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RESUMO
Teatro e cidade: origem comum? O artigo pretende abordar a tragédia
grega em sua relação intrínseca e originária com a polis, isto é: com o
fenômeno urbano que se consolida com a democracia grega, no modo
como estes se interpenetram e se co-determinam. Não é possível pensar a
tragédia fora da pólis grega na inteireza do que seu fenômeno representa.
Mais do que isso: o desenvolvimento e crescimento da cidade, em todas as
suas instâncias, principalmente políticas e “democráticas” é vital para o
desenvolvimento da tragédia, desde o ritual até a ênfase cada vez maior no
diálogo.
Palavras- chave: Tragédia; Pólis; Filosofia.
ABSTRACT
Theatre and city: a common origin? The aim of this article is to approach
Greek tragedy in its intrinsic relationship with the polis (i.e.: the urban
phenomenon that is consolidated by the Greek democracy), in how they are
intertwined and are also determined by each other. It is not possible to fully
think the tