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1.INTRODUÇÃO
O documento que será abordado nesse trabalho encontra-se no livro “The Ink
Dark Moon", um compêndio poético escrito por Ono no Komachi e Izumi Shikibu, duas
das mais reconhecidas poetisas da história do Japão. A compilação aqui utilizada é a
tradução de Jane Hirshfield, com o apoio de Mariko Aratani, publicada pela primeira
vez em 1986 pela editora Vintage Books, que traduziu os poemas a partir da edição feita
por Utsubo Kubota em Asachi Shimbunsha, Nihon Koten Zensho, 1958. A obra
também oferece além dos poemas traduzidos para o inglês, a sua tradução em romaji
(texto japonês escrito em alfabeto latino), todos feito por Mariko Aratani.
Os poemas presentes em “The Ink Dark Moon” são uma coletânea de escritos de
duas das principais poetisas do período. Ono no Komachi (834 - ?) que serviu na corte
imperial (atual Kyoto), durante o século IX, é vista como uma poetisa com uma
subjetividade apaixonante e complexa, possuidora de uma escrita de grande
introspecção e considerada uma figura pioneira e lendária na história literária japonesa1.
E Izumi Shikibu (974 – 1034) que esteve na corte imperial no período de seu maior
florescimento cultural; sua poesia conta com um misto de consciência religiosa e
intensidade erótica, e é considerada por alguns como a maior poetisa japonesa. As duas
viveram no período Heian, creditado como a idade do Ouro na literatura japonesa e
momento no qual a participação feminina destacou-se frente à produção literária
masculina. Nesse sentido, “the Heian age stands out for the contributions made by
noblewomen in the production of literary Works and as sponsor of the arts and religious
cereonies. Their participation in political decisions ate the center, however, has
traditionally been seen as limited”2, principalmente quando analisando-se períodos
passados da história japonesa. Através dessa citação podemos compreender que, a
despeito das mulheres da nobreza japonesa terem sofrido uma diminuição de sua
1
The Ink Dark Moon: love poems by Ono no Komachi and Izumi Shikibu, women of teh ancient court of
Japan, translated by Jane Hirshfield with Mariko Aratani, pp. xi
2
Sanae, F. and Watanabe, T. “From Female Sovereing to Mother of the Nation (Women and Government
in the Heian Period), pp. 15
participação política, mantiveram ampla participação social na corte, com a primazia no
ordenamento interno pertencendo às mulheres3, responsáveis por controlar crises e
solucionar problemas. Neste cenário elas foram não apenas pioneiras na produção
literária em japonês (pautadas em diversos temas, tais como: os sentimentos, vontades e
outros aspectos da vida), mas também pela própria formação do idioma japonês. A
poesia da Era Heian também possuía um caráter de fundamental importância para toda a
sociedade da corte e não apenas para os escritores e escritoras; de certa forma nosso
documento nos permite “compreender” a maneira e o pensar de um grupo social
localizado na corte imperial em Kyoto. A escrita de poemas era um padrão cultural na
elite japonesa, pois seria através deles que ocorreria a expressão da profundidade
emocional de uma pessoa e era justamente a transmissão desta profundidade a marca de
uma pessoa educada. Assim sendo, dada a característica das autoras, dos seus poemas
como um todo e do contexto elas viveram, podemos argumentar e a partir disto darmos
corpo ao trabalho, que os pequenos poemas compostos por elas servem como uma
janela para o período em que eles foram escritos ainda que de forma limitada, nos
mostrando elementos das relações sociais entre os membros da aristocracia japonesa.
Através destas duas poetisas, trazemos o enunciado para as questões que estarão
em análise neste trabalho. Discutiremos o contexto histórico da produção literária do
período Heian e a importância da presença feminina nessa produção e buscaremos
delimitar temáticas e suas significações nos poemas das duas autoras. Portanto,
esperamos que este trabalho proporcione tanto uma análise da produção poética das
autoras, como também da sociedade de corte em que elas viveram.
3
IBIDEM
produção textual japonesa em chinês. É também aqui que veremos surgir importantes
mulheres escritoras, que apesar de já existentes em outros períodos, ganharam maior
destaque e influência nesse momento da produção literária do Japão.
“[...]it was the norm for both men and women to communicate in
written Japanese. Classical Chinese, on the other hand, remained very
much a male preserve. Most women were not taught Chinese and were
thereby effectively excluded from participation in the power structure,
and in order to perpetuate this state of affairs the useful fiction was
generated that it was ‘unbecoming’ for the female to learn Chinese.”
