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Análise de discurso crítica: reflexões teóricas e epistemológicas quase


excessivas de uma analista obstinada

Chapter · November 2017

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Viviane De Melo Resende


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A Editora não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta publicação.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Resende, Viviane de Melo. / Regis, Jacqueline Fiuza da Silva (Orgs.)


Outras perspectivas em análise de discurso crítica
Viviane de Melo Resende / Jacqueline Fiuza da Silva Regis (Orgs.) -
Campinas, SP : Pontes Editores, 2017

Bibliografia.
ISBN 978-85-7113-913-8

1. Análise de discurso crítica 2. Linguística I. Título

Índices para catálogo sistemático:

1. Análise de discurso crítica - 410


2. Linguística - 410
Copyright © 2017 - das organizadoras representantes dos colaboradores
Coordenação Editorial: Pontes Editores
Editoração: Eckel Wayne
Imagem de Capa: "Inverno no Cerrado" de Dan Quínamo

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2017 - Impresso no Brasil


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.......................................................................................... 7

1 - ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA: REFLEXÕES TEÓRICAS E EPISTEMOLÓGICAS


QUASE EXCESSIVAS DE UMA ANALISTA OBSTINADA................................. 11
Viviane de Melo Resende

2 - (CON)TEXTOS DE VIOLAÇÃO E RESISTÊNCIA: UM ESTUDO EM ANÁLISE


DE DISCURSO CRÍTICA SOBRE O CASO MICHELE MAXIMINO ................. 53
María del Pilar Tobar Acosta

3 - QUÃO CRÍTICA É A ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA?........................... 103


Margarete Jäger

4 - “VOCÊ TEM MEDO DE QUÊ?”: A DENORMALIZAÇÃO DO DISCURSO SOBRE


O MEDO DO PARTO.................................................................................... 131
Jacqueline Fiuza da Silva Regis

5 - O MÉTODO SINCRÔNICO-DIACRÔNICO PARA ANÁLISE DE TEXTOS E A TEORIA


DOS DESLOCAMENTOS.............................................................................. 173
María Laura Pardo

6 - APLICANDO O MÉTODO SINCRÔNICO-DIACRÔNICO DE ANÁLISE


LINGUÍSTICA DE TEXTOS .......................................................................... 199
Gersiney Pablo Santos

SOBRE AS AUTORAS E O AUTOR................................................................ 231


Outras perspectivas em análise de discurso crítica

APRESENTAÇÃO

É amplamente reconhecido que o marco inicial da análise


de discurso crítica tenha se dado em uma reunião acadêmica,
em 1991, em que estavam presentes Teun van Dijk, Norman
Fairclough, Gunther Kress, Theo van Leeuwen e Ruth Wodak.
De lá para cá, já se vão mais de 25 anos, mas os mesmos nomes
seguem associados às mais reconhecidas versões desse campo
heterogêneo sob o rótulo da ADC. Entre esses pesquisadores e
pesquisadora, há um holandês, dois britânicos, um australiano
e uma austríaca, mas com um aspecto em comum: a tradição de
publicação em língua inglesa.
Acreditamos que a publicação em inglês tenha sido central
para a consolidação desse grupo como o núcleo teórico e meto-
dológico da análise de discurso crítica, e temos um argumento
adicional para defender essa posição: no mesmo seminário, em
Amsterdã, também estava presente Siegfried Jäger, da escola de
análise de discurso de Duisburg, na Alemanha, mas seu nome
raramente aparece nas menções ao encontro inaugural da ADC.
Ele publica principalmente em alemão, e embora seja reconhe-
cido em seu país, seu pensamento chegou escassamente até
nós. Trazendo a questão para mais perto do contexto latino-
americano, muito também se tem publicado nesses 25 anos,
em análise de discurso crítica, em espanhol e português, mas a
política linguística da produção científica não valora da mesma
maneira o que se publica localmente, e isso devemos também à
colonialidade do saber.

7
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Neste livro, queremos reunir outras perspectivas em análise


de discurso crítica, deixando ecoarem outros modos de com-
preender e fazer pesquisas nesse campo. São textos teóricos e
metodológicos de mulheres que pensam os estudos críticos do
discurso a partir de outros lugares, e textos de aplicação dessas
abordagens por pesquisadoras e pesquisador que empreenderam
um esforço de ilustração dessas perspectivas com seus dados de
pesquisa. Assim, o livro se organiza intercalando três capítulos
de apresentação de teorias de discurso e métodos de análise
discursiva, assinados por pesquisadoras do Brasil, da Argentina
e da Alemanha, e três capítulos de aplicação dessas teorias e
métodos a contextos locais brasileiros. As abordagens foram
organizadas da mais teórica à mais metodológica, mas sempre
assumindo que todas elas articulam teoria e método, embora de
modos distintos.
O primeiro capítulo é de autoria de Viviane de Melo Resende,
que apresenta em seu capítulo “reflexões teóricas e epistemo-
lógicas” que considera “quase excessivas” e que visam compilar
as reflexões resultantes de sua atuação como pesquisadora do
discurso na última década. Nesse intuito, a autora retoma teorias
já amplamente recepcionadas entre nós agregando contribuições
próprias e propondo “um mapa ontológico mais complexo”, cujo
ponto de partida é o modelo de pesquisa crítico-discursiva pro-
posto por Chouliaraki e Fairclough. Considerando sua experiência
analítica e as necessidades que sentiu em suas investigações,
assim como aquelas percebidas por estudantes com quem traba-
lhou, a autora busca alcançar um mapa epistemológico mais claro,
além de expor ideias metodológicas que, oxalá, “também possam
ser úteis a outras pesquisadoras e pesquisadores dedicados aos
estudos críticos do discurso”. Essa abordagem para análise de
discurso crítica é em seguida, no segundo capítulo, aplicada
por María del Pilar Tobar Acosta, no capítulo “ (Con)textos de
violação e resistência: um estudo em análise de discurso crítica
sobre o caso Michele Maximino”. Apropriando-se do exposto no

8
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

capítulo anterior, em seu texto Acosta discute “como o discurso


operado pelo prisma da violência e, em oposição, pelo paradigma
da solidariedade, tem o potencial de tecer a realidade social”.
O segundo par de capítulos oferece um vislumbre à produ-
ção alemã, especialmente da Escola de Duisburg, em análise de
discurso crítica. Essa escola tem tradição no estudo discursivo
crítico de grandes corpora de dados, especialmente dados de
imprensa, focalizando a representação de minorias étnico-raciais
e questões de gênero. Sua principal característica é o radical
questionamento da separação entre o fazer acadêmico e a mili-
tância política. Em seu capítulo, Margarete Jäger busca explicar
essa abordagem de inspiração foucaultiana. O capítulo recebeu o
intrigante título “Quão crítica é a análise de discurso crítica?”, e
nele sua autora apresenta um “esboço da abordagem de discurso,
teórica e analítica, segundo a qual projetos empíricos tendo como
foco discursos políticos, midiáticos e cotidianos são concebidos
e levados a cabo no Instituto de Pesquisa Linguística e Social de
Duisburg (DISS)”. A aplicação da abordagem teórico-metodológica
de Jäger ficou a cargo de Jacqueline Fiuza da Silva Regis, que já
havia utilizado o trabalho da Escola de Duisburg como inspiração
em sua tese doutoral. No capítulo “‘Você tem medo de quê?’:
a denormalização do discurso sobre o medo do parto”, Regis
apresenta análises sobre a representação discursiva de questões
relacionadas ao parto e ao nascimento no Brasil, especialmente
em termos de violência obstétrica e da resistência de mulheres a
essa violência. Levantando enunciados associados ao discurso do
medo do parto, Regis percorre os conceitos centrais da aborda-
gem de Duisburg, e os desvenda para o público brasileiro, ainda
não familiarizado com essa perspectiva analítica.
Por fim, a abordagem metodológica formulada por María
Laura Pardo, reconhecida pesquisadora argentina, e sua aplicação
por Gersiney Pablo Santos fecham o livro. No quinto capítulo, in-
titulado “O método sincrônico-diacrônico para análise de textos

9
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

e a teoria dos deslocamentos”, Pardo nos oferece uma síntese


do método para análise linguística que desenvolveu e de suas
implicações na proposição de uma teoria dos deslocamentos.
Assumindo uma postura indutiva na produção de conhecimento,
Pardo sustenta seu método como teoria básica e instrumento ca-
paz de “alcançar as representações sociais que se constroem dis-
cursivamente”. A aplicação dessa proposta teórico-metodológica
é em seguida realizada por Santos, no sexto e último capítulo
deste livro, intitulado “Aplicando o método sincrônico-diacrônico
de análise linguística de textos”. Sua tese de doutorado, co-
orientada por Laura Pardo, foi o primeiro trabalho defendido no
Brasil com o suporte do método sincrônico-diacrônico, e assim
Santos nos mostra os caminhos desse exercício analítico, utili-
zando dados de sua pesquisa junto ao Movimento Nacional da
População em Situação de Rua.
Nossa expectativa com esta obra é trazer à tona abordagens
não canônicas de análise de discurso crítica, destacando suas
potencialidades por meio de sua aplicação a dados situados. As-
sim, as perspectivas teóricas e metodológicas são construídas de
forma mais abstrata por suas autoras, de modo a situar cuidado-
samente os conceitos e as teorias que as embasam, estabelecendo
diálogos com abordagens já conhecidas do público brasileiro,
para em seguida serem postas em marcha, quando aplicadas a
dados e contextos também cuidadosamente situados. Já sabemos
que a análise de discurso crítica é um campo heterogêneo; agora
veremos a heterogeneidade em outras direções.

