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Cortina de água:

um comentário sobre a localização do


patamar inferior do cosmos Inỹ (Karajá)1

Eduardo S. Nunes
(Programa de Antropologia e Arqueologia,
Universidade Federal do Oeste do Pará)

Nessa comunicação, gostaria de tratar de um pequeno detalhe da literatura


específica sobre os Inỹ (Karajá, Javaé e Ixỹbiòwa, povos falantes de uma língua Macro-Jê –
ver Davis, 1968), uma questão extremamente pontual mas que, assim espero mostrar, traz
algumas considerações interessantes tanto sobre o que poderíamos chamar de
cosmografia, i.e., a descrição da estrutura do cosmos, quanto em relação ao tratamento de
termos da língua indígena incorporados na análise etnográfica. Essa questão a que me
refiro é a localização exata do patamar inferior do cosmos Inỹ.
O cosmos inỹ é tripartido entre um Mundo de Cima (biu ♂, ou biuwètàky ♂), um
Mundo de Fora, ou do Meio (ahãna), aqui onde os Inỹ habitam à beira do Araguaia, e um
Mundo de Baixo, o Berahatxi, cuja tradução para português mais comumente oferecida
pelos indígenas é “o Fundo do Rio”. É sobre ele que gostaria de me deter. Mais
especificamente, a questão que me motiva é uma certa “precisão descritiva” em relação à
localização desse patamar do cosmos presente nos trabalhos de Patrícia Rodrigues,
etnógrafa dos Javaé, e André Toral, cuja pesquisa abrangeu tanto os Javaé quanto os Karajá.
O Fundo do Rio, precisam os dois autores, a despeito de uma associação aquática que, ao
fim e ao cabo, seria ilusória, estaria localização não dentro da água, mas abaixo do leito do
rio. As evidências utilizadas para sustentar tal afirmação são, de um lado, fenomenológicas
– as características da interação entre os habitantes desse mundo e seu ambiente tal como
se dão à percepção – e, de outro, a análise de certos termos da língua inỹ utilizados para
se referir a eles. Comecemos pela associação aquática.
Tal associação se mostra mais claramente em relação aos seres que habitam o Fundo
do Rio, em especial os ijasò, ou aruanãs, seres mascarados que são trazidos pelos xamãs
para a aldeia para cantar e dançar em um ciclo ritual próprio. Os xamãs viajam
(xamanicamente) até o Fundo do Rio e trazem o “espírito” (tyytàby) de um ou mais aruanãs
de volta a aldeia, assim como memorizam as características de seu ‘corpo’. Esse corpo, que

1Comunicação apresentada no IX Encontro Macro-Jê, Universidade Feral do Mato Grosso, campus Araguaia –
Barra do Garças, de 19 a 22 de junho de 2016. O texto retoma um argumento elaborado no capítulo quarto de
minha tese de doutorado (NUNES, 2016).
é, para os humanos, uma máscara, é depois reproduzido pelos homens da aldeia com palha
de buriti. Os homens, assim, dançam com as máscaras-corpos e com os “espíritos” desses
seres. Mas os aruanãs também vêm ao mundo de fora por conta própria, silenciosamente,
para “brincar” (i.e., cantar e dançar) em locais ermos, geralmente à beira de algum lago.
Há vários relatos de xamãs, ou mesmo pessoas comuns, que os surpreenderam nesses
momentos. Foi assim inclusive que, em tempos antigos, Wanahua e seu amigo trouxeram
os primeiros aruanãs para a aldeia; não apenas seu espírito, mas taumỹ-di, “com seu
próprio corpo”.
