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Marion Minerbo
2 Em seu livro de 2002, “Idées directrices pour une psychanalyse contemporaine”, Green dá uma visão
de conjunto de suas ideias.
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O segundo motivo é que a teoria sobre a neurose está, de fato, desatualizada. Ela
continua a ser pensada quase que exclusivamente em termos intrapsíquicos: pulsão,
conflito, angústia, recalque, etc. Mesmo quando a teoria relaciona a neurose ao fracasso
na travessia edipiana, não há um espaço claro para se pensar de que maneira a
subjetividade do objeto poderia favorecer, ou prejudicar, essa travessia. Nem como o
inconsciente do objeto poderia participar na produção dos pontos de fixação, aos quais o
sujeito regride em função do bloqueio edipiano.
Quando a criança descobre que não é a fonte de sua própria satisfação, passa a
exigir que o objeto lhe proporcione a gratificação absoluta. Em resposta a tais demandas
desmesuradas, o adulto precisa dar respostas adequadas, isto é, que contribuem para
3 Laplanche (1987) foi o primeiro a falar de como os significantes enigmáticos ligados à sexualidade
inconsciente dos pais entram tanto na constituição normal do psiquismo quanto na psicopatologia.
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apaziguar a excitação infantil. Essa é a condição para que a criança consiga encontrar
saídas simbólicas para aquilo que desejaria realizar em ato. Esses aspectos da
sexualidade infantil podem então ser integrados, e fazer parte de forma harmoniosa da
vida erótica do adulto.
Ora, isso não apenas gratifica a criança, como a excita ainda mais. A fome da
criança se junta com a vontade de comer do adulto, e vice-versa. Instala-se uma situação
de gratificação recíproca e complementar que tende ao paroxismo. Qualquer que seja a
natureza da gratificação, e qualquer que seja o genitor, o desejo da criança fica
capturado na sexualidade do adulto. Esta é, a meu ver, a dinâmica intersubjetiva que
chamamos de incesto.
Na releitura que estou propondo, a angústia que leva ao recalque tem a ver com
o caráter desorganizador do excesso de excitação gerado em uma situação intersubjetiva
incestuosa. Sendo assim, o recalque incide sobre representações do desejo que não são
só da criança, como pensava Freud. Nem só do adulto, como propõe Laplanche com a
noção de significantes enigmáticos. O recalque incide sobre o amálgama formado por
representações do desejo que se originam no campo intersubjetivo constituído por
4 Roussillon (1999) diferencia trauma primário e secundário. O primeiro leva ao funcionamento psicótico
porque impede a simbolização primária, isto é, a transformação dos traços mnésicos da experiência, em
representações-coisa. O segundo produz o sofrimento neurótico porque prejudica a simbolização
secundária, que é a transformação de representações-coisa em representações de palavra. Mas é
importante sublinhar que a situação subjetiva ligada ao traumatismo secundário foi vivida, foi
representada e secundariamente recalcada.
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elementos da sexualidade inconsciente da criança e dos pais. Essas são, a meu ver, as
representações intoleráveis de que falava Freud.
Comento que isso parece a “Seita do Bolo”. O bebê já está convidado. Lembro
que ela comentou que a mãe tem medo da vida fora de casa, talvez se sinta protegida no
aconchego da cozinha.
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Ela acrescenta que a vida da mãe se restringe ao trabalho e à casa. Não tem
prazer em sair, em estar com amigos, a relação com o parceiro é pobre. Em
compensação, ser mãe e preparar os aniversários dos filhos são, e sempre foram, os
grandes prazeres da vida dela. Começavam a enrolar os brigadeiros com um mês de
antecedência. Era uma delícia.
Essas conversas são uma forma de repetição, de agir sobre mim, de me convidar
a “fazer bolo” com ela, excluindo os “analistas conservadores”. Era importante
acompanhá-la discretamente, comentar algo aqui e ali, mas deixando claro que eu não
pretendia criticar meus colegas. A fome dela não encontra minha vontade de comer. Um
dia, volta de viagem muito feliz porque conseguiu se manter na dieta comendo
morangos deliciosos. Escuto isso como a descoberta do prazer possível fora da Seita do
Bolo.
Em vez de ajudar a criança a apaziguar sua excitação oral, para que possa ser
integrada, esta mãe excita ainda mais a criança, na medida em que atua questões ligadas
à sua própria sexualidade. Esta, por sua vez, não consegue integrar o erotismo oral para
que se torne uma possibilidade harmoniosa como o da amiga, e precisará recalcá-lo. O
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Vimos até aqui como o ponto de fixação oral traz as marcas do campo
intersubjetivo incestuoso no qual se originou. O mesmo vale para o erotismo anal e
fálico. Gostaria agora de abordar a travessia do édipo considerando o par pulsão-objeto.
De que maneira a resposta parental às tentativas da criança de “fazer par” com um dos
genitores, excluindo o outro, favorecem ou dificultam a travessia do Édipo?
Fui jantar na casa de uns amigos. A filha de 5 anos do anfitrião estava acordada.
Lá pelas tantas ela aparece na sala com batom vermelho na boca. Todos acharam uma
gracinha. Em seguida aparece com os olhos pintados. Todos acharam uma gracinha. Na
sequência, ela vem com a bochecha toda pintada de vermelho, mas aí já era um exagero,
uma caricatura. Gentilmente, o pai lhe disse que agora ela já tinha mostrado como era
bonita, e que estava na hora de ir para cama, pois o jantar era para os adultos.
O que acontece quando o adulto atua com a criança suas questões edipianas
recalcadas?
João deseja ardentemente uma mulher muito bonita. Mas nem ousa se aproximar
dela pois, segundo ele, é muita areia para seu caminhãozinho. Simplesmente não é uma
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mulher para o seu bico. Embora ela não ocupe “objetivamente” uma posição
assimétrica, ele a vê como inatingível, isto é, como um equivalente edipiano.
A inibição sexual tem sua razão de ser: em sua fantasia, a relação genital com ela
produziria uma espécie de orgasmo cósmico. O termo descreve a experiência de prazer
excessivo, perigoso e desorganizador, indicando que se trata da realização do desejo
com o equivalente edipiano. O termo “muita areia” nos dá notícias desse excesso, e o
termo “caminhãozinho” não deixa dúvidas quanto à posição infantil que ele ocupa
frente a ela. Por isso o superego tem razão em afirmar que ela “não é para o bico dele”:
de fato, para o neurótico, a mulher que ele deseja sempre representa a mãe, e por isso é
para o bico do pai.