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Natureza Morta: o regime imagético do banal no estado de exceção

David Leitão Aguiar

Programa de Pós-Graduação
em Fotografia e Audiovisual
2014

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1. INTRODUÇÃO
Na ocasião do colóquio “Pós-cinema, pós-fotografia: o devir das imagens
contemporâneas da arte”, realizada pelo programa de pós-graduação em comunicação da
Universidade Federal do Ceará, tive o encontro com o documentário expandido Natureza
Morta. Fui afetado, a princípio, pela potência do extraordinário das imagens e dos sons.

A obra em questão era composta por três telas e outros tantos dispositivos sonoros
(caixas 5.1) que emanavam significâncias de um período trágico da história portuguesa: o
regime ditatorial de 48 anos comandados quase em sua totalidade por Antonio de Oliveira
Salazar. Em cada tela surgiam imagens quase aleatórias sobre as quais tínhamos certa
liberdade para estabelecer diálogos enquanto nos tornávamos participantes viventes da
experiência narrativa sensível ali estabelecida. Mas o que poderia haver de extraordinário
numa pilha de botas abarrotadas até o teto, em pessoas em festejos folclóricos, conduzindo
porcos, acendo velas num gestual cristão tão comum? Todas as imagens ali presentes eram de
arquivo, produzidas pelo próprio Estado Novo português, refiro-me, portanto, as imagens de
Natureza morta.

Numa observação mais atenta que percorreu o processo constitutivo da obra foi
possível perceber, ou mesmo presumir, um outro nível de potência presente nestas imagens, e
que o método fílmico de Suzana Sousa Dias poderia ter feito emergir outras potencialidades
latentes em tais registros imagéticos. No processo fílmico de Sousa Dias, foram realizadas
transformações na modulabilidade de tempo-movimento, bem como postas em diálogo
imagens que pareciam lançar-se em algum nível de contraposição (as ações militares de
extermínio e destruição) ao delicado humanismo comunitário que estava, de alguma forma,
inscrita em algumas outras. Portanto, realizando o caminho inverso do filme, dissecando cada
sequência de imagem como uma unidade separada, única, restituindo seu tempo-movimento
natural, eliminando as novas potências que o desenho sonoro agregou à obra, podemos chegar
à conclusão que, no entanto, eram ordinárias, senão em sua totalidade, ao menos em sua
maior parte.

Percebendo esse particular jogo de imagens ordinárias e extraordinárias, e algumas


outras um tanto indiscerníveis (qual a medida do comum?), acabamos por chegar à seguinte
questão: como um regime político pode a um só tempo ter produzido imagens tão
contraditórias? Haveria dentre elas um regime imagético que exponha uma melhor noção dos
fatos do que o outro regime? Qual a relação entre tais regimes imagéticos e o regime do
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Estado Novo? Quando Souza Dias opta por arrancar do ordinário a potência adormecida do
extraordinário, quais métodos e significâncias são extraídos? Haveria realmente algo de
invisível na escritura dessas imagens? Seriam elas como problematizou Benjamin uma
estetização da política como um ato publicitário que preconiza valores que justo no seu âmago
persistem, muitas vezes ao inverso?

Tais questões aparecem um tanto presentes na leitura conjuntural que Peter Pál Pelbart
realiza numa comunhão entre política, economia e produção de subjetividades:

Através dos fluxos de imagem, de informação, de conhecimento e de serviços que


acessamos constantemente, absorvemos maneiras de viver, sentidos de vida,
consumimos toneladas de subjetividade. Chama-se como se quiser isto que nos
rodeia, capitalismo cultural, economia imaterial, sociedade do espetáculo, era da
biopolítica, o fato é que vemos instalar-se nas últimas décadas um novo modo de
relação entre o capital e a subjetividade. O capital, como disse Jameson, por meio da
ascensão da mídia e da indústria da propaganda teria penetrado e colonizado um
enclave até então aparentemente inviolável, o inconsciente (Pelbart, 2009, p. 20).

Encontramos, então, uma nova questão: como poderia um regime totalitário em pleno
século XX produzir imagens de um cotidiano trivial, banal, se neste regime político tudo o
que não for consenso absoluto deve ser extirpado pela produção da violência? Estamos, pois,
perante dicotomias: o regime imagético do ordinário e o regime imagético do extraordinário;
a produção de um cotidiano banal como maneira de vida e a produção da violência para
assegurar este suposto modo de vida simples e banal. Mas não seria um contrassenso sustentar
o cotidiano justamente com a quebra desta, pela produção da violência? Essa vida simples
não seria então somente possível pela banalização de um estado contínuo de violência?