Viviane Resende e Jacqueline Regis


Em agosto de 2017, o mês em que Nina veio ao mundo.

10
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA:


REFLEXÕES TEÓRICAS E EPISTEMOLÓGICAS
QUASE EXCESSIVAS DE UMA ANALISTA OBSTINADA

Viviane de Melo Resende

INTRODUÇÃO: POR ONDE VAMOS

Neste capítulo, apresento algumas reflexões teóricas e epis-


temológicas – que necessariamente levam também a reflexões
metodológicas – decorrentes de meus projetos de pesquisa da
última década, mas que ainda não haviam sido organizadas na
forma de um texto único.
Parto, na primeira seção, de referenciais teóricos já legiti-
mados acerca do funcionamento da sociedade (Bhaskar, Harvey),
da linguagem (Halliday) e da linguagem na sociedade (Fairclou-
ch). Sem a pretensão de negá-los – como já escrevi em Resende
(2013) –, espero trazer, na segunda seção deste capítulo, alguma
contribuição para um delineamento do funcionamento social da
linguagem, construindo um mapa ontológico mais complexo,
embora, creio, mais claro. Para isso, lanço mão das muito profí-
cuas parcerias com Viviane Vieira (que antes assinava RAMALHO;
RESENDE e RAMALHO, 2013; RAMALHO e RESENDE, 2011; VIEIRA
e RESENDE, 2016), com Pilar Acosta (ACOSTA e RESENDE, 2014)
e com Elaine Mateus (MATEUS e RESENDE, 2015).

11
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Em seguida, na terceira seção, retomo o modelo episte-


mológico básico para pesquisas em análise de discurso críti-
ca desenvolvido por Chouliaraki e Fairclough (1999) e tento
reelaborá-lo, conforme minhas necessidades me apontaram em
pesquisas já realizadas e conforme acredito ter sido também
a necessidade de muitas e muitos estudantes na dura apren-
dizagem da ADC. Meu esforço de reelaboração vai na direção
do reconhecimento da necessidade de maior clareza em um
mapa epistemológico e também de ênfase na recursividade
fundamental entre seus ciclos.
Como decorrência necessária desses conjuntos de reflexões,
também apresento algumas ideias metodológicas que me têm
sido úteis em meu exercício analítico, na esperança de que tam-
bém possam ser úteis a outras pesquisadoras e pesquisadores
dedicados aos estudos críticos do discurso.

1. FUNCIONAMENTO SOCIAL DA LINGUAGEM: DOS PONTOS DE
PARTIDA

A análise discursiva crítica sustenta-se como aparato


para a explanação de problemas sociais particulares quando
defende que a linguagem mantém um tipo especial de relação
com outros elementos sociais (FAIRCLOUGH, 2001), já que os
textos que formulamos – parte fundamental dos modos como
agimos na sociedade – não apenas são efeitos das situações
sociais imediatas em que ocorrem, mas também têm efeitos
sobre elas. Mais que isso, relacionam-se também a conjunturas
sociais mais amplas, porque a vida social é um sistema aberto
em que redes de práticas particulares configuram conjuntu-
ras, e as práticas em articulação se influenciam mutuamente
(HARVEY, 1992).

12
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Aspecto básico desse entendimento é a presença da lingua-


gem, em maior ou menor medida, em todas as práticas sociais.
A participação da linguagem em diferentes práticas pode dar-se
de maneira direta, na configuração mesma das práticas, ou na
forma de reflexividade sobre as práticas, como já sustentam
Chouliaraki e Fairclough (1999). Aí se constrói uma ontologia
da linguagem na sociedade segundo a qual a ação discursiva
é parte indissociável dos modos de ação institucionalizados e
situados no tempo e no espaço. Se a vida social constitui-se
de práticas – como defende David Harvey (1992) –, essas prá-
ticas incluem, no rol de suas potencialidades, a ação discursiva
também socialmente regulada (RAMALHO e RESENDE, 2011;
VIEIRA e RESENDE, 2016). David Harvey teorizou as práticas
sociais como compostas de momentos em relações de relati-
va estabilidade – formas de atividade, pessoas (com crenças,
valores, desejos, histórias), relações sociais e institucionais,
tecnologias, tempos e espaços, linguagem e outras formas de
semiose –, sustentando que esses momentos da prática social
se entrecruzam em relações de interiorização.
Chouliaraki e Fairclough (1999) tomaram essa teoria so-
cial como base para uma recontextualização teórica relativa
ao papel da linguagem na configuração das práticas sociais,
sugerindo as práticas sociais como compostas de quatro mo-
mentos em articulação – discurso, fenômeno mental (incluindo
crenças, valores, desejos e ideologias), atividade material,
relações sociais – e, com base no funcionalismo de Halliday
(1994), detalharam os momentos internos do aparato semió-
tico das práticas:

13
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 1: Os momentos da prática social segundo Chouliaraki e Fairclough (1999).

Fonte: baseado em Resende (2012, p. 105).

A proposição de Fairclough dos três significados do discurso


– acional, representacional e identificacional – e dos elementos
a eles associados – respectivamente gêneros, discursos e estilos
– como momentos internos do momento discursivo de práticas
sociais decorre da reconfiguração das metafunções da linguagem
delineadas por Halliday na linguística sistêmica funcional. Já sa-
bemos que, no caso da versão de ADC proposta nos trabalhos de
Fairclough, muitas categorias analíticas são oriundas da linguística
sistêmica funcional, e não se deve minimizar a influência teórica
desse aparato linguístico para a formulação mesma da teoria do
funcionamento social da linguagem. Para além da questão das
categorias linguísticas utilizadas como ferramentas de análise,
a compreensão da organização da linguagem e de sua natureza
funcionalmente complexa alimenta-se do pensamento de Halliday
– e isso implica, como já ressaltamos em Alexandre e Resende
(2015), que a articulação entre a análise de discurso crítica e a
linguística sistêmica funcional não é apenas metodológica, mas
também teórica.

14
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

A pedra basilar que sustenta o argumento em torno da re-


levância dos estudos críticos do discurso – isto é, do estudo de
problemas sociais com foco em seu aparato semiótico – é que
o uso situado da linguagem, ao produzir textos, que são parte
do resultado de eventos sociais, têm efeitos causais, gerando
mudanças em nosso conhecimento sobre o mundo e, consequen-
temente, em nossas crenças e atitudes a respeito desse mundo
(FAIRCLOUGH, 2003). Uma vez que a relação entre estrutura e
ação social é transformacional (BHASKAR, 1998), essas mudanças
não são previsíveis, e seu estudo científico não diz respeito à
busca por regularidades.
A percepção da relação entre estrutura e ação como trans-
formacional nessa versão de ADC é caudatária do realismo crí-
tico, desenvolvido por Bhaskar. De acordo com a compreensão
crítico-realista da vida social, entendem-se estruturas sociais
como configurações prévias à ação, que dotam a ação de recursos,
mas também a constrangem, ou seja, constroem potencialidades
entre as quais se selecionam aquelas que serão materializadas
em eventos concretos; e as ações, portanto, embora sejam go-
vernadas por estruturas sempre previamente dadas, carregam
o potencial de transformação das configurações estruturais, ao
longo do tempo. Isso significa dizer algo muito mais simples do
que parece: que em nossa ação no mundo somos socialmente
constrangidos/as – devemos nos movimentar no quadro de po-
tencialidades dadas por um contingenciamento estruturante que
à vez potencia e constrange o que podemos fazer/dizer, e como –,
mas sem determinismos, já que nos movimentamos num quadro
de relativa liberdade para agir criativamente no quadro das poten-
cialidades que governam nossa ação no mundo (ARCHER, 2000).
Embora haja constrangimentos sociais definidos nas estru-
turas e práticas sociais, os atores sociais são dotados de liberda-
de relativa, e assim podem estabelecer relações inovadoras na
(inter)ação, exercendo sua criatividade e modificando práticas

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

estabelecidas. É isso o que significa dizer que a vida social é um


sistema aberto, que embora estruturado permanece passível de
transformação por meio da ação situada. Esses são os argumentos
que sustentam o Modelo Transformacional da Atividade Social
(MTAS), ilustrado na Figura 2:

Figura 2: Modelo Transformacional da Atividade Social. Baseado


em Bhaskar (1998, p. 217).

Fonte: em Resende (2009, p. 27).

Acreditar na possibilidade de estabelecimento de relações


inovadoras em nossa ação no mundo não é o mesmo que celebrar
uma liberdade absoluta. Dizer que a liberdade é relativa significa
reconhecer a existência também de pressões pela manutenção
de configurações estruturantes, o que se associa à noção de
poder como controle. Discutir poder como controle exige uma
apreensão do funcionamento da linguagem na sociedade, e esse
argumento, já vimos, sustenta a relevância dos estudos críticos
do discurso. Sobre isso, podemos lançar mão dos escritos de van
Dijk (2001), que chama atenção para o fato de que grupos sociais
particulares são detentores de maior poder quando são aptos a
controlar ações de outros grupos, isto é, quando são capazes
de definir as bases relativas para a ação social, por exemplo
controlando instituições do aparato de governança ou, muito
especialmente, controlando instituições desenhadas para carregar
discursos em formas genéricas de grande dispersão no espaço e
no tempo, como é o caso dos meios massivos de comunicação
(PARDO ABRIL, 2008).

