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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL - UFRGS

INSTITUTO DE FILOSOSFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
HISTÓRIA DOS ESTADOS UNIDOS (HUM03393)

SANDRO MARQUES DOS SANTOS

USOS POLÍTICOS DA GUERRA DE INDEPENDÊNCIA AMERICANA

Porto Alegre
2016

1
USOS POLÍTICOS DA GUERRA DE INDEPENDÊNCIA AMERICANA

Resumo: O objetivo do presente artigo é discutir questões referentes aos usos políticos da
memória da Guerra de Independência, assim como de seus atores e período histórico na
sociedade e na política americana atuais. Desta forma, mostrando a importância da memória
coletiva não apenas como um conjunto de lembranças dos acontecimentos passados, mas
também como um meio de legitimação política.

1. INTRODUÇÃO

Em ano de eleições presidenciais nos Estados Unidos, aglomeram-se os discursos


políticos em relação ao futuro da nação e, entre todos esses discursos, a despeito de suas
diferenças ideológicas, é perceptível uma recorrência no uso do sentimento patriótico do
eleitorado para agaranhar apoio. Nesse sentido, é esperado que certos eventos da história
americana façam parte desses discursos, pois eles provocam comoção entre as pessoas. Assim
sendo, aquele que é considerado por muitos o evento de fundação da nação americana é
indubitavelmente o alvo favorito na retórica eleitoral. Seus acontecimentos, seus símbolos e
seus atores são constantemente referenciadas e reverenciadas. É claro que isso não ocorre
apenas nos tempos de eleição, esse memorialismo em torno do passado nacional é visível
todos os anos, tanto por políticos, quanto pela população. Ele faz parte do imaginário que se
criou em torno desse e de outros eventos, a ponto de, na visão de muitos, sua comemoração
torna-se parte do significado de ser americano. Tendo isso em vista, esse artigo busca analisar
de forma introdutória como a memória em torno da Guerra de Intendência é um meio de
congregar os americanos, assim como seus usos políticos, os discutindo e os problematizando.

2. A formação da nação americana e sua mitificação

Os processos de independência americanos tiveram em comum uma questão


fundamental para aqueles que objetivavam a formação de um novo Estado sobre o fim do
domínio colonial: a necessidade da constituição de um imaginário comum que permitisse a
união de grupos e indivíduos bastante heterogêneos que antes tinham no monarca uma
figurava compartilhada. Esse dilema se torna mais complexo quando temos em mente que os
povos da América não tiveram pouco antes de suas independências a ruptura política
definitiva como objetivo, a maioria compartilhava o desejo de possuírem os mesmos direitos

2
que os cidadãos europeus, de serem igualmente vistos como ingleses, espanhóis e
portugueses. Em outras palavras, a visão até então era a busca por alterar o status da colônia
no Império. O próprio Benjamin Franklin, um dos mais proeminentes dos Pais Fundadores,
mostrava essa identificação com o Império Britânico em seu pequeno ensaio intitulado
Observations Concerning the Increase of Mankind, Peopling of Countries (escrito em 1751 e
publicado em 1755, apenas 11 anos antes da ratificação da Declaração de Independência):

“This Million doubling, suppose but once in 25 Years, will in another


Century be more than the People of England, and the greatest Number
of Englishmen will be on this Side the Water. What an Accession of Power
to the British Empire by Sea as well as Land! ” 1

Com a ruptura definitiva instaurada, esses novos Estados em formação,


desprovidos de “outros precedentes históricos a não ser os das novas comunidades que a
expansão europeia criou pouco a pouco no Novo Mundo. ” (GUERRA, p. 10), precisavam de
um elemento de união, uma nova forma de conceber aquela coletividade existente. Todavia,
no caso das Treze Colônias, desprovidas de algo sólido que os unisse, mesmo com o conflito
contra a Inglaterra impulsionando uma união entre os americanos, sua luta pela independência
não apenas foi dividida em treze revoluções distintas (GRANT, 2014), como a sua vitória não
gerou consenso. Agora, independentes da Coroa, com poucos elementos para os unir, os
americanos tinham que construir uma União bem integrada em uma região onde a
importância política dos estados e dos interesses locais era muito sentida. Como afirmou
Susan-Mary Grant:

“De fato, o patriotismo colonial conflitava com o nacionalismo inglês, mas


os colonos brancos não se transformaram da noite para o dia em americanos,
ainda que os mitos pós-guerras da Revolução tenham sugerido que eles
fizeram” (GRANT, 2014, p. 149)

