteça numa esfera meramente espiritual sejam atitudes fundamentadas,
possíveis e proveitosas para todo aquele que chega à igreja para celebrar. Durante o culto a
vida, com toda a sua humanidade, é trazida perante Deus, é por ele confrontada, consolada,
comissionada para a propagação do Reino. Diz Costas que
o culto dramatiza a vida da igreja durante a semana que acaba de passar e seu futuro
imediato uma vez pronunciada a benção pastoral. É o acontecimento que põe à luz
as preocupações mais íntimas da congregação.61
A ação da comunidade no culto deve ser altamente participativa, pois não somente
uma parte dela pode fazer parte da dinâmica celebrativa, mas toda ela. Diz Floristan que
participar é aderir, tomar parte e intervir. A participação litúrgica exige entre em
comunhão com aquilo de que se participa e com os próprios participantes [...] a
celebração não é um espetáculo ao qual se assiste, mas uma ação da qual a
assembléia participa62.
O louvor que a igreja brasileira acabou assumindo em sua maioria descuida deste
fator, apresentando músicas adequadas para um solista ao invés que para a congregação, e que
59
WHITEMAN, Darrel L. Contextualization: the theory, the gap, the challenge. International Bulletin of
Missionary Research, v. 21, n. 1, jan. 1997.
60
BUYST, Ione. Pesquisa em liturgia: relato e análise de uma experiência. São Paulo: Paulus, 1994. p. 30.
61
COSTAS, Orlando. El protestantismo en América Latina hoy: ensayos del camino. San José: INDEF, 1975. p.
6.
62
FLORISTAN, Casiano. Celebração das comunidades. São Paulo: Loyola, 2002. p. 29.
28
Em linha com a visão holística proposta por Buyst, a contribuição de Genre aponta
para uma categoria importante para o culto evangélico brasileiro: o encontro. Martins destaca
quatro aspectos principais ao trabalhar a definição de culto como encontro, termo rico por
causa da conotação existencial que oferece64: rememoração, celebração, libertação e
renovação. Estes quatro elementos remetem ao conceito de dramatização, acima citado, de
Costas, pois atualizam no culto os momentos fundantes da fé, os celebram ao passo que
apontam para a mudança e a transformação. Por um lado, então, pode-se perceber um certo
grau de representação e, por outro, o desenvolvimento do culto como uma narrativa. Isso
levaria a pensar à contribuição da teoria da comunicação e da Teologia Narrativa. No entanto,
os pontos levantados neste parágrafo continuariam sendo periféricos se não acontecesse uma
contextualização dos conteúdos celebrados.
63
GENRE, Ermanno. P. 87.
64
MARTINS, José Cássio. Experiência e proposta de culto evangélico no Brasil. Boletim Teológico, v. 9, n. 28,
out.-dez. 1995, p. 28-45.
29
Whiteman considera os dois termos quase como sinônimos, ao passo que teólogos
católicos não adotaram contextualização “talvez por sugerir um nível mais externo de
inculturação, limitado ao âmbito sóciopolítico e do econômico”68.
Por causa de ausência de material protestante específico sobre a temática aqui tratada,
usar-se-ão os dois termos como sinônimos dada a dupla proveniência de ambiente teológico
da bibliografia utilizada, embora, para os fins deste trabalho, o termo inculturação pareceu
melhor responder a idéia de inter-relação entre liturgia cristã e cultura autóctone. A utilização
aqui proposta tende a interessar-se mais para o resultado proposto pelos dois métodos, mais
que numa definição detalhada das diferenças dos dois.
65
Para uma história detalhada da adoção do termos e sua perspectiva histórico-teológica separou-se uma
bibliografia específica no final do trabalho.
66
KRAFT, Charles. Contextualisation Theory in Euro-American Missiology. Disponível em:
http://www.lausanne.org/all-documents/contextualisation-theory.html. Acesso em: 5 nov. 2009.
67
ROEST CROLLIUS, A. Apud Miranda, Mario de França. Inculturação da fé: uma abordagem teológica. São
Paulo: Loyola, 2001. p. 38.