Benjamin alertava, ainda no início do século XX, que vários regimes políticos
camuflavam seus reais estados de autoritarismo e violência (BENJAMIN, 2010) na produção
de uma vida em comum, mas que se sustentava na violência da coerção, da exclusão
reificante e da manutenção do poder de exploração regulado pelo estado. A política, portanto,
vira um ato profundo de violência em demasiados disfarces, e será na constitucionalidade
jurídica que ela encontrará um magnífico dispositivo para legitimar o despotismo que em
pleno século XX luta-se para extirpar.

A tradição dos oprimidos ensina-nos que o estado de exceção em que vivemos é a


regra. Temos de chegar a um conceito de história que corresponda a esta idéia. Só
então se perfilará diante de nossos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de
provocar o verdadeiro estado de exceção; e assim, a nossa luta contra o fascismo
melhorará. A hipótese de ele se afirmar reside em grande parte no fato de os seus
opositores o verem como uma norma histórica em nome do progresso. O espanto
por as coisas a que assistimos ainda poderem ser assim no século XX não é um
espanto filosófico. Ele não está no início de um processo de um conhecimento, a não

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ser o de que a idéia de história de onde provém não é sustentável (Benjamin, 2010,
p. 13).

Podemos chamar de estado de exceção um regime político em que existe uma dada
constitucionalidade e certa divisão de poderes que seriam, teoricamente, o alicerce de um
estado democrático e não excludente, entretanto, tais dispositivos apenas regulam e legitimam
convenientemente a violência que constitui modos de dominação e exploração, pensamento
que numa análise à contrapelo (BENJAMIN, 2010), os regimes contemporâneos não fogem
tanto à regra. Tais dispositivos podem se tornar anômicos a qualquer instante, desde que se
apresente uma necessidade de imposição para que o estado regule a ordem vigente de
violência e pela violência.

É pela produção da subjetividade que o capital realizará, e ainda tem feito, sua
constituição de um povo. Somente quando os métodos de produção dessa subjetividade não
podem mais dar conta das profundas contradições que lhes são inerentes, a violência sai de
sua forma latente legitimada pela salvaguarda deste mesmo povo que foi sequestrado na sua
autonomia identitária, em constituição, comunidade em devir. O cotidiano é aqui um método
de negação desta dupla violência: silenciosa na imposição dessas identidades e ruidosa
quando o medo deve coagir qualquer foco de insatisfação. Bem como a exceção jurídica
tornou-se regra nestes regimes, o cotidiano é banalizado como fundamento deste sequestro
das subjetividades pelo capital.

A exceção como regra. O cotidiano como campo de experimentos e modelagens


identitárias, ou “resgate de almas” (ROSAS, 2001). Corpos disciplinados pelo banal, por
mitos de uma suposta história áurea portuguesa de um império que não se concretiza no
passado e, em um dado momento, retrocede como dispositivo ideológico de salvação que
responderia, acreditavam muitos e outros necessitavam crer, as muitas investidas do
neocolonialismo europeu, dividindo povos na África e modelando espíritos em todo o império
português.

Sousa Dias empreende, então, um trabalho de desmascaramento de tais técnicas


políticas que tiveram na estetização um de seus suportes mais potentes, e deixando que as
virtualidades latentes dos gestos do salazarismo tomassem formas arrebatadas pela
intencionalidade sensível e soterrada nos mecanismos de produção e de camuflagem
ideológica, a autora realiza procedimentos que buscam trazer à tona estas intencionalidades
gestuais e fundantes de tais barbáries, e reconstitui a historia não por um processo de

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discursos inteligíveis, mas por um método histórico-sensível, resgatando significâncias cujos
métodos históricos passam ao largo. Ponto alto de sua obra, o sensível como possibilidade
histórica demonstra como as produções industriais da subjetividade do cotidiano foram uma
ontologia constitutiva de tal regime político, bem como o banal da vida no Estado Novo
português assumiu a banalização do estado de exceção como regra.

