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Programa de Pós-Graduação
em Fotografia e Audiovisual
2014
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1. INTRODUÇÃO
Na ocasião do colóquio “Pós-cinema, pós-fotografia: o devir das imagens
contemporâneas da arte”, realizada pelo programa de pós-graduação em comunicação da
Universidade Federal do Ceará, tive o encontro com o documentário expandido Natureza
Morta. Fui afetado, a princípio, pela potência do extraordinário das imagens e dos sons.
A obra em questão era composta por três telas e outros tantos dispositivos sonoros
(caixas 5.1) que emanavam significâncias de um período trágico da história portuguesa: o
regime ditatorial de 48 anos comandados quase em sua totalidade por Antonio de Oliveira
Salazar. Em cada tela surgiam imagens quase aleatórias sobre as quais tínhamos certa
liberdade para estabelecer diálogos enquanto nos tornávamos participantes viventes da
experiência narrativa sensível ali estabelecida. Mas o que poderia haver de extraordinário
numa pilha de botas abarrotadas até o teto, em pessoas em festejos folclóricos, conduzindo
porcos, acendo velas num gestual cristão tão comum? Todas as imagens ali presentes eram de
arquivo, produzidas pelo próprio Estado Novo português, refiro-me, portanto, as imagens de
Natureza morta.
Numa observação mais atenta que percorreu o processo constitutivo da obra foi
possível perceber, ou mesmo presumir, um outro nível de potência presente nestas imagens, e
que o método fílmico de Suzana Sousa Dias poderia ter feito emergir outras potencialidades
latentes em tais registros imagéticos. No processo fílmico de Sousa Dias, foram realizadas
transformações na modulabilidade de tempo-movimento, bem como postas em diálogo
imagens que pareciam lançar-se em algum nível de contraposição (as ações militares de
extermínio e destruição) ao delicado humanismo comunitário que estava, de alguma forma,
inscrita em algumas outras. Portanto, realizando o caminho inverso do filme, dissecando cada
sequência de imagem como uma unidade separada, única, restituindo seu tempo-movimento
natural, eliminando as novas potências que o desenho sonoro agregou à obra, podemos chegar
à conclusão que, no entanto, eram ordinárias, senão em sua totalidade, ao menos em sua
maior parte.
Tais questões aparecem um tanto presentes na leitura conjuntural que Peter Pál Pelbart
realiza numa comunhão entre política, economia e produção de subjetividades:
Encontramos, então, uma nova questão: como poderia um regime totalitário em pleno
século XX produzir imagens de um cotidiano trivial, banal, se neste regime político tudo o
que não for consenso absoluto deve ser extirpado pela produção da violência? Estamos, pois,
perante dicotomias: o regime imagético do ordinário e o regime imagético do extraordinário;
a produção de um cotidiano banal como maneira de vida e a produção da violência para
assegurar este suposto modo de vida simples e banal. Mas não seria um contrassenso sustentar
o cotidiano justamente com a quebra desta, pela produção da violência? Essa vida simples
não seria então somente possível pela banalização de um estado contínuo de violência?
Benjamin alertava, ainda no início do século XX, que vários regimes políticos
camuflavam seus reais estados de autoritarismo e violência (BENJAMIN, 2010) na produção
de uma vida em comum, mas que se sustentava na violência da coerção, da exclusão
reificante e da manutenção do poder de exploração regulado pelo estado. A política, portanto,
vira um ato profundo de violência em demasiados disfarces, e será na constitucionalidade
jurídica que ela encontrará um magnífico dispositivo para legitimar o despotismo que em
pleno século XX luta-se para extirpar.
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ser o de que a idéia de história de onde provém não é sustentável (Benjamin, 2010,
p. 13).
Podemos chamar de estado de exceção um regime político em que existe uma dada
constitucionalidade e certa divisão de poderes que seriam, teoricamente, o alicerce de um
estado democrático e não excludente, entretanto, tais dispositivos apenas regulam e legitimam
convenientemente a violência que constitui modos de dominação e exploração, pensamento
que numa análise à contrapelo (BENJAMIN, 2010), os regimes contemporâneos não fogem
tanto à regra. Tais dispositivos podem se tornar anômicos a qualquer instante, desde que se
apresente uma necessidade de imposição para que o estado regule a ordem vigente de
violência e pela violência.
