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TÍTULO

1.INTRODUÇÃO

O documento que será abordado nesse trabalho encontra-se no livro “The Ink
Dark Moon", um compêndio poético escrito por Ono no Komachi e Izumi Shikibu, duas
das mais reconhecidas poetisas da história do Japão. A compilação aqui utilizada é a
tradução de Jane Hirshfield, com o apoio de Mariko Aratani, publicada pela primeira
vez em 1986 pela editora Vintage Books, que traduziu os poemas a partir da edição feita
por Utsubo Kubota em Asachi Shimbunsha, Nihon Koten Zensho, 1958. A obra
também oferece além dos poemas traduzidos para o inglês, a sua tradução em romaji
(texto japonês escrito em alfabeto latino), todos feito por Mariko Aratani.

Os poemas presentes em “The Ink Dark Moon” são uma coletânea de escritos de
duas das principais poetisas do período. Ono no Komachi (834 - ?) que serviu na corte
imperial (atual Kyoto), durante o século IX, é vista como uma poetisa com uma
subjetividade apaixonante e complexa, possuidora de uma escrita de grande
introspecção e considerada uma figura pioneira e lendária na história literária japonesa1.
E Izumi Shikibu (974 – 1034) que esteve na corte imperial no período de seu maior
florescimento cultural; sua poesia conta com um misto de consciência religiosa e
intensidade erótica, e é considerada por alguns como a maior poetisa japonesa. As duas
viveram no período Heian, creditado como a idade do Ouro na literatura japonesa e
momento no qual a participação feminina destacou-se frente à produção literária
masculina. Nesse sentido, “the Heian age stands out for the contributions made by
noblewomen in the production of literary Works and as sponsor of the arts and religious
cereonies. Their participation in political decisions ate the center, however, has
traditionally been seen as limited”2, principalmente quando analisando-se períodos
passados da história japonesa. Através dessa citação podemos compreender que, a
despeito das mulheres da nobreza japonesa terem sofrido uma diminuição de sua

1
The Ink Dark Moon: love poems by Ono no Komachi and Izumi Shikibu, women of teh ancient court of
Japan, translated by Jane Hirshfield with Mariko Aratani, pp. xi
2
Sanae, F. and Watanabe, T. “From Female Sovereing to Mother of the Nation (Women and Government
in the Heian Period), pp. 15
participação política, mantiveram ampla participação social na corte, com a primazia no
ordenamento interno pertencendo às mulheres3, responsáveis por controlar crises e
solucionar problemas. Neste cenário elas foram não apenas pioneiras na produção
literária em japonês (pautadas em diversos temas, tais como: os sentimentos, vontades e
outros aspectos da vida), mas também pela própria formação do idioma japonês. A
poesia da Era Heian também possuía um caráter de fundamental importância para toda a
sociedade da corte e não apenas para os escritores e escritoras; de certa forma nosso
documento nos permite “compreender” a maneira e o pensar de um grupo social
localizado na corte imperial em Kyoto. A escrita de poemas era um padrão cultural na
elite japonesa, pois seria através deles que ocorreria a expressão da profundidade
emocional de uma pessoa e era justamente a transmissão desta profundidade a marca de
uma pessoa educada. Assim sendo, dada a característica das autoras, dos seus poemas
como um todo e do contexto elas viveram, podemos argumentar e a partir disto darmos
corpo ao trabalho, que os pequenos poemas compostos por elas servem como uma
janela para o período em que eles foram escritos ainda que de forma limitada, nos
mostrando elementos das relações sociais entre os membros da aristocracia japonesa.

Através destas duas poetisas, trazemos o enunciado para as questões que estarão
em análise neste trabalho. Discutiremos o contexto histórico da produção literária do
período Heian e a importância da presença feminina nessa produção e buscaremos
delimitar temáticas e suas significações nos poemas das duas autoras. Portanto,
esperamos que este trabalho proporcione tanto uma análise da produção poética das
autoras, como também da sociedade de corte em que elas viveram.

