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URGÊNCIA E EMERGÊNCIA – QUEIMADURAS

SEBASTIAN BOUZADA, MED XIX

1) INTRODUÇÃO
 Definimos “Queimadura” como uma lesão tecidual decorrente de trauma térmico,
elétrico, químico ou radioativo. Nos EUA, aproximadamente 1 milhão de vítimas de
queimaduras procuram atendimento médico, com 40.000 a 60.000 casos necessitando
de internação em hospitais ou em centros de tratamento especializados.
 Os números em nosso país são muito semelhantes, com a queimadura figurando entre
as principais causas externas de morte, só perdendo para homicídios e acidentes
automobilísticos.
 Sabemos que o prognóstico de uma vítima de queimadura vai depender da extensão da
superfície corporal queimada (SCQ), da profundidade e da localização da lesão, da
presença de lesões e/ou doenças crônicas associadas e da idade do paciente (mais grave
em crianças e idosos).
 A mortalidade em pacientes queimados apresenta distribuição bimodal, ocorrendo
imediatamente após a lesão (principal causa) ou semanas mais tarde, neste caso tendo
como etiologia mais frequente a falência multiorgânica, geralmente associada à sepse
ou ao choque séptico.

2) PRIMEIRO ATENDIMENTO À VÍTIMA DE QUEIMADURA


 Nunca devemos esquecer que a vítima de queimadura grave é considerada uma vítima
de trauma e, portanto, seu atendimento deve obrigatoriamente seguir uma ordem. Em
pacientes que sofreram queimaduras em incêndios, o nosso passo iniciar é afastar a
vítima das chamas. A seguir, a atenção deve ser dada às Vias Aéreas.
 De acordo com o ATLS existem algumas evidências que nos indicam alta probabilidade
de comprometimento dessas estruturas:

 As principais ações que devem ser empreendidas nos casos de queimaduras incluem:
a) VIAS AÉREAS: A IOT deve ser realizada de imediato em pacientes com rebaixamento
do nível de consciência (intoxicação por CO é a causa mais provável) e na presença de
estridor laríngeo. Alguns autores recomendam intubação precoce em pacientes com
queimaduras circunferenciais de pescoço e em vítimas que desenvolvem rouquidão.
b) INTERROMPER A QUEIMADURA: Após o controle das vias aéreas, o próximo passo é
interromper o processo de queimadura. Toda a roupa do doente deve ser removida,
além de joias e anéis, e a área queimada deve ser copiosamente irrigada com água a
temperatura ambiente. Por fim, devemos envolver o paciente em lençóis secos e limpos
para evitarmos a hipotermia.
c) ACESSOS VENOSOS: Deve ser obtido com cateter calibroso em veia periférica, de
preferência em MMSS. Na inviabilidade de se obter uma veia adequada em membros
superiores, o acesso venoso em MMII (safena) deve ser empreendido, através de
dissecção. Exceto nas queimaduras de primeiro grau, todas as vítimas com lesões mais
traves, com mais de 20% da SCQ, devem receber volume o mais rápido possível, através
da infusão de cristaloides (Ringer Lactato).
d) CATETER VESICAL: Se possível, um cateter vesical deve ser instalado para aferição da
diurese.

3) ATENDIMENTO EM UM CETQ
 Caso um CETQ localize-se a mais de 30 minutos de carro do local do acidente, é
recomendável que o atendimento intra-hospitalar inicial seja realizado em serviço de
emergência próximo e, depois, quando possível, seja transferido.
 Na chegada ao CETQ ou a uma emergência, os médicos responsáveis devem reavaliar a
via aérea e a hemodinâmica do paciente, tendo conhecimento do volume de líquidos
infundido até o momento. Após essas etapas, a atenção deve ser voltada para a área
queimadura.
 Em relação às principais indicações de admissão em um CETQ, temos:

4) ATENDIMENTO HOSPITALAR AO PACIENTE VÍITMA DE QUEIMADURA


 Inclui os seguintes pontos:
1) COMPROMETIMENTO DA VENTILAÇÃO: O comprometimento da ventilação ocorre
mais comumente devido às seguintes causas: Lesão Térmica Direta, Lesão Pulmonar
por Inalação, Intoxicação por Monóxido de Carbono, Intoxicação por Cianeto e
Restrição a Expansão Torácica.
a) Lesão Térmica Direta: O termo lesão térmica dos pulmões é inapropriado, uma vez
que raramente ocorre, pois o calor se dispersa na faringe. Por sua vez, os indivíduos em
risco são aqueles com envolvimento de face e pescoço por queimaduras que ocorrem
em ambiente fechado. Assim, mesmo na ausência de envolvimento pulmonar direto, o
edema da mucosa e da submucosa, assim como sangramento e ulcerações de faringe,
laringe e cordas vocais, são fatores que podem comprometer agudamente a ventilação.
Como vimos antes, a presença de estridor é indicação inquestionável de acesso
definitivo à via aérea (IOT).
b) Lesão Pulmonar por Inalação: Ocorre quando a fumaça produzida pela combustão
de elementos que se encontram no ambiente em chamas alcança a via aérea
infraglótica, ocasionando lesão em brônquios, bronquíolos e alvéolos. Alterações
sugestivas incluem sibilos e/ou produção excessiva de muco e escarro carbonáceo. As
vítimas habitualmente se encontram em recinto fechado.
c) Intoxicação pelo CO: Deve ser suspeita em todo indivíduo que inalou fumaça; mais
uma vez existe história de queimaduras por chama em locais fechados. As
manifestações clínicas da intoxicação estão na dependência dos níveis de carboxi-
hemoglobina no sangue (cefaleia, náuseas, confusão mental, coma e óbito), que por sua
vez, estão diretamente relacionados ao tempo de exposição a fumaça. Por sua vez, o
tratamento é realizado com oxigênio a 100% em alto fluxo, através de máscara
unidirecional, sem recirculação.
d) Intoxicação por Cianeto: Ocasionada por fumaça derivada da combustão de alguns
elementos no meio ambiente em chamas (poliuretano, náilon, lã e algodão). O cianeto
inibe o metabolismo aeróbico e pode resultar rapidamente em óbito. Seu tratamento
deve ser empírico, com administração de tiossulfato de sódio e hidroxicobalamina.
e) Restrição à Expansão Torácica: As queimaduras de espessura total (3º grau) deixam
a área queimada com uma textura semelhante a um couro, ou seja, há perda completa
da elasticidade no local acometido. Quando toda ou quase toda a circunferência do
tórax é envolvida por esta lesão, sobrevém IR por restrição à expansão torácica. O
tratamento instituído é a escarotomia da lesão, ou seja, a incisão da área queimada até
o subcutâneo; este procedimento reestabelece de imediato a expansibilidade do tórax.

2) RESSUSCITAÇÃO VOLÊMICA: A reposição volêmica, se ainda não iniciada no


atendimento pré-hospitalar, deve começar com ringer lactato. É aconselhável a
passagem de cateter vesical de Foley para a medida da diurese horária, que representa
o melhor parâmetro para acompanharmos a reposição de volume. O débito urinário
deve ser mantido em torno de 0,5 a 1 mL/kg/h.
- A experiência clínica demonstrou que o uso de coloides é desnecessário nas primeiras
24 horas, uma vez que a permeabilidade capilar intensa permite a passagem de grandes
moléculas para o espaço extravascular, aumentando a osmolaridade desse
compartimento. Essa diferença osmótica faz com que o meio extracelular “puxe” mais
líquido do intravascular.
- Uma das fórmulas mais utilizadas na reposição volêmica é a de “Parkland”, que sugere
um esquema com o uso de Ringer lactato e o volume a ser administrado nas primeiras
24h corresponde a 4 mL/kg x SCQ. Metade deste valor será administrada em 8 horas,
25% nas 8 horas seguintes e 25% nas últimas 8 horas. Após este período inicial de 24h,
com a diminuição da permeabilidade capilar, pode ser iniciada a infusão de coloides
(albumina na dose de 250 mL para cada 10% de SCQ acima dos primeiros 20%).

3) OUTRAS MEDIDAS: Incluem: uma dose de reforço do toxoide tetânico deve ser
aplicado em todo paciente com SCQ > 10% e o controle da dor (com morfina, sedativos,
etc).