É pela produção da subjetividade que o capital realizará, e ainda tem feito, sua
constituição de um povo. Somente quando os métodos de produção dessa subjetividade não
podem mais dar conta das profundas contradições que lhes são inerentes, a violência sai de
sua forma latente legitimada pela salvaguarda deste mesmo povo que foi sequestrado na sua
autonomia identitária, em constituição, comunidade em devir. O cotidiano é aqui um método
de negação desta dupla violência: silenciosa na imposição dessas identidades e ruidosa
quando o medo deve coagir qualquer foco de insatisfação. Bem como a exceção jurídica
tornou-se regra nestes regimes, o cotidiano é banalizado como fundamento deste sequestro
das subjetividades pelo capital.
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discursos inteligíveis, mas por um método histórico-sensível, resgatando significâncias cujos
métodos históricos passam ao largo. Ponto alto de sua obra, o sensível como possibilidade
histórica demonstra como as produções industriais da subjetividade do cotidiano foram uma
ontologia constitutiva de tal regime político, bem como o banal da vida no Estado Novo
português assumiu a banalização do estado de exceção como regra.
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identidades que se prestavam como exemplo deste regime político-moral, que camuflando seu
estado ditatorial, encontrava sua inscrição estética também na representatividade da imagem,
ora imposta-produzida, ora captada no purismo do outro filmado, este, porém, perante certa
ingenuidade ao procedimento das tecnoimagens, e que nada sabia ao certo a que viria se
configurar ambos regimes inseparáveis: o estado de exceção como regra e o regime imagético
do banal, cujo segundo lastreava o primeiro e ambos se retroalimentavam. A regra que
ficcionalizou um regime político, banalizou a vida em imagens. Eis a estetização da política
que Benjamin (1994) tanto temia: uma instrumentalização das identidades em prol da
manutenção de um poder ditatorial que molda comunidades em busca de um consenso ideal e
mítico.
Agambem propõe ainda que tal estado se reformou no âmago dos regimes
democráticos, e neste deslocamento de percepção do contemporâneo, não estaríamos na regra
do estado de exceção?
Dito isso, percebemos que Sousa Dias escava fissuras, percebe a produção das
contradições nessa estetização do banal e, trazendo à tona, realiza uma troca de regimes
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estéticos que abordaremos adiante, realocando no mapa da história a ditadura salazarista, da
mítica renascença portuguesa para a concepção de estado totalitário.
Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e
desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada
pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnocólor não escondem,
mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas
próprias estruturas pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação
cultural da fome é a violência (ROCHA, 2004, p. 66).
A violência vai saindo dos porões: vemos uma sequência de botas militares produzidas
em escala (produção industrial da tecnologia da coerção), crianças regimentadas numa pré-
militarização (produção da banalização da indústria da violência), e pouca a pouco este
cotidiano desfaz-se em suas contradições: corpos são mutilados para suprirem um estado
mitológico-moral, referimo-nos acerca dos perseguidos políticos, assim como aos que
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sobrevivem no silêncio. São imagens que se misturam em seus níveis de banalização e de
quanto suas contradições estão inscritas pela produção desta contradição inerente aos gestos
desse corpo: um regime totalitário que tenta o disfarce, mas aos poucos suas inscrições lhes
denunciam a degradação de tais gestos dissimulados.
Sousa Dias pressupõe uma nova constituição sensível dos arquivos imagéticos da
ditadura de Salazar, uma reversão que apreenda as contradições mais ínfimas que as imagens
ordinárias creem camuflar. Dessa forma, temos em diálogo um incêndio nas colônias
(predestinação “heróica” da civilização?), a glorificação comunitária do regime do Estado
Novo por parte da população portuguesa e retratos que denunciam o corpo aprisionado e
transformado pela mutilação do sistema disciplinador, que por meio da fotografia mal
enquadrada, displicente (a tecnologia burocrática fotografa como quem acumula números e
papéis numa gaveta esquecida, gesto que denuncia sua regra da banalização da violência
seriada), e tantas outras que já claramente elucidavam contradições inteligíveis em suas
imagens, outras escamoteadas ainda, mais passíveis das potencialidades opressoras que as
produziram. Portanto, a produção da “violência pura” benjaminiana na reversibilidade de
Natureza Morta vai-se estabelecendo pela realocação de códigos sensíveis.