Tirando a figura de George Washington, muito pouco tinha consenso entre os


americanos. A União que havia sido formada possuía uma existência frágil, equilibrando-se
para manter juntos grupos políticos com ideias muito distintas e regiões com culturas e
econômicas diferentes. E essa falta de união se intensificou na medida em que os Estados
Unidos começaram a se expandir em direção ao Oeste; a disputa em torno dos limites do
poder central e o dilema sobre como essa expansão se daria se intensificaram. Trabalho livre
ou escravo era uma questão que aparecia a cada novo estado que era formado. A
intensificação dessas disputas acabara por iniciar aquilo que a Revolução de Independência

1
Disponível em https://archive.org/stream/increasemankind00franrich

3
havia adiado: a Guerra Civil. Mas se a Guerra Civil pôs irmão contra irmão (como muitos
gostam de desenhar o conflito) seria com ela que se decidiria de uma vez por todas o modelo
de trabalho que o país adotaria, assim como foi somente depois dela que vimos emergir algo
que podemos chamar de uma nação americana:

“Como observou George Templeton Strong, advogado em Nova York, no


ano inicial da guerra, a “entidade política conhecida como os Estados Unidos
da América finalmente foi encontrada”. Antes da secessão, na opinião de
Strong, a América “nunca fora uma nação”, apenas “um agregado de
comunidades, pronto para se despedaçar ao primeiro golpe sério e sem um
centro de vida nacional vigorosa para nos manter unidos”. A Guerra Civil
forneceu esse centro a longo prazo para nortistas e sulistas. ” (GRANT,
2014, p. 221)

Em contraste com os americanos das Treze Colônias, que não possuíam uma história
passada além da colonização europeia, e com os americanos pós-Independência que herdaram
da geração da Revolução uma União pouco resistente, os americanos pós-Guerra Civil não
tinham apenas conseguido constituir uma unidade nacional mais firme, que antes era
facilmente rompível, como também, graças a isso, podiam fazer maior uso de seu passado
para fortalecer esse novo sentimento de pertencimento nacional. Isso, é claro, não significa
que antes da Guerra Civil o uso do passado da Independência e a reverência às suas lideranças
não existissem na retórica política; o próprio Lincoln usava a figura dos Pais Fundadores
como meio legitimador de suas posições, um bom exemplo disso é o Cooper Union Speech de
1860, em que ele fez uma defesa contra a expansão da escravidão declarando que os Pais
Fundadores concordariam com sua posição. Todavia, a falta de unidade no país na época
retirava da Revolução seu poder agregador, seu poder político mesmo que existente ainda não
era tão sólido. Afinal, era difícil o evento de fundação da União ter grande peso no imaginário
político, quando essa União era facilmente rompível e o sentimento de unidade extremamente
frágil. Por conseguinte, o passado nacional se torna um gerador maior de consenso se já há
um consenso mínimo que permita que a unidade nacional se mantenha estável. Sendo assim,
nesse cenário em que diversos conflitos que comprometiam a União são resolvidos, o uso
político da Guerra de Independência torna-se uma arma política muito preciosa, pois fortalece
a criação da ideia de que todos partilham de uma memória e imaginário comuns, mesmo que
mitificados. Assim sendo, a criação de uma nação fortalece a imaginação em torno do evento
fundacional do país, mesmo que não seja nele que a nação tenha se formado, assim como
mostra a importância que o discurso histórico tem para construir essa imaginação, esse mito
em torno da fundação.

4
3. O passado que não passa: usos da memória do período revolucionário na política
americana contemporânea

“E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si


mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas
épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda dos
espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras
de ordem, o seu figurino, afim de representar, com essa venerável roupagem
tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da
história mundial. ” (Karl Marx)