16
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Mas apesar dessas instituições que pressionam na direção da


manutenção de estados de coisas, sabemos que as coisas mudam.
Se isso ocorre é porque, assim como há pressões por manuten-
ção, há também pressões por mudança. A dinâmica da mudança
social na luta sobre configurações de estabilidade relativa inclui,
de forma central, os discursos sobre o que “as coisas” são, assim
como os discursos sobre como são feitas, como devem ser com-
preendidas e avaliadas, e mais que isso: há ainda o fato de que
é também por meio da linguagem que agimos sobre “as coisas”,
e que esses modos discursivos de ação não são sem importân-
cia – é por tudo isso que a investigação de problemas sociais
não pode prescindir do discurso. Isso pode parecer evidente, e
tem sido tomado como dado nos estudos sociais desde a virada
discursiva, mas a relevância da relação interna entre linguagem
e sociedade ainda tem sido palco de disputa no campo dos es-
tudos linguísticos.
Temos de lembrar que o discurso é também socialmente
estruturado, e isso nos resguarda de uma compreensão simplista
sobre o poder da linguagem. Nossa liberdade (inclusive de dizer,
de escrever, de replicar, e até de compreender) é sempre relativa,
porque precisamos nos movimentar em quadros estruturantes
que precedem nossa ação no mundo. Considerando que estrutu-
ras sociais sempre antecedem ações, inclusive ações discursivas,
então as estruturas com as quais lidamos no momento de nossa
ação no mundo são “conformadas por ações de outros atores que
[nos] antecederam”. Pensando nisso, propus (RESENDE, 2009, p.
28) “uma relação temporal (em termos de sincronia/diacronia)
entre os dois elementos da recursividade estrutura/agência”, que
sintetizei na seguinte figura:

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 3 – Relação sincrônica/ diacrônica entre estrutura e ação.

Fonte: em Resende (2009, p. 28).

De novo, isso é menos complicado do que parece, mesmo


estando longe de ser banal. Significa dizer que nossa ação é
regulada por mecanismos que à vez constrangem e permitem
nossas ações (potencialmente transformadoras dos mesmos
mecanismos); mecanismos que são resultado de ações que an-
tecedem as nossas, e de que nos apropriamos. Para Mateus e
Resende (2015, p. 440),

a relação entre prática objetivada – isto é, aquela que


se apresenta para os indivíduos e grupos como me-
canismos estruturais que possibilitam-constrangem
suas ações – e prática objetivante – ou seja, ação
humana que reproduz e transforma a sociedade –
não é linear. De fato, a historicidade se realiza em
movimentos cíclicos que, no entanto, nunca retornam
ao mesmo ponto e tampouco da mesma forma. Tam-
bém nunca são inteiramente diferentes do anterior,
mantendo traços da prática objetivada, ainda que em
circunstâncias radicalmente transformadas.

Foi por isso que propusemos outra representação imagé-


tica dessa síntese dos movimentos históricos da recursividade
estrutura/ agência:

18
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 4: Movimentos históricos de reprodução e transformação social.

Fonte: em Mateus e Resende (2015, p. 440).

Em nosso artigo “O sistema posição-prática como categoria


epistemológica: contribuições para a Análise de Discurso Crítica”,
explicamos a figura, sugerindo que o movimento espiral repre-
senta “os fios [que] se entrecruzam na conformação de práticas
objetivadas que constituem redes de possibilidades e constran-
gimentos para a ação humana que, por sua vez, reconfigura o
tecido social numa perspectiva de transformação-permanência”
(MATEUS e RESENDE, 2015, p. 440). As estruturas (E1, E2, e as-
sim por diante) foram posicionadas nos diferentes tempos, na
parte de cima da figura, para sinalizar seu caráter abstrato de
potencialidades que podem ser alçadas sincronicamente ao nível
realizado (por meio da ação). O nível do realizado, da ação (A1, A2,
e assim por diante), é representado abaixo, no plano do evento
concreto. Explicamos ainda:

As linhas descendentes indicam que, em sincronia,


as estruturas proveem recursos e constrangimentos
para a ação situada; assim é que essas linhas ligam
estrutura e ação sempre em um mesmo tempo
(E1-A1, E2-A2, ...). As linhas ascendentes pontilhadas

19
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

indicam, por outro lado, a relação diacrônica, isto é,


as possibilidades de transformação-reprodução de
estruturas pela ação situada, mas sempre em tempos
diferentes: a ação em A1 resulta na estrutura em E2, e
assim sucessivamente. O modelo é transformacional
por compreender essa assimetria entre as estruturas
que governam a ação, sempre prévias e conformadas
em ações anteriores, e a própria ação que governam.
Por isso temos que a ação em A1 é estruturada por E1,
mas carrega o potencial de transformar E1 em E2. Por
fim, destacamos que nossa linha tracejada não tem
um início definido, o que ilustra nossa incapacidade
de localizar, como num mito de Eva, um ‘ponto zero’.
(MATEUS e RESENDE, 2015, p. 440).

Sei que tudo isso é complexo, mas não se pretende hermé-


tico. Então, o que significa em termos analíticos? Mais imediata-
mente, significa que análises discursivas críticas devem atentar
para a estruturação da ação e para a ação estruturada, ou seja, para
a ordem de discurso e para a interação, como já disseram Chou-
liaraki e Fairclough (1999). Mas implica também que uma onto-
logia assim complexa do funcionamento da sociedade conforme
Harvey e Bhaskar e do funcionamento da linguagem na sociedade
conforme Halliday e Fairclough exige uma epistemologia também
complexa, perspectiva que já tenho pontuado por exemplo, em
Resende (2009). Nos textos, que são rastro e resultado de nossa
ação discursiva em eventos, materializamos gêneros – modos
de ação discursiva – e discursos – modos de representação do
mundo por meio dos quais reconstruímos discursivamente nossa
experiência no mundo, e nos identificamos no mundo (estilos)
(FAIRCLOUGH, 2003). Os textos que produzimos e com que
lidamos em nossas experiências de socialização são resultado
das conjunturas e situações sociais em que se engendram, das
práticas de que participam, das convenções semióticas, mas tam-
bém têm efeitos sobre essas articulações, sempre temporárias,
de elementos sociais e discursivos.

20
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

2. POR UM REFINAMENTO DO MAPA ONTOLÓGICO: DOS CAMINHOS


PERCORRIDOS

Nos últimos anos, dando aulas e escrevendo sobre ADC,


tenho refletido sobre um mapa ontológico coerente com as pro-
postas teóricas da ADC, e capaz de trazer mais clareza ao aparato
epistemológico que precisamos engendrar a fim de planejar,
também coerentemente, os desenhos metodológicos de nossas
pesquisas. Amadurecidas várias ideias, e assumidas as corres-
pondentes dívidas com colegas e estudantes da Universidade
de Brasília, sugiro representar essa teorização da linguagem na
sociedade no mapa ontológico que apresentarei adiante. Trata-
se de um mapa ontológico que não coincide com a proposta de
Chouliaraki e Fairclough (1999) nem com o Modelo Transformacio-
nal da Atividade Social proposto por Bhaskar (1998): uma reflexão
que, embora baseada nas propostas citadas, as recontextualiza
em um mapa ontológico distinto.
Há muito que explicar sobre as motivações e implicações
das alterações propostas nos modelos que me servem de base.
Em primeiro lugar, é preciso explicar que, além das noções e
conceitos fundadores já citados de Harvey, Bhaskar, Chouliaraki
e Fairclough – e de suas modificações anteriores em trabalhos
meus com Viviane Vieira e com Elaine Mateus –, o mapa ontoló-
gico que proponho adiante também tira proveito da perspectiva
estratificada da realidade social proposta no realismo crítico
(BHASKAR, 1998), e que já discuti também em Resende (2009). O
realismo crítico diferencia-se de uma abordagem realista ingênua
pela proposição de uma ontologia estratificada do mundo social,
segundo a qual existem três estratos da realidade: o potencial, o
realizado e o empírico. Assim:

21
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 5: Estratificação da realidade no RC.

Fonte: em Vieira e Resende (2016, p. 33), adaptado de Bhaskar (1998, p. 41).

O estrato do potencial inclui tudo o que existe e que, por-


tanto, é ontologicamente real – todas as coisas do mundo e suas
estruturas e mecanismos, suas naturezas, suas predisposições. O
importante aqui é reconhecer a existência ontológica de objetos
e estruturas mesmo que não sejam empiricamente acessíveis
para nós em um momento dado, mesmo quando não temos
sequer conhecimento de sua existência ou compreensão de sua
natureza (SAYER, 2000). Em outras palavras, reconhecer que algo
abstrato, como estruturas das quais só temos conhecimento por
seus efeitos em eventos, é ontologicamente real em sua potência,
com propriedades também reais, mesmo que desconhecidas ou
inacessíveis para nossa intelecção. Tão importante quanto: há
interesse pelo que existe de fato, mas também pelo que existe
como potencialidade, mesmo que, para além de não nos ser
acessível intelectualmente, não se realize em um dado momento.
Ou seja, o potencial inclui os eventos realizados e as experiên-
cias empíricas, mas também inclui o que existe apenas como
potência, mesmo que não se torne realizado (por contingências
contextuais) ou não nos seja empiricamente dado. O segundo
estrato, o do realizado, refere-se aos eventos que se realizam
de fato, como resultado das potências existentes, no estrato do
potencial, cotejadas com as contingências sociais e históricas.
Trata-se do estrato da realidade referente à realização, à mate-
rialização, à concretização do potencial em evento. O empírico,
por fim, define-se como domínio da experiência sensível e da
observação, daquilo que conseguimos captar – graças a nossos

22
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

sentidos e aos eventos de que participamos ou de que somos


testemunhas – dos efeitos das estruturas, das potencialidades e
das realizações.
Em Vieira e Resende (2016, p. 34, grifos no original), exem-
plificamos com base na linguagem:

podemos associar o sistema semiótico (a potenciali-


dade para significar) com o domínio do potencial e,
por outro lado, os sentidos de textos com o domínio
do realizado (o significado). O realizado é o domínio
dos eventos que passam ou não por nossa experiên-
cia. O empírico, por sua vez, é o domínio das expe-
riências efetivas, a parte do potencial e do realizado
que é experienciada por atores sociais específicos.
Neste caso, o exemplo seriam os textos (orais, escri-
tos, visuais, multimodais) com que de fato tivemos
contato em nossa vida.

Segundo Fairclough, Jessop & Sayer (2002), o potencial e o


realizado são dimensões ontológicas, são estratos referentes ao
ser; enquanto o empírico é uma dimensão epistemológica, do
conhecer. Em realismo crítico, entende-se que nossa capacidade
de observar (empírico) o que se realiza em eventos (realizado)
não esgota o que poderia existir (potencial) ou de fato existe
(realizado), o que significa dizer que o empírico não corresponde
nem ao potencial nem ao realizado, pois “a realidade é constituída
não apenas de experiências e do curso de eventos realizados, mas
também de estruturas, poderes, mecanismos e tendências – de
aspectos da realidade que geram e facilitam eventos realizados
que nós podemos (ou não) experienciar” (BHASKAR e LAWSON,
1998, p. 5). Essa distinção entre os estratos ontológicos (poten-
cial, realizado) e epistemológico (empírico) pode ser ilustrado
na figura a seguir:

23
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 6: Estratos ontológicos (potencial, realizado) e epistemológico


(empírico) em RC.

Fonte: em Acosta e Resende (2014, p. 129).

Assim, nos termos de nosso mapa ontológico na Figura 7, a


seguir, distinguir entre potencial e realizado significa “reivindicar
um status de realidade para as estruturas sociais – que embora
não sejam diretamente observáveis podem ser conhecidas por
seus efeitos em eventos”(RESENDE, 2009, p. 21), mas também
significa ter clareza entre o que se propõe como potência e o
que se pretende investigar como efeito dessa potencialidade;
e muito especialmente: o que se considera como possibilidade
empírica de acesso aos elementos ontológicos que se pretende
focalizar em uma investigação:

24
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 7: Mapa ontológico do funcionamento social da linguagem.

Fonte: elaboração própria, inédito.

Nessa Figura 7, tudo o que diz respeito às estruturas e às


práticas sociais que organizam essas estruturas em relação aos
campos da atividade humana – ou às esferas da atividade humana,
como preferiu Bakhtin (1997) – está considerado no estrato no po-
tencial, já que se trata de ordenações que existem como potência
e que só se realizam, conforme as contingências contextuais, no
evento materializado. Por isso os eventos são compreendidos no
estrato do realizado, do que dessa potencialidade se realizou em
um dado espaço-tempo. As práticas sociais definem-se na inter-

25
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

relação de seus elementos constituintes, e os eventos realizados


também se constituem de elementos, mas esses dois conjuntos
não se confundem: os elementos constituintes da prática são
elementos de potência, e os elementos do evento são realizações
dessa potência, tal como os próprios eventos são realização da
potência prevista na prática que realizam.
Destaco as estruturas sociais de classe, gênero, sexualidade,
raça, etnia, instituições, semiose (sem pretender ser exaustiva),
enfatizando o caráter abstrato, de maior permanência (embora
nunca permanência trans-histórica, haja vista, por exemplo, as
modificações em estruturas de gênero e as pressões que intentam
reduzir essas modificações ao longo da história, em tensão com
as forças que as promovem), e enfatizando, sobretudo, sua ampla
penetração numa variedade de práticas. Isso quer dizer que, en-
quanto a noção de prática social diz respeito a potencialidades já
situadas em campos ou esferas da atividade humana, a noção de
estrutura é mais ainda abstrata, já que uma estrutura como a de
classe (ou gênero, sexualidade, raça, etnia, instituições, semiose)
transcende as práticas situadas, invade os diferentes campos,
exerce sua influência nas mais diversas esferas.
Por exemplo, imagine uma situação de sala de aula, digamos
de aula expositiva. Qualquer aula expositiva concreta será, claro,
um evento realizado (materializando, reificando e transforman-
do potencialidades da prática, incluindo o gênero discursivo).
Mas esse evento (qualquer evento) nunca se realiza sem recor-
rer ao potencial da prática, que informa as possibilidades e os
constrangimentos para a realização da aula. No potencial da
prática específica, estão previstos certos materiais (sala de aula,
com quadro, carteiras, livros, tecnologias), certas posições (de
docentes, de discentes), certas relações sociais (entre membros
da comunidade escolar/acadêmica), certos espaços (disposições
espaciais particulares) e tempos (de duração, para execução de
tarefas específicas), certos usos da linguagem (potencial semiótico

26
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

organizado para a prática em questão: suportes, gêneros, discur-


sos e estilos associados à prática). E toda essa potencialidade da
prática é atravessada por potenciais estruturantes ainda mais abs-
tratos – por exemplo, imagine os modos como a potência dessa
prática, que conhecemos bem, é atravessada por classe social
(estamos falando de uma escola de periferia?), por gênero (não
é a mesma coisa ser uma professora ou um professor; há impli-
cações de gênero nas relações sociais), por instituições (trata-se
de uma aula expositiva na universidade, ou no ensino médio, ou
na igreja, ou num curso livre?), inclusive a instituição da família.
É claro que essas estruturas operam sempre em entrecruzamen-
tos, interseccionalidades que complexificam a tarefa de análise.
Não se trata, aqui, de pretender que nossos empreendi-
mentos investigativos em análise de discurso crítica sejam uma
complexa análise de estruturas e suas implicações práticas, mas
certamente não podemos nos furtar a discutir e buscar compre-
ender como esses elementos estruturantes incidem nos contextos
investigados, atuando sobre o potencial da prática – inclusive
seu potencial semiótico –, que é depois realizado em eventos
que deixam textos como parte de seus resultados – um acesso
empírico privilegiado para a explanação dos problemas sociais
que nos interessa investigar pela via do discurso. Também é claro
que um projeto de investigação precisará selecionar sobre quais
elementos desse mapa (e outros possíveis elementos não pre-
vistos nesse mapa, mas necessários para um projeto específico)
incidirá a análise. O que estou sugerindo é que cada pesquisador/a
deveria, ainda na fase inicial do desenho do projeto de pesquisa,
construir o mapa ontológico de sua investigação – uma decor-
rência do contexto investigado e das questões da pesquisa – e
considerar seriamente as implicações epistemológicas dessas
escolhas, antes de traçar o percurso metodológico que preten-
da trilhar. Essa seleção deve ser dirigida, portanto, pelo que se
pretende conhecer do problema e pelas questões de pesquisa
que resultam daí.

27
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Por exemplo, pode me interessar mapear traços de estruturas


de classe e gênero nas relações sociais entre atores específicos
em uma prática particular (um problema acional), ou de repre-
sentações de classe e gênero em textos que são produzidos em
um contexto específico (um problema representacional). Nesses
casos, poderei considerar um mapa ontológico que inclua as ca-
tegorias de classe, gênero e semiose (já que se trata de pesquisa
discursiva), além da instituição específica (ou instituições) que
engendra(m) o problema, e suas implicações sobre o potencial da
prática (ordens de discurso, posições objetivas, relações sociais,
por exemplo), conforme os traços (portas de acesso empírico)
deixados em eventos realizando o potencial dessa prática. É
muito importante, considerando ainda esse exemplo, reconhecer
as profundas diferenças epistemológicas que decorrem de um
problema acional ou representacional. Essas diferenças acarretam
implicações sobre as possibilidades de desenho metodológico
de um e outro estudo, e o reconhecimento disso é fundamental
para que se coletem ou se gerem dados adequados às perguntas
da pesquisa. Dependendo das perguntas que se quer responder,
selecionam-se as fontes e os métodos por meio dos quais se
pretende gerar ou coletar dados para a investigação, tendo em
vista as componentes ontológicas que se pretenda acessar e seus
possíveis rastros de realização como portas de acesso empírico.
Quero agora, antes de encerrar esta seção, discutir dife-
renças entre os elementos da prática e os elementos do evento.
Esse detalhe teórico pode parecer banal, mas não é. Trata-se do
reconhecimento do mesmo tipo de distinção que existe entre
discurso e texto, e entre gênero e texto. Em minha experiência
como pesquisadora e professora em estudos críticos do discur-
so, tenho percebido muita confusão no uso desses dois pares. É
muito frequente a utilização do termo discurso para referir tex-
to, e o mesmo acontece com o termo gênero. Tenho defendido
a necessidade de precisão conceitual no que se refere a esses
termos centrais em ADC, porque vejo que o mau uso dos termos