Sousa Dias realiza uma reversibilidade sensível (GIL, 2005): transmuta o método de
produção do banal, sustento ideológico de um regime ditatorial que impõe uma normalização
do cotidiano como camuflagem de seu autoritarismo, como ato de violência pelo regime de
imagens extraordinárias. Este novo regime de imagens desmonta um discurso que baliza a
regra do totalitarismo biopolítico, colocando ao nível do sensível as reais potências que
tentavam permanecer no campo do invisível no salazarismo. Portanto, a reversibilidade da
qual falamos em Natureza Morta, remete-se do regime imagético do banal do cotidiano ao
extraordinário que expõe que um estado de exceção virou regra.
Mas por que métodos e ontologias isso seria factível? Sousa Dias experimenta
possibilidades sensíveis diversas e complementares. Apontamos uma hipótese que se nos
apresenta central e que nela nos fixamos em nossa pesquisa diante das vastas possibilidades
da obra.
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Segundo o pensamento de José Gil (2005), existe na produção estética algo ínfimo e
escondido que traz novas alocações de significâncias, sobretudo sensíveis, algo que a visão
não percebe senão por meio de métodos que façam emergir virtualidades inscritas, presença
sensível que necessita de processos estéticos para eclodirem. Ainda segundo Gil, a linguagem
verbal forma-se por meio das necessidades práticas da vida, mas não dão conta das novas
possibilidades, ou mesmo das virtualidades escamoteadas dos processos humanos, políticos,
subjetivos e existenciais, que denunciam as potencialidades que em seu âmago geram as
essências alocadas no invisível das percepções, como palavras que se esvanecem em
palimpsestos. “Na massa das sensações e das percepções que pertencem ao conjunto do
significado, só uma pequena parte é colhida pela camada expressiva verbal” (GIL, 2005, p.
97).
Sendo finitas tais possibilidades das expressões verbais, é por meio das restituições
não verbais que importantes presenças e significados atualizam-se, presenças que a intelecção
consensual ainda não admite em seus códigos e sistemas lógico-morais, as pequenas
percepções escavam a visão, e em seu lugar introduzem o olhar. No pensamento de Gil
(2005), as pequenas percepções são estes fósseis, ou mesmo atos falhos, que a suposta
objetividade tenta, por vezes, anular como gesto fundamentalmente criador de uma
significância e que um determinado modelo lógico nega a apreensão desta, ou simplesmente
ainda não foi capaz de apreender-lhe.
Em suma, o mundo oferece sempre muito mais sentido virtual do que o significado
actualmente nele pela linguagem, mas também por todos os significantes
disponíveis. Há “significado flutuante” infinito transbordando o mundo que é
exprimido, e são as pequenas percepções que se encarregam de o significar (GIL,
2005, p. 99).
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perceptíveis pela visão e pela audição indivíduos por nós considerados invisíveis e
inaudíveis” (EPSTAIN apud AUMONT, 2004, p. 37).
Nessa condição, vemos que a própria vida é relativa, que é possível suscitar seu
aparecimento onde não a vemos. Basta para tanto imaginar que se modula o tempo
natural indefinidamente como por uma espécie de projeção sobre o mundo natural
dos princípios de modulabilidade (aceleração/desaceleração, inversão) do tempo
cinematográfico. Serão obtidas transformações radicais do tempo que farão perceber
de outra forma os seres apanhados no tempo e darão origem ao que aparecerá
eventualmente como vida (AUMONT, 2004, p. 40).
É rompido o intervalo entre a visão e o olhar, este último, antes como o inconsciente
separado do ser, mas que agora vem à tona e não mais abisma a possibilidade de se chegar ao
olhar: eis o que significa esta concepção de intervalo em Gil (2005). O invisível é atualizado
nas pequenas percepções escavadas: um homem (Natureza Morta) em sede descomunal é
sentido pela apreensão sensível dessa potência em sua quase imobilidade fotográfica e
temporal, como se estivéssemos perante o “instante decisivo” de Cartier Bresson. Portanto,
doravante, a violência brota de onde outrora a visibilidade apontava para a saciação da sede e
não para a sede que se apresentava insaciável.