Quando os aruanãs “de verdade”, como dizem os Inỹ, saem do Fundo do Rio para o
Mundo de Fora, seus pés deixam marcas d’água no chão, que somem rapidamente (ver
NUNES, 2012: M4, pp. 375-376). André Toral descreve algo semelhante: “Os Ijasò de
Berahatxi são marcados por uma relação estreita com a água: quando os hàri trazem algum
objeto das profundezas, exemplificaram com um pequeno maracá (wèru), ele vira água
aqui na superfície. Da mesma forma, quando os Ijasò visitam a superfície, reclamam de
calor. Por baixo de onde dançam, pois que seus pés quase não tocam o chão, a água brota
e assim por diante” (1992: 158). O calor que sentem aqui é um dos principais motivos pelos
quais sua estadia na aldeia é relativamente curta: com o tempo, começar a adoecer e ficar
fracos, podendo morrer se não regressarem a sua morada. Eles são, afinal bèra làdu,
“habitantes da água”. O frio do Fundo do Rio chega a ser retratado por alguns
interlocutores de Toral como gelo: dentro da casa dos aruanãs é “‘como uma geladeira’,
como gelo nas paredes” (TORAL, 1992: 53). Também em uma versão um pouco atípica do
mito de origem da humanidade inỹ, que emergiu do Fundo do Rio, o motivo de terem
saído para procurar um novo lugar para viver é, justamente, o frio. Assim diz um trecho
da história:
“Antigamente, os Inỹ moravam dentro do Berahatxi. Dentro do Berahatxi, o frio
matava muitas pessoas. Quando amanhecia, umas três pessoas tinham morrido durante a
noite. Na água, o chefe deles sempre falava para que eles procurassem um lugar melhor
para morar” (PIMENTEL DA SILVA & ROCHA, 2006: 90-91 – tradução minha).
Note-se os termos usados. “Dentro do Berahatxi”: o Fundo do Rio é concebido como
um lugar fechado, que tem um “interior” (wo ♂, woku ♀), contrastando, assim, como o
Mundo do Meio, que é justamente, o ahãna, o “Mundo de Fora” (o par wo ♂ - ahãna
também pode ser usado para se referir, por exemplo, ao “interior” e ao “lado de fora” de
uma casa). E também como o narrador se refere a esse patamar do cosmos: “na água”, bèra-
ki, no vernáculo. Há duas palavras para água, bèè e bèra ♂, essa última mais usada para se
referir a água do rio, ao rio como água; quem “desceu para a água”, bera-ò rubehere, foi no
rio. A palavra berahatxi, assim, pode ser descomposta em berà, “água-rio”, e hàtxi, que,
além de “nádegas”, ou “parte de trás”, significa também “fundo”: o fundo (interior) de um
continente, uma bolsa, um pote, uma panela. Por isso os Inỹ traduzem a palavra
comumente por “fundo do rio”.
Porém, há certas características fenomenológicas desse mundo que pareceriam
indicar que ele não se localizaria dentro da água. Nas palavras de Toral: “Os Ijasò das
profundezas são também referidos como beroludu, “habitantes do rio”. “Isso não quer
dizer, no entanto, que eles são seres aquáticos ou que vivam em meio à água. Como vimos
eles vivem sob a água e não na água. Todos os hàri, que os visitam, marcam em seus relatos
que apesar do ambiente em Berahatxi ser muito frio, lá respira-se como aqui” (1992: 158 –
grifos meus). Outra evidência nesse sentido apontada por Toral é retirada de um relato de
um xamã de Fontoura, Pedro Ijètura. “A casa deles (dos ijasò) é embaixo da pedra grade, é
lá que o ijasò vive/mora. Da mesma forma que os morcegos vivem dentro do pau/tronco
os ijasò vivem dentro/embaixo da pedra grande, bem lá no fundo, não é na terra não”
(TORAL, 1992a: anexos, p. 75). Um mundo seco, onde se respira ‘como aqui’, não pode ser
exatamente ‘dentro da água’.
Patrícia Rodrigues retoma essas formulações de Toral e, acrescentando evidências
linguísticas, precisa que o patamar inferior do cosmos estaria localizado, mais exatamente,
“abaixo do leito do rio”. As principais evidências apontadas pela autora são linguísticas.
Quero me deter sobre quatro termos, ou expressões, analisados por Rodrigues e Toral.
Aqui, começo já uma abordagem crítica em relação ao argumento dos dois autores.
Rodrigues diz que um dos termos usados pelos Javaé para ser referir ao Fundo do
Rio é wahetxiraworenỹ, expressão que glosa como “o que está dentro do que está embaixo
de nós”. Ela traduz a palavra rawo como “dentro da cabeça/corpo”, que, figurativamente
teria o sentido de “dentro da terra” (2008: 246). Esse pode ser o sentido da expressão
quando o falante acopla conscientemente as palavras ra (“cabeça”) e wo (“interior”) para
se referir ao “interior da cabeça”. Mas existe um homônimo, rawo, termo este lexicalizado
e que significa “embaixo”; mesa rawo, “em baixo da mesa”; watxiwi rawo, “em baixo da
panela”. A expressão citada por Rodrigues, assim, também pode ser traduzida como “o que
está embaixo (rawo) do que está debaixo de nós (wahatxirènỹ)”, ou simplesmente, “o que
está embaixo do nosso fundo/chão (hàtxi)”. Afinal, para os humanos atuais, o “fundo” do
Mundo de Fora, onde vivem, não é outra coisa senão seu próprio chão, a terra (suu) ou a
superfície da água.
A outra tradução de Rodrigues que vale um comentário é a do termo berahatxi, por
“as nádegas do rio”, “em um sentido literal” (id.: 247), ou “o que está abaixo (do leito) do
rio” (id.: ibid.). A autora se ancora em dois dos vários significados da palavra hàtxi. Um
deles é “nádegas” e o outro, “atrás, parte de trás”. Mas hàtxi, como disse anteriormente,
também pode significar “fundo”, o fundo (interior) de uma bolsa ou de um pote. As
traduções que Rodrigues oferece para os dois termos, portanto, não são conclusivas para
que se possa afirmar que o Berahatxi está abaixo do leito do rio, e não simplesmente dentro
do rio, no fundo do rio.
Já Toral apresenta a expressão “berahatxiwebarò” como “uma forma mais extensa”
da palavra “Berahatxi (‘as profundezas da água’)” e a traduz por “por trás das profundezas
da água” (1992: 153). Com efeito, wèbrò significa de “atrás”. Onde está o fulano? – alguém
chega e pergunta. Heto wèbrò-ki, “atrás da casa”. Mas se você está nos fundos da casa, heto
wèbrò é a parte da frente. A palavra wèbrò, assim, é mais precisamente traduzida por “lado
de lá”. Ela difere de wèràbi, “lado”, me parece, por um detalhe. Pode-se referir à praça ritual
falando sobre seus “lados”, o lado do pessoal de cima (ibòò mahãdu wèràbi) e o lado do
pessoal de baixo (iraru mahãdu wèràbi) – aqui me refiro aos dois grupos rituais masculinos,
opostos de acordo com a polaridade rio acima x rio abaixo –, pois não há um obstáculo
entre eles, algo que os separa claramente. Já wèbrò, é mais comumente usado para falar de
um lugar quando há um obstáculo ou uma partição, divisória, que faz uma separação clara
entre os dois lados – uma separação sobretudo visual, me parece. Como uma casa: de frente
para ela, não se sabe o que se passa nos fundos. Assim, o termo wèbrò também pode ser
usado para se referir ao “lado (wèbrò) de cá (kaa)”. Nas gravações que fiz sobre a história
de como a humanidade verdadeira saiu do Fundo do Rio para aqui morar, por exemplo, as
narradoras usam abundantemente essa expressão para se referir ao Mundo de Fora. Em
um caso, a narradora diz: “Então, ele saiu para o lado de cá”. Ele, Woubèdu, aquele que
descobriu a passagem entre os dois mundos. Ele saiu kaa wèbrò-kò ♀, “para” (-kò, fala
feminina, é um direcional) “o lado de cá”. E a narradora segue: “Antigamente existia Inỹ
no mundo de cá, do lado de fora”. “No mundo de cá”, kaa wèbròtàky. A palavra wèbrò,
aqui, é conjugada com tàky, termo que significa “pele”, “casca”, “roupa”, mas também é
usada de maneira mais ampla, para se referir ao corpo ou, como é o caso aqui, “plano” ou
“mundo”. Note-se, por exemplo, que uma das expressões usadas para se referir ao Mundo
do Alto é biu wètàky. Kaa wèbròtàky, assim, seria algo como “no plano” ou “mundo de cá”.
Assim como, importante pontuar, o Mundo de Fora também pode ser referido, como em
algumas narrativas que gravei, como kaa wètàky, algo como “plano de cá”, “mundo de cá”.
