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Cidades: a domesticidade que nos constitui

Texto criado a partir da leitura de EDIFICAR FORMAS DE VIDA, da professora Carla


Carmona

Por que as mulheres pobres, mesmo vendo sua mães, avós e amigas com dificuldades,
ainda assim continuam a ter filhos e mais filhos? Por que moradores de rua, mesmo em
situações extremas de fragilização, resistem quando são conduzidos para abrigos, e voltam
para as ruas? Por que há pessoas lá no Largo do Paissandu, acampadas após o incêndio
do edifício que moravam, mesmo tendo a oportunidade de receber um auxílio para aluguel?

É fácil inventar “comodidades” para tais pessoas, de modo a ver que ficam onde estão
mesmo se ajudadas a sair. O difícil é notar e entender que as tais “comodidades” não são
regras exteriores à vida, mas, não raro, regras que constituem a própria vida.

Wittgenstein fala em “modos de vida” para a linguagem. E Agamben, ao explicar regras


como Wittgenstein explica, é feliz em lembrar a narrativa sobre o peão do jogo de Xadrez.
Não existe o peão e uma regra para move-lo. Existe a regra para mover peão, e isso define
o que é um peão. O uso define o jogo e o jogo é o constituidor de suas peças. Há aí uma
ontologia gerada pelo uso. Também Sloterdijk invoca uma tal situação ao dizer que somos
feitos pela prática, pelo exercício que repetimos e aperfeiçoamos: “onde procuramos o
homem encontramos acrobatas”, diz ele. Em todas essas situações postas por esses
filósofos o que é desenhado é o retrato da constituição da “coisa” pelo uso, atividades,
prática, práxis ou, em suma, o ‘façamos assim’ – no sentido que Agamben bem destaca.
As Investigações lógicas de Wittgenstein, o Para mudar a vida de Sloterdijk, e o Usos do
Corpo de Agamben se unem nessa desiderato explicativo.

Ter filhos mesmo em condições adversas é um modo de ser, uma prática. O mesmo vale
para o estar na praça e não em abrigos etc. São formas de vida. São antes de tudo o modo
do homem se fazer homem, se constituir como humano. Uma vez fora desse traço
constituidor, há a perda do elo comunicacional que faz o humano se fazer humano. Não fugir
das regras constituidoras é o que move as pessoas a continuarem a prática. Todas as vezes
que o estado, o serviço social, a filantropia, a política surgem para quebrar regras que são,
antes de tudo, constituidoras de modos de vida, as coisas não terminam bem. Ao final,
surgem acusações de que os “pobres coitados” são “irracionais”. Fim de papo.

Em um lugar pobre, uma moça ganha laços comunicacionais ao se constituir mãe. Numa
praça pública ou na rua, um ser humano mantem os laços comunicacionais que o fazem
humano. A prática não é uma contingência. O bispo do Xadrez não é um bispo que, enfim,
ganha uma regra – a de andar em diagonal. Não, quando se diz “bispo” para uma criança
que aprende o jogo de Xadrez, o que se explica é que ele é o que anda em diagonal. A
prática da regra o constitui. Fora disso, ele não é bispo, apenas um pedaço de madeira. Fora
da condição de mãe a moça pobre não é moça e nem gente. Fora da rua o morador de rua
não é morador de rua e, portanto, não é gente. Os laços comunicacionais que se
estabelecem no modo de vida que constituem cada um não são algo exterior possível de
ser anulado sem anular a pessoa que se faz pela prática. E todos nós nos fazemos pela
prática – ontogeneticamente e filogeneticamente. As cidades são os lugares dessa nossa
domesticidade.

Em geral, a compreensão disso é, não raro, pseudocompreensão. Trata-se da


pseudocompreensão que os conservadores, que se autodenominam “realistas” (como são
sabichões!), possuem. Eles chegam próximo dessa minha narrativa e se aproveitam dela
para dizer que as “coisas são assim mesmo”, e não se pode mudar. A mãe pobre é mãe
pobre com muitos filhos e o morador de rua é o morador de rua. Eles se utilizam – às vezes
por má fé – da ideia da prática como constituidora para culpar as pessoas pelas condições
pouco favoráveis em que vivem. Mas o que eu digo aqui é bem diferente disso. O que eu
digo é que a cada prática constituidora é necessário saber quais são os elementos dessa
prática que são constituidores. O bispo do Xadrez anda na diagonal, e isso o faz bispo. Ele
se comunica com o jogo e com as outras peças pela sua ação prática de andar em diagonal.
Não posso tirar dele isso, pois se assim faço, ele deixa de ser bispo e, no limite, deixa até
mesmo de ser peça genérica de jogo de Xadrez. Não posso tirar do homem os laços
comunicacionais, pois isso é constituinte do homem, mas isso não significa que tenha de
forçar o homem a ter laços comunicacionais exclusivamente em situações precárias e de
dificuldade. Essa última parte é que o conservador não aprende.

Uma cidade que favorece a interculturalidade – como Charles Taylor a define, diferenciando
da multiculturalidade – é aquela em que o espaço é rico quanto à alimentação da
comunicabilidade de grupos, minorias, gente, faces distintas, sem que isso elimine as
práticas da própria comunicabilidade que nos dá a condição de sermos animais do tipo que
somos, e não outros. Uma coisa é fazer um passarinho voar de costas, ampliando sua
capacidade de voar, outra coisa é cortar-lhe as asas e achar que ele ainda continua
passarinho. As cidades são para fazer passarinho voar até de costas, não para torná-los
pedestres exclusivamente.

Paulo Ghiraldelli Jr., 60, filósofo.

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