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Universidade Federal de Pernambuco

Departamento de Fisiologia e Farmacologia


Laboratório de Neurofisiologia
Elaborada com a participação do aluno Bruno Miranda - monitor de Neurofisiologia

Apostila sobre Eletromiografia


A eletromiografia é uma modalidade de exame em que o profissional irá
analisar, com o auxílio de equipamento adequado, a atividade elétrica gerada
pelas células de um músculo qualquer. Na verdade, seria melhor dizer que o
que se analisa são as manifestações elétricas de centenas células em
conjunto, pois o que visualizamos neste exame não são os clássicos potencias
de ação celulares, e sim a resultante de centenas deles.
O conhecimento da eletrofisiologia da contração muscular e de seu
controle pelo sistema nervoso é essencial para a compreensão da utilidade
deste exame, seus princípios e suas particularidades nas diversas patologias
em que ele possui valor diagnóstico.

Antes de prosseguir vamos fazer uma pequena revisão de como se


organiza o controle da contração muscular ao nível da medula. O neurônio
motor Alfa, motoneurônio inferior ou ainda 2º motoneurônio, que está na coluna
cinzenta anterior, emite seu axônio que sai da medula através das raízes
espinhais anteriores e viaja através do nervo espinhal até o seu músculo
correspondente (Fig 1). Lá chegando, esse axônio ira se ramificar em diversas
terminações nervosas, que irão cada uma entrar em contato com uma fibra
muscular, através da conhecida Junção Neuromuscular ou Placa motora.
Assim, vemos que um único neurônio motor é capaz de comandar um
número variável de fibras musculares; chamamos esse conjunto “neurônio +
fibras musculares sob seu controle” de Unidade Motora.
Precisamos ter em mente que a Unidade Motora é de fato a última
instância do controle dos movimentos pelo sistema nervoso: o neurônio motor
alfa recebe aferências de diversas origens, sejam elas descendentes do córtex
cerebral ou dos núcleos do tronco, dos neurônios sensitivos das vias reflexas,
de interneurônios medulares, todas visando o fino controle das unidades
motoras.
Um dos aspectos mais importantes do controle dessas unidades
motoras, e cujo conhecimento é essencial para se entender Eletromiografia, é o
que se chama de Ordem de Recrutamento.

Fig 1
A primeira coisa de devemos saber é que as unidades motoras não são
todas iguais. Elas controlam tipos de fibra muscular diferentes, em quantidades
diferentes e são ativadas em momentos diferentes.
Quanto ao tipo de fibra, lembremos que existem dois extremos que
diferem essencialmente no seu aparato bioquímico, estrutura interna e aptidão
para um tipo de atividade física: as fibras lentas oxidativas e as fibras rápidas
glicolíticas.
As fibras Lentas Oxidativas são menores, contém menos miofibrilas,
fazem parte de unidades motoras que contém poucas fibras musculares, e por
isso desenvolvem menos força. Porém, são ricas em mitocôndrias e
mioglobina, portanto aptas a fazer metabolismo aeróbico, produzir muita
energia e agüentar longos períodos de exercício.
As fibras Rápidas Glicolíticas são maiores, contém muitas miofibrilas,
fazem parte de unidades motoras que contém muitas fibras musculares, e
portanto podem desenvolver muita força de tração. Porém, o seu metabolismo
essencialmente anaeróbico limita a produção de energia, além da produção de
metabólitos ácidos que limitam o funcionamento do aparelho contrátil pela
alteração do pH, isso faz com que tenham aptidão para exercícios de curta
duração.
Entre esses extremos, temos as fibras Rápidas Oxidativas e
Glicolíticas, ou Resistentes à Fadiga Rápida, que possuem ambos os tipos de
metabolismo e desenvolvem força intermediária.
Cada unidade motora contém apenas um tipo de fibra muscular, que é
inervada por um tipo diferente de Neurônio Motor, no que diz respeito ao
diâmetro de seu corpo celular e de seu axônio, e também no número de fibras
que inerva (Razão de Inervação). Unidades motoras Oxidativas são
controladas por neurônios pequenos, e contém poucas fibras musculares; por
sua vez, unidades glicolíticas são controladas por neurônios grandes, e contém
muitas fibras musculares.
E como isso tudo influi no Recrutamento ordenado?
Simples: os neurônios que inervam um determinado músculo estão
agrupados na substância cinzenta anterior, nos Núcleos Motores (Fig 2).
Quando o músculo for iniciar uma atividade leve, o núcleo motor vai receber
impulsos de baixa intensidade (Fig 3). Esses impulsos irão despolarizar
somente os neurônios menores, que inervam as unidades oxidativas, e estas
irão gerar pouca força. À medida que o músculo for chamado a desenvolver
mais força, os impulsos aferentes no núcleo vão aumentar, neurônios maiores
vão despolarizar e vão ativar unidades glicolíticas e maiores, e a força
desenvolvida é cada vez maior. È claro que a adição de mais unidades motora
ao movimento é gradativa e precisa, o que confere graça e harmonia aos
movimentos que fazemos.
É preciso lembrar que à medida que a intensidade dos estímulos
cresce, todos os neurônios que estão abaixo daquele limiar estão sendo
ativados. Ou seja, para que as unidades glicolíticas sejam recrutadas, as
oxidativas também devem ser. É errado pensar, por exemplo, que numa
atividade de força só estão sendo usadas fibras glicolíticas.