2. As mulheres escritoras no período Heian (794-1185)

O período Heian (794-1185) marca um importante momento para a produção


cultural e literária no Japão. Durante esse período, o pais irá viver seu primeiro
momento de isolamento e essa nova situação será acompanhada por inovações na
linguagem, cultura, literatura e estética japonesa. Herdando do período Nara (710-794),
a forte influência da Ásia continental na produção cultural e literária, o período Heian
viu emergir a união de elementos externos e nativos na criação de um novo sistema
cultural, marcado tanto pela manutenção da preponderância do uso da língua chinesa,
como também pela criação de um silabário vernacular próprio que coexistiu com essa

3
IBIDEM
produção textual japonesa em chinês. É também aqui que veremos surgir importantes
mulheres escritoras, que apesar de já existentes em outros períodos, ganharam maior
destaque e influência nesse momento da produção literária do Japão.

A institucionalização da atividade literária na sociedade fechada da corte


japonesa é uma característica marcante do período Heian. Através dessa
institucionalização, a poesia ganhará um grande espaço tanto no universo cerimonial,
quanto no cotidiano de homens e mulheres, não apenas como uma forma de
entretenimento, mas também como uma maneira de estabelecer relações pessoais e
comunicação elevada entre pessoas. Desta forma, a habilidade de compor e apreciar
poesia tornou-se um elemento indispensável na sociedade aristocrática do período. A
criação de antologias poéticas imperiais e de competições de poesia, assim como a sua
presença indispensável em banquetes revela a força social que a poesia adquiriu na corte
japonesa. Nesse sentido, a poesia adquiriu um papel importante para a criação e
manutenção de relações entre os membros da corte, ao ponto que a habilidade da
produção de poesia de grande beleza era em si um fato relevante para ser visto como
atrativo. Essa centralidade do papel das artes no cotidiano da nobreza era tão
significativa que “aside the unalterable circumstance of inherited Family rank,
successful display of aesthetic sensibility was the primary means of establishment
personal distinction among members of court, both male and female” (ARATANI;
HIRSHFIEL, p.xii). Por conseguinte, encarado como forma superior de comunicação, a
poesia afetava significativamente as relações amorosas; um poema poderia ser usado
como primeira forma de contato entre um homem e uma mulher e a contínua troca de
poemas funcionava como uma forma de manutenção de multo interesse. Deste modo, a
poesia de corte era marcadamente intimista e pessoal; um traço que denota o objetivo
predominante estético na sua escrita como uma forma de prova da habilidade de
converter sentimentos e percepções pessoais em forma de poesia. Assim, a presença de
assuntos como o amor e natureza dominavam, enquanto filosofia, política, religião e o
mundo fora do universo da aristocracia figuravam raramente. Esse aspecto é importante,
pois, como a maioria dos autores eram membros da aristocracia ou pelo menos pertencia
à sociedade de corte e vive sob influência de seu forte isolamento. A poesia adquiriu
dessa forma um padrão em termos de vocabulário e estilística que foi mais valorizado
que a originalidade. Sendo assim, “although Japanese culture broadened its horizons
under Chinese influence and inherited literary forms erected on the foundations of those
broadened horizons, it has gradually narrowed and restricted its field of vision.”
(KATO, 1997, p. 60)

Outra característica significativa desse período foi a criação e uso da kana, as


silabas japonesas, que coexistiram com a apropriação de elementos estrangeiros como o
kanbun, a escrita chinesa usada para transcrever a língua japonesa. O uso e influência do
chinês no Japão eram tão grandes naquele período que “Chinese learning was both
assimilated and appropriated into the indigenous culture. As a separate cultural tradition
or gathering of traditions, however, Chinese learning became itself a Japanese
tradition.” (KAMENS, 2007, p.133). E é justamente na forma como as mulheres
escritoras do período Heian vão se relacionar com essa preponderância do chinês e de
sua coexistência com a língua nativa do país que reside parte da divisão de gênero que
existia na produção textual e literária do período. Ao passo em que a habilidade na
produção poética era indispensável tanto para homens, quanto para mulheres, o
conhecimento e escrita em língua chinesa (que era a língua mais prestigiada e a língua
do governo e da religião) ainda era visto como uma atividade masculina, sendo
desencorajado às mulheres a aprenderem. Como afirma, Richard Bowring :