28
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

é sempre decorrente de incompreensão dessas nuanças concei-


tuais, que são fundamentais ao empreendimento investigativo.
Segundo Fairclough (2003), gêneros, discursos e estilos são
os principais elementos das ordens do discurso, aqui propostas
como o elemento discursivo do potencial das práticas. Portanto,
são conceitos abstratos que não se confundem com os textos,
aqui propostos como portas de acesso empírico aos eventos re-
alizados. Nessa perspectiva, discursos são modos situados para a
representação de eventos e práticas, que são materializados em
textos, mas não são textos. Do mesmo modo, gêneros discursi-
vos são modos relativamente estáveis de agir discursivamente,
mas que não se confundem com os textos concretos que mate-
rializam os diferentes gêneros. Todo texto recorre ao potencial
semiótico de algum gênero ou mescla de gêneros, e todo gênero
só se materializa em textos realizados em eventos: os potenciais
genéricos/ discursivos e os textos empíricos estão em relação
transformacional, mas não se confundem (RESENDE, 2017).
Assim como as práticas sociais são compreendidas na inter-
relação de seus elementos constituintes – ação material (formas
de atividade previstas no potencial da prática, incluindo o uso
de materiais e tecnologias); posições objetivas, com as relações
sociais e institucionais a elas articuladas; tempos e espaços como
potencialidades organizacionais das práticas em seus ambientes
institucionais; linguagem e outras formas de semiose, incluindo
os modos de articulação previstos entre as modalidades semió-
ticas potencialmente articuladas e as tecnologias discursivas em
jogo –, também os eventos realizados constituem-se de elemen-
tos. Como vimos, a diferença é que os elementos constituintes
da prática são elementos de potência, e os elementos do evento
realizado são concretizações dessa potência. Por isso, é preciso
distinguir entre: ordens de discurso (com gêneros-suportes e
discursos-estilos correspondentes) e textos realizando esse po-
tencial; posições objetivas e posições encarnadas, subjetivamente

29
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

preenchidas por pessoas assumindo posições; relações sociais


potenciais e relações sociais entre pessoas participando concre-
tamente em eventos sociais; materiais potenciais e dispositivos
efetivados na ação material; espaço-tempo potencial e espaço-
tempo realizado.
Essa distinção teórica essencial também apela à necessidade
de se refletir sobre as condições de possibilidade em relações de
emergência. Nos termos de Hodge (2015), é preciso “considerar
a porosidade entre os níveis teorizados como uma necessidade
para a coerência teórica”. Entendo que essa porosidade deve
ser considerada tanto entre os níveis dos estratos linguísticos
(fonética, fonologia, lexicogramática, semântica), quanto entre
os níveis dos estratos sociais (estruturas, práticas, eventos), e o
lugar intermediário das ordens de discurso – entre o semiótico
e o social – indica o papel decisivo dos estudos discursivos na
compreensão profunda de problemas sociais.
No mapa ontológico apresentado na Figura 7, preferi chamar
o momento discursivo das práticas – a que Fairclough chama
Discurso, na acepção mais abstrata do termo (conforme ele
explica em 2003) – mais diretamente de Ordens de Discurso. A
motivação para isso é dupla. Por um lado, observo que teorica-
mente há correspondência entre essa acepção de discurso como
o aparato discursivo da prática social e o conceito de ordem
de discurso conforme se define em análise de discurso crítica:
ora, se discurso nessa acepção refere-se ao uso da linguagem
em relação a práticas específicas, e se toda prática social inclui
uma ordenação do aparato semiótico estruturante dos usos da
linguagem na prática, então não há necessidade de se manter
a flutuação conceitual aqui – e isso traz a vantagem de evitar a
duplicidade de sentido para o termo discurso, que tanta confusão
causa na compreensão inicial da teoria. Por outro lado, trazer o
conceito de ordem de discurso para o centro do mapa ontológico
é teoricamente adequado, já que o foco na estruturação social do

30
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

potencial semiótico assim o indica. As relações transformacionais


entre ordens de discurso e textos nos garantem o foco simultâneo
na ordenação social do potencial semiótico das práticas e em sua
apropriação (reificação/transformação) na interação efetivamente
realizada nos eventos discursivos.
As ordens de discurso controlam/possibilitam a ação discur-
siva em relação a campos particulares da atividade humana, e os
textos resultam dessa ordenação. Essa dinâmica deve ser o foco
analítico central nos estudos críticos do discurso. Em sua confe-
rência no congresso da Associação Latino-Americana de Estudos
do Discurso em 2015, Hodge sustentou, em uma crítica explícita
que fez à linguística sistêmica funcional, que “toda linguística que
não tenha o significado como centro é focalizada em estrutura”,
por isso em ADC são centrais os conceitos de gêneros, discursos
e estilos, que, transitando entre o linguístico e o social, permitem
o foco no significado. Para Fairclough (2003), esses três elemen-
tos são constituintes das ordens de discurso, e eu concordo com
ele. Mas preferi, no mapa ontológico apresentado na Figura 7,
reordená-los em apenas dois (discurso-estilo e gênero-suporte),
enfatizando, por um lado, a estreita relação entre identificação
e representação, e, por outro, a relevância do suporte também
como elemento estruturante do potencial semiótico acional.
Sobre discursos e estilos, em sua estreita relação, pode-
mos pensar em uma força centrípeta e uma força centrífuga na
construção discursiva da identidade: uma força centrípeta, isto
é, voltada para dentro, atuando na construção do ‘eu’ com base
em múltiplos significados, ou seja, nos discursos com que nos
identificamos, e uma força centrífuga, para fora, atuando na dis-
persão do ‘eu’ em várias direções, em movimentos semióticos
texturizados. O balanço entre essas forças exige um esforço de
coesão e coerência, na construção do que se aspira ser, e isso
deixa traços que podem ser analisados em textos. É evidente
que a questão da identidade não se restringe ao discurso, e

31
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

sustentar que identidades sejam simplesmente discursivas seria


minimizar a complexidade dos processos identificacionais. Por
isso, prefiro manter discursos e estilos teoricamente ligados, para
manter em foco que a identificação discursiva não se confunde
com a identidade como conceito mais amplo, e que, quando se
trata de discutir identificação em análise de discurso, o que está
em questão é a análise do quanto nos vinculamos, em textos, a
discursos particulares. Isso não minimiza o papel do discurso na
construção de identidades, mas torna mais claro o conceito, mui-
tas vezes vago, de estilos. Concordo com Orlandi (2015) quando
afirma, a respeito de identificação discursiva, que “o sujeito se
diz narrando-se”, demarcando seu pertencimento a espaços de
interpretação, vinculando-se a discursos e modos interpretativos
específicos.
Quanto ao segundo elemento interno das ordens de dis-
curso como formuladas no mapa ontológico que aqui discuto,
escolho falar em gêneros-suportes assim articulados para enfa-
tizar a relevância da noção de suporte, especialmente quando
consideradas as tecnologias discursivas, e a vinculação de todo
gênero discursivos aos suportes particulares que possibilitam sua
dispersão materializada em textos. Creio que esse conceito tem
sido negligenciado em análise de discurso crítica e acredito ser
necessário corrigir isso. A questão já foi discutida em Acosta e
Resende (2014, p. 134), quando sustentamos que

suportes discursivos são veículos, espaços físicos ou


virtuais, sobre os quais os textos ocorrem, potencial-
mente ou como realização [nos suportes realizados].
No entanto, a relação entre textos e suportes não é
direta: há outros elementos que subjazem aos even-
tos discursivos, centralmente os gêneros, em seus
diferentes níveis de abstração.
Pela perspectiva social do discurso, entende-se que
os suportes são, também, espaços sociais, no sentido
de que são socialmente construídos, responden-

32
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

do a interesses e propósitos particulares, e assim


funcionam nas práticas sociais. Estão associados ao
significado acional do discurso, pois internalizam e
expressam, de maneira relativamente estável, a ação
de atores sociais em práticas sociais específicas. As-
sim, quando tomados como potencialidades, estão
no mesmo enquadre dos gêneros, como elementos
constituintes das OD [ordens de discurso].

Assim como todo texto necessariamente materializa gêne-


ros, discursos e estilos, a realização de textos só é possível por
meio de suportes (revistas, jornais, programas de televisão, sites,
conversas etc.) que os materializam, que funcionam como o lócus
de realização de gêneros em textos. Do mesmo modo como os
gêneros associam-se a práticas específicas – e é isso o que sus-
tenta o conceito de gênero discursivo como elemento das ordens
de discurso –, os suportes também se vinculam a práticas sociais
e a ordens de discurso particulares (como a ordem de discurso da
mídia, por exemplo). A questão a ressaltar aqui é que os supor-
tes materializados também respondem a ordenações potenciais
previstas na prática como suporte potencial: uma revista é como
é, organiza-se como se organiza, vincula textos materializando
gêneros específicos como o faz, não por acaso, mas respon-
dendo a ordenações semióticas pré-existentes como potência.
Em Acosta e Resende (2014, p. 136), ainda argumentamos que
“[e]ssas potencialidades (suportes e gêneros) só se materializam
em eventos discursivos realizados, ou seja, do plano do concreto,
que sempre realizam/ reificam/ modificam potencial previsto nas
práticas. As práticas, por seu caráter aglutinante, organizam o
potencial discursivo e ensejam a atividade discursiva”.
A distinção entre ordens de discurso (com seus elementos
constituintes) e textos, então, é da mesma ordem da distinção
entre práticas e eventos. Para discutir as demais distinções entre
os elementos da prática e os elementos do evento, retomo o po-
tencial explanatório de van Leeuwen (2008), mas com a ressalva