Sob a bandeira Gadsden, desfilam pelas ruas da cidade homens trajados como
minutemen esbravejando contra os impostos e contra a tirania do governo. Uma cena do
século XVIII, se não fossem o cenário urbano do século XXI e os gritos contra o socialismo.
O que estamos diante é uma manifestação do Movimento Tea Party formado por indivíduos
de matriz conservadora, que se tornou parte do cenário político americano nos últimos anos.
O Tea Party já no próprio nome (referência a uma ação de protesto de 1773 chamada de Festa
do Chá de Boston contra o governo britânico) carrega essa marca política de buscar
legitimidade em um acontecimento passado aclamado entre os americanos. Da mesma forma,
a maneira como o movimento expõem seus posicionamentos ganha contornos que
referenciam o período revolucionário: a simbologia do seu discurso e da relação que ele
estabelece entre si e um passado determinado vincula sua luta atual com a luta daqueles
americanos, no caso, vemos a ideia de uma luta constante que percorre a fundação da União
até o momento atual contra uma tirania. Nesse sentido, a luta das Treze Colônias contra os
impostos da metrópole inglesa e, posteriormente, contra a própria Coroa são postas em
simetria às reivindicados do Tea Party sempre encontradas nos cartazes de seus militantes em
favor de um governo pequeno e contra a taxação.2 Outra marca do movimento é o uso
constante em suas manifestações da bandeira de Gadsden (utilizada durante a Revolução) que
é ressignificada para os acontecimentos do presente tendo seu significado no passado como
modelo. Hoje, inclusive, a bandeira é mais conhecida internacionalmente por muitos como a
bandeira desse movimento do que como uma das bandeiras utilizadas pelos americanos na
Guerra de Independência.

2
É bom fazer a ressalva de que essa equiparação não é parte apenas da retórica do Tea Party. Essa
relação é feita por muitos e em vários momentos, inclusive cartazes da Segunda Guerra comparavam o
envio de tropas para a batalha à luta dos americanos das Treze Colônias, afirmando que os americanos
sempre batalham pela liberdade (GRANT, 2014, p. 370)

5
Outro elemento da política americana (mais presente nos conservadores) que
segue essa tendência de vinculo do passado com o presente é a defesa da não restrição do
porte e venda de armas. Nos discursos em defesa de que não se intensifiquem as suas
restrições, podemos encontrar muitas vezes referências ao período da Guerra de
Independência; o que ocorre nesses casos é a criação de uma simetria entre a necessidade de
armamento que a população das Treze Colônias teve com uma suposta necessidade atual da
população americana de estar armada3, da mesma forma, também pode-se identificar uma
concepção de que a cultura das armas (incluindo aqui não apenas ter armas, mas também a
prática da caça) faz parte de um way of life dos americanos que proviria desde o período
colonial e, portanto, deve ser preservado contra qualquer suposto ataque a sua existência. O
anacronismo nessa simetria é patente, pois ela prefere calcar sua defesa em um imaginário em
torno de um passado sacralizado desconsiderando as particularidades históricas do período em
questão enquanto acaba muitas vezes não dando o foco necessário aos acontecimentos que o
tempo presente impõe para a partir dele construir argumentos para sustentar suas posições.
Um bom exemplo desse discurso é o feito pela atualmente pré-candidata pelo Partido
Democrata à presidência Hillary Clinton durante a sua campanha também pela candidatura do
partido em 2008 em que ela buscou apoio de defensores da Segunda Emenda falando de suas
habilidades com armas e o como elas são uma parte importante da cultura dos americanos:

“You know, some people now continue to teach their children and their
grandchildren. It’s part of culture. It’s part of a way of life. People enjoy
hunting and shooting because it’s an important part of who they are. Not
because they are bitter. ” 4

Todavia, é bom que se diga que ela buscava conciliar essa visão com posições mais
favoráveis a leis para “deixar essas armas longe das mãos erradas”5 Nesse sentido, a pré-
candidata tentava agaranhar votos dos defensores mais árduos da Segunda Emenda utilizando
de seu discurso em uma eleição em que ela disputava com um candidato (Barack Obama)

3
Algo que ganha maiores proporções agora que o terrorismo interno é visto por muitos como uma
ameaça constante levando mesmo a situações de paranoia. Recentemente, um abaixo assinado foi feito
para que se permitisse que se carregassem armas dentro da Convenção do Partido Republicano em
2016; segundo seus idealizadores, essa era uma medida necessária para proteger a Convenção de
grupos como o ISIS e de outros que queiram ameaçar o way of life americano. Disponível em
http://nymag.com/daily/intelligencer/2016/03/40000-sign-petition-for-guns-at-gop-convention.html
4
Disponível em http://politicalticker.blogs.cnn.com/2008/04/12/clinton-touts-her-experience-with-
guns/
5
Disponível em http://www.presidency.ucsb.edu/ws/index.php?pid=76913

6
mais favorável a leis de restrição, mas sem dar ares de um discurso mais conservadores,
tornando-se, portanto, uma candidata de posições mais ao centro no que se refere às armas.