“[...]it was the norm for both men and women to communicate in
written Japanese. Classical Chinese, on the other hand, remained very
much a male preserve. Most women were not taught Chinese and were
thereby effectively excluded from participation in the power structure,
and in order to perpetuate this state of affairs the useful fiction was
generated that it was ‘unbecoming’ for the female to learn Chinese.”
(BOWRING, 2004, p.11)

Por conseguinte, enquanto a nobreza masculina continuou preferindo o uso da língua


chinesa, as mulheres eram legadas a escrita no silabário japonesa, uma atividade inferior
na perspectiva masculina do período.4 Entretanto, segundo Ivo Smits:

“While active participation in kanbun production was an exclusively


male prerogative throughout the Heian period, there were quite a few
women at court who had varying degrees of understanding of how to
read Chinese texts. In this sense women should be taken into account
as producers of meaning of these texts despite their exclusion from
authorship..” (SMITS, 2007, p. 110)

4
Uma parte da escrita vernacular foi incialmente feita por homens, mas que publicavam seu trabalho
anonimamente devido ao desprestígio que o novo silabário possuía até então. Introduction: court culture,
women, and the rise of vernacular literature (LAURIE, 2016, p. 100)
A despeito da restrição às mulheres ao aprendizado da língua chinesa, elas possuíam um
contato com o idioma, seja através da leitura de poemas em kanbun por homens em
espaços públicos para apreciação de ambos os sexos ou em casos de mulheres como
Murasaki Shikibu, a autora do Romance de Genji, que conseguiriu superar a barreira de
gênero e aprendeu a utilizar o idioma chinês. Esses casos são relevantes, visto que
“there can be no doubt that the acquisition of Chinese by women was seen as a threat, a
subversive act of considerable, if undefined, moment.” (BOWRING, 2004, p.11). O caso
de Murasaki Shikibu é marcante pela própria descrição que ela faz em seus diários de
sua experiência com o aprendizado da língua. A autora afirma que tinha o hábito de
escutar seu irmão quando era jovem sendo ensinado no chinês clássico e percebia que
conseguia compreender passagens que ele tinha dificuldade. Seu pai, um intelectual de
grande prestígio no idioma, pensava com infelicidade que ela com tamanha habilidade
tivesse nascido mulher. Ela também afirma que passou a evitar a escrever e ler em
chinês quando percebeu a estigma social que as mulheres sofriam se buscassem
aprenderem o idioma. Porém, não abandonou seu aprendizado em chinês, ao ponto de
ter servido como professora informal da língua para a Imperatriz Shōshi (aulas que eram
ministradas em segredo de outras pessoas, inclusive de mulheres da corte).5
Estigmatizadas, portanto, ao aprendizado do chinês clássico e tendo que desenvolver
uma nova forma de escrita para uma língua que até então existia apenas em forma oral,
as mulheres ganharam destaque na produção literária em kana e em poesia waka6.
Consequentemente, o legado delas para a literatura e cultura japonesa é muito
significativo, pois a escrita japonesa produzida naquele período, que era
predominantemente identificada como feminina, tornou-se a base para a produção
literária posterior. A própria percepção que se tem hoje do período por meio da
literatura é dominada pela produção feminina. Como afirma, Richard Bowring:

“The impression we have today of Heian written culture dominated by women is


partly the result of our own preference for fiction and autobiography over historical
record and partly because the Japanese written by these women (difficult of access
though it be) is still easier to read than the rather idiosyncratic Sino-Japanese in
which men wrote their diaries.” (BOWRING, 2004, p.13)