Fig 2
Fig 3
Outro detalhe é o diâmetro axonal. Quando um núcleo motor está
sendo estimulado levemente, somente os neurônios menores disparam, e seu
axônio fino e de alta resistência elétrica conduz o impulso mais lentamente. À
medida que a intensidade do estímulo aumenta, o neurônio pequeno dispara
em freqüências mais altas, e outros neurônios maiores são ativados. Estes
possuem axônios mais calibrosos que conduzem o impulso de forma mais
rápida.

Realizando o Exame

O exame eletromiográfico serve para avaliar atividade de diversos


músculos, para finalidades bastante diferentes. Desde o diagnóstico de lesões
até avaliação de performance de atletas, suas aplicações na área de saúde são
muitas.

 Fisioterapia: avaliação da atividade muscular durante a marcha;


observação da capacidade dos exercícios terapêuticos em facilitar ou
inibir a atividade muscular.
 Educação física: análise da eficácia de equipamentos de musculação;
acompanhamento da evolução de um atleta.
 Fonoaudiologia: avaliação do funcionamento dos músculos da expressão
facial, deglutição, respiração e mastigação.
 Odontologia: avaliação da intensidade e da ritmicidade de contração dos
músculos da ATM.
 Terapia ocupacional: análise das funções dos músculos agonistas e
antagonistas nos movimentos cognitivos.
 Medicina: detecção de miopatias, mielopatias, radiculopatias,
neuropatias traumas, perda da ação trófica do SNC, distúrbios
eletrolíticos.

Existem duas formas de se estudar a atividade elétrica de um músculo.


A primeira é inserindo um pequeno eletrodo em forma de agulha dentro deste
músculo. A segunda é pondo um eletrodo plano na superfície da pele que
recobre este músculo.
Os dois tipos são o que chamamos de eletrodo ativo, que é aquele que
irá aferir o potencial da região estudada. Ambos precisam ser acompanhados
de dois outros tipos de eletrodos. Um de referência com o qual será feita a
subtração Ativo – Referência, que será o resultado visualizado no registro. Ele
geralmente é posto sobre um músculo antagonista. O outro tipo é o terra, que é
posto em outra região que não entre o ativo e o referência, e serve para
estabelecer um potencial de origem.
Todos os sinais passam por um amplificador para poderem ser
visualizados na tela.

Fig 4

Na primeira forma, que chamamos de Eletromiografia de Agulha, a ponta


do eletrodo estará em contato direto com as fibras musculares, e informará ao
aparelho sobre a atividade elétrica que ocorrer nas suas proximidades. Existem
muitos tipos de eletrodos em forma de agulha (monopolar, bipolar, coaxial...),
cada um com suas vantagens e aplicações próprias. Alguns são tão pequenos
que registram a atividade de uma única célula, enquanto a maioria é um pouco
maior a capta algumas dezenas ou centenas de fibras.
A segunda forma, que chamamos de Eletromiografia de Superfície,
detecta apenas a atividade elétrica que se propaga para a pele adjacente, ou
seja, é um somatório ainda mais grosseiro da atividade de um segmento de
músculo, além de não permitir a exploração de músculos profundos sem haver
interferência de outros músculos próximos. É uma avaliação quantitativa da
atividade e força geradas pelo músculo, ao contrário da modalidade de agulha
que é altamente qualitativa e de valor diagnóstico.

Fig 5
EMG de esforço mínimo

EMG de esforço máximo


O aparelho geralmente nos mostra a variação dos potenciais elétricos de duas
formas diferentes: um traçado na tela que mostra a variação em função do
tempo, e através de sons reproduzidos nas caixas de som, semelhantes a
ruídos de estática. Ambos são úteis para estabelecer diagnósticos, pois cada
patologia tem seu traçado e seu barulho característico.
A atividade elétrica muscular deve ser analisada pelo aparelho,
estando o músculo em condições diferentes.
Inicia-se pelo repouso. A agulha é inserida e pede-se que o paciente
deixe o músculo relaxado. É então que verificamos se há alguma Atividade de
Inserção. Geralmente se observa alguma Atividade de Inserção fisiológica
passageira por causa da perturbação causada pela agulha, e logo o registro
volta à linha de base (silêncio elétrico); ou então quando acertamos a placa
motora por acaso, e temos potenciais iniciais negativos de placa ou fibrilações
inicias positivas. A única importância deles é saber diferenciá-los das
fibrilações patológicas que veremos adiante.

A seguir pede-se ao paciente que faça uma contração moderada. Aí é


que obtemos a maioria das informações relevantes do exame. O Potencial de
Unidade Motora deve ser avaliado nos seguintes critérios:

1 – Configuração
- Amplitude (até 10mV)
- Duração (3 ou 4 ms)
- Polifasia (até 3 ou 4 fases)

Esses são os valores normais de cada critério, e as patologias vão


apresentar alterações características em cada um.

2 – Padrão de Recrutamento
- Normal
- Reduzido
- Aumentado

O estudo do músculo em contração máxima é citado nos livros, mas é


de pouco valor prático. Primeiro porque todos os parâmetros podem ser
avaliados na contração moderada; segundo porque é difícil para os pacientes
(geralmente com déficit de força) manterem uma contração máxima e
cansativa; o eletrodo pode entortar dentro do músculo, etc.
A informação que ele acrescenta é a presença do padrão de
interferência, que simplesmente é o preenchimento homogêneo do registro
pelo recrutamento total das unidades motoras.

Patologias

Vejamos agora como podemos visualizar as alterações patológicas da


EMG.
- Neuropatia

A neuropatia é resultado de lesões no neurônio motor alfa, ou de seus


axônios. Como resultado teremos o processo de desnervação, que se processa
da seguinte maneira:
O Axônio de um motoneurônio degenera por uma doença qualquer. As
fibras de sua Unidade ficam desnervadas. Com cerca de 20 dias começam a
surgir as Alterações de Repouso, que nesse caso são principalmente a
Fibrilação e as Ondas Agudas positivas (Fig 6). Sem a presença do axônio na
placa motora, os canais de sódio sensíveis a acetilcolina se espalham pela
membrana, e tornam a célula responsiva a qualquer resto desse
neurotransmissor no interstício. As fibrilações são atividades geradas por uma
única célula cada, e é o que mais se aproxima de um potencial de ação no
EMG. Sua principal característica que a difere das atividades de repouso
fisiológicas ditas antes é a regularidade rigorosa, de cerca de 1 a 30 Hz. Ondas
Agudas Positivas também são manifestações de fibras hiperexcitáveis, e
podem aparecer isoladamente ou como uma seqüência rápida, formando os
“trens de ondas positivas”.