68
ANTHONY, Francis-Vincent. Ecclesial praxis of inculturation: toward an empirical-theological theory of
inculturizing praxis. Roma: LAS, 1997. Apud MIRANDA, Mario de França. Op. cit. p. 37.
30
O dado cultural não pode ser subestimado, ou anulado (como aconteceu em muitos
empreendimentos missionários do século passado, inclusive no Brasil), mas é um fator basilar
de reflexão para a praxis da igreja e sua manifestação litúrgica. O liturgista Anscar
Chupungco definiu a inculturação da seguinte maneira:
processo pelo qual os textos de ritos usados no culto pela igreja local estão de tal
modo inseridos na estrutura da cultura, que absorvem seu pensamento, sua
linguagem e seus modelos rituais. A inculturação litúrgica opera de acordo com a
dinâmica de inserção em determinada cultura e com a assimilação interior de
elementos culturais. De um ponto de vista puramente antropológico podemos dizer
que a inculturação permite às pessoas de um povo experimentarem em celebrações
litúrgicas um “evento cultural” cuja linguagem e cujas formas elas são capazes de
identificar como elementos de sua cultura71.
69
Declaración de Nairobi sobre culto y cultura: desafíos y oportunidades contemporâneas. Disponível em:
http://www.ielu.org/liturgia/documentos/declacion_de_nairobi.htm. Acesso em: 1 nov. 2009.
70
WHITEMAN, Darrel. Contextualization: the theory, the gap, the challenge. International Bulletin of
Missionary Research, v. 21, n. 1, jan. 1997.
71
CHUPUNGCO, Anscar J. Liturgias do futuro: processo e métodos de inculturação. São Paulo: Paulinas, 1992.
p. 38.
72
APUD: STAUFFER, Anita (Org.), Christian Worship: Unity in Cultural Diversity. Genebra: Lutheran World
Federation, 1996. p. 78.
73
As citações deste tópico fazem referência a: MARASCHIN, Jaci. Libertação da liturgia. In: ______. A beleza
da santidade: ensaios de liturgia. São Paulo: ASTE, 1996. p. 133-138.
31
- do clero, “pois a ação litúrgica pertence ao povo [...] a liturgia do povo de Deus sé
tem sentido numa Igreja que leva a serio a realidade teológica do “ministério de todos os
cristãos”;
- das fórmulas estrangeiras, já que “as liturgias permaneceram as mesmas dos paises
de origem”;
- da música alienígena, para “mostrar a sacralidade maravilhosa do violão, dos
tambores, dos pandeiros e das cuícas. E experimentar a beleza do nosso samba, da nossa
marcha-rancho, do nosso xaxado. Mais ainda, a sua superioridade sobre os corinhos norte-
americanos, sobre as tão divulgadas baladas de tipo rock;
- da falsa espiritualidade, pois “a idéia de que a liturgia deve ser antes de tudo
“espiritual” tem levado a Igreja a certas conclusões engraçadíssimas”; já que “a
espiritualidade significa o descobrimento que nosso corpos, afinal, são o templo do espírito, a
sua expressão mais bela e real”;
- dos ídolos, pois a “celebração da esperança da vitória de Jesus sobre os inimigos do
povo desmascara as falsas celebrações que nada dizem, nada ouvem, nada fazem. As
celebrações que nos retiram desta vida e das suas preocupações, elevando-nos para o oásis
celestial, não são celebrações da esperança do Cristo que viveu entre nós e morreu numa
cruz”.
Ao passo que Peter Schineller pontua que “cada comunidade cristã local deve manter
sua ligação com as outras comunidades atuais no mundo, e com as comunidades do passado,
através de um entendimento da tradição cristã”75.
Por esta razão, todo processo de diálogo com ao cultura deve passar pelo crivo da
crítica, para poder aproveitar de maneira sadia os componentes culturais.
74
STAUFFER, Anita. El culto cristiano: en procura de adaptación local y universalización. In: ______(Org.).
Dialogo entre culto y cultura: informes de las consultas internacionales. Ginebra: Federación Luterana
Mundial, 1994. p. 11-12.
75
SCHINELLER, Peter. Handbook on Inculturation. New York: Paulist Press, 1990. p. 72.