5
A descrição aqui feita foi feita baseado em citações dos diários de Murasaki Shikibu presentes em
BOWRING, 2004.
6
A poesia escrita em japonês que coexistia com o kanshi, poesia escrita em chinês.
Um segundo aspecto das relações de gênero que podemos identificar na partição
feminina no universo literário no período Heian é o espaço das mulheres escritoras na
corte imperial japonesa. Em contraste com os homens, que tinham maior acesso a esfera
de poder, as mulheres eram restringidas a um espaço privado de atuação. Isso também
se relaciona com a identificação do estudo e conhecimento de chinês clássico como uma
atividade masculina, afinal o conhecimento do kanbun era imprescindível para funções
governamentais. Atuando, portanto, em um espaço restritivo, as mulheres tiveram que
buscar destaque em um ambiente mais separado do núcleo do poder. Esse é o caso das
damas de companhia, que, durante o período Heian, tiveram um grande aumento da sua
importância social, política e cultural na corte imperial em Kyoto. A habilidade literária
era uma porta de entrada para mulheres nobres tornarem-se damas de companhia para a
família real. Alguns clãs conseguiam assim estar diretamente próximas da realeza
através de suas filhas, que adquiriam maior prestígio conforme maior era a sua
habilidade nas artes. Uma parte considerável das grandes obras literárias do período
Heian foram escritos por essas damas de companhia. Por consequência, apesar do
“status and role of female officials began to erode in the public domain, the
participation of noblewomen in the private sphere continued to be prominent, if not
increased” (SANAE; WATANABE, 2007, p. 19). Em vista disso, mulheres nobres
mesmo afastadas de cargos oficiais poderiam dentro do espaço privado adquirir
importância e grande prestígio através de sua produção literária.

O período Heian foi marcado pela institucionalização no seio da corte japonesa


da literatura, ao ponto que a produção artística em forma de poema se tornou um
elemento central da vida social dos membros da aristocracia nipônica. Através da escrita
de poemas, os nobres da corte poderiam começar e manter relações, despertar interesses
românticos e ganhar prestígio entre os membros de sua classe. Esse também foi o
momento em que uma escrita nativa própria começou a ser desenvolvida para o japonês
que era até então escrito em uma língua estrangeira, o chinês, idioma prestigiado entre a
nobreza e conhecimento indispensável para os membros do governo. Neste aspecto, as
mulheres escritoras japonesas desempenharam um grande papel, pois, mesmo não sendo
impedidas à escrita, elas sofriam a estigma social no estudo do chinês clássico,
identificado como um conhecimento e atividade permitida somente aos homens. Desta
forma, elas foram limitadas ao uso desse silabário japonês de menor prestígio, ao qual
ajudaram em sua criação por sua atuação literária no idioma. As mulheres escritoras do
período Heian tornaram-se assim figuras centrais não apenas para a criação do que se
tornou o japonês escrito, mas também para a futura literatura nacional no idioma.
Quando pensamos nas obras literárias do período inevitavelmente são os escritos dessas
mulheres que vem à mente e são principalmente essas obras que produziram a imagem
daquele momento da produção artística no Japão em que as mulheres adquiriram para as
próximas gerações o maior prestígio e renome a despeito das restrições da sociedade
patriarcal na qual viviam.

Para os organizadores do livro (HIRSHFIELD; ARATANI, 1990), as obras de


Ono No Komachi e Izumi Shikibu são figuras centrais da literatura clássica japonesa.
De acordo com eles, Izumi Shikibu (974-1034) teria ido à corte japonesa servir a uma
imperatriz. Após ser divorciada uma vez, ela tornou-se uma das esposas - não a primeira
- do Príncipe Astumichi, que morreria cinco anos depois, tornando-a apenas um
membro da corte até alcançar os trinta e seis anos, quando casou novamente e foi morar
nas províncias.
Ono no Komachi teria sido filha de um lorde de Dewa e teria servido na corte na
metade do século dez. De acordo com os autores do prefácio, estima-se que ela teve
apenas um filho e, assim como aconteceu com Shikibu, só teve reconhecimento efetivo
após sua morte. Ambas contribuíram, como defendemos acima, para a criação da língua
japonesa separada da língua chinesa.
Analisar os poemas de duas poetisas diferentes como se fossem homogêneos não
é uma tarefa fácil. Afinal, como elencamos acima, as duas – apesar de estarem no
mesmo período histórico – tinham diferenças circunstanciais em suas situações de vida,
assim como também tinham diferenças nas posições que ocupavam perante o espaço
público. De modo a facilitar a exposição dos poemas, tentamos categorizar seus temas.
Com isso, decidimos elencar três similaridades que mais apareceram entre os
poemas de Ono no Komachi e Izumi Shikibu sob a forma de eixos temáticos: 1) O
primeiro eixo diz respeito às relações entre homens/mulheres e a natureza; 2) O
segundo versa sobre as relações românticas estabelecidas pelas autoras; 3) e, por fim, o
terceiro eixo discute a formação do sujeito-poetisa, analisando o intimismo exprimindo
nos poemas. Além desses três pontos, também foi feito uma análise diferencial para os
poemas de luto, que são exclusividade de Izumi Shikibu. Além disso, também
ressaltamos que outros assuntos, tais como religiosidade e corpo, também apareceram
nos poemas, mas não de forma significativa. Por fim, também não pretendemos encerrar
essas categorizações: um poema que classificamos, por exemplo, no primeiro eixo,
também está conectado com os outros dois, de modo que a construção poética das
autoras é, para nós, inseparável do todo.
3. Eixos Temáticos