(BOWRING, 2004, p.11)
4
Uma parte da escrita vernacular foi incialmente feita por homens, mas que publicavam seu trabalho
anonimamente devido ao desprestígio que o novo silabário possuía até então. Introduction: court culture,
women, and the rise of vernacular literature (LAURIE, 2016, p. 100)
A despeito da restrição às mulheres ao aprendizado da língua chinesa, elas possuíam um
contato com o idioma, seja através da leitura de poemas em kanbun por homens em
espaços públicos para apreciação de ambos os sexos ou em casos de mulheres como
Murasaki Shikibu, a autora do Romance de Genji, que conseguiriu superar a barreira de
gênero e aprendeu a utilizar o idioma chinês. Esses casos são relevantes, visto que
“there can be no doubt that the acquisition of Chinese by women was seen as a threat, a
subversive act of considerable, if undefined, moment.” (BOWRING, 2004, p.11). O caso
de Murasaki Shikibu é marcante pela própria descrição que ela faz em seus diários de
sua experiência com o aprendizado da língua. A autora afirma que tinha o hábito de
escutar seu irmão quando era jovem sendo ensinado no chinês clássico e percebia que
conseguia compreender passagens que ele tinha dificuldade. Seu pai, um intelectual de
grande prestígio no idioma, pensava com infelicidade que ela com tamanha habilidade
tivesse nascido mulher. Ela também afirma que passou a evitar a escrever e ler em
chinês quando percebeu a estigma social que as mulheres sofriam se buscassem
aprenderem o idioma. Porém, não abandonou seu aprendizado em chinês, ao ponto de
ter servido como professora informal da língua para a Imperatriz Shōshi (aulas que eram
ministradas em segredo de outras pessoas, inclusive de mulheres da corte).5
Estigmatizadas, portanto, ao aprendizado do chinês clássico e tendo que desenvolver
uma nova forma de escrita para uma língua que até então existia apenas em forma oral,
as mulheres ganharam destaque na produção literária em kana e em poesia waka6.
Consequentemente, o legado delas para a literatura e cultura japonesa é muito
significativo, pois a escrita japonesa produzida naquele período, que era
predominantemente identificada como feminina, tornou-se a base para a produção
literária posterior. A própria percepção que se tem hoje do período por meio da
literatura é dominada pela produção feminina. Como afirma, Richard Bowring:
5
A descrição aqui feita foi feita baseado em citações dos diários de Murasaki Shikibu presentes em
BOWRING, 2004.
6
A poesia escrita em japonês que coexistia com o kanshi, poesia escrita em chinês.
Um segundo aspecto das relações de gênero que podemos identificar na partição
feminina no universo literário no período Heian é o espaço das mulheres escritoras na
corte imperial japonesa. Em contraste com os homens, que tinham maior acesso a esfera
de poder, as mulheres eram restringidas a um espaço privado de atuação. Isso também
se relaciona com a identificação do estudo e conhecimento de chinês clássico como uma
atividade masculina, afinal o conhecimento do kanbun era imprescindível para funções
governamentais. Atuando, portanto, em um espaço restritivo, as mulheres tiveram que
buscar destaque em um ambiente mais separado do núcleo do poder. Esse é o caso das
damas de companhia, que, durante o período Heian, tiveram um grande aumento da sua
importância social, política e cultural na corte imperial em Kyoto. A habilidade literária
era uma porta de entrada para mulheres nobres tornarem-se damas de companhia para a
família real. Alguns clãs conseguiam assim estar diretamente próximas da realeza
através de suas filhas, que adquiriam maior prestígio conforme maior era a sua
habilidade nas artes. Uma parte considerável das grandes obras literárias do período
Heian foram escritos por essas damas de companhia. Por consequência, apesar do
“status and role of female officials began to erode in the public domain, the
participation of noblewomen in the private sphere continued to be prominent, if not
increased” (SANAE; WATANABE, 2007, p. 19). Em vista disso, mulheres nobres
mesmo afastadas de cargos oficiais poderiam dentro do espaço privado adquirir
importância e grande prestígio através de sua produção literária.
Towika Mountain’s
pine trees are always green -
I wonder,
do they recognize autumn
In the sound of the blowing wind? (KOMACHI, ano, p.??)