2. A ESTETIZAÇÃO DO BANAL NO ESTADO DE EXCEÇÃO PORTUGUÊS

A formação do Estado Novo português nos anos 30 nos conduz ao projeto de


produção de uma comunidade consensual, disciplinada em seu decadente romantismo
histórico, que, por vezes, esteve à parte do próprio desenvolvimento histórico europeu em
nome da produção idealista dessa comunidade mítica portuguesa alicerçada num “aparelho de
inculcação ideológica autoritária mergulhada no quotidiano das pessoas (ao nível das famílias,
da escola, do trabalho, dos lazeres), com o propósito de criar esse particular homem novo do
salazarismo” (ROSAS, 2001, p. 1031).

O investimento na banalidade do cotidiano, esse criar-se um comum que ao mesmo


tempo negue o regime extraordinário que é o totalitarismo do Estado Novo, é característica
essencial desse regime político que fora inscrito no regime imagético pela exaltação das
potencialidades mítico-disciplinadoras das identidades que construiriam o “império
ultramarino português” . Portanto, assim como o estado de exceção fez-se regra, o cotidiano
fez-se dispositivo de uma produção de subjetividades que ancoraram este ideal
neoimperialista português: o mito paligenético (do começo de uma renascença e regeneração
lusitana) que apontava o caminho genuíno da história portuguesa, ao exemplo do seu dever de
colonizar povos, sua predestinação ruralista para a simplicidade da vida campesina e a
subserviência católica (ROSAS, 2001). A produção de um regime do cotidiano balizou
ontologicamente o estado de exceção lusitano.

Imagens que produzem imagens. Imagens de atividades ecumênicas, uma autoridade


católica abençoa e caminha em cortejo com a dificuldade natural de quem quase não suporta o
peso de tal indumentária, passeatas comemorativas nas colônias e na metrópole, até mesmo
com traços de festejos folclóricos tradicionais, bem como atividades “cotidianas” do exército
português. Registros ora do encontro com o ordinário, ora com a produção desse ordinário, de
subjetividades que davam-se a essa “renovação”, ou melhor colocando, subjugação de

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identidades que se prestavam como exemplo deste regime político-moral, que camuflando seu
estado ditatorial, encontrava sua inscrição estética também na representatividade da imagem,
ora imposta-produzida, ora captada no purismo do outro filmado, este, porém, perante certa
ingenuidade ao procedimento das tecnoimagens, e que nada sabia ao certo a que viria se
configurar ambos regimes inseparáveis: o estado de exceção como regra e o regime imagético
do banal, cujo segundo lastreava o primeiro e ambos se retroalimentavam. A regra que
ficcionalizou um regime político, banalizou a vida em imagens. Eis a estetização da política
que Benjamin (1994) tanto temia: uma instrumentalização das identidades em prol da
manutenção de um poder ditatorial que molda comunidades em busca de um consenso ideal e
mítico.

Um ideal de cotidiano é reciclado e fomentado como produção da vida da comunidade


deste império português. O Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) foi o principal
dispositivo indutor desta “política do espírito” (ROSAS, 2001). Para o salazarismo, nos
“Estados renovados há uma concepção da vida e do homem, um princípio que se traduz na
política e economia, na ciência, cultura e educação” (ROSAS, 2001 p. 1041). O império
imposto pelo Estado Novo salazarista far-se-ia naturalmente pelo controle e disciplina,
apropriando-se da vida como matéria prima a ser “industrialmente” seriada, pensamento este
que cumpria seu papel nos planejamentos de ações sócio-políticas de seus idealizadores e
executores.

No século XX, o poder industrial estendeu-se por todo o globo terrestre. A


colonização da África e Ásia chegam a seu apogeu. Eis que começa nas feiras de
amostras e máquinas de níqueis a segunda industrialização: a que se processa nas
imagens e nos sonhos. A segunda colonização, não mais horizontal, mas desta vez
vertical, penetra na grande reserva que é a alma humana. A alma é a nova África que
começa a agitar os circuitos dos cinemas (MORIN, 1997, p. 13).