1. Homens, mulheres e natureza.


Ambas as autoras fazem referências ou metáforas com a natureza em seus
poemas. Por natureza entendemos não só seres inanimados – tais como plantas –, mas
também animais e astros. Nesse sentido, há uma grande preferência pela utilização das
metáforas e referências envolvendo a lua, o vento, as estações do ano e o mar/a água.
From every branch
Flowers drift and mingle down.
Saying “Now!”
The spring departs until the paths
She takes in leaving cannot be seen (SHIKIBU, 1990, p. 82)

Towika Mountain’s
pine trees are always green -
I wonder,
do they recognize autumn
In the sound of the blowing wind? (KOMACHI, ano, p.??)

Como podemos perceber a partir dos poemas explicitados acima, as poetisas dão
sentido ou vida às condições naturais. No primeiro caso exemplificado, as flores detêm,
inclusive, capacidade de comunicação. E no segundo, as árvores têm o poder de
reconhecimento. Além disso, também ressaltamos que, em diversos poemas, há uma
medição de tempo clara por meio das estações. Poucos são os poemas e falam de dias
ou de semanas. Em sua maioria, como no trecho acima, falava-se sobre início e/ou fim
de certa estação, observação de certa fase lunar, ou então observação de alguma fase do
dia (como o crepúsculo, por exemplo).
Com isso, podemos perceber que a noção de tempo das autoras, além de ser
diferente da medição que utilizamos hoje, tem um ritmo particular, articulado ao ritmo
da poesia. Em poesias que não falam de situações específicas, como é o caso do
exemplo, as afirmações, dúvidas e questionamentos das autoras duram estações; ao
passo que casos específicos duram dias ou momentos desses dias.
Ainda assim, queremos explicitar mais duas relações feitas entre a natureza e a
escrita de Shikibu e Ono no Komachi. Para a primeira delas, usaremos o seguinte
poema como exemplo:
Last year’s
Fragile, vanished snow
Is falling now again –
If only seeing you
Could be like this (SHIKIBU, 1990, p. 88)

Para a outra, usaremos o seguinte poema como exemplo:


This entangling wind
is just like
last autumn’s gusts.
Only the dew of tears
on my sleeve is new. (KOMACHI, ano, p. ??)

Percebemos, com excertos similares ao do poema acima, que a natureza constitui


também os sentimentos das autoras. Com isso, defendemos que as mudanças naturais,
como a neve descrita no primeiro exemplo, e o vento, presente no segundo, influenciam
o intimismo das autoras. Parece-nos, nesse sentido, que há um equilíbrio ou uma
aproximação entre sentimentos e natureza. E, da mesma forma como ela esta estaria
influenciando as sensações das autoras, ela também estaria influenciando o corpo dessas
autoras, como nos exemplos abaixo:
When the autumn Wind
Blows down from Tokiwa Mountain,
My body fills, as if blushing,
With the color and scent
Of pine. (SHIKIBU, 1990, p. 93)

While Watching
the long rains falling on this world
my heart, too fades
with the unseen color
of the spring flowers. (KOMACHI, ano, p. ??)