32
Sendo assim, o culto tem como condição e como necessidade tanto a vivencia da
justiça quanto a denúncia profética quando esta não é cumprida.
76
BOFF, Leonardo. Igreja: carisma e poder. Petrópolis: Vozes, 1982. p. 161-170.
77
STARKLOFF S J, Carl F. Inculturation and cultural systems. Theological Studies, n. 55, 1994, p. 283.
78
BOFF, Leonardo. Op. cit. p. 169.
79
SILVA, José Ariovaldo; BUYST, Ione (Orgs.). Liturgia em tempo de opressão: à luz do apocalipse. Cadernos
de Liturgia. São Paulo: Paulus, 1990. p. 41.
33
Para desenvolver este assunto a fonte mais antiga é a própria Bíblia: são notórias as
férreas críticas ao culto realizadas pelos profetas. Aqui serão citados apenas dois, Amós e
Isaías. Acerca das palavras de Amós, Sicre afirma que
quando o homem considera o culto com o mais importante, esquecendo o lugar
fundamental da justiça e do direito, da compaixão e da misericórdia, do próximo,
imagem de Deus, o profeta proclama o caráter secundário do culto, usando as vezes
palavras radicais.80
Num artigo sobre a contribuição dos profetas para a reflexão sobre o culto atual,
Carroll afirma que a adoração deve questionar as ideologias dominantes, deve tratar das
realidades da vida atual, e deve alimentar um compromisso com a justiça.82 Ele sustenta que é
necessário “discernir quando a fé, consciente ou inconscientemente, se identifica com a
ideologia ou agenda de um partido ou movimento político ou da própria nação”83. Ele adverte,
também, que os cultos fartos de alegria e de fáceis bênçãos podem separar da vida cotidiana;
que não é possível falar do Deus misericordioso se não se demonstra misericórdia aos
necessitados. Aquilo que acontece no culto deve nutrir os crentes com caridade e justiça,
qualidades que devem ser características fundamentais da identidade e missão do povo de
Deus. Falando desta dimensão de denúncia profética Genre afirma que
é necessário que a liturgia se encarregue dos dramas e os coloque no culto,
transmitindo novas visões, novas sensibilidades, novas palavras, novos ritos, novos
símbolos, novas ações, para exercitar o ministério profético de sentinela.84
Está assim posta a conexão entre vida e culto, num relacionamento biunívoco
enriquecedor, sendo a liturgia “a celebração da vida na busca e na união com o Deus da
Vida”85. Um olhar crítico da realidade, que levante as injustiças do mundo e as apresente a
Deus durante a celebração de maneira que por Ele sejam julgados; um momento de denúncia,
de confissão e de renovação das forças e das esperanças. A vivência dos participantes é
assumida, e olhada através do prisma dos valores cristãos. Steve Turner afirma que “a visão
80
SICRE, José Luis. A justiça social nos profetas. São Paulo: Paulinas, 1990. p. 180.<
81
FOHRER. Jesaia 1 als Zusammenfassung. p. 158. Apud: SICRE, José Luis. A justiça social nos profetas. São
Paulo: Paulinas, 1990. p. 271.
82
CARROLL, Daniel. Puden los profetas arrojar luz sobre los debates tocante al culto? DavarLogos,
Universidad Adventista del Plata, n. 6, p. 143-156, 2007.
83
Idem. p. 150
84
GENRE, Ermanno. Il culto cristiano: uma prospettiva protestante. Torino: Cludiana, 2004. p. 203.
85
SILVA, José Ariovaldo; BUYST, Ione (Orgs.). Liturgia em tempo de opressão: à luz do apocalipse. Cadernos
de Liturgia. São Paulo: Paulus, 1990. p. 16.
34
de mundo verdadeiramente cristã é muito mais penetrante e, muitas vezes, menos obviamente
religiosa do que as pessoas imaginam”86. Buyst lembra que a liturgia não pode
simplesmente olhar para trás e celebrar fatos do passado. Mesmo fazendo memória
de um fato passado, fazemos isso dentro de um contexto novo, que pede nova leitura
política e teológica, que pede nova atitude, que exige novo compromisso, para que
possamos falar de uma liturgia libertadora.87
Deveria ser prerrogativa do culto cristão denunciar tudo aquilo que desumaniza, que
torna o ser humano menos “à imagem e semelhança” do Criador, que o insere numa rede de
ganância e de poder da qual na maioria das vezes se torna vítima por ser a parte fraca do jogo.