Fig 6

Figura 6: Fibrilações (à esquerda) e Ondas Positivas (à direita)

É importante dizer que esses dois tipos não são patognomônicos de


desnervação, podendo estar presentes em qualquer enfermidade que
comprometa o estado bioelétrico das membranas, como neuropatias,
mielopatias, miopatias, radiculopatias, trauma local, hipo e hipercalemia, etc.
Os axônios remanescentes no músculo tendem a emitir brotamentos
colaterais para reinervar as fibras que permaneceram desnervadas. Á medida
que isso ocorre, mais e mais fibras vão sendo reativadas e a unidade motora
vai crescendo.Os potenciais das fibras reinervadas vão se tornando mais
sincrônicos com o das fibras originais da Unidade, e daí surgem as Alterações
de Contração Moderada. Como a unidade motora agora é muito maior, a
amplitude e a duração de seu PUM estão aumentados, e podem se transformar
no que se chama de Potenciais Gigantes (Fig 8).
Como o número de unidades motoras está reduzido, por exemplo, se
antes houvesse 10 unidades agora há 5, e o músculo trabalha com o princípio
da somação temporal, essas unidades vão ter que disparar a freqüências
aumentadas para compensar. E, claro, o padrão de recrutamento está
incompleto porque há menos unidades, e isso deixa lacunas no traçado (Fig 8).

Outro tipo de Alteração de Repouso neuropática que podemos


encontrar é a Fasciculação. Esta é resultado da despolarização do axônio ou
do corpo do Motoneurônio em estado hiperexcitado. Isso resulta na contração
de toda uma unidade motora ou de parte dela, e é uma contração percebida
visualmente, diferente da fibrilação. As fasciculações são identificadas pelo seu
ritmo irregular e por sua repetição, geralmente menos de 5 por segundo. As
simples, difásicas ou trifásicas são consideradas malignas e estão
freqüentemente associadas à Esclerose Lateral Amiotrófica. As complexas ou
polifásicas comumente são benignas e estão ligadas às alcaloses e à
hipocalcemia, sendo agravadas pelo calor (Fig 7).
Fig 7

Podemos resumir as alterações neuropáticas da seguinte forma:

– Configuração
- Amplitude: aumentada; possíveis potenciais gigantes(reinervação)
- Duração: aumentada
- Polifasia : sim

– Padrão de Recrutamento
- Reduzido
- Miopatias

Nas miopatias a doença se encontra na própria fibra muscular, e como


o acometimento é mais ou menos aleatório, todas as unidades motoras contém
fibras doentes. Geralmente não vemos Alterações de Repouso, a não ser em
algumas miosites que se acompanham de desnervação.
Como todas as unidades contêm fibras doentes, o que vemos nas
Alterações de Contração Moderada são potenciais polifásicos com amplitude
e duração reduzidos, pois o problema está na atividade das próprias fibras.
Como todas as unidades estão presentes, não temos as lacunas
deixadas como na neuropatia, mas sim temos o padrão de recrutamento
aumentado. Isso quer dizer que para um esforço pequeno, muitas unidades já
são recrutadas, para compensar a pouca força das unidades individuais.

–Configuração
- Amplitude: diminuída
- Duração: diminuída
- Polifasia : sim

– Padrão de Recrutamento
- Aumentado
Fig 8
Referências Bibliográficas

1 – Pinto, Luiz Carlos Neurofisiologia Clínica: princípios básicos e


aplicações/Luiz Carlos Pinto ; colaboração especial Vera Lúcia Rocha Pinto.
2. ed. São Paulo: Editora Atheneu, 2010.

2 – Kandel ER, Schwartz JH, Jessell TM. Princípios da Neurociência. 4ª. ed.
Barueri, Manole, 2003

3 – STOHR. Manfred. KRAUS. Regina. Introdução a Neurofisiologia Clínica.


Santos editora. 2009.

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