Ou seja, as diferentes movimentações naturais vão preencher os corpos das


autoras, a ponto de influenciá-las a sentir e a escrever. Parece-nos, nesse sentido,
diferente da relação atual – por exemplo – de homens/mulheres com a natureza. Assim,
esta não seria um objeto externo ao ser humano, e sim constituinte de seus sentimentos,
de seus corpos e de seu sujeito.
2. Intimismo e Formação do Sujeito
Os pontos levantados aqui não são, como defendemos acima, separados. Dessa
forma, as relações apontadas entre natureza, sujeito, corpo e intimismo são marcantes
também aqui, mas não as repetiremos. Além desse ponto, o que chama muito atenção
nos poemas intimistas é que eles são sempre relatados como sofrimento, dor ou
admiração (no caso, admiração de corpos celestes – como a lua – ou de paisagens –
como a neve).
Yesterday,
What were my reasons
For sighing?
This morning,
Love is more painful still” (SHIKIBU, 1990, p. 99)

Night deepens
with the sound
of a calling deer,
and I hear
my own one-sided love (KOMACHI, ano, p.??)

O exemplo que trazemos acima explicita nosso argumento. Fazendo uso da


natureza ou de uma noção de tempo, as autoras apontam a continuidade de suas
supostas dores, de seus supostos amores. Com eles, também indicamos que o amor é um
sentimento que atravessa transversalmente a obra, apesar de não ser diretamente
direcionado a uma pessoa (abordaremos essa questão no ponto três). Apresentamos,
também, poemas que caracterizam a expressão de admiração da natureza, que
provocaria sentimentos:
You ask my thoughts
Through the long night?
I spent it listening
To the heavy rain
Beating against the Windows. (SHIKIBU, 1990, p. 107)

How sad,
to think I will end
as only
a pale green mist
drifting the far fields. (KOMACHI, ano, p.??)

3. Relações Românticas
Os poemas relacionados às relações românticas demonstram uma parte
importante das relações de gênero no Japão da dinastia que estamos estudando. De
acordo com o Mariko Aratani e Jane Hirshfield (1990), os encontros românticos
aconteciam majoritariamente à noite. Ambas autoras expressam questões dessa relação
em seus poemas:
To a man who used to visit secretly but asked to come now in daylight
There are many
Strange and lovely things
That swim in the midnight tide pools...
I think I do not want to share them
With other divers’ eyes by day (SHIKIBU, 1990, p. 91).

After a lover visited in secrecy


I know it must be this way
in the waking world,
but how cruel -
even in my dreams
we hide from other’s eyes. (KOMACHI, ano, p.??)

Chamamos atenção para a questão de que, conforme contado pelas autoras, os


encontros à noite eram não tão formais quanto os encontros da manhã. Segundo o
Mariko Aratani e Jane Hirshfield (1990), após os encontros noturnos, o homem deveria
escrever um poema para a mulher se tivesse aproveitado a estadia. Se à mulher se
agradasse do poema, ela lhe responderia com um novo poema - e assim a relação
continuaria. Nos poemas usados como exemplo, as autoras endereçam um poema a
homens com quem mantém uma relação nesse sentido, mas que não querem tê-la à luz
do dia, pois não queriam torná-las visíveis aos olhos dos outros, já que isso tornaria a
relação séria perante a sociedade, de acordo com Mariko Aratani e Jane Hirshfield
(1990).
Shikibu dá outro exemplo de uma situação similar no poema abaixo:
Though I was expecting a visitor, he didn’t arrive. Next morning, I sent this poem:
If I’d heard
So much as
A water rail’s knock,
I’d have opened
The black pine door.” (SHIKIBU, ano, p. 104)

Sent to a man who seemed to have changed his mind

Since my heart placed me


on board your drifting ship,
not one day has passed
that I haven’t been drenched
in cold waves.(KOMACHI, ano, p.??)