Dois pensamentos sobre as funções da liturgia servirão à guisa de conclusão deste
parágrafo. Buyst diz que
a liturgia tem dupla função: epifânica (manifestadora) e transformadora[...] É um
fato teologal, carregado de energia e presença divina, como reação de Deus e do
povo de Deus à realidade social, política, cultural. É a encarnação da liturgia na vida
e na realidade política.89
86
TURNER, Steve. Cristianismo Criativo?. São Paulo: W4Editora, 2006. p. 68.
87
BUYST, Ione (Org.). Liturgia e política. Cadernos de liturgia. São Paulo: Paulus, 1999. p. 46.
88
GENRE, Ermanno. Il culto cristiano: uma prospettiva protestante. Torino: Cludiana, 2004. p. 212.
89
BUYST, Ione (Org.). Opt cit. p. 47.
90
COSTAS, Orlando. El protestantismo en América Latina hoy. ensayos del camino. San José: INDEF, 1975. p.
105.
35
fáceis ganhos e tão monopolizado por um subjetivismo tão extremado que beira o egoísmo
disfarçado de profunda adoração espiritual, que tem se cantado.
É no culto que a igreja demonstra a sua identidade, seus valores, e semeia o germe de
sua praxis. Dando como pressuposto que entende-se “liturgia a reunião do povo de Deus para
celebrar os atos libertadores de Deus na história dos seres humanos e para anunciar ao mundo
essa mesma libertação”92, é durante esta reunião que o povo de Deus revela o compromisso
para como o outro ser humano e com a criação. Costas afirma que
o culto não somente atualiza o passado e futuro distantes, como também próximos.
[...] Revela até que ponto essa igreja está orientada para o mundo. Indica se essa
comunidade leva a seria sua missão profética, sacerdotal e real (1Pd 2:9,10), se está
integrada ou desligada da sociedade, se concebe o culto como um refugio alienante
o como uma celebração libertadora [...] O culto dramatiza, alem disso, a interação
da igreja com a cultura93.
A dinâmica que a igreja estabelece com a cultura pode, e deve, ser uma relação
biunívoca na qual ambas sejam enriquecidas mutuamente, "de maneira que a mensagem cristã
se torne não desconexa da cultura, não um remendo alheio super-imposto, mas uma linha de
desenvolvimento junto à cultura”94. A Igreja precisa redescobrir-se e colocar-se perante o
mundo como agente do Reino de Deus, denunciando tudo aquilo que representa o anti-reino, e
91
STAUFFER, Anita. El culto cristiano: en procura de adaptación local y universalización. In: ______(Org.).
Dialogo entre culto y cultura: informes de las consultas internacionales. Ginebra: Federación Luterana Mundial,
1994. p. 14.
92
MARASCHIN, Jaci. A beleza da santidade: ensaios de liturgia. São Paulo: ASTE, 1996. p. 133.
93
COSTAS, Orlando. El protestantismo en América Latina hoy: ensayos del camino. San José: INDEF, 1975. p.
6.
94
LONERGAN, Bernard. Method in theology. New York: Herder, 1973. p. 362.
36
aprender da cultura como ser mais brasileira sendo mais cristã. No entanto, Carrier alerta para
a necessidade de reconhecer que a fé é distinta de toda cultura:
a fé em Cristo não é produto de nenhuma cultura; não se identifica com nenhuma
delas; é absolutamente distinta, já que vem de Deus [...] Mas esta distinção entre fé e
cultura não é dissociação. A fé está destinada a impregnar toda cultura humana, a
fim de salvar-las e elevar-las segundo o ideal do Evangelho95.
95
CARRIER, H. Inculturación del evangelio. Disponível em:
http://www.mercaba.org/DicT/TF_inculturacion.htm. Acesso em: 4 nov. 2009.