A fundação de tais regimes, falamos especificamente do Estado Novo português,


baseia-se, portanto, numa incoerência que tende à “normalização do cotidiano”, incoerência
que alicerça suas estruturas: para “salvar” uma constituição e seu Estado, procede-se uma
salvaguarda constitucional que se apropria destas técnicas jurídicas modernas, ignorando-as
quando conveniente, uma tecnologia política que faz da imposição das regras e modelagem
das vidas uma falsa negociação, e somente pela banalização do consenso, um consenso cada
vez mais produzido, como qualquer outro produto industrial, é possível chegar numa estrutura
que capte este nomos como conveniência e una-o à anomia jurídica, ponto de ligação que
funda o estado de exceção como regra, uma jurisdição de fato e fictícia, pura contradição
(AGAMBEM, 2004).
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(…) a própria possibilidade de distinguir entre vida e direito, anomia e nomos
coincide com sua articulação na máquina biopolítica. A vida pura e simples é um
produto da máquina e não algo que pré-existe a ela, assim como o direito não tem
nenhum fundamento na natureza ou no espírito divino. Vida e direito, anomia e
nomos, auctoritas e potestas resultam da fratura de alguma coisa a que não temos
outro acesso que não por meio da ficção de sua articulação e do paciente trabalho
que, desmascarando tal ficção, separa o que se tinha pretendido unir (AGAMBEM,
2004, p. 132).

Agambem propõe ainda que tal estado se reformou no âmago dos regimes
democráticos, e neste deslocamento de percepção do contemporâneo, não estaríamos na regra
do estado de exceção?

É importante não esquecer esse contemporâneo processo de transformação das


constituições democráticas entre as duas guerras mundiais quando se estuda o
nascimento dos chamados regimes ditatoriais na Itália e Alemanha. Sob a pressão do
paradigma do estado de exceção, é toda a vida política-constitucional das sociedades
ocidentais que, progressivamente, começa a assumir uma nova forma que talvez, só
hoje tenha atingido seu pleno desenvolvimento (2004, p. 27).

Essa nova colônia a ser explorada, o espírito-matéria-prima, a alma, a cultura, é


instrumentalizada pelos dispositivos da biopolítica, cujo contexto atual torna quase
indiscernível o ponto de emissão radiante desta modelação identitária. Radiação acêntrica ou
policêntrica, em rede. Mas o banal do cotidiano permanece capturado por certa
instrumentalização deste mesmo ordinário, a estetização deste banal corresponde à escritura
dessa instrumentalização política, tanto no passado como nos regimes presentes.

Retrocedendo a Benjamin acerca do estado de exceção: “Temos de chegar a um


conceito de história que corresponda a esta ideia” (2010, p. 13). Benjamin postula que a
ficção dos regimes totalitários e suas estetizações da política sejam desmitificados: o
desmascaramento dos dispositivos que sustentam tais contradições eclodem por vias de
choques. Tal choque, no caso específico do documentário expandido Natureza Morta, de
Susana Sousa Dias, é o da reversibilidade (GIL, 2005) do regime de imagens banais, ou
ordinárias, ao regime de imagens extraordinárias, portanto, processo que dá a ver a violência
mascarada numa banalização do cotidiano imposto-produzido no estado de exceção
português. Natureza Morta compõe-se de imagens de arquivo que, sobretudo, foram inscritas
como registro de uma ordem natural da vida, mas esta vida foi cada vez mas disciplinada e
tolhida para corresponder a uma cosmovisão política e existencial: o Estado Novo.

Dito isso, percebemos que Sousa Dias escava fissuras, percebe a produção das
contradições nessa estetização do banal e, trazendo à tona, realiza uma troca de regimes

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estéticos que abordaremos adiante, realocando no mapa da história a ditadura salazarista, da
mítica renascença portuguesa para a concepção de estado totalitário.

Pensando na desmitologização do banal dos regimes totalitários, Benjamin (2010)


sugere uma “violência pura” para contrapor-se à “violência do direito”. Nesse mesmo vetor,
apontamos que Glauber Rocha vê uma potência virtual em certo regime de imagens que abre
fendas nas banalizações das violências do cotidiano impetradas por séculos de despotismos no
Brasil, bem como no caso específico da ditadura militar brasileira, que usou dispositivos
semelhantes ao salazarismo, tanto no que tangiu à criação de um cotidiano “normalizado”,
seja por sua produção estética e informacional, seja por seus brutais atos em nome da
salvaguarda dessa ordem. Rocha propõe uma violência estética que choque a violência
jurídica banalizada, teorizando na “Eztetyka da Fome” (2004) e realizando em suas imagens.

Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e
desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada
pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnocólor não escondem,
mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas
próprias estruturas pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação
cultural da fome é a violência (ROCHA, 2004, p. 66).

