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Racionalismo liberal

O individualismo é o ponto de partida e de chegada de todo o pensamento liberal. Ele


pressupõe uma dose razoável de confiança nas capacidades da razão humana e na
possibilidade da aprendizagem empírica e racional do mundo envolvente. Não pode,
todavia, confundir-se com o racionalismo francês e com o empirismo inglês dos séculos
XVI, XVII e XVIII, como frequentemente sucede, em boa verdade, muitas vezes, por
culpa própria dos próprios liberais, como foi o caso, no século passado, de Ayn Rand.

O liberalismo é, em parte, tributário do racionalismo, na medida em que acredita que o


homem, enquanto ser individualmente considerado, é dotado de faculdades intelectivas
próprias que lhe permitem uma razoável compreensão da realidade e,
consequentemente, tornam sustentáveis as escolhas e as decisões que ele tem de tomar
ao longo da sua vida. O paradigma do homo economicus, prolongado na abordagem do
consumidor racional, incorpora precisamente os fundamentos do racionalismo clássico,
segundo os quais o homem pode conhecer e, consequentemente, pode decidir e escolher
o que mais e melhor lhe convém. A verificação empírica do resultado das suas acções,
no fim de contas, o método poppereano de aprendizagem pelo erro, completa este
quadro caracterizador do indivíduo, segundo o liberalismo, e constitui um auxiliar
correctivo da razão, que passa a ser auxiliada pela experiência prática das coisas e lhe
permitirá eliminar hipóteses falsas de conhecimento e verdades que o não são. A razão e
a experiência das coisas, devidamente conjugadas e em interacção permanente,
constituiriam, assim, o núcleo fundamental da personalidade do indivíduo.

Este caminho poderia conduzir, e conduziu em muitos casos, a um destino perigoso e


profundamente anti-liberal. Desde logo, ao Iluminismo oitocentista e ao Despotismo
Esclarecido, que lhe deram a forma política mais vulgar por esses dias. Na verdade, a
crença exacerbada nas faculdades cognitivas da razão e na utilidade da experiência
levariam à fundamentação do despotismo, da tirania e à criação de regimes sem
quaisquer vestígios de respeito pelos direitos individuais. Contra estes mesmos regimes,
diga-se em abono da verdade, se rebelariam os liberais constitucionalistas dos séculos
XVIII e XIX. O raciocínio era simples: se as capacidades da razão humana eram
ilimitadas e se a verdade era evidente, como pretendia Descartes, a quem a soubesse
utilizar, os reis, nascidos e criados para a governação e iluminados por essa mesma
razão, poderiam facilmente encontrar o caminho da felicidade dos seus povos. A
condição de exequibilidade deste sistema era só uma: a de que os reis respondiam
apenas perante a razão, a sua razão, e ninguém ou nada mais. Por isso, o seu poder tinha
que ser total e absoluto, sem limites que lhe fossem impostos pelo direito, pela religião,
pela moral, pela tradição ou por outra qualquer fonte de autoridade que não fosse a sua
razão individual. De algum modo e ao contrário de algumas presunções, os déspotas
iluminados oitocentistas são mais príncipes revolucionários do que monarcas
tradicionalistas.

Este racionalismo político de estado prescinde, em última instância, do titular do poder.


O fundamento desse poder e a sua extensão em razão dessa suposta fundamentação é
que são determinantes. Por isso, não existem muitas diferenças entre o Despotismo
Esclarecido e o jacobinismo do Comité de Salvação Pública, nem mesmo com a
soberania democrática ilimitada em que vivemos na maior parte dos estados dos nossos
dias. A extensão da soberania é hoje praticamente ilimitada, o “despotismo” permanece,
pertence ao estado, é atributo dos poderes públicos, independentemente da sua sede de
exercício e das formalidades, democráticas ou não, que determinam os titulares dos
órgãos de soberania.

A reformulação do racionalismo e do empirismo liberal operada por Friedrich A. von


Hayek e por Karl Popper foi, por isso, essencial para conciliar o liberalismo com a
razão. O ponto de partida continua o de sempre: o homem é um ser racional, é capaz de
conhecer e de aprender com as suas faculdades intelectuais e com a experiência, esta
última que permanentemente confronta as conclusões racionalmente obtidas e testa a
fiabilidade destas. Só que, na epistemologia liberal de Hayek e de Popper, o
conhecimento é, por natureza, limitado, como muito limitadas são as faculdades
humanas para compreender e conhecer. Ou seja, por outras palavras, nós somos capazes
de conhecer, ninguém melhor do que nós próprios para podermos ajuizar e escolher o
que nos é mais conveniente em cada momento das nossas vidas, mas o nosso
conhecimento é muito limitado. E desta regra não escapam, obviamente, os poderes
públicos, eles próprios titulados e orientados por homens, nesses e em muitos outros
aspectos, iguais a todos os outros. Para além do mais, existem também outras fontes
autorizadas de conhecimento, entre elas a tradição, que consiste numa riquíssima síntese
de informação acumulada e experimentada ao longo dos anos.

Sendo assim, a razão passa a ser um argumento epistemológico para a limitação do


poder e não para a sua ampliação, como sucedia no passado. Este foi, em minha
opinião, a maior contribuição de Hayek para a refundação do liberalismo clássico.

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