4) AVALIAÇÃO DA ÁREA DE QUEIMADURA: A determinação do percentual da SCQ é de


importância fundamental, sendo este valor diretamente proporcional à gravidade da
lesão, funcionando como índice prognóstico. Vários são os diagramas e fórmulas para a
suta determinação, mas uma regra simples, a “Regra dos Nove de Wallace”, permite
avaliação rápida e segura da área queimada em adultos.
a) Regra dos Nove de Wallace: O corpo de um adulto é dividido em regiões anatômicas
que representam 9% ou múltiplos de 9, da superfície corporal total. Sendo assim, cada
MMSS corresponde a 9% da superfície corporal total (4,5 da região anterior e 4,5 da
região posterior), cada MMII 18% (9% da região anterior e 9% da região posterior), o
tronco 36% (18% da região anterior e 18% da região posterior), cabeça e o pescoço 9%
(4,5 da região anterior e 4,5 da região posterior), e o períneo e a genitália juntos,
correspondem a 1%.
b) Determinação da Profundidade da Queimadura: Torna-se necessária a
determinação da profundidade da queimadura que, juntamente com a extensão da
superfície queimada e a idade, é o principal determinada da mortalidade.
I) Queimaduras de Primeiro Grau (ou Superficiais): São limitadas à epiderme e
manifestam-se clinicamente através de eritema secundário à vasodilatação, e dor
moderada, não ocorrendo bolhas nem comprometimento dos anexos cutâneos. Não há
fibrose na sua resolução, sendo essas lesões tratadas através de analgesia com anti-
inflamatórios orais e soluções tópicas hidratantes.
II) Queimaduras de Segundo Grau: As queimaduras de “Segundo Grau Superficiais”,
caracterizam-se por comprometer toda a epiderme até porções superficiais da derme
(camada papilar), apresentando-se muito dolorosas, com superfície rosada, úmida e
com presença de bolhas. Costumam evoluir com cicatrização estética boa. Por sua vez,
as queimaduras de “Segundo Grau Profundas” acometem toda a espessura da
epiderme e se estendem pela derme envolvendo sua camada reticular. A pele
apresenta-se seca com coloração rosa pálido e, dependendo do grau de
comprometimento da vascularização, a dor é moderada. Tais lesões costumam
cicatrizar entre 3-9 semanas, sendo comum a formação de cicatrizes não estéticas e
risco razoável de cicatrização hipertróficas.
III) Queimaduras de Terceiro Grau: Ocorre comprometimento de toda a espessura da
epiderme, da derme e parte do tecido celular subcutâneo (hipoderme). A área
queimada pode apresentar-se tanto pálida quanto vermelho-amarelada e chamuscada,
podendo ser visto na sua base vasos coagulados. Sua textura é firme, semelhante ao
couro, e a sensibilidade tátil e à pressão encontram-se diminuídas. A cicatrização só
ocorre à custa de contração importante da ferida ou através de enxerto cutâneo. Por
fim, temos que o tratamento para todos os casos de compressão, seja causando IR, seja
por determinar hipoperfusão de membros, é realizado através da “Escarotomia”.
IV) Queimaduras de Quarto Grau: Acometem toda a espessura da pele, tecido celular
subcutâneo e alcançam tecidos profundos, como músculo e ossos. Exemplo típico é a
queimadura elétrica.

5) CUIDADOS COM A QUEIMADURA


 Após a ressuscitação volêmica e estabilização clínica, toda a atenção deve se concentrar
na área queimada. Desbridamento Cirúrgico e Cuidados Locais, visando a prevenção de
infecções, são medidas fundamentais.
 Após a avaliação da profundidade e extensão da queimadura e da realização de
desbridamento e limpeza da ferida, um curativo oclusivo deve ser aplicado como
tratamento inicial. Os principais objetivos dessa medida incluem: proteção do epitélio
lesado, redução da colonização bacteriana ou fúngica, imobilização do segmento
atingido para manter a posição funcional desejada e redução da perda calórica através
da evaporação.
 Em relação ao uso de antimicrobianos tópicos, temos que a Sulfadiazina de Prata a 1%
é o mais utilizado. A Sulfadiazina não produz dor na aplicação e possui boa penetração
nas queimaduras, mas apresenta como reação adversa a neutropenia (geralmente
reversível). Por sua vez, a Mupirocina é indolor e a mais efetiva contra Staphylococcus
aureus.
 Nas queimaduras de segundo grau superficiais, muitos serviços optam pelo uso de
curativos biológicos (aloenxertos ou xenoenxertos) ou sintéticos (silicone ou colágeno),
enquanto se aguarda a cicatrização da ferida. Estes devem ser aplicados nas primeiras
24h da queimadura, antes que uma alta taxa de colonização bacteriana apareça. Além
disso, nestes casos não são empregados antimicrobianos tópicos.
 Por sua vez, as queimaduras de segundo grau profundas e as de terceiro grau são
tratadas com excisão da área queimada e substituição por enxerto retirado de áreas
doadoras do próprio paciente. Atualmente, essa tem sido a primeira opção no manejo
dessas lesões. O procedimento usualmente é realizado dentro da primeira semana da
queimadura e só é recomendado quando os parâmetros hemodinâmicos do paciente se
encontram estabilizados.