3. CHOQUES E REVERSIBILIDADE NOS REGIMES DE IMAGEM: DO


ORDINÁRIO AO EXTRAORDINÁRIO

Percebe-se, na inscrição de Natureza Morta, que certas imagens sob a tutela da


produção de um banal normalizante possuem fissuras que alojam algum nível de contradição
no contexto da banalização do cotidiano: o olhar de colonos que parecem escandalizar-se
diante do dispositivo imagético, talvez o reconhecimento de mais um dispositivo do opressor,
talvez a dor incorporada do flagelo que os supostos libertadores por mais uma era há de lhes
impor. O corpo comunica não verbalmente. É que com o passar dos anos a hegemonia
ditatorial salazarista degrada-se, portanto, degradam-se também as produções imagéticas em
seu método do banal.

A violência vai saindo dos porões: vemos uma sequência de botas militares produzidas
em escala (produção industrial da tecnologia da coerção), crianças regimentadas numa pré-
militarização (produção da banalização da indústria da violência), e pouca a pouco este
cotidiano desfaz-se em suas contradições: corpos são mutilados para suprirem um estado
mitológico-moral, referimo-nos acerca dos perseguidos políticos, assim como aos que

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sobrevivem no silêncio. São imagens que se misturam em seus níveis de banalização e de
quanto suas contradições estão inscritas pela produção desta contradição inerente aos gestos
desse corpo: um regime totalitário que tenta o disfarce, mas aos poucos suas inscrições lhes
denunciam a degradação de tais gestos dissimulados.

Sousa Dias pressupõe uma nova constituição sensível dos arquivos imagéticos da
ditadura de Salazar, uma reversão que apreenda as contradições mais ínfimas que as imagens
ordinárias creem camuflar. Dessa forma, temos em diálogo um incêndio nas colônias
(predestinação “heróica” da civilização?), a glorificação comunitária do regime do Estado
Novo por parte da população portuguesa e retratos que denunciam o corpo aprisionado e
transformado pela mutilação do sistema disciplinador, que por meio da fotografia mal
enquadrada, displicente (a tecnologia burocrática fotografa como quem acumula números e
papéis numa gaveta esquecida, gesto que denuncia sua regra da banalização da violência
seriada), e tantas outras que já claramente elucidavam contradições inteligíveis em suas
imagens, outras escamoteadas ainda, mais passíveis das potencialidades opressoras que as
produziram. Portanto, a produção da “violência pura” benjaminiana na reversibilidade de
Natureza Morta vai-se estabelecendo pela realocação de códigos sensíveis.

Sousa Dias realiza uma reversibilidade sensível (GIL, 2005): transmuta o método de
produção do banal, sustento ideológico de um regime ditatorial que impõe uma normalização
do cotidiano como camuflagem de seu autoritarismo, como ato de violência pelo regime de
imagens extraordinárias. Este novo regime de imagens desmonta um discurso que baliza a
regra do totalitarismo biopolítico, colocando ao nível do sensível as reais potências que
tentavam permanecer no campo do invisível no salazarismo. Portanto, a reversibilidade da
qual falamos em Natureza Morta, remete-se do regime imagético do banal do cotidiano ao
extraordinário que expõe que um estado de exceção virou regra.

Mas por que métodos e ontologias isso seria factível? Sousa Dias experimenta
possibilidades sensíveis diversas e complementares. Apontamos uma hipótese que se nos
apresenta central e que nela nos fixamos em nossa pesquisa diante das vastas possibilidades
da obra.

De facto, as pequenas percepções desempenham um papel semelhante ao de um


operador ou código de tradução, apto a traduzir imediatamente o não-verbal numa
outra linguagem não-verbal, as cores em sons, as figuras nos gestos, a poesia em
música, a pintura em poesia ou em música (…) estas propriedades do invisível
sensível que Merleu-Ponty designava por “equivalência” “parte-total”, etc., são,
todas elas, garantidas pelas pequenas percepções (GIL, 2005, p. 99-100).

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Segundo o pensamento de José Gil (2005), existe na produção estética algo ínfimo e
escondido que traz novas alocações de significâncias, sobretudo sensíveis, algo que a visão
não percebe senão por meio de métodos que façam emergir virtualidades inscritas, presença
sensível que necessita de processos estéticos para eclodirem. Ainda segundo Gil, a linguagem
verbal forma-se por meio das necessidades práticas da vida, mas não dão conta das novas
possibilidades, ou mesmo das virtualidades escamoteadas dos processos humanos, políticos,
subjetivos e existenciais, que denunciam as potencialidades que em seu âmago geram as
essências alocadas no invisível das percepções, como palavras que se esvanecem em
palimpsestos. “Na massa das sensações e das percepções que pertencem ao conjunto do
significado, só uma pequena parte é colhida pela camada expressiva verbal” (GIL, 2005, p.
97).

Sendo finitas tais possibilidades das expressões verbais, é por meio das restituições
não verbais que importantes presenças e significados atualizam-se, presenças que a intelecção
consensual ainda não admite em seus códigos e sistemas lógico-morais, as pequenas
percepções escavam a visão, e em seu lugar introduzem o olhar. No pensamento de Gil
(2005), as pequenas percepções são estes fósseis, ou mesmo atos falhos, que a suposta
objetividade tenta, por vezes, anular como gesto fundamentalmente criador de uma
significância e que um determinado modelo lógico nega a apreensão desta, ou simplesmente
ainda não foi capaz de apreender-lhe.

Em suma, o mundo oferece sempre muito mais sentido virtual do que o significado
actualmente nele pela linguagem, mas também por todos os significantes
disponíveis. Há “significado flutuante” infinito transbordando o mundo que é
exprimido, e são as pequenas percepções que se encarregam de o significar (GIL,
2005, p. 99).

Em Natureza Morta, há um método de montagem e de realocação dessas imagens, no


diálogo estabelecido umas com as outras no todo fílmico, na disposição temporal de três telas,
seja na duração dessas imagens ou na mutação do tempo-movimento. Deste último,
apontamos uma força de suma importância na estratégia estética. Segundo José Gil (2005),
entre a percepção visual da imagem e a sua significação do invisível, existe o intervalo, ou
melhor, a escavação da visão pelo olhar: são estes choques em suas realocações na montagem,
no diálogo das imagens que expande suas contradições (Natureza Morta), mas sobretudo na
mutação do tempo e do movimento. Jean Epstain, em sua estratégia fílmica, propõe o cinema
como produção do tempo em sua busca pela inscrição da verdade: “Por desenvolver o
alcance de nossos sentidos e jogar com a perspectiva temporal, o cinematógrafo torna

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perceptíveis pela visão e pela audição indivíduos por nós considerados invisíveis e
inaudíveis” (EPSTAIN apud AUMONT, 2004, p. 37).

Dando continuidade a este pensamento de Epstain, Jacques Aumont desenvolve:

Nessa condição, vemos que a própria vida é relativa, que é possível suscitar seu
aparecimento onde não a vemos. Basta para tanto imaginar que se modula o tempo
natural indefinidamente como por uma espécie de projeção sobre o mundo natural
dos princípios de modulabilidade (aceleração/desaceleração, inversão) do tempo
cinematográfico. Serão obtidas transformações radicais do tempo que farão perceber
de outra forma os seres apanhados no tempo e darão origem ao que aparecerá
eventualmente como vida (AUMONT, 2004, p. 40).

Em Natureza Morta, a vida apreendida pelo regime de exceção português é


recomposta na sua quase imobilidade e congelamento temporal, o que escava a percepção
imediata da imagem e faz emergir uma nova potência vetorial: o vetor não nos dirige mais
para a banalização de um gesto cotidiano, mas para uma sensação profunda de violência,
deslocando o banal institucionalizado para o regime imagético extraordinário, da dor
extraordinária e também extraordinária opressão.

É rompido o intervalo entre a visão e o olhar, este último, antes como o inconsciente
separado do ser, mas que agora vem à tona e não mais abisma a possibilidade de se chegar ao
olhar: eis o que significa esta concepção de intervalo em Gil (2005). O invisível é atualizado
nas pequenas percepções escavadas: um homem (Natureza Morta) em sede descomunal é
sentido pela apreensão sensível dessa potência em sua quase imobilidade fotográfica e
temporal, como se estivéssemos perante o “instante decisivo” de Cartier Bresson. Portanto,
doravante, a violência brota de onde outrora a visibilidade apontava para a saciação da sede e
não para a sede que se apresentava insaciável.

As invisibilidades de tais imagens aos poucos se chocam umas nas outras e eclodem
novas camadas de significância. Por vezes, as pequenas percepções, arrancadas a fórceps,
sobrepõem-se às visibilidades do banal, e neste choque dialético-sensível, o ordinário destas
últimas são revogados. São métodos de violências que arrancam a violência muda e passam a
dar formas a outras imagens: algumas um tanto mais já decompostas da banalização pela
contradição da escritura sensível que aos poucos o regime já não pode sustentar.

