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Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIV, n 149, 21-31
1. O filme é Mundo Grúa. Realizador: Pablo Trapero. Argentina. Mostra Internacional de Cinema de
São Paulo, 1999.
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ali? Uma frase sempre repetida “você é Trieste – com Franco Basaglia – a
uma analista que entende de instituição” antipsiquiatria e as comunidades tera-
pode nos dar algumas entradas. Para pêuticas na Inglaterra.
isso, é importante pensar na forma que Estes exigem novos modelos de trata-
toma neste país a distribuição de rique- mento que acompanhem os paradigmas
zas de todo tipo: econômicas, sociais e em formação. Assim, vemos surgir tra-
culturais. O aprofundamento do modelo balhos donde se criam dispositivos de
capitalista no Brasil faz com que uma tratamento coletivos, equipes de trabalho
distribuição já historicamente deficitária, formadas por profissionais de formação
cubra proporções inusitadas. As institui- diversificada (psiquiatras, psicólogos,
ções públicas de atenção à saúde, salvo assistentes sociais, terapeutas ocupacio-
ilhotas de excelência, são territórios cui- nais, artistas). Os esforços se dirigem
dadosamente evitados por qualquer um principalmente àqueles pacientes que
que possa garantir um atendimento pri- constituem a clientela tradicional das in-
vado. Dentro do modelo, o sofrimento ternações: os psicóticos, os quadros-limi-
psíquico acompanha essa distribuição: te e, por que não, àqueles que um empo-
para quem pode, o consultório privado, brecimento diagnóstico refere como psi-
com profissionais qualificados em diver- cóticos, e trata como tais, interditando
sas linhas teóricas. Para o resto, atenção quaisquer possibilidade de outra circula-
psiquiátrica e internação quando os re- ção. Dentro dessa categoria, podemos
médios se demonstram pouco eficazes lembrar quantas histerias são até hoje
para controlar o sintoma. diagnosticadas como psicoses, e como
Na população em geral, o atendimento tais permanecem, até pela própria posi-
esperado se modaliza segundo a consulta ção do sujeito histérico na sua relação ao
médica: atendimento individual, poucos olhar do Outro.
contatos, resolução rápida das questões Entre os recursos para construir uma
– melhor ainda se acompanha medicação clínica da subjetivação, a psicanálise
– e quase nenhuma implicação subjetiva: ocupa um lugar paradoxal. A história da
“o doutor é quem sabe”. psicanálise no Brasil nos fala de uma
As décadas de 1970 e 1980 no Brasil são prática elitizada, sustentada pelas insti-
palco para o surgimento e conscientiza- tuições ligadas à I.P.A. (International
ção, dentro do campo da saúde mental, Psychanalitical Association). Essa refe-
de novas ideologias de tratamento que rência institucional traz uma concepção
intentam evitar a internação, que reivin- da prática psicanalítica – entendendo
dicam os direitos do paciente psiquiatri- como tal o campo que abrange as práti-
zado, que levantam as bandeiras da luta cas teóricas, formativas e terapêuticas –
antimanicomial. Os ventos europeus pro- que inviabilizava sua circulação por es-
vêm da Psiquiatria de Setor francesa, o paços mais amplos. Esse modo de pra-
movimento de desinstitucionalização de ticar a psicanálise sedimenta uma ima-
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gem no social: psicanálise é cara, com na vivência do paciente, senão dos própri-
muitas sessões semanais, de longa dura- os profissionais, esmagados pela pres-
ção, terapia para quem pode pagar, não são da demanda, com escassos recursos
para quem precisa. para pensar sua clínica. Quando se toca
Mas, ao mesmo tempo, também existe esta questão dos recursos, imediatamen-
uma contrapartida nessa imagem (isto é te se pensa nos baixos salários, mas foi
muito forte ente os profissionais da área): no trabalho de supervisão que entendi
psicanálise é uma terapia em profundi- que o que se demandava era um espaço
dade, ela serve de verdade. Será possí- de singularização, onde pudessem apare-
vel pensar que através dessa idealização cer os efeitos nocivos do atendimento
eram veiculadas aspirações de cuidado e maciço, da gravidade dos casos, da mi-
tratamento que se sabiam difíceis de séria psíquica que enfrentavam. Ou seja,
achar nos espaços públicos mas que cir- do que um modelo medicalizado repri-
culavam como ideal social? me, e que retorna com plena intensida-
Os espaços públicos, sob o signo da de fazendo sintoma dentro e fora dos
massificação: as filas de espera, os retor- atendimentos.