33
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

de que esse autor trata os elementos da prática em termos de sua


recontextualização em textos, e eu aqui, por ora, estou falando
desses elementos em sua natureza ontológica como parte das
práticas – é claro que a representação também é parte de toda
prática, em seu elemento semiótico, mas há uma distinção es-
sencial entre a prática e a representação da prática: “isso parece
óbvio, mas mesmo assim a diferença é frequentemente ignorada”
(VAN LEEUWEN, 2008, p. 6). Quanto aos elementos que discuto
aqui, estamos tratando outra distinção essencial: entre a previsão
no potencial da prática e sua realização efetiva em eventos, ou
seja, como as condições estruturantes da ação são efetivamente
materializadas em eventos.
Assim como o potencial semiótico é socialmente estrutu-
rado para sua realização em textos, há outras potencialidades
conformadoras de práticas sociais e materializadas de maneiras
mais ou menos criativas em eventos, e sempre em relação entre
si, incluindo relações com o potencial semiótico. Na Figura 7,
propus outros quatro elementos, tanto para o nível potencial das
práticas quanto para o nível realizado dos eventos. Obviamente se
trata de uma proposição aberta, que me pareceu útil e suficiente
em minhas pesquisas, mas que deve ser modificada, refinada,
recortada, ampliada conforme as necessidades de cada projeto.
Elementos de potência e realização, respectivamente, que se
têm mostrado centrais são as posições objetivas e posições encar-
nadas, isto é, subjetivamente preenchidas por pessoas realizando
práticas particulares em eventos. As posições são tão importantes
na definição das práticas que em seu modelo ontológico Bhaskar
define a entidade organizacional intermediária entre estrutura
e ação como ‘sistema posição-prática’, referindo-se a “posições
(lugares, funções, regras, tarefas, deveres, direitos etc.) ocupadas
(preenchidas, assumidas, desempenhadas etc.) por indivíduos”
nos eventos que realizam (BHASKAR, 1998, p. 221). Toda prática
social prevê (como potência) um conjunto de participantes em

34
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

certas posições e condições de elegibilidade para pessoas reali-


zarem o potencial da prática em eventos, “qualificações que os/
as participantes devem ter para serem elegíveis para assumir um
papel em uma prática social particular” (VAN LEEUWEN, 2008,
p. 10). Essas condições de elegibilidade para participantes en-
carnarem as posições objetivas previstas incluem uma série de
requisitos, variáveis de uma prática a outra em sua natureza e
em seu rigor. São requisitos de pertencimento a classe, gênero,
raça, etnia, especialidade profissional, faixa etária, vestimenta,
modo de apresentação física etc., em composições variadas de
requisitos mais ou menos rigorosos a depender da prática. O caso
é que as posições são objetivamente dadas, com seus requisitos
particulares, no potencial da prática, mas quando encarnadas,
subjetivadas em eventos, realizadas por pessoas reais em suas
atividades concretas, sempre sofrem alterações próprias da subje-
tividade. Ademais, posições podem sofrer hibridismos conforme
as práticas se alteram pelas contingências contextuais, como já
discuti em Resende (2008), e sua encarnação pode ser mais ou
menos criativa.
É claro que o potencial das posições objetivas nas práticas
também inclui certas relações sociais potenciais no interior de
uma posição específica (ou seja, entre pares) e entre as diferentes
posições objetivas relacionadas. Essas relações sociais potenciais
também serão mais ou menos modificadas quando realizadas em
relações sociais entre pessoas concretamente agindo no mundo.
Hierarquias previstas podem ser realizadas de maneiras mais ou
menos acomodadas; relações afetivas entre pessoas reais po-
dem alterar relações sociais objetivamente dadas no potencial
da prática, e creio que alterações em relações sociais previstas
configuram uma forma importante de mudança social.
Para Van Leeuwen (2008, p. 8), o “centro de toda prática é um
conjunto de ações performatizadas em uma sequência, que pode
ser mais ou menos fixada e que pode ou não permitir escolhas,

35
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

ou seja, alternativas em relação a um maior ou menor número


de ações de alguns/mas ou de todos/as os/as participantes”. Em
termos da ação material prevista no potencial da prática, em sua
relação transformacional com a realização efetiva de eventos,
então, pode-se dizer também que “diferentes práticas envolvem
diferentes graus de liberdade, diferentes margens para resistência
– e diferentes modos de forçar conformidade” (p. 9). Isso inclui
as performances esperadas dos/as participantes e os materiais e
tecnologias necessários para a realização da prática em evento.
Práticas sociais também incluem tempos e espaços (e rela-
ções entre tempos e espaços) mais ou menos definidos, e “os
constrangimentos temporais [e espaciais] em práticas sociais
variam em seu rigor, mas nunca estão totalmente ausentes” (VAN
LEEUWEN, 2008, p. 11). O potencial de toda prática inclui, então,
temporalidades como horários, durações, variáveis níveis de to-
lerância a alterações nessa previsão e condições de elegibilidade
para os locais em que as práticas podem ser realizadas. Assim
como os demais elementos de potência da prática, também es-
paço-temporalidades são afetadas por contingências contextuais.
Dois aspectos relacionais são importantes para reter aqui,
antes de passarmos à próxima seção. O primeiro diz respeito ao
que já foi dito acerca da natureza transformacional da relação
entre os elementos da prática e os elementos do evento. Trata-
se de conceitos transformacionalmente articulados – ou seja,
em relação de emergência –, profundamente conectados, mas
fundamentalmente distintos: estão sempre associados e nunca
se confundem. O segundo refere-se à relação interna, de mútua
dependência, entre os elementos em cada nível. Assim como
toda prática é definida pela relação interna potencial entre seus
elementos (como já disseram Chouliaraki e Fairclough), também
os eventos se definem na relação entre os elementos de sua reali-
zação, e cada elemento realizado impacta sobre a realização dos
demais. Por exemplo, se há alteração significativa nas posições

36
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

objetivas da prática quando encarnadas no evento, serão igual-


mente alteradas as relações sociais, com impacto sobre os usos
de linguagens e assim por diante. E a recorrência em eventos
poderá, na relação transformacional e em diacronia, alterar o
próprio potencial previsto na prática.
Na próxima seção, volto atenção para implicações episte-
mológicas do que foi discutido até aqui.

3. MAPA EPISTEMOLÓGICO E IMPLICAÇÕES METODOLÓGICAS:


DAS TRILHAS DE CADA PROJETO

Em ADC, procura-se estabelecer um quadro analítico capaz


de mapear conexões entre relações de poder e recursos discur-
sivos acessíveis a pessoas ou grupos sociais, materializados em
eventos discursivos. Na versão de Chouliaraki & Fairclough (1999),
baseada na crítica explanatória de Bhaskar (1998), o objetivo é
refletir sobre a mudança social contemporânea e sobre possibi-
lidades de práticas emancipatórias. Nesta seção, meu objetivo
será propor outro mapa, distinto do de Chouliaraki e Fairclough,
mas baseado nele. Por isso, começo por explicar, ainda que breve-
mente, as ‘fases’ do enquadre proposto pela autora e pelo autor.
Nesse enquadre, pesquisas em ADC partem da percepção de
um problema – na atividade decorrente de uma prática particular,
em seu aparato semiótico (ação discursiva) ou na reflexividade
sobre uma dada prática (representação discursiva). Sobre os
problemas que movem analistas de discurso, van Dijk (1993,
p. 252) explica que “são problemas ‘reais’, os problemas sérios
que ameaçam a vida ou o bem-estar de muitas pessoas, e não os
problemas disciplinares, por vezes insignificantes, de descrição
de estruturas discursivas”.
Definido o problema social da pesquisa, a segunda ‘fase’
desse enquadre é a identificação de obstáculos para que o pro-
blema seja superado, ou seja, de aspectos da prática social que

37
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

sustentam o problema verificado, que constituem obstáculo para


sua superação. Para Chouliaraki e Fairclough (1999), há três tipos
de análise que atuam juntos nessa ‘fase’: a análise da conjuntura –
da configuração da rede práticas sociais associadas ao problema
ou das quais ele decorre; a análise da prática particular – como
o discurso se articula a outros momentos na prática específica
que se focaliza; a análise de discurso – das relações da instância
discursiva analisada com ordens de discurso e das maneiras como
textos ‘trabalham’ os recursos disponíveis na interação.
A terceira ‘fase’ do enquadre epistemológico é a compre-
ensão da função do problema na prática. O objetivo, segundo a
autora e o autor, é verificar a que interesses os aspectos proble-
máticos da prática particular focalizada servem. Ora, se há um
problema, e se ele se mantém, então esse problema deve ser
funcional em algum aspecto – a pressão por sua manutenção
deve servir a interesses específicos.
Em seguida, focalizam-se os possíveis modos de ultrapassar
os obstáculos. Com base na crítica explanatória do realismo críti-
co, aqui interessam as possibilidades de mudança e superação dos
problemas identificados. O argumento é que a linguística pode
atuar criticamente na melhor compreensão de questões sociais
problemáticas: engajada nos conflitos sociais da atualidade, pode
ser socialmente pertinente, não só no desvelamento de relações
de dominação, mas também na discussão de alternativas viáveis
para a superação dessas relações problemáticas (RAJAGOPALAN,
2003).
A reflexão sobre a análise deve ser uma constante em todo
o empreendimento da pesquisa, o que inclui a clareza sobre os
posicionamentos explícitos com que o/a analista decide engajar-
se (FAIRCLOUGH, 2010). Chamei esses ‘momentos do enquadre’ de
‘fases’ porque não devem ser consideradas etapas subsequentes
e claramente distintas; ao contrário, implicam-se mutuamente
e não são tão claramente ordenadas. Por exemplo, dificilmente

38
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

se define um problema de pesquisa sem referência à conjuntura


que o engendra, e dificilmente se descreve essa conjuntura sem
referência à prática particular ou ao funcionamento do discurso
nessa prática. Assim também a reflexão sobre a análise não deve
ser tomada como uma ‘etapa’ final no enquadre, mas como uma
exigência transversal de todo o empreendimento, como assinalou
Fairclough em texto posterior ao de apresentação do enquadre
(FAIRCLOUGH, 2010). Ao escolher uma metáfora química – fase –
em lugar de uma metáfora física – etapa –, enfatizo o fato de as
atividades propostas para o quadro epistemológico básico dessa
versão de ADC não serem estanques, mas passíveis de mistura
e dissolução.
O enquadre de Chouliaraki e Fairclough (1999), inspirado
na crítica explanatória proposta por Bhaskar (1998) no realismo
crítico, tem sido assim ilustrado:

Quadro 1: ‘Fases’ do enquadre epistemológico de Chouliaraki e Fairclough (1999).