As formas visíveis exibem-se apenas para melhor se negarem, enquanto o invisível


transforma a própria visibilidade delas (...) Desaprender o visível para aprender o
invisível: entre os dois, corte e descontinuidade. O instante em que a cisão faz
nascer a forma inédita, instante de recusa e invenção, é um momento de caos (GIL,
2005, p. 136-137).

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4. VIRTUALIDADES DO TEMPO E MÉTODO HISTÓRICO-SENSÍVEL

Os corpos e seus gestos não podem esconder as marcas que lhes fundam e dão forma,
bem como estão para sempre consolidadas as intenções das mãos do pintor que marcam a tela
em pinceladas com impressões específicas. Os dedos do pianista podem tocar as teclas em
pianíssimo, mas sua ínfima nota, na verdade, pode gritar. A certas distâncias, as inscrições
sensíveis podem esconder as marcas das mãos, dos pincéis e dos gestos que lhes fundam, mas
estes sempre terão indissociavelmente as potências das intencionalidades gestuais. Estas são
como o inconsciente freudiano em que a pequena ponta do iceberg (o que chamamos de
consciência), esconde na fácil visibilidade o seu verdadeiro jogo de intenções, dando a ver
apenas sua camada mais à superfície.

Ranciére propõe que o trabalho do artista contemporâneo é uma arqueologia para se


chegar a estas marcas indissolúveis: “O artista é aquele que viaja nos labirintos ou nos
vestígios e transcreve os hieróglifos pintados na configuração mesma das coisas obscuras e
triviais” (2009, p. 36). Não havendo, portanto, detalhe desprezível que não tenha a capacidade
de dar mínimos indícios de potências, vetores, intencionalidades, que movam gestos,
transformem corpos, moldem matérias, e deixem vir a história que por vezes, na maioria
talvez, esteja soterrada nos escombros banalizados de nossas paisagens.

Para que o banal entregue seu segredo, ele deve primeiro ser mitologizado. A casa
ou esgoto falam, trazem consigo rastros do verdadeiro (...) O escritor é o geólogo ou
o arqueólogo que viaja pelos labirintos do mundo social e, mais tarde, pelos
labirintos do eu. Ele escolhe os vestígios, exuma os fosseis, transcreve os signos que
dão testemunho de um mundo e escrevem uma história. A escrita muda das coisas
revela, na sua prosa, a verdade de uma civilização ou de um tempo, verdade que
recobre a cena de outrora gloriosa da palavra viva (RANCIÉRE, 2009, p. 38).

Natureza Morta trabalha sobre tais vestígios, na busca de desembaraçar as marcas e


intencionalidades latentes, virtualidades que venham a se atualizar. Quando Sousa Dias
dispõe três telas e nestas as temporalidades, as presenças imagéticas, as modulações tempo-
movimento (desaceleração), ela realiza uma montagem por meio da coalescência virtual: o
virtual é este misto de potências e vetores, intencionalidades latentes, numa existência muda,
mas a qualquer momento prestes a emergir e atualizar-se. O dispositivo de telas em que cada
uma trabalha de forma quase independente, proporciona-nos o poder de certa escolha de
montagem, na simultaneidade das potências realocadas, e que no olhar do observador afetado
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é dada a este a proatividade de realocar as imagens por mais uma vez no fluxo das
impressões.

Impressões do passado que se dilatam por sobre o presente (DELEUZE, 2005),


atualizam porções de virtualidades e passam a dar suas presenças simultaneamente: o olhar
desamparado dos colonos que, de uma presença em uma das telas choca-se com a presença de
um militar lusitano que caminha entre estes mesmos colonos, e, no entanto, o olhar e o
caminhar mostram-se numa coexistência em dimensões díspares. Eis, então, sua coalescência:
uma fissura no discurso histórico inteligível, pela potência do sensível realocado e
provocando dissensos.

Um processo dialético de choques, sim, mas um processo, sobretudo, sensível, mais


que propriamente inteligível, e a cada nova aparição imagética, ou mesmo anulação na tela
negra, potencializam-se tempos e contradições: o afetivo cortejo de uma autoridade católica
contraposta às fotos de um padre negro (seria ele um preso político das colônias?), seu corpo
fora apanhado no sistema disciplinar carcerário e temos, então, não apenas uma imagem
vulgar de um preso fotografado pelo método banal e seriado da burocracia, mas a disposição
desse método repetido em tempos diferentes que denunciam a mutilação e modelagem desse
corpo, tempos de registros banais que se sobrepõem, e podemos sensivelmente juntar
diferentes camadas do passado numa única sensação chamada barbárie.

