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45º Oeste 60º Norte – Experimentação com a Rosa das Línguas

Para a árvore de olhos vermelhos pequenos como cerejas,


porque de certa distância tinham a intenção de parecerem
cerejas, penduradas na parede, ela ria e assim contava a
falta de nexo do dia que foi seu (não podia esquecer do
possessivo). Correu ao banco, descabelada pelas escadas,
guardou o documento de identidade na bolsa sem ver que era
falsa a sensação da mão entrando pelo pano. Caiu o
documento na escada e por lá ficou, voou, escorregou e ela
ficou sem (não poderia esquecer outra vez do possessivo).
Só um xérox mal tirado de uma cara que não era mais sua há
tanto tempo, de um cabelo falso como os aparelhos nos
dentes, tudo isso mais a companhia dos nomes de pessoas
pras quais lhe atribuíam o nascimento, e esses eram fatos e
imagens tão alheias quanto o homem fumando na ponta
superior da escada do banco ou a velha de blusa roxa que
descia e encontrou, com força, com seu ombro apressado. A
velha talvez tivesse visto o documento cair quando achou
que o tinha bem guardado na falta de ordem segura da bolsa
que nunca tinha falhado. Talvez mesmo tivesse olhado pra
ela que subia e quisesse fazer algum sinal, que depois de
encontrar com a indiferença de um ombro nu pela manga caída
da blusa preta, não lhe dispensou em absoluto o esforço de
um chamamento.

O amor é mais forte que a morte vocês diziam


Mas a vida é mais forte que o amor e

Depois da volta, na casa, na noite que vinha escondida


pelas cortinas, ela viu a sombra de um caminho estranho
entre os móveis de neblina azul. As sombras moventes de um
caminho serpenteando em agonia de cobra cortada. Movimentos
rápidos, curtos. Abria e fechava as pernas porque deitada
precisava de movimento de asas de carne branca que fizessem
algum barulho de vento correndo. Precisava correr algumas
distâncias. E corria. Ainda ria da árvore-folon e do dia, e
da vida das coisas, e sentia presente a mão de dedos-dentes
que apertava seu quadril na subida dos degraus de uma rua
íngreme, tão íngreme de Belo Horizonte que precisava de
degraus, e ria também dos suspiros esfumaçados do inverno
como cigarros tragados, esbaforidos na fala, na língua de
uma adolescência qualquer que lhe importava tanto quanto o
documento de identidade lhe dizendo tantos sim não sim não
sim não.
Os caminhos sinuosos se abriam estrelados, desarranjados,
sem tijolos amarelos nem placas apontando pros opostos,
desapontando logo mais sem respiros. As águas de qualquer
Sena-Danubio-Tietê seguiam correntes, não ao longo, mas às
margens, num fluxo-refluxo lunar que para ela era natural
como nadar com seu casaco de mangas longas, lã pesada dos
invernos dantescos dos Letes de farmácias com nomes
luminosos vermelhos e azuis enormes nas avenidas das águas
escuras, puxando o corpo fraco da constante boemia bebida
fumada, cheirada pelos arcos de algum Boulevard Carolyi na
companhia anônima de um moço/moça checo/a.

A indiferente mais forte que a vida – A vida


Minha ou sua e nossa de alguma maneira

E ainda depois de puxar sobre o corpo a coberta azul,


continuava o movimento das pernas, e por um segundo a mais
entre as fumaças estava sentada num banco de rodoviária, de
uma vila perdida no meio do caminho entre outras duas vilas
ou entre mil vilas que ela não sabia, ignorava docemente
porque era tão grande a terra que pisava. Leve comia um
bombom pedido ao homem do guichê com olhos mareados e tão
jovens. E isso tinha sucedido agora, ou antes ou nunca? E
sem seqüência que bastasse, se sustentasse tantos sufocos,
tantos medos e insônias, tantas mãos e corpos e línguas
diferentes em sons e toques, vinha que a morte dela era
inevitável como ter bebido a cicuta que ele lhe ofereceu
debaixo da chuva, esperando o trem da viagem de volta, doce
pólen escondido nos lábios finos de francês já morto na
primeira página do jornal dobrado debaixo do braço, e
beijou a cicuta com calma porque nunca até ali um querer
tinha perturbado qualquer pedra daquela estação que ia e
vinha seguindo indiferente como.

É em conjunto a única seqüência de metamorfoses


(O neotênico converte-se em herói sexuado
Depois no barrigudo careca que apodrece como um deus)
A velha de blusa roxa estava calma em seu dia de botões de
orquídeas que tinham começado a apontar na noite anterior e
chás de alguma coisa plantada no canteiro da janela, e
depois de tudo, tudo o que tinha guardado num segundo de
abrir o lento olho marcado por um cicatriz velha, sua pele
secava a olhos vistos, no caminhar lento e marcado perneta,
sem outro ritmo que o de ser assim: pam pam pam pam que
ressoava pelas ruas ventadas, fazendo a curva da esquina em
V das cidades velhas européias tão bondosamente
transplantadas pelos governos de um século atrás. Tinha nas
mãos os dedos em raízes e nas pontas, pequenas lascas
amareladas que pintava de vermelho vivo, das quais tirou
foto e estampou no documento verde que encontrou nas
escadas do banco depois de tanto tempo ali com folhas e
fuligens das queimadas de cana das cercanias.

E banhos duchas no Letes todos os meses


Lutos laqueados, renascimentos frágeis, amnésias

Deitada no sofá, com coberta azul de pelos longos, ainda


movendo as pernas, seu rosto se voltou para a parede
estreita do corredor, fazendo ver os caminhos de hidra
verde que também poderia ser algum dragão morto por um
viking há milhões de luas seguidas, ou línguas recém saídas
de uma boca ou de várias, cheias de sons e rumores, e via
seu espelho tão cotidiano no meio da parede do corredor se
confundir com o buraco aberto do esgoto da rua onde morou
em Maputo anos antes de perder a audição pela bomba jogada
ao pé da árvore de olhos pequeninos de cerejas vermelhas
que tinha ao fundo do quintal e que as pessoas do vilarejo
diziam serem os olhos pregados dos outros mortos que não
enterraram, trazidos pelos corvos da Inglaterra numa
tradução portuguesa de Poe. Depois conseguiu fechar os
olhos e.

E um velho mudo dentro de nós há tanto tempo


Sobrevive sem dor ao ossuário das crianças

* O poema usado nesse conto, e ainda seu título, que é também usado no
título do conto, é de autoria de Michel Deguy, poeta, filósofo e
professor de literatura francês. Pertence ao livro de 1981, Donnant
Donnant (Toma Lá, Dá Cá), que compõe a ótima edição da Cosac & Naify /
7 Letras, A rosa das línguas, 2004, com organização e tradução de
Paula Glenadel e Marcos Siscar.

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