Fonte: em Resende e Ramalho (2006, p. 37).

Embora seja amplamente conhecido, esse enquadre episte-


mológico nem sempre tem sido bem compreendido. O problema
mais recorrente é se tomar o enquadre, de natureza epistemoló-
gica, como um modelo metodológico. Não se trata, entretanto,
de um modelo analítico – como foi o tridimensional proposto em

39
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Fairclough (2001), por exemplo –, mas de um enquadramento para


todo o empreendimento da investigação, desde o estágio inicial
da definição do problema de pesquisa, até as análises de dados
e a crítica explanatória que se quer lograr por meio da análise
discursiva associada a outros tipos de análise. O objetivo é a ex-
planação do problema social, com base no momento discursivo
da prática investigada, o que é possível graças à articulação entre
o enquadre epistemológico e os conceitos teóricos em que se
baseia, e as análises obtidas no entrecruzamento de conjuntura,
prática particular, objetos discursivos, categorias analíticas sis-
tematicamente aplicadas.
Obviamente, um mapa ontológico da linguagem na socieda-
de, complexo como o que vimos na primeira seção deste capítulo,
não pode ser explorado em pesquisas apenas mediante a análise
de textos. Por isso, o mapa epistemológico deve ser igualmen-
te complexo, e retrabalhado para atender às necessidades dos
projetos de pesquisa em suas especificidades, de acordo com as
componentes ontológicas que se pretenda acessar e os objetivos/
problemas/ questões de cada pesquisa. A complexidade, nesse
caso, é o que permite a crítica explanatória com base no discurso.
Por isso, assim como o mapa ontológico deve ser redesenhado
para cada projeto particular, também o desenho epistemológico
tem de ser próprio de cada projeto, a fim de lograr coerência
entre essas importantes decisões que se tomam no trajeto de cada
pesquisa, e mais bem informar as decisões metodológicas que
lhe sucedem. Com isso não quero dizer que não se possa ganhar
da experiência de outros/as pesquisadores/as e suas abordagens.
Claro que sim, podemos e devemos tirar proveito das experiências
anteriores – e é por isso que tenho defendido, junto aos grupos
de pesquisa que tenho coordenado, a necessidade de capítulos
metodológicos detalhados e de tipo predominantemente narra-
tivo: capítulos assim podem ser úteis não só para a autorreflexão
do/a pesquisador/a que (se) escreve, mas também para outros/as
que o/a venham a ler.

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Com isso em mente – tendo enfatizado que não se trata de


propor um mapa válido para qualquer situação de pesquisa –,
passo a discutir o que entendo ser um refinamento do modelo
cujas linhas gerais acabo de apresentar. O mapa que proponho
assume-se, de maneira mais clara, como um conjunto de fases
para um empreendimento de pesquisa, de modo nenhum poden-
do ser confundido com etapas metodológicas. Isso porque inclui
reflexões sobre as necessárias decisões ontológicas, epistemoló-
gicas e metodológicas. Vejamos:

Quadro 2 – Mapa epistemológico para ADC baseado em decisões ontológicas,


epistemológicas e metodológicas.

I. Reflexões preliminares
1. Definição do problema social a ser investigado
2. Compreensão macro do problema: revisão bibliográfica/ parcerias interdisciplinares
3. Reflexão sobre as múltiplas possibilidades de acercamento do problema
4. Construção das perguntas da pesquisa

II. Organização da pesquisa


5. Levantamento de dados possíveis para o acercamento escolhido
6. Definição de estratégias coerentes para geração/ coleta de dados
7. Reflexão epistemológica sobre os dados gerados/coletados: possibilidades e
limites
8. Reconstrução do mapa ontológico com base na reflexão epistemológica

III. Análise discursiva


9. Decisão sobre necessidade ou não de utilização de ferramentas computacionais
ou métodos complementares para a macroanálise
10. Seleção de textos do feixe discursivo/ Segmentação de excertos conforme
movimentos retóricos
11. Definição de categorias analíticas com base nos dados
12. Análise textual fina do corpus ou de parte selecionada do corpus

IV. Recursividade
13. Retorno à compreensão do problema à luz do discursivo
14. Restituição social dos resultados OU volta a 5 OU volta a 6

Fonte: elaboração própria, inédito

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Como se nota, trata-se de uma proposta para pesquisas em


ADC, considerando conjuntos de decisões de natureza ontológica,
epistemológica e metodológica. O mapa é dividido em quatro
ciclos gerais – reflexões preliminares, organização da pesquisa,
análise discursiva e recursividade – com suas orientações inter-
nas. Os ciclos propostos e suas orientações podem e devem ser
repensados para cada projeto particular, mas com o cuidado de
respeitar a necessária precedência das questões ontológicas em
relação às epistemológicas e metodológicas, como já expliquei
em outra ocasião (RESENDE, 2009).
No ciclo inicial, realizam-se as reflexões preliminares sem as
quais não se desenha um anteprojeto de pesquisa. A definição
do problema da pesquisa é a primeira coisa a fazer – sem um
problema claramente definido, não se podem tomar as decisões
subsequentes com segurança, por isso a definição, embora pareça
óbvia, é repisada como tão importante. Muitas vezes, a definição
do problema pode ser por si só um desafio, e a compreensão
macro do problema pode exigir muita pesquisa bibliográfica e/
ou parceria interdisciplinar. É importante valorizar essa fase do
esforço investigativo, mesmo quando temos a impressão de não
sair do lugar, de que a pesquisa sequer começou.
Dado o caráter interdisciplinar da ADC, nesse momento em
geral sentimos necessidade de realizar leituras para além do
discurso e de conversar com pesquisadores/as de outras áreas;
em alguns casos, pode ser mesmo fundamental ouvir colegas de
outras áreas ou assistir a cursos em outras especialidades, para
mais bem compreender a natureza do problema que se pretende
investigar – isso pode evitar desde abordagens ingênuas até as
sobreanálises de dados. Com sorte, às vezes conseguimos a ade-
são de colegas para a configuração de equipe multidisciplinar em
grupo de pesquisa, o que enseja novas possibilidades e também
carrega outros desafios. A situação ideal seria a composição de
equipe multidisciplinar capaz de um acercamento mais robusto

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

do problema de pesquisa, mas sabemos que isso nem sempre é


possível.
Somente depois de delineado com clareza o problema da
pesquisa e suas nuanças, é possível definir como o problema
será abordado: há sempre muitas facetas, e é preciso decidir. É
este o momento fundamental de delimitação das questões da
pesquisa. Aqui, nos perguntamos: considerado este problema e o
foco com que decidi acercar-me dele, quais são as perguntas que
gostaria/ seria capaz de responder neste estudo? É importante
fazer-se perguntas que sejam passíveis de respostas baseadas
no momento discursivo da prática (ou seja, perguntas que faça
sentido responder pela via do discurso) e que sejam passíveis de
investigação considerados os limites práticos (tempo, recursos e
possibilidades de acesso) da pesquisa.
Definido o problema, o foco para sua abordagem e as
questões da pesquisa, passamos à organização da pesquisa,
quando devem ser enfrentadas decisões de caráter ontológico e
epistemológico. Em primeiro lugar, é preciso se perguntar quais
componentes ontológicas do mapa do funcionamento social da
linguagem se pretendem acessar, e então considerar a questão
fundamental sobre quais corpos de dados seriam capazes de for-
necer subsídios para que se respondam as questões da pesquisa.
Essa é uma reflexão epistemológica inescapável, se pretendemos
garantir a coerência entre o que queremos conhecer e os modos
como pretendemos lograr esse objetivo. Por exemplo, se minhas
perguntas de pesquisa orbitam os modos de estruturação de
uma determinada instituição, não bastará perguntar às pessoas
que ocupam posições nessa instituição como elas pensam que
essa instituição se estrutura. Porque um desenho de pesquisa
baseado apenas em entrevistas sobre o funcionamento da ins-
tituição fornecerá dados úteis para apreender o que as pessoas
entrevistadas pensam, ou dizem pensar, sobre a instituição, mas
não sobre seu funcionamento efetivo. Outras técnicas de coleta