As invisibilidades de tais imagens aos poucos se chocam umas nas outras e eclodem
novas camadas de significância. Por vezes, as pequenas percepções, arrancadas a fórceps,
sobrepõem-se às visibilidades do banal, e neste choque dialético-sensível, o ordinário destas
últimas são revogados. São métodos de violências que arrancam a violência muda e passam a
dar formas a outras imagens: algumas um tanto mais já decompostas da banalização pela
contradição da escritura sensível que aos poucos o regime já não pode sustentar.
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4. VIRTUALIDADES DO TEMPO E MÉTODO HISTÓRICO-SENSÍVEL
Os corpos e seus gestos não podem esconder as marcas que lhes fundam e dão forma,
bem como estão para sempre consolidadas as intenções das mãos do pintor que marcam a tela
em pinceladas com impressões específicas. Os dedos do pianista podem tocar as teclas em
pianíssimo, mas sua ínfima nota, na verdade, pode gritar. A certas distâncias, as inscrições
sensíveis podem esconder as marcas das mãos, dos pincéis e dos gestos que lhes fundam, mas
estes sempre terão indissociavelmente as potências das intencionalidades gestuais. Estas são
como o inconsciente freudiano em que a pequena ponta do iceberg (o que chamamos de
consciência), esconde na fácil visibilidade o seu verdadeiro jogo de intenções, dando a ver
apenas sua camada mais à superfície.
Para que o banal entregue seu segredo, ele deve primeiro ser mitologizado. A casa
ou esgoto falam, trazem consigo rastros do verdadeiro (...) O escritor é o geólogo ou
o arqueólogo que viaja pelos labirintos do mundo social e, mais tarde, pelos
labirintos do eu. Ele escolhe os vestígios, exuma os fosseis, transcreve os signos que
dão testemunho de um mundo e escrevem uma história. A escrita muda das coisas
revela, na sua prosa, a verdade de uma civilização ou de um tempo, verdade que
recobre a cena de outrora gloriosa da palavra viva (RANCIÉRE, 2009, p. 38).
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Natureza Morta não reconstitui a história por meio dos processos de constituição
historiográfica ou mesmo crítica. A história tende a fixar-se como significância, excluindo
virtualidades e devires dos processos, bem como assinala fatos sem levar em conta a vivência
do sensível. Somente uma história instável, reconstituível poderia apoderar-se do invisível e
do devir. A história fixa-se como o comunicável que somente tem sentido na estabilidade
inteligível da palavra escrita, mas que a ela sempre escapa um novo devir: de uma verdade do
sensível, que os fatos não transmitem, quando muito afirmam, especulam e fixam apenas uma
parte. Que o povo africano foi submetido aos regimes totalitários europeus é de conhecimento
histórico, mas a vivência sensível, que extrapola o sentido das palavras em seus símbolos bem
alocados, estabilizados, códigos comuns, reconduz-nos a uma nova experiência histórica que
retira da frígida palavra a desestabilização de tais códigos e nos coloca em possível diálogo
com o real da experiência histórica: a vivência sensível.
Não quero com isto dizer que este que chamo método histórico-sensível seja uma
apreensão totalizante da verdade pura, seria idealismo essencialista, mas que esta forma de
abordagem escava arqueologicamente a história que não pôde ser reconstituída de outra
forma, posto que o sensível, parte imprescindível da constituição do poder biopolítico
contemporâneo, não estaria disponível pelos códigos estabilizados de nossa cultura
historicista. Antes de ser um “ser histórico”, o homem é um “ser sensível”, isso está
pressuposto no método sensível de recomposição sígnica de Natureza Morta e tal método
histórico sensível pode ser configurado como a violência pura que Benjamin propõe como
desarticuladora, no plano ideológico do estado de exceção, dando a este seu estatuto que tanto
tenta renegá-lo se auto-afirmando como um processo natural do progresso (2010).
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Campina: Papirus, 2004.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
MORIN, Edgar. Neurose: O espírito do tempo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2009.
ROCHA, Glauber. A revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
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