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A ESCRAVA QUE FALAVA FRANCÊS

por Roberto Pompeu de Toledo, para Veja com a data de 18 de agosto de 1994

Mussum morreu talvez na ignorância do papel que lhe fizeram representar, e foi melhor assim. Melhor ser um
trapalhão do que um trapalhão encucado. "Cacíldis", ele dizia. "Mêsis", em vez de mesa, "canêtis", em vez de
caneta. Ela falava errado, mostrava-se ignorante, burro e feio. Fazia caretas, para que não houvesse dúvida de que
era mesmo feio.

Mussum (foto) inscrevia-se num ramo de forte presença na cultura brasileira -- o da perversidade racial. Este é o
país em que a escrava pela qual mais se enterneceram os corações era uma branca, a escrava Isaura. Com tanta
negra escrava, e nenhuma branca, o autor do romance, Bernardo Guimarães, foi escolher uma escrava branca, ou
seja, algo que não existia, para protagonizar uma história de compaixão e romantismo. De outro forma, o público
talvez não se sensibilizasse. Pelo menos o Pai Tomás, correspondente americano da escrava Isaura, era negro
mesmo. Um "preto de alma branca", como se diz, preto submisso.

A perversidade racial oferece outros exemplos, na cultura brasileira. Para ficar na literatura, Machado de Assis que
era Machado de Assis, muito mais inteligente e talentoso que Bernardo Guimarães, e ainda por cima ele próprio
mulato, foi capaz de colocar na boca de Helena, heroína do romance do mesmo nome, ao falar de seu bom pajem:
"Orei a Deus porque infundiu aí no corpo vil do escravo tão nobre espírito de dedicação". Se o corpo "vil", é porque
a cor da pele é como uma doença.

Para comprovar que realmente é uma doença, pule-se dos livros para a música popular. Lamartine Babo, em sua
alegre marchinha, garante que "a cor não pega". Por isso, ele quer o amor da mulata. Literalmente, ele está dizendo
que mulatice não é como lepra, que se pegue, mas está implícito que seria tão terrível pega mulatice como pega
lepra. Só porque está certo de que não pega é que ele deseja o amor da mulata.

No domínio da comédia popular, em que se situa Mussum, tem-se o melancólico caso em que os próprios negros
são escalados para caricaturar os negros. O trapalhão não estava sozinho. Antes dele houve Grande Otelo, que
tinha a especialidade de mover grotescamente os lábios. À mesma família pertencia Macalé, que explorava a boca
desdentada e dizia: "Nojento".

Talvez não se tenha mais coragem de escrever romance como A Escrava Isaura, no Brasil, mas fabricam-se
comediantes como Mussum. O romance de Bernardo Guimarães, publicado em 1875, é um primor de falsificação
da realidade social e étnica do país. No primeiro capítulo, Isaura está tocando piano. O autor vai-nos dizendo
enquanto isso como ela é bela, como é nobre. "A tez", escreve, "é como o marfim do teclado". A Isaura era filha de
uma mulata com um português. Um personagem lhe diz: "És formosa, e tens uma cor tão linda que ninguém dirá
que gira em tuas veias uma só gota de sangue africano". Ela personifica de forma ótima a mágica do
"branqueamento" com que os teóricos do racismo do século passado esperavam lavar o povo brasileiro.

O branqueamento previa que toda a população acabaria branca, pelos cruzamentos sucessivos. No final feliz desse
conto, não restaria traço de sangue negro no povo brasileiro. Mussum era prova de que o branqueamento
empacou, tanto que o país continua a produzir gente tão negra como ele, mas não as razões que o motivaram, qual
seja, o sentimento de que os negros são inferiores. Coube-lhe, ao interpretar o papel de negro bronco, reforçar a
crença de que negro bronco. "Nêgris brônquis", diria ele.

Isaura, para ainda uma vez volta a ela, não falava errado. Muito pelo contrário, lia livros, sabia italiano e francês e
tivera aulas de música e dança. Era um milagre de escrava com educação de princesa. Combinadas as fábulas de
Isaura e de Mussum, a moral da história é: se negro branqueia, consegue falar francês, se fica negro, por toda a
vida vai falar "nêgris" e tomar "mé". Não é que Isaura se libertou da escravidão. Ela se libertou da negritude, eis o
que está por baixo da superfície de fantasias do livro de Bernardo Guimarães. Já Mussum continuou escravo de cor
de sua pele. Portanto, foi ser ignorante na vida, às vezes malandro, burro sempre, e cachaceiro.

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