nos marcados de mês em mês, as con- Parece-me que é nessa articulação que se
sultas apressadas pela pressão da produ- constrói a demanda de supervisão feita
tividade. O outro, o semelhante posto na para um analista. Quase sistematicamen-
posição de quem tira, divide o exíguo te, a primeira fantasmática que surge –
espaço disponível... em contraste, no sem esquecer os ensinamentos do velho
espaço do privado, sob o signo do di- Pichón Rivière, na linha da resistência –
nheiro e do poder, alguém disponível é a de um grupo terapêutico. Mas tam-
para escutar sem pressa os desdobra- bém é necessário prestar atenção ao que
mentos singulares de um sujeito ad segue na frase: uma psicanalista que en-
infinitum. Muitas vezes, fui surpreendi- tende de instituições. O que significa
da pela resistência de profissionais que, isso? Os desdobramentos do trabalho me
atuantes no serviço público em progra- ajudaram a pensar que além do saber su-
mas onde eles realizavam trabalhos com posto, ou junto com ele, se supunha
grupos terapêuticos, se negavam a rea- uma escuta que apostava numa clínica
lizar uma experiência terapêutica em gru- possível dentro do espaço institucional.
po. O implícito nessa resistência: grupo Escutava o pedido de construção de uma
é para quem não pode pagar. Terapia clínica em sério, que sustentasse um lu-
de pobre. De mais um na fila. Quando gar de valor imprescindível para fazer
se trata de mim, escolho individual. crescer o projeto fora do imaginário
Não creio ser necessário apontar quais empobrecido do “funcionalismo públi-
podem ser os efeitos de uma transferên- co”.
cia semelhante com o trabalho, mas le- Talvez este percurso um tanto errático
vanto a questão da massificação não só nos ajude no esforço de demonstrar que
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nica, foi o interesse dos atendentes, que no NAPS fazia relativamente pouco tem-
pouco entendiam de diferenças clínicas, po, tinha ingressado no meio de uma cri-
que decidiu a transferência. O espaço de se psicótica, com fortes componentes
supervisão era oferecido para toda a paranóides e uma agressividade que cus-
equipe, entendendo por equipe todas as tava pouco a se manifestar. Era um pa-
pessoas que trabalhavam com os pa- ciente que incomodava; se assemelhava
cientes, desde a diretora até o porteiro. demais à imagem do louco perigoso que
Apesar das “boas intenções”, somente o Programa tentava combater no imagi-
alguns dos atendentes e do pessoal admi- nário social. Quando proponho refazer
nistrativo ousava participar. E enfatizo os momentos em que Everton ficava
“ousava” porque era muito difícil vencer agressivo – e ele quebrava o que tinha
as barreiras que o imaginário social co- por perto, mesmo – vamos reconstruin-
locava, no sentido de territórios forte- do um quadro interessante: quase sem
mente demarcados entre os que sabiam exceção, a raiva aparecia como respos-
e os que não sabiam. E não podemos es- ta a situações onde lhe era prometido al-
quecer que se tratava do saber sobre a gum cuidado que demorava em chegar
loucura – um dos maiores fantasmas do ou era esquecido. Vai surgindo, clara-
humano. Era constante escutar dos aten- mente, uma posição de infantilização do
dentes frases tais como: “e que é que eu paciente, onde em muitos momentos,
vou falar ali, se eu não estudei” ou de pelo medo que ele despertava, se trata-
parte das secretárias “meu trabalho é va de acalmá-lo com falsas promessas,
administrativo, de paciente não entendo”. ao estilo das que se fazem a uma crian-
Cabe um esclarecimento: os atendentes ça, para “distrai-lo”. Tentamos recons-
eram pessoas com curso primário, algu- truir algo da sua história, através das en-
mas com segundo grau ou curso de en- trevistas que se tinham registradas com
fermagem, que se ocupavam do conta- a família e os poucos dados do prontuá-
to constante com os pacientes, já que rio, e vamos traçando uma estratégia de
estavam no dia-a-dia, a diferença dos abordagem, trabalhando ao mesmo tem-
técnicos, que trabalhavam quarenta ho- po os temores de várias pessoas da equi-
ras semanais, e no caso dos médicos psi- pe, e com que representações estes te-
quiatras, cumpriam plantões. Os aten- mores se conectavam. Vamos perfazen-
dentes se revezavam em turnos de oito do, desse modo, um recorte do imaginá-
horas já que o NAPS funcionava segun- rio a diferentes níveis, que permite res-
do esquema de hospital-dia, com alguns gatar uma certa alteridade tanto para o
leitos para internação temporária caso o paciente como para os membros da equi-
estado do paciente impossibilitasse o pe. Nas semanas seguintes, as crises de
convívio com a família. raiva de Everton vão diminuindo, e apa-
Abordou-se o caso de um paciente “di- rece a possibilidade de conversar, que,
fícil”. Everton (nome fictício), atendido no seu caso, era abrir um delírio perse-
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Creio que talvez essa seja a maior con- a angústia própria da queda dos imaginá-
tribuição que uma escuta psicanalítica rios de saber total presentificava um hor-
pode trazer a um espaço institucional: a ror sem limite. Era necessário, nesses
possibilidade de provocar um giro na momentos, se dispor a produzir algo se-
posição dos agentes institucionais em melhante a cantigas de ninar, para con-
princípio em relação aos efeitos de assu- seguir um certo apaziguamento necessá-
jeitamento imaginário que produzem um rio à produção de um sentido possível,
plus de gozo, impedindo a produção de assim como, em outros momentos, se
prazer, de transformação, de vida. Em impunham ações concretas, no real, para
segundo lugar, esse mesmo giro, inevi- conter uma equipe agitada e tomada pela
tavelmente muda também a posição em ansiedade psicótica dos seus pacientes.