Por fim, Toral diz ainda que os Javaé chamam comumente o patamar inferior do
cosmos de “Kanawèbrò, ‘por trás de Kana’, que parece ser um rio ou lago concreto, que não
consegui localizar” (1992: 153). A tradução, porém, não parece precisa. Kàna é um sinônimo
de kua, “aquele”, o oposto de kaa, “este”. Kàna wèbrò é o mesmo que kua wèbrò, “do lado
de lá” – não parece se tratar, portanto, de nenhum “rio ou lago concreto”, como diz o autor
(1992: 153). Dòrèwaru, por exemplo, ao narrar da ida dos Wèrè para o lado do rio Javaés,
na história de origem dos Javaé (ver NUNES, no prelo), diz que “depois eles foram para o
lado de lá”. Kàna wèbrò-kò, sendo –kò um direcional e kàna wèbrò “o lado de lá” da Ilha do
Bananal.
“Lado de cá” e “lado de lá”, com efeito, me parecem uma boa maneira para se referir
à relação entre o Fundo do Rio e o Mundo de Fora. Foi em uma conversa despretensiosa
com Gedeon Ijàraru que pude vislumbrar a natureza da relação entre esses mundos. Ele
me contava que, quando criança, tinha a “visão aberta”. Assim, ele era capaz de ver kuni
(o espectro dos mortos) e outras entidades. Esses seres o perturbavam durante a noite, por
isso não dormia direito. Certa vez, um “bichinho” o chamou, disse que queria mostrar um
lugar para ele, e ele foi. O “bicho” o levou até o rio que, naquele momento, disse Gedeon,
lhe pareceu uma cortina: quando se olha de fora, só se vê a superfície, mas, ao entrar na
água, foi como abrir e atravessar uma cortina. Debaixo da água, ele enxergava as coisas
como ele as enxergava aqui fora. Lá tinha muitos aruanãs, muita comida. Ele estava
entrando no Berahatxi.
Se, ao contrário das evidências linguísticas evocadas por Rodrigues e Toral, aquelas
que chamei de fenomenológicas me parecem bastante precisas – o Fundo do Rio é um
mundo seco, “lá se respira como aqui” –, isso não implica que o patamar inferir do cosmos
se localiza abaixo do leito do rio, e não dentro da água. Aqui, há outros detalhes
importantes de serem notados. Quando aqui é dia, lá é noite, e vice-versa. Pois o sol, que
nasce ao leste no Mundo de Fora, nasce a oeste no Berahatxi: quando o sol se põe aqui, ele
está nascendo lá. Os habitantes do Fundo do Rio chamam os Inỹ, o pessoal do Mundo de
Fora, de biu làdu, “habitantes do Alto”; o Mundo de Fora, para eles, é o patamar superior,
seu próprio biu wètàky, termo pelo qual, como vimos, os Inỹ atuais se referem ao Mundo
do Alto. Como diz a própria Patrícia Rodrigues, “o nível terrestre é o ‘Céu’ dos que moram
no nível subaquático. O nível terrestre é uma espécie de teto do Berahatxi” (2008: 249; ver
também TORAL, 1992: 157-158, e anexos, p. 76). Rodrigues diz ainda que, para os habitantes
do Fundo do Rio, é daqui que a chuva vem (2008: 249), assim como, para os Inỹ do Mundo
de Fora, a chuva vem do Mundo de Cima. Lá é frio, aqui é quente. E além disso, por fim,
outro motivo pelo qual os aruanãs adoecem com o passar do tempo no Mundo de Fora é
que, para eles, esse é um mundo cheio de doenças: os Inỹ, para eles, são feios e
“perebentos”, têm a pele cheia de feridas/doenças.