Com isso, ressaltamos que o poema seria enviado mesmo se o encontro não
acontecesse. Ou seja, podemos pensar que a produção e que a troca de poemas no Japão
Heian era muito grande entre a elite. Porém, também gostaríamos de questionar uma
ideia: Em diversos poemas, as autoras utilizam expressões sem gênero (como someone,
one, you, etc). Na língua japonesa, a tradução para línguas binárias depende
inteiramente do contexto. Seria necessário saber exatamente o gênero dos interlocutores
para determinar o uso correto das palavras para o idioma para o qual foi traduzido.
No caso do inglês (idioma do livro foco deste artigo) possui-se a alternativa de
"they/their" como indicativo de não-binaridade, apesar de ser um termo antigo e estar
voltando ao uso num contexto mais recente. Mas, no caso de tradução de poemas o que
deve ser levado muito em conta é o contexto histórico, mesmo para determinar se algum
personagem da história possui um gênero. Às vezes é possível determinar por uma
posição social ou profissão, pois na época as mulheres não podiam fazer muitas coisas.
No caso dos poemas em questão a tradução fica ainda mais difícil, pois são escritos em
japonês antigo que é na prática quase outra língua, tamanhas as discrepâncias com a
língua moderna.
Para explicar um pouco como a questão de gênero funciona dentro do idioma,
explicaremos um pouco da gramática, utilizando exemplos. Kare/Kano (Ele/Ela) são os
únicos marcadores verdadeiramente binários e é possível manter uma conversa inteira
sem utilizar nenhum deles. Outra coisa que é muito utilizada como marcador é certos
termos que homens e mulheres usam preferencialmente, por exemplo: se algum
personagem usar "Washi/Boku/Ore" como alternativa para "Watashi" (Eu) há 99% de
certeza de que esse personagem é homem, pois essas formas são muito mais utilizadas
por homens. "Watakushi/Watashi" são formas mais femininas de falar (apesar da
certeza cair para 70% , pois homens também pode usar watashi). Hoje em dia, os
homens informalmente utilizam muito a forma “Boku”, contudo “Watashi” é o termo
formal comum. São esses os fatores gramaticais que podem nos dar indicativo do
gênero das personagens. Não se trata de dizer, com isso, que as autoras se relacionavam
romanticamente ou sexualmente com outras mulheres. Por meio dessa reflexão,
questionamos o quanto a nossa visão sobre o passado (assim como a visão de
historiadores japoneses) pode ser heteronormativa. Afinal, as bibliografias que lemos
não citam a existência de homoerotismo ou bierotismo no Japão Clássico. Será que é
porque isso não é estudado ou porque se assume que a heterossexualidade como natural
para esses sujeitos?

4. Poemas de Luto de Shikibu


Os poemas de Shikibu, como explanamos acima, tem uma especificidade: entre
as duas, ela é a única que escreveu poemas sobre o luto. O primeiro deles, como
podemos observar, é um poema dedicado à filha morta:
Around the time Naishi (Shikibu’s daughter) died, snow fell, then melted away
Why did you vanish
Into empty sky?
Even the fragile snow,
When it falls,
Falls in this world. (SHIKIBU, ano, p. 153).

Além desse trecho específico, a poetisa também dedicou uma série de poemas ao
príncipe Astumichi, pelo motivo de sua morte. Consideramos esse ponto digno de ser
notado levando em conta a posição na corte assumida pela autora. Qual era o tipo de
relação pessoal entre os dois, na medida em que ela não era a primeira esposa dele?
Quais teriam sido as relações entre as primeiras e as subsequentes esposas?
Infelizmente, os poemas não nos dão informações suficientes para responder essas
perguntas, mas achamos interessante levantar tais questões. Terminamos esse capítulo,
por fim, com um dos poemas de luto do Príncipe Astumichi:
Twilight,
And the path you took
Coming and going from me
Is also gone,
Woven closed by spiderwebs and sorror.

Too painful
That you became smoke –
Even the cicada’s
Empty, useless shell
Lasts on in existence. (SHIKIBU, ano, p. 144)

4. Conclusão

Em recente análise do espaço que a Idade Média ocupa nas diferentes versões da
BNCC, Igor Teixeira e Nilton Pereira também traçam algumas diferentes abordagens
possíveis para o ensino de Idade Média no atual contexto brasileiro, questionando
assim, a posição de apagamento que o estudo do período assumiu dentro da primeira
versão do documento.7 Dentre tais abordagens, uma delas nos é especialmente
interessante para a discussão feita durante este trabalho. Dizem os autores:

“O mesmo pode ser feito em relação à temática ‘mulheres escritoras’.