Como podemos perceber a partir dos poemas explicitados acima, as poetisas dão
sentido ou vida às condições naturais. No primeiro caso exemplificado, as flores detêm,
inclusive, capacidade de comunicação. E no segundo, as árvores têm o poder de
reconhecimento. Além disso, também ressaltamos que, em diversos poemas, há uma
medição de tempo clara por meio das estações. Poucos são os poemas e falam de dias
ou de semanas. Em sua maioria, como no trecho acima, falava-se sobre início e/ou fim
de certa estação, observação de certa fase lunar, ou então observação de alguma fase do
dia (como o crepúsculo, por exemplo).
Com isso, podemos perceber que a noção de tempo das autoras, além de ser
diferente da medição que utilizamos hoje, tem um ritmo particular, articulado ao ritmo
da poesia. Em poesias que não falam de situações específicas, como é o caso do
exemplo, as afirmações, dúvidas e questionamentos das autoras duram estações; ao
passo que casos específicos duram dias ou momentos desses dias.
Ainda assim, queremos explicitar mais duas relações feitas entre a natureza e a
escrita de Shikibu e Ono no Komachi. Para a primeira delas, usaremos o seguinte
poema como exemplo:
Last year’s
Fragile, vanished snow
Is falling now again –
If only seeing you
Could be like this (SHIKIBU, 1990, p. 88)
While Watching
the long rains falling on this world
my heart, too fades
with the unseen color
of the spring flowers. (KOMACHI, ano, p. ??)
Night deepens
with the sound
of a calling deer,
and I hear
my own one-sided love (KOMACHI, ano, p.??)
How sad,
to think I will end
as only
a pale green mist
drifting the far fields. (KOMACHI, ano, p.??)
3. Relações Românticas
Os poemas relacionados às relações românticas demonstram uma parte
importante das relações de gênero no Japão da dinastia que estamos estudando. De
acordo com o Mariko Aratani e Jane Hirshfield (1990), os encontros românticos
aconteciam majoritariamente à noite. Ambas autoras expressam questões dessa relação
em seus poemas:
To a man who used to visit secretly but asked to come now in daylight
There are many
Strange and lovely things
That swim in the midnight tide pools...
I think I do not want to share them
With other divers’ eyes by day (SHIKIBU, 1990, p. 91).
Com isso, ressaltamos que o poema seria enviado mesmo se o encontro não
acontecesse. Ou seja, podemos pensar que a produção e que a troca de poemas no Japão
Heian era muito grande entre a elite. Porém, também gostaríamos de questionar uma
ideia: Em diversos poemas, as autoras utilizam expressões sem gênero (como someone,
one, you, etc). Na língua japonesa, a tradução para línguas binárias depende
inteiramente do contexto. Seria necessário saber exatamente o gênero dos interlocutores
para determinar o uso correto das palavras para o idioma para o qual foi traduzido.
No caso do inglês (idioma do livro foco deste artigo) possui-se a alternativa de
"they/their" como indicativo de não-binaridade, apesar de ser um termo antigo e estar
voltando ao uso num contexto mais recente. Mas, no caso de tradução de poemas o que
deve ser levado muito em conta é o contexto histórico, mesmo para determinar se algum
personagem da história possui um gênero. Às vezes é possível determinar por uma
posição social ou profissão, pois na época as mulheres não podiam fazer muitas coisas.
No caso dos poemas em questão a tradução fica ainda mais difícil, pois são escritos em
japonês antigo que é na prática quase outra língua, tamanhas as discrepâncias com a
língua moderna.
Para explicar um pouco como a questão de gênero funciona dentro do idioma,
explicaremos um pouco da gramática, utilizando exemplos. Kare/Kano (Ele/Ela) são os
únicos marcadores verdadeiramente binários e é possível manter uma conversa inteira
sem utilizar nenhum deles. Outra coisa que é muito utilizada como marcador é certos
termos que homens e mulheres usam preferencialmente, por exemplo: se algum
personagem usar "Washi/Boku/Ore" como alternativa para "Watashi" (Eu) há 99% de
certeza de que esse personagem é homem, pois essas formas são muito mais utilizadas
por homens. "Watakushi/Watashi" são formas mais femininas de falar (apesar da
certeza cair para 70% , pois homens também pode usar watashi). Hoje em dia, os
homens informalmente utilizam muito a forma “Boku”, contudo “Watashi” é o termo
formal comum. São esses os fatores gramaticais que podem nos dar indicativo do
gênero das personagens. Não se trata de dizer, com isso, que as autoras se relacionavam
romanticamente ou sexualmente com outras mulheres. Por meio dessa reflexão,
questionamos o quanto a nossa visão sobre o passado (assim como a visão de
historiadores japoneses) pode ser heteronormativa. Afinal, as bibliografias que lemos
não citam a existência de homoerotismo ou bierotismo no Japão Clássico. Será que é
porque isso não é estudado ou porque se assume que a heterossexualidade como natural
para esses sujeitos?