96
PINHEIRO, Jorge. Deus é brasileiro: as brasilidades e o Reino de Deus. São Paulo: Fonte Editorial, 2008. p.
81.
97
GENRE, Ermanno. Il culto cristiano: uma prospettiva protestante. Torino: Cludiana, 2004. p. 77.
98
MARASCHIN, Jaci. A beleza da santidade: ensaios de liturgia. São Paulo: ASTE, 1996. p. 138.
99
GUROIAN, Vigen. Incarnate Love: essays in orthodox ethics. Notre Dome (Indiana): University of Notre
Dome Press, 1987. p. 71.
37
CONCLUSÃO
O objetivo principal do trabalho foi apresentar a necessidade de contextualização do
culto evangélico brasileiro.
À luz disso, estruturou-se a pesquisa de tal maneira que se mostrassem as raízes
histórico-teológicas da atual conjuntura do culto evangélico no Brasil. Apontou-se para os
limites e as dificuldades do protestantismo de missão e das várias ondas do pentecostalismo
brasileiro no tocante ao culto. Identificou-se o resultado litúrgico destas duas matrizes no
culto dualista, que incorporou as ênfases pietistas e puritanas, resultantes num individualismo
excludente; em conteúdos que apresentam um cristianismo afastado da realidade dos
membros, pouco ou nada preocupado com a inserção dos mesmos na sociedade; uma
musicalidade e uma teologia herdeiras das tradições norte-atlânticas e que mantém confronto
com a cultura brasileira e não respondem aos verdadeiros anseios do povo.
Colocado esse dado histórico, encontrou-se a necessidade de fundamentar
teologicamente as possibilidade de contextualização do culto em suas formas e conteúdos. Ao
invés de procurar uma definição fenomenológica do culto cristão se optou por delinear três
dimensões teológicas que dão fundamento e razão de ser para essa prática da Igreja: através
de uma análise bíblico-sistemática foram apresentadas a dimensão cristológica, salvífico-
escatológica e antropológica do culto cristão. Sendo assim, tentou-se demonstrar que o núcleo
fundamental do culto consegue manter a sua autenticidade ao passo que não se opõe à
contextualização.
O último capítulo apresentou o culto como um evento complexo, tanto na sua natureza
intrínseca, quanto no envolvimento daqueles que dele participam, e apontou para elementos
necessários para que esse se torne mais brasileiro. Se ressaltou o caráter sintético das Artes
que entram a fazer parte do conjunto litúrgico e considerou-se a riqueza que isso representa.
Em seguida, depois de ter brevemente feito clareza entre os termos utilizados (i.e.,
contextualização e inculturação) se optou por apresentar dois temas fundamentais para o
protestantismo brasileiro: a denuncia profética e a implantação do Reino de Deus como
paradigma da salvação da cultura. Se enfatizou a necessidade de encontrar praticas cúlticas
que em seus conteúdos demonstrem a ligação da liturgia com a missão e a ética do povo de
Deus, entendendo-os como parte da mesma tarefa da Igreja para com o mundo.
A pesquisa até aqui desenvolvida tem evidenciado a potencialidade de
contextualização do culto evangélico. Os elementos que o compõem, suas músicas, suas
letras, sua organização podem e devem passar por um processo de avaliação a fim de
conservar o que é autenticamente cristão e libertar-se de toda imposição cultural estrangeira.
38
Muito pode ser aproveitado da cultura brasileira, e sobretudo, muito pode ser dito à cultura
brasileira entendendo a Igreja como agente do Reino de Deus.
Contudo, percebe-se a necessidade de ulterior indagação no tangente ao culto como
primeiro lugar de formação ética do povo cristão: ética para com o outro ser humano e para
com a Criação, como conteúdos necessários para a adoração do povo de Deus. Alem disso,
evidenciou-se a necessidade de elaborar uma correlação hermenêutica entre a liturgia e a vida,
entendidas como grandes narrativas da existência humana, para a construção de uma teologia
do culto brasileira.
Finalmente, espera-se que este ensaio possa contribuir para o crescimento do povo de
Deus, para a propagação do Reino; para que floreça uma igreja evangélica mais brasileira,
sendo mais humana e autenticamente cristã.
39
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