(DRONKE, 1995) Tema que ganha cada vez mais abordagens para o mundo Ocidental
durante a Idade Média, mas que, em perspectiva comparada, pode revelar diferenças
significativas das relações entre homens e mulheres e das mulheres com o letramento
entre os séculos V e XV. Se no Ocidente temos casos, como os de Marguerite Porète
(†1310) e Margery Kempe (†1438?) que sofreram denúncias de heresia por conta das
7
PEREIRA, Nilton Mullet, TEIXEIRA, Igor Salomão .A Idade Média nos currículos escolares: as
controvérsias nos debates sobre a BNCC. Diálogos, v.20, n.3, 16-29.
coisas que escreveram (e que culminou com a condenação à fogueira da primeira), para
o Extremo Oriente temos situações, como as de Murasaki Shikibu (†ca.1026?), autora
de Segredos (ou Romance) de Genji e de Sei Shônagon (†ca.1020/1024?), autora de O
livro do Travesseiro.” (pág. 11).

Muito embora o texto não fale especificamente de Ono No Komachi nem de


Izumi Shikibu, existe uma proposta de abordagem escolar tratando das relações de
gênero no Japão do que nós chamamos de Idade Média, e tal argumento é reforçado
pela análise que desenvolvemos. A proposta fundamental de desnaturalizar as relações
de gênero, tanto dos dias atuais quanto as que, por vezes de maneira automática,
aplicamos ao passado, nos parece de extrema importância para o ensino escolar da
história, contribuindo, dessa maneira, para a formação de cidadãs e cidadãos que tratem
com postura crítica as desigualdades com as quais irão defrontar-se durante a vida.

Além daquilo que as autoras podem nos ensinar sobre nós mesmos, também
existe a dimensão do estranhamento: conhecer uma sociedade que se organiza de
maneira muito diferente da nossa, e também do nosso passado direto, como argumenta
também Nilton Pereira8, também é significativo para nossa formação. O autor
argumenta, principalmente no que tange à Idade Média das nações europeias, que a
apropriação dessas sociedades também engloba compreender de maneira mais apurada a
alteridade estabelecida pelos europeus modernos para com o medievo, e por
consequência, quais são estes valores europeus modernos que tanto moldaram, não
apenas a si mesmos, como também a outros, incluindo muitas sociedades africanas,
asiáticas e também americanas. Embora não tenhamos a mesma percepção sobre a
Idade Média possuir papel tão central nesse debate, é bastante relevante nos
perguntarmos: será que o Japão do período Heain não nos mostra outra ideia das
“diferenças”, não nos apresenta uma sociedade que não tenha, talvez, uma relação direta
com a que vivemos hoje, e isso nos dá maior capacidade de reflexão sobre
possibilidades de intervenções no presente?

Existem também possibilidades interdisciplinares: os estudos sobre prosa e


poesia japonesa também são potencialmente enriquecedores para a bagagem linguística
e narrativa, portanto, a obtenção de certo espaço dentro dos estudos escolares, alinhados

8 PEREIRA, Nilton Mullet. Ensino de História, Medievalismo e Etnocentrismo. Historiæ, Rio Grande, 3
(3): 223-238, 2012.
com a reflexão sobre quem eram os sujeitos dessa produção textual num período mais
recuado e quem são estes sujeitos na atualidade, são ganhos que um olhar cuidadoso,
não apenas para o conteúdo, mas também para a forma da escrita de Komachi e Shikibu
podem contribuir.

Portanto, a título de encerramento, ressaltamos a experiência diferente


proporcionada pela descoberta das duas autoras, nossa aprimoração, não apenas
enquanto historiadores, leitores e intérpretes de documentos, mas também enquanto
futuros professores e propositores de reflexão a quais todos podem e devem ter acesso.
É claro que o trabalho com o Japão, ou mesmo com a Idade Média não detém o
monopólio dessas discussões, porém, as contribuições que a história, enquanto forma de
pensar o passado, e também o presente, dão para a sociedade como um todo são
indispensáveis e necessitam ser defendidas.
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