Da mesma forma, intimamente relacionada a questão do armamento, o imaginário


em torno das milicas armadas, forma de organização militar recorrente durante a
Independência, ainda tem um peso ideológico na mentalidade de muitos americanos e é outro
exemplo desse processo. Tendo em vista o passado da revolução, esse imaginário estabelece a
concepção de que a população deve estar preparada e, portanto, armada para organizar-se pela
defesa de seus direitos, seja contra um inimigo estrangeiro seja contra o próprio governo.
Recentemente, tivemos um exemplo desse fenômeno no estado americano do Oregon que
testemunhou a ocupação de terras federais por um grupo de milicianos armados (inclusive
vindos de outros estados), que se posicionava em defesa de rancheiros que estavam em uma
disputa legal em torno dos limites entre terras privadas e públicas. Todo esse memorialismo
também possui na lei um meio de sustento legal. Criada para responder aos anseios do tempo
em que foi escrita, a Segunda Emenda da Constituição a despeito da questão do anacronismo
é usada para legitimar não apenas o porte de armas, mas também a venda de armamento
pesado de uso militar, assim como a existência dessas forças milicianas armadas. Por
conseguinte, se torna claro o porquê de o texto da Segunda Emenda ser quase considerado
sagrado pelos conservadores americanos, sempre preparados para sair em sua defesa e
amparados pelo poderoso lobby de organizações como a NRA (Nation Rifle Association) no
Congresso.6

Outro exemplo desse fenômeno é a doutrina que coloca os Estados Unidos como
uma nação privilegiada pelo destino e por Deus. Cunhada em 1845, o conceito de Destino
Manifesto surgiu durante o período de expansão ao oeste, mas não “havia algo de
especialmente novo na ideia de que a América tinha um destino a ser tornado manifesto.
Afinal, Thomas Paine havia advertido a geração revolucionária de que sua causa era “a causa
de toda a humanidade”. ” (GRANT, 2014, p. 202). Obviamente, essa doutrina existe de forma
diferente de como existia no período revolucionário e no período da expansão, dado que as

6
O poder desse lobby é facilmente percebível quando, mesmo diante de atentados como os em
Charleston e San Bernardino ambos em 2015 e o de Orlando em 2016 (atentados cometidos por
indivíduos que facilmente compraram armamento pesado apesar de seus históricos de doenças mentais
ou possível ligação com o terrorismo), ele ainda assim consegue inibir o avanço de leis que restringem
o acesso de pessoas com esses tipos de históricos consigam adquirir esse armamento. A retórica
utilizada pelos defensores da não restrição sempre é a mesma: o Estado não pode sob circunstância
nenhuma inibir qualquer restrição à compra de armas de qualquer cidadão, pois isso vai contra os
valores americanos protegidos pela Segunda Emenda.

7
circunstâncias históricas são diferentes. Todavia, esse discurso em torno de um suposto
destino do país ainda pode ser encontrado na retórica política como, por exemplo, no discurso
do ex-presidente Ronald Reagan na Convenção do Partido Republicano em 1988:

“I believe that God put this land between the two great oceans to be found by
special people from every corner of the world who had that extra love for
freedom that prompted them to leave their homeland and come to this land to
make it a brilliant light beam of freedom to the world. ” 7

O vínculo dessa doutrina e da ideia dos Estados Unidos como guardiões do


mundo e da liberdade é clara. Portanto, o uso da ideia de uma América como uma terra
abençoada, livre e destinada a ser assim é recorrente como meio de conseguir apoio em cima
do patriotismo dos eleitores. Inclusive, essa visão de uma grandeza a qual os Estados Unidos
estariam destinados também se faz muito presente no slogan e no discurso de campanha desse
ano do pré-candidato pelo Partido Republicano à presidência Donald Trump. Seu slogan
“Make America great again!” passa a ideia de uma nação que perdeu os rumos de seu destino
como a grande potência mundial hegemônica e que, portanto, deve lutar para recuperar seu
papel, seu destino à grandeza. Além disso, apesar de obviamente não ser o suficiente para
explicar o imperialismo americano, ela com certeza é um mecanismo de legitimação da
política externa para a população. Como afirmou Shane Mountjoy:
“Although other American presidents did not cite Manifest Destiny as
justification for their actions, the endurance of the idea that America has role
and place as a world leader in the defense of freedom and democracy is
undeniable. Today, America’s role as a superpower embodies many of these
same elements of Manifest Destiny, including the desire to encourage the
establishment of democratic governments around the world. John O’Sullivan
and other nineteenth century expansionists might not recognize much of
their world in modern-day America. They might, however, recognize the
fruits of their labors and dreams to fulfill the Manifest Destiny of the United
States. ” (MOUNTJOY, 2009, p.115)