Além desse trecho específico, a poetisa também dedicou uma série de poemas ao
príncipe Astumichi, pelo motivo de sua morte. Consideramos esse ponto digno de ser
notado levando em conta a posição na corte assumida pela autora. Qual era o tipo de
relação pessoal entre os dois, na medida em que ela não era a primeira esposa dele?
Quais teriam sido as relações entre as primeiras e as subsequentes esposas?
Infelizmente, os poemas não nos dão informações suficientes para responder essas
perguntas, mas achamos interessante levantar tais questões. Terminamos esse capítulo,
por fim, com um dos poemas de luto do Príncipe Astumichi:
Twilight,
And the path you took
Coming and going from me
Is also gone,
Woven closed by spiderwebs and sorror.
Too painful
That you became smoke –
Even the cicada’s
Empty, useless shell
Lasts on in existence. (SHIKIBU, ano, p. 144)
4. Conclusão
Em recente análise do espaço que a Idade Média ocupa nas diferentes versões da
BNCC, Igor Teixeira e Nilton Pereira também traçam algumas diferentes abordagens
possíveis para o ensino de Idade Média no atual contexto brasileiro, questionando
assim, a posição de apagamento que o estudo do período assumiu dentro da primeira
versão do documento.7 Dentre tais abordagens, uma delas nos é especialmente
interessante para a discussão feita durante este trabalho. Dizem os autores:
Além daquilo que as autoras podem nos ensinar sobre nós mesmos, também
existe a dimensão do estranhamento: conhecer uma sociedade que se organiza de
maneira muito diferente da nossa, e também do nosso passado direto, como argumenta
também Nilton Pereira8, também é significativo para nossa formação. O autor
argumenta, principalmente no que tange à Idade Média das nações europeias, que a
apropriação dessas sociedades também engloba compreender de maneira mais apurada a
alteridade estabelecida pelos europeus modernos para com o medievo, e por
consequência, quais são estes valores europeus modernos que tanto moldaram, não
apenas a si mesmos, como também a outros, incluindo muitas sociedades africanas,
asiáticas e também americanas. Embora não tenhamos a mesma percepção sobre a
Idade Média possuir papel tão central nesse debate, é bastante relevante nos
perguntarmos: será que o Japão do período Heain não nos mostra outra ideia das
“diferenças”, não nos apresenta uma sociedade que não tenha, talvez, uma relação direta
com a que vivemos hoje, e isso nos dá maior capacidade de reflexão sobre
possibilidades de intervenções no presente?
8 PEREIRA, Nilton Mullet. Ensino de História, Medievalismo e Etnocentrismo. Historiæ, Rio Grande, 3
(3): 223-238, 2012.
com a reflexão sobre quem eram os sujeitos dessa produção textual num período mais
recuado e quem são estes sujeitos na atualidade, são ganhos que um olhar cuidadoso,
não apenas para o conteúdo, mas também para a forma da escrita de Komachi e Shikibu
podem contribuir.
ARATANI, M.; HIRSHFIELD, J. The Ink Dark Moon. New York: Vintage Books,
1990.
LAURIE, D. Introduction: writing, literacy, and the origins of Japanese literature. In:
SHIRANE, H.; SUZUKI, T.; LAURIE, D. The Cambridge History of Japanese
Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.
PEREIRA, Nilton Mullet, TEIXEIRA, Igor Salomão. A Idade Média nos currículos
escolares: as controvérsias nos debates sobre a BNCC. Diálogos, v.20, n.3, 16-29.
SANAE, F.; WATANABE, T. From Female Sovereign to Mother of the Nation Women
and Government in the Heian Period. In: ADOLPHSON, M.; KAMENS, E.;
MATSUMOTO, S. (Orgs). Heian Japan, Centers and Peripheries. Honolulu: University
of Hawaii Press, 2007.
SMITS, I. The Way of the Literati Chinese Learning and Literary Practice. In: Mid
Heian Japan In: ADOLPHSON, M.; KAMENS, E.; MATSUMOTO, S. (Orgs). Heian
Japan, Centers and Peripheries. Honolulu: University of Hawaii Press, 2007.