Se, portanto, há elementos para se fazer um esquema do cosmos que comporte,
coerentemente, tanto o Fundo do Rio quanto o Mundo de Fora (o caminho do sol, por
exemplo), em relação à certas questões, porém, é necessário tomar um partido. Pois o que
para os humanos atuais é o chão, suu, para o pessoal de baixo é o “céu”, biu; o que para os
humanos atuais é submerso, para o pessoal de baixo é seco. Mas, do ponto de vista de
ambos, seu local de moradia é seco, é ar que se respira. Do ponto de vista de ambos... É
justamente disso que se trata. Entre os habitantes do Fundo do Rio e os do Mundo de Fora,
há uma diferença de ponto de vista, de perspectiva (sensu VIVEIROS DE CASTRO, 1996;
2002a; LIMA, 1996; 1999). E o mesmo poderia ser dito da relação com o Mundo do Alto. As
estrelas que os Inỹ veem no céu, são, do “lado de lá”, cupinzeiros na estrada que os xamãs
percorrem para ascender àquele plano. Do lado de lá, também há um chão, suu. Mas não
há tempo comentar isso detidamente agora.
Encerro, aqui, esses breves comentários. Seria preciso, é claro, uma descrição bem
mais detalhada para dar solidez ao argumento – coisa que fiz em outro lugar (NUNES, 2016:
cap. 4). Mas espero que minha insistência em discutir esse ‘pequeno detalhe’ da localização
do patamar inferior do cosmos inỹ, tenha tido êxito em mostrar que há mais aí do que
aquela paixão por detalhes que costuma interessar os especialistas, mas frequentemente
apenas eles. Concluo, então, apontando duas questões.
Primeiro, sobre cosmografia. É comum, na literatura sobre os Inỹ como naquela
sobre outros povos, que o pesquisador ou a pesquisadora se empenhe em emparelhar uma
série de informações sobre os diferentes patamares dos cosmos, suas características e seus
diferentes habitantes a fim de fazer uma diagramação geral da estrutura do cosmos, do
cosmos “como um todo”. Porém, se entre os moradores de diferentes patamares do
cosmos, como mostro aqui, há uma diferença de perspectiva, e inspirando-me na leitura
que Tânia Stolze Lima faz da solução Lévi-Straussiana para o problema do dualismo e,
como ela, tentando escapar do “princípio teórico de que o todo é necessariamente uma
unidade de ordem superior” (2008: 213), eu me perguntaria se não seria possível, e
interessante, produtivo, explodir essas diagramações da totalidade. Elas têm, é claro, seu
valor. Mas sua unidade, e imagem de totalidade que trazem, me parece advir de sua
ancoragem em uma perspectiva específica, aquela dos humanos atuais juntos aos quais o
ou a pesquisadora faz sua pesquisa. Mas não seria possível fazer diagramações diferentes
do cosmos a partir dos pontos de vista dos habitantes de seus outros patamares? O que
resultaria se diagramássemos o cosmos segundo a perspectiva dos aruanãs, ou dos
Moradores do Alto?
A segunda questão remete à linguística. Pode parecer banal, se não arrogante, partir
da crítica que fiz aqui às traduções que Patrícia Rodrigues e André Toral forneceram para
alguns termos da língua karajá para afirmar a importância para a etnografia de uma análise
linguística adequada. Mas não é tão banal assim, penso eu. Pois, se é evidente que um bom
uso da língua indígena pode trazer uma desejada densidade para a descrição etnográfica –
e aqui não falo de sobrecarregar o texto com termos indígenas anexados a ele como
enfeites, mas do ganho analítico que seu uso pode trazer –, isso é mais verdade, me parece,
em alguns casos. A cosmografia, juntamente com o xamanismo, é um deles. Na minha
experiência de campo, pelo menos, os Karajá sempre tiveram considerável dificuldade em
traduzir para o português, com a precisão que eu buscava, coisas como a relação entre os
xamãs e seus espíritos auxiliares ou, para me manter no assunto que abordo hoje, as
características do Fundo do Rio e de seus habitantes. Foi somente navegando nesse
universo por meio de sua língua que pude compreender melhor uma quantidade de
questões. Do que trago aqui hoje, gostaria de destacar o valor de certas partículas da
língua, como direcionais, locativos e pronomes, e de alguns termos como wèbrò, o “lado”
de que tanto falei, para que possamos entender melhor e formular com mais exatidão
certos “detalhes” que, adaptando o argumento de Elizabeth Ewart em um texto recente
(2015), são ‘coisas com as quais os antropólogos se preocupam’.

Obrigado!

Santarém, 10 de junho de 2018.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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