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

e geração de dados precisarão, então, ser empregadas – ou, no


sentido contrário, as perguntas de pesquisa precisarão ser ajus-
tadas para o que os dados podem ensinar.
Então, as orientações desse segundo ciclo do mapa referem-
se à reflexão sobre os elementos do mapa ontológico que se quer
acessar e sobre como será possível responder às questões de
pesquisa que se pretende esmiuçar. O levantamento dos dados
possíveis para o acercamento do problema também deve incluir
reflexão robusta sobre suas possibilidades e seus limites. Com
base nessa reflexão epistemológica, será possível reduzir o mapa
ontológico para focalização apenas dos elementos pertinentes à
investigação, redesenhando-o.
O terceiro ciclo é voltado para decisões metodológicas re-
lativas à composição do corpus ou dos corpora de pesquisa e sua
exploração. Trata-se da análise discursiva dos dados, em termos
estruturais, voltados para a ordenação social do discurso, e em
termos interacionais, voltados para a atualização desse potencial
discursivo nos eventos particulares que se escolheu focalizar,
como sugeriram Chouliaraki e Fairclough (1999). Isso significa
que a análise deve estar atenta para como os potenciais dos
gêneros-suportes e dos discursos-estilos particulares em jogo no
campo discursivo investigado possibilitam e restringem a signi-
ficação nos textos tomados como dados, e também para como
esses textos provocam mudanças nesses potenciais de suportes,
gêneros, discursos e estilos e suas imbricações.
A organização dos dados é fundamental para uma análise
ser bem-sucedida. Os modos para essa organização dependem
de fatores específicos a cada projeto de pesquisa, como volume
e natureza dos dados. Por um lado, quando se trabalha com um
extenso volume de dados é preciso desenvolver estratégias para
lidar com isso – algumas vezes o uso de ferramentas computacio-
nais pode ser desejável. Por outro lado, quando se trabalha com
dados de diferentes naturezas, é preciso atentar para o critério

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

de homogeneidade na composição de cada corpus, o que pode


indicar a necessidade de composição de vários corpora, geral-
mente abordando diferentes questões de pesquisa. Nesse caso,
será necessária reflexão acerca de como esses corpora trabalham
juntos numa abordagem multidimensional (RESENDE, 2008).
Quando se realiza macroanálise com muitos dados, deve-se
ter em mente que a microanálise exigirá seleção de exemplares
do feixe discursivo (JÄGER, 2017), já que a minúcia da análise
discursiva crítica não pode ser aplicada adequadamente a corpora
extensos – nesses casos, será preciso, então, definir critérios para
a seleção de textos exemplares. É preciso decidir se será mais
adequado selecionar textos exemplares para análise fina integral
– isto é, selecionar alguns textos para que a análise detalhada
incida sobre os textos completos – ou se será preferível colecio-
nar excertos mais curtos de variadas fontes para a análise fina.
As duas decisões carregam vantagens e limites, então a decisão
deve ser consciente.
Em ambos os casos – e seja a análise mais estruturada ou
mais sequencial (RESENDE, 2008) – um desafio adicional é a
segmentação do texto em excertos analíticos que possam ser
apresentados e discutidos na redação dos resultados analíticos.
Geralmente, quando dão seus primeiros passos nos exercícios de
análise, estudantes tendem a segmentar seus dados em trechos
demasiado curtos, descontextualizados, que assim carregam
pouco potencial para a análise discursiva crítica. Em minha ex-
periência, tenho considerado muito útil a noção de movimentos
retóricos para a segmentação inicial dos textos, prévia à aplica-
ção de categorias analíticas. A atenção ao material textual a ser
analisado em termos de seus ‘fazeres discursivos’ permite não
só uma segmentação mais adequada em excertos analíticos, mas
também uma reflexão inicial importante a respeito dos dados.
Ainda nesse terceiro ciclo, é preciso escolher as categorias
analíticas que dirigirão as análises discursivas finas, e já sabemos

45
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

que as categorias não devem ser escolhidas a priori, mas em de-


corrência das necessidades apontadas nos dados, já que nossos
problemas de pesquisa são de ordem social e não linguística – a
linguística nos serve de ferramenta fundamental para a investi-
gação de problemas sociais, o que só é possível graças à centra-
lidade do discurso no funcionamento da sociedade. Como já foi
enfatizado por Magalhães (2015), não devemos impor categorias
analíticas aos dados, e não deve haver pretensão de aplicar aos
dados todas as categorias analíticas do mapa metodológico es-
colhido, já que o texto demanda certos tipos de análise. É claro
que no caso das perguntas de pesquisa teoricamente motivadas
algumas categorias analíticas podem-se mostrar centrais já de
saída, sendo depois complementadas por outras categorias de-
mandadas pelos dados.
Para análises discursivas críticas, tem sido produtivo utilizar
ferramentas analíticas desenvolvidas na linguística sistêmica fun-
cional, especialmente aquelas descritas por Halliday (2004), Van
Leeuwen (2008), Martin e White (2005). Mas há outros modelos,
por exemplo os desenvolvidos por Laura Pardo (2011, 2017), da
Universidade de Buenos Aires, Neyla Pardo Abril (2007, 2017), da
Universidade Nacional da Colômbia, Margarete Jäger (2017), do
Instituto de Pesquisa Linguística e Social de Duisburg.
Ganhar autonomia na análise discursiva de textos é um de-
safio para a maior parte das estudantes e dos estudantes que se
aventuram nos estudos críticos do discurso. Em geral, o olhar
analítico precisa ser desenvolvido em laboratórios de análise
discursiva, no contato com outras pesquisadoras e pesquisadores
no desafio da escavação de textos. Também por isso o esforço de
investigação em análise de discurso crítica não deve ser solitário,
mas solidário, em grupos que exercitam, discutem e desenvolvem
ferramentas e técnicas apropriadas aos projetos em andamento.
Por fim, a recursividade do mapa salienta a porosidade entre
seus ciclos. Realizadas as análises, seus resultados devem ser

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

capazes de lançar nova luz sobre o problema, isto é, as análises


devem ter potencial explanatório que contribua para a melhor
compreensão do problema social discursivamente investigado.
Do mesmo modo, uma vez que se trata de ciência crítica, a
capacidade explanatória do problema deve contribuir para sua
superação ou mitigação, o que se pode lograr por meio da resti-
tuição social dos resultados da pesquisa, do compartilhamento
das interpretações e explanações decorrentes da pesquisa no
contexto investigado. Se isso não é possível quando se chega ao
fim das análises, temos o indicativo da necessidade de retornar
ao segundo ciclo e revisar as fontes e métodos, possivelmente
incluindo novos dados e retomando o ciclo analítico até que se
chegue a resultados pertinentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: NEM SEMPRE O CAMINHO É TÃO


TRANQUILO

Neste capítulo, argumentei que, uma vez que em análise de


discurso crítica se procura estabelecer um quadro analítico capaz
de mapear conexões entre relações de poder e recursos discursi-
vos acessíveis a pessoas ou grupos sociais, e materializados em
eventos discursivos, então essa postura científica – uma proposta
ontologicamente complexa do funcionamento da sociedade e
da linguagem na sociedade – exige uma epistemologia também
complexa, o que requer um rigoroso planejamento de pesquisa.
Verdade seja dita: nos caminhos da pesquisa, nem sempre as
coisas se dão de modo tão ordenado. Quando se labuta em ciên-
cia crítica, há projetos de pesquisa que não são cuidadosamente
desenhados em gabinete para posterior busca por fomento e
execução: há casos que se nos apresentam e não podemos furtar-
nos a debater. É verdade que tenho discutido a necessidade de
planejamento epistemológico cuidadoso de projetos em ADC, e
é também verdade que falei justamente sobre isso neste texto.
Então devo esclarecer: dizer que nosso compromisso social

47
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

nos leva por vezes a projetos que não se formatam da maneira


usual – quando em nossa posição de cientistas constituímos o
problema em objeto, para a partir daí nos fazermos perguntas
a seu respeito – não é o mesmo que negligenciar a necessidade
de reflexão epistemológica sobre eles, mesmo quando a con-
tingência que se apresenta nos obriga a conduzir essa reflexão
ao mesmo tempo em que nos conduzimos na própria pesquisa,
conforme as possibilidades que temos diante de nós.
A verdade é que há projetos que escolhemos, e há projetos
que nos acolhem. Dos primeiros, desenhamos planejamentos cui-
dadosos em gabinete, traçando seus mapas, compondo equipe,
escolhendo recortes; os segundos são mais exigentes: neles, os
problemas de pesquisa mostram-se irrecusáveis, absorvendo-nos
e acordando aquela ânsia por compreender e colaborar que nos
faz cientistas críticos/as.
Concordo com Clara Keating (2015): nos estudos críticos do
discurso, não podemos ser apenas especialistas em linguagem;
precisamos nos esforçar em outras direções. O “desafio da tran-
disciplinaridade”, diz Keating, “é antes de tudo um desafio de
tradução”. Há que se falar de modo a ser compreendido/a por
qualquer um que venha de qualquer lugar de fala. E sem perder
profundidade. Esse é o grande desafio. Ainda mais porque, no
tipo de pesquisa que abraço, precisamos estabelecer parcerias
de dois tipos: com especialistas de outras disciplinas e com a
militância de movimentos sociais. Daí um desafio adicional:
“conquistar os movimentos sociais apesar de uma história de
soberba e indiferença” por parte da academia (MORENO, 2014).
Pertencendo a uma academia soberba, que quando se atreve a
estreitar laços com os movimentos sociais insiste em ver-se acima,
como conquistar e realizar parceria efetiva? É preciso entender
de uma vez por todas que nunca se trata de ‘dar voz’ (expressão
máxima da soberba acadêmica!), mas sempre de ouvir e de ser
capaz de entrar em diálogo aberto, com disposição para aprender.

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Para chegar aos tais “resultados pertinentes” com que finalizei a


última seção deste texto, há que se superar a divisão improdutiva
entre trabalho acadêmico e ação social. Estou convencida disso.

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