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Por que as mulheres pobres, mesmo vendo sua mães, avós e amigas com dificuldades,
ainda assim continuam a ter filhos e mais filhos? Por que moradores de rua, mesmo em
situações extremas de fragilização, resistem quando são conduzidos para abrigos, e voltam
para as ruas? Por que há pessoas lá no Largo do Paissandu, acampadas após o incêndio
do edifício que moravam, mesmo tendo a oportunidade de receber um auxílio para aluguel?
É fácil inventar “comodidades” para tais pessoas, de modo a ver que ficam onde estão
mesmo se ajudadas a sair. O difícil é notar e entender que as tais “comodidades” não são
regras exteriores à vida, mas, não raro, regras que constituem a própria vida.
Ter filhos mesmo em condições adversas é um modo de ser, uma prática. O mesmo vale
para o estar na praça e não em abrigos etc. São formas de vida. São antes de tudo o modo
do homem se fazer homem, se constituir como humano. Uma vez fora desse traço
constituidor, há a perda do elo comunicacional que faz o humano se fazer humano. Não fugir
das regras constituidoras é o que move as pessoas a continuarem a prática. Todas as vezes
que o estado, o serviço social, a filantropia, a política surgem para quebrar regras que são,
antes de tudo, constituidoras de modos de vida, as coisas não terminam bem. Ao final,
surgem acusações de que os “pobres coitados” são “irracionais”. Fim de papo.
Em um lugar pobre, uma moça ganha laços comunicacionais ao se constituir mãe. Numa
praça pública ou na rua, um ser humano mantem os laços comunicacionais que o fazem
humano. A prática não é uma contingência. O bispo do Xadrez não é um bispo que, enfim,
ganha uma regra – a de andar em diagonal. Não, quando se diz “bispo” para uma criança
que aprende o jogo de Xadrez, o que se explica é que ele é o que anda em diagonal. A
prática da regra o constitui. Fora disso, ele não é bispo, apenas um pedaço de madeira. Fora
da condição de mãe a moça pobre não é moça e nem gente. Fora da rua o morador de rua
não é morador de rua e, portanto, não é gente. Os laços comunicacionais que se
estabelecem no modo de vida que constituem cada um não são algo exterior possível de
ser anulado sem anular a pessoa que se faz pela prática. E todos nós nos fazemos pela
prática – ontogeneticamente e filogeneticamente. As cidades são os lugares dessa nossa
domesticidade.
Uma cidade que favorece a interculturalidade – como Charles Taylor a define, diferenciando
da multiculturalidade – é aquela em que o espaço é rico quanto à alimentação da
comunicabilidade de grupos, minorias, gente, faces distintas, sem que isso elimine as
práticas da própria comunicabilidade que nos dá a condição de sermos animais do tipo que
somos, e não outros. Uma coisa é fazer um passarinho voar de costas, ampliando sua
capacidade de voar, outra coisa é cortar-lhe as asas e achar que ele ainda continua
passarinho. As cidades são para fazer passarinho voar até de costas, não para torná-los
pedestres exclusivamente.