6) COMPLICAÇÕES NO PACIENTE QUEIMADO


 As principais complicações das queimaduras incluem:
a) INFECÇÃO E SEPSE: O risco de infecção e sepse são maiores nos extremos da idade e
em pacientes com mais de 30% da SCQ, constituindo a principal causa de morte nestes
grupos de doentes. Outro fator que deve ser levado em consideração é a densidade de
bactérias presentes na área queimada. Quando este valor é > 105 UFC/g de tecido
queimado, a probabilidade de processo infeccioso invasivo aumenta muito.
- O emprego de curativos sintéticos e biológicos e o uso de curativos tradicionais, com
gaze e antibióticos tópicos, reduziu expressivamente o risco de infecção da queimadura.
- O diagnóstico precoce da infecção é fundamental. A área queimada deve ser mantida
sob vigilância constante na busca de sinais clínicos. As principais evidências de processo
infeccioso incluem: (1) “Evolução de área de queimadura de 2º grau para necrose de
toda a espessura da derme”; (2) “Surgimento de focos de hemorragia, escuros ou
negros”; e (3) “Aparecimento de lesões sépticas na pele íntegra em torno da
queimadura” (como o ectima gangrenoso, característico da infecção por Pseudomonas).
- A propedêutica precisa ser complementada pela avaliação microbiológica, através de
cultura do tecido da queimadura e de análise histopatológica do mesmo, com material
obtido através de biópsia da lesão.
- O tratamento das infecções invasivas da área queimada envolve o início de
antibioticoterapia sistêmica e excisão da região infectada, com abordagem cirúrgica
agressiva.

b) LESÃO PULMONAR POR INALAÇÃO: Como vimos antes, em vítimas de queimaduras


térmicas confinadas, a inalação de fumaça tóxica proveniente da combustão de alguns
elementos que se encontravam no meio-ambiente em chamas pode causar
traqueobronquite e pneumonite químicas.
- As principais evidências que levam a suspeita de lesão por inalação incluem
queimaduras em cabeça e pescoço, Chamuscamento das vibrissas nasais, hiperemia da
orofaringe (este o mais confiável, pois coexiste lesão térmica da via aérea), tosse com
escarro carbonáceo, rouquidão, sibilos, broncorreia e hipoxemia sem causa aparente.
- Nos primeiros 3 dias, um intenso broncoespasmo e a própria lesão térmica da via aérea
(esta de forma mais imediata), podem levar a IRA. Posteriormente, Broncopneumonia
secundária à colonização da árvore traqueobrônquica pode complicar ainda mais o
quadro clínico.
- O tratamento depende do grau de disfunção respiratória determinada pela lesão. Nos
pacientes com quadros leves a moderados, o uso de oxigênio a 100% umidificado
associado à fisioterapia para o tratamento da broncorreia são suficientes. Por sua vez,
os casos mais graves são abortados com IOT seguida de VM. Outras medidas incluem
remoção periódica de debris e “rolhas” de fibrina da via aérea distal e nebulização
regular com determinadas substâncias (como Heparina associada à N-acetilcisteína e
β2-agonistas).
- Por fim, temos que, na presença de infecções pulmonares, está indicada
Antibioticoterapia Sistêmica. Os esquemas devem apresentar cobertura tanto para
Staphylococcus aureus resistentes a meticilina quanto para Gram-negativos,
principalmente Pseudomonas aeruginosa e Klebsiella spp.

c) OUTRAS COMPLICAÇÕES: Incluem: Íleo Paralítico, Ulceração Aguda do Estômago e


Duodeno, Pseudo-obstrução Colônica, Graus variados de Insuficiência Hepatocelular,
Colecistite Alitiásica e Coagulopatia com CIVD.

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