Dessa forma, cada imagem realocada de sua banalidade entrega-se às sensações do


receptor, que montando sua narrativa sensível, cria uma onda de choques, choques em
cadeias, redes ou orbitais.

Chegamos finalmente à camada de composição que unifica os três dispositivos: o


desenho sonoro. O som metálico de grades a cada ranger no abrir e fechar de celas, a cada
novo corpo encarcerado que não vemos, mas podemos sentir, lançar aos olhos do espectador a
ferrugem que corroía o Estado Novo português, e caso estiquemos as mãos, podemos quase
tocar um dos dispositivos técnicos que sujeitaram vidas. Grades que irrompem
subterraneamente e assombram a obra em sua fantasmagoria que parece não haver luto
suficiente para transcendê-la. Como leitmotiv da obra, o ranger de grades acaba por
solidificar-se como o som de um tempo, bem como a ferrugem que pode ser imaginada,
mesmo sentida, o fóssil táctil de uma história.

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Natureza Morta não reconstitui a história por meio dos processos de constituição
historiográfica ou mesmo crítica. A história tende a fixar-se como significância, excluindo
virtualidades e devires dos processos, bem como assinala fatos sem levar em conta a vivência
do sensível. Somente uma história instável, reconstituível poderia apoderar-se do invisível e
do devir. A história fixa-se como o comunicável que somente tem sentido na estabilidade
inteligível da palavra escrita, mas que a ela sempre escapa um novo devir: de uma verdade do
sensível, que os fatos não transmitem, quando muito afirmam, especulam e fixam apenas uma
parte. Que o povo africano foi submetido aos regimes totalitários europeus é de conhecimento
histórico, mas a vivência sensível, que extrapola o sentido das palavras em seus símbolos bem
alocados, estabilizados, códigos comuns, reconduz-nos a uma nova experiência histórica que
retira da frígida palavra a desestabilização de tais códigos e nos coloca em possível diálogo
com o real da experiência histórica: a vivência sensível.

Não quero com isto dizer que este que chamo método histórico-sensível seja uma
apreensão totalizante da verdade pura, seria idealismo essencialista, mas que esta forma de
abordagem escava arqueologicamente a história que não pôde ser reconstituída de outra
forma, posto que o sensível, parte imprescindível da constituição do poder biopolítico
contemporâneo, não estaria disponível pelos códigos estabilizados de nossa cultura
historicista. Antes de ser um “ser histórico”, o homem é um “ser sensível”, isso está
pressuposto no método sensível de recomposição sígnica de Natureza Morta e tal método
histórico sensível pode ser configurado como a violência pura que Benjamin propõe como
desarticuladora, no plano ideológico do estado de exceção, dando a este seu estatuto que tanto
tenta renegá-lo se auto-afirmando como um processo natural do progresso (2010).

A razão de esquerda revela-se herdeira da razão revolucionária burguesa européia. A


colonização, em tal nível, impossibilita uma ideologia revolucionária integral que
teria na arte sua expressão maior, porque somente a arte se aproxima do homem na
profundidade que o sonho desta compreensão possa permitir (...) a ruptura com os
racionalismos colonizadores é sua única saída (...) na medida em que a desrazão
planeja as revoluções a razão planeja a repressão (Rocha, 2004, p. 250).

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

AGAMBEM, Giorgio. A comunidade que vem. Lisboa: Editora Presença, 1993.


______. O estado de exceção: homo sacer II. São Paulo: Boitempo, 2004.
______. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

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AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Campina: Papirus, 2004.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

______. O anjo da história. Lisboa: Assírio & Alvim: 2010.

DELEUZE, Gilles. Cinema: A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 2005.

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MORIN, Edgar. Neurose: O espírito do tempo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2009.

RANCIÉRE, Jacques. O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34, 2009.

REZENDE, Luiz Augusto. Microfísica do documentário. Rio de Janeiro: Azougue Editora e


eventos, 2013.

ROCHA, Glauber. A revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

ROSAS, Fernando. O Salazarismo e o Homem Novo: Ensaio Sobre o Estado Novo e a


Questão do Totalitarismo. Lisboa: Análise Social, vol. XXXV, 2001.

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