Tendo em vista o que foi discorrido, percebe-se que o patriotismo americano é


muito centrado em valores e que as origens de muitos desses valores podem ser traçadas até o
período de agitação revolucionária. Isso, é claro, é muito auxiliado pela própria configuração
demográfica do país, que é formado por grupos étnicos e culturais os mais diversos, levando à
necessidade de um elemento que agregue esses grupos tão diferentes; desse modo, ideais se
tornam um excelente meio para congregar essas pessoas em um país que concede cidadania
àqueles que nascem em seu solo, mesmo aos que não possuem nenhum familiar americano.

7
Disponível em http://millercenter.org/president/reagan/speeches/speech-5469

8
Assim sendo, à semelhança do que pode ser encontrado no caso da américa espanhola, a
nação-pátria que é invocada é uma realidade ao mesmo tempo política, moral e espiritual, que
ultrapassa uma entidade geográfica particular (GUERRA, p. 20). Logo, torna-se claro como
determinados valores, ideais e, por conseguinte, a memória de um evento histórico de grande
importância para uma nação como a Guerra de Independência consegue exercer tanto peso
ideológico no imaginário americano.

4. What would our Founding Fathers do?

“A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que


comprime o cérebro dos vivos. ” (Karl Marx)

Há duas indagações que são comuns de serem encontradas quando americanos


estão são diante de um dilema ou problema: o que Jesus faria e o que os nossos Pais
Fundadores fariam? Vê-se a importância que a imagem em volta dos Pais Fundadores
representa na medida que eles são invocados pelos americanos da mesma forma como muitos
cristãos invocam Jesus. É inegável como as figuras dos Pais Fundadores estão entre as figuras
mais mitificadas nos Estados Unidos. É de fato algo que é facilmente encontrada no
continente americano: a mitificação em torno dos assim chamados pais fundadores da pátria.
Se os venezuelanos têm Simon Bolívar, os americanos têm, mesmo que alguns deles se
ressaltem em detrimento de outros, a figura coletiva dos Pais Fundadores. E isso não é algo
particular apenas a conservadores, mas também aos liberais americanos. À esquerda ou à
direita, a invocação da imagem dos fundadores é presente nos discursos políticos, assim como
a da obra que eles empreenderam: a Constituição e a Declaração de Independência. Claro que
a forma como suas figuras e obras são utilizadas pode variar; alguns preferem dar mais
relevância a tal ou outro aspecto: conservadores a luta contra a taxação, uma ênfase maior na
Constituição do que na Declaração de Independência e, como já dito, na defesa da Segunda
Emenda da Constituição; enquanto liberais tendem a chamar a atenção para a defesa dos
direitos iguais e, assim sendo, na Declaração de Independência. Será dessa forma que, em seu
famoso discurso em frente ao Memorial Lincoln (uma escolha de lugar de memória que já
denota o teor do discurso), Martin Luthor King Jr irá chamar atenção às palavras da
Declaração de Independência, mais especificamente a frase "We hold these truths to be self-
evident, that all men are created equal.".

9
Dessa maneira, tanto os Pais Fundadores como seus membros individualmente são parte
constante nos discursos, tanto de parlamentares, quanto de presidentes, principalmente em
discursos de grande comoção. Nos dois exemplos que seguem, temos fragmentos dos
discursos do presidente Barack Obama em seu discurso de posse em 2009 e do ex-presidente
Ronald Reagan no seu Discurso Sobre o Estado da União de 1988:

“As for our common defense, we reject as false the choice between our
safety and our ideals. Our Founding Fathers, faced with perils we can
scarcely imagine, drafted a charter to assure the rule of law and the rights of
man, a charter expanded by the blood of generations. ”8
“We're for limited government, because we understand, as the Founding
Fathers did, that it is the best way of ensuring personal liberty and
empowering the individual so that every American of every race and region
shares fully in the flowering of American prosperity and freedom. ” 9

A diferença de partidos e de ideias não é impedimento para que esses dois presidentes
invoquem a imagem dos pais da república em discursos de grande importância em seus
mandatos.

Da mesma forma, outra indagação que é feita tanto por políticos quanto por
cidadãos comuns é o que os Pais Fundadores achariam do país atualmente ou de determinadas
situações.10 A resposta geralmente é a de que eles não gostariam do que veriam, de que os
objetivos dos Pais Fundadores não foram devidamente defendidos e preservados. Essa
concepção em torno dos fundadores não é apenas extremamente anacrônica, como também
demostra uma visão muito equivocada em torno desse grupo de homens. Ela é anacrônica
porque desconsidera as imensas diferenças entre o período em que os fundadores viviam (suas
circunstâncias, necessidades e imperativos) e o momento histórico em que seus nomes são
invocados; suas figuras são deslocadas de seu tempo histórico específico e tornam-se
transcendentais, capazes de serem trazidas como modelo para resolver qualquer contenda
presente; quanto mais próxima uma solução estaria de um suposto ideal comum
compartilhado entre os Pais Fundadores, melhor ela representaria os anseios atuais do país.
Do mesmo modo, a invocação dos Pais Fundadores desconsidera a própria diferença entre
eles, ela pressupõe uma unidade de pensamento entre seus membros, quando a realidade
mostra que eles eram um grupo muito heterogêneo em termos de ideias:

8
Disponível em http://millercenter.org/president/obama/speeches/speech-4453
9
Disponível em http://millercenter.org/president/reagan/speeches/speech-5684
Ao entrarmos na internet, podemos facilmente encontrar esse tipo de indagação pelas pessoas, tanto
10

por pessoas de tendências liberais quanto conservadoras.

10
"[...] the American Revolution was not a set experience with a set meaning
even for those individuals at the highest levels of the Revolutionary power
structure. The meaning and the story of the Revolution varied significantly
from individual to individual based on the goals and objectives of each of the
leading players in the formation and preservation of the American state. "
(TIPTON, p. 30)

O fato era que, mesmo compartilhando algumas ideias em comum, esses homens
não apenas possuem visões distintas em vários aspectos como o futuro da república recém-
formado por exemplo, como também o período em que viviam não foi, como já mostrado no
início do artigo, uma época de grande consenso entre os americanos. É claro que a Guerra de
Independência como mito fundador da nação produz a falsa ideia de uma coesão entre aqueles
agentes históricos, coesão necessária para sustentar a visão sacralizada que se têm em torno
desses indivíduos. Desta forma, quase podemos falar de uma hagiografia em torno da vida,
obra e pensamento desses homens aclamados por muitos como os pais fundadores da nação-
pátria americana.

5. Considerações Finais
A imaginação em torno da fundação de um país é claramente de suma importância
para a formação de um sentimento de pertencimento a uma nacionalidade. Seja na Europa,
seja na América, o evento de fundação é sempre um evento de celebração, um evento cujos
acontecimentos e atores exercem grande peso na memória coletiva nacional. Nesse sentido,
essa memória é facilmente convertida em um meio de legitimação de determinadas posições
políticas. Nos discursos, nas manifestações, tais eventos, atores e seus feitos são invocados da
mesma forma, para sustentar posições muitas vezes completamente distintas, ao passo em que
o anacronismo, a separação temporal entre esse passado e o momento de sua invocação sãos
geralmente ignorados. Portanto, a despeito do fato daquilo que podemos chamar de nação
americana não ter surgido nela, a Guerra de Independência é o principal evento de aclamação
e celebração no imaginário nacional americano, por conseguinte, o peso que ele tem na
construção do patriotismo americana é imenso e é assim que ele se torna parte constante no
atual cenário político americano, nos discursos, símbolos, slogans e na própria mentalidade
dos indivíduos. Sendo assim, com tudo o que foi discorrido, percebe-se como o passado
muitas não passa, ele subsistente como um espectro que ronda a vida e a política de uma
nação.

11
Referências bibliográficas

GRANT, S. M. História Concisa dos Estados Unidos da América. São Paulo: EDIPRO, 2014.

GUERRA, X. F. A nação na América espanhola: a questão das origens. Disponível em


http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/maracanan/article/viewFile/13242zz/10116
Acesso em 25/04/2016

KARNAL, L. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto,
2007.

MOUNJOY, S. Manifest Destiny: Westward Expansion New York: Chelsea House Pub, 2009

TIPTON, D. T. Searching for Meaning: The Legacy of the Founding Fathers and Their
Revolutionary Narratives. Disponível em:
http://trace.tennessee.edu/cgi/viewcontent.cgi?artic
le=2238&context=utk_chanhonoproj Acesso em 24/04/2016

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