relação aos pacientes. Poderíamos dizer Não desejaria encerrar este rápido per-
que eles passam a ser vistos, escutados, curso – retomando a metáfora do início,
a fazer sentido por eles mesmos. esta travessia – sem falar sobre um tema
Inevitavelmente, ainda, este processo tão que foi se impondo através de todos os
sintética e linearmente descrito, se atra- trabalhos realizados, que é o da particu-
vessa com muita angústia. Quando um lar transferência com o objeto de traba-
grupo se dispõe a uma travessia seme- lho. Isto é, cada instituição vai consti-
lhante, vai se usando de uma infinidade tuindo, ao longo de sua história, posições
de recursos para resistir à emergência fantasmáticas em relação à população
do desejo, da palavra própria, das dife- que atende. Nessa relação, a instituição
renças que carcomem a “identidade gru- se encontra numa tensão permanente
pal” – entendendo aqui que esse termo entre a separação e a alienação à ima-
designa uma formação imaginária que gem que constrói de seus assistidos.
obtura uma função simbólica que abre Assim, quando se trabalha com pacien-
passagem para essas diferenças. Se o su- tes psicóticos, podemos observar iden-
pervisor não pode se apoiar na experiên- tificações maciças entre partes da equi-
cia de sua própria análise, da travessia pe e pedaços dos seus pacientes, que
singular que pôde lhe dar uma posição originam verdadeiras atuações na linha da
de sujeito de seu desejo, é muito possí- fusão, de produções psicóticas tanto ao
vel que entre na proposta sedutora de nível do pensamento quanto do compor-
ocupar o lugar de garantia dessa forma- tamento. Os trabalhos realizados com
ção imaginária. Algo semelhante ao que equipes que trabalham com menores
Pichón Rivière enunciava quando fazia a abandonados nos ensinaram a prestar
distinção entre um coordenador de gru- muita atenção ao eixo fantasmático do
po operativo e um líder grupal. desamparo – abandono – maternidade,
Muitas e muitas vezes, fiz uso de estra- que organizava parte expressiva do espa-
tégias próprias da clínica da psicose para ço psíquico dentro das equipes, assim
fornecer um plano de consistência onde como nas equipes de trabalho com ado-
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lescentes infratores as questões da trans- NUNES RAMOS, Liz. Psicanálise nas institui-
ferência apontavam ao desafio, à violên- ções: ruídos na transmissão. Revista
cia e à marginalidade como uma cons- Correio da APPOA, no 80, junho de
tante da relação entre os próprios agen- 2000. Porto Alegre. Edição da APPOA
tes institucionais e o espaço da supervi- (Associação Psicanalítica de Porto
são. Essa imagem, que regula as relações Alegre)
entre os agentes institucionais e seus cli- RODRIGUES DA COSTA , Ana Maria et al.
entes, está alicerçada numa construção Análise e tratamento psicanalítico de
social mais ampla, onde encontramos estruturas discursivas. Revista Estilos
influências de todo tipo: históricas, polí- da Clínica. Ano II, no 3. Instituto de
ticas, estéticas, midiáticas etc., num ver- Psicologia da Universidade de São
dadeiro bricollage. “O louco”, “O me- Paulo.
nor infrator”, “O delinqüente”, “O meni-
no de rua”, funcionam como poderosos Artigo recebido em abril/2001
obturadores à possibilidade do encontro Revisão final recebida em agosto/2001
singular, à emergência de um sujeito, a
uma lógica discursiva que aponta para a
alteridade, para a produção de diferença.
Talvez, sustentar que essa lógica é pos-
sível seja a tarefa primordial de um olhar
psicanalítico dentro da clínica em insti-
tuições.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAREMBLITT, Gregorio. Compêndio de aná-
lise institucional e outras correntes. DIVULGA
Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1993.
FOUCALT, Michel. O nascimento da clínica.
Rio de Janeiro: Forense-Universitária,
1980. A Livraria Pulsional possui
FREUD, Sigmund (1921). Psicología de las mala direta por correio, com
masas y análisis del yo. O. C. Buenos 20.000 endereços.
Aires: Amorrortu, 1984. v. XVIII.
Divulgue suas atividades pelos
LACAN, Jacques. O seminário. Livro 20.
Mais ainda... Rio de Janeiro: Jorge nossos endereços.
Zahar , 1992. cap. 2. Consulte-nos.
MARAZINA, Isabel V. Trabalhador de Saúde Fones: (11) 3672-8345
Mental. Encruzilhada da loucura.
Saúdeloucura, no 1. São Paulo: Huci-
3675-1190 / 3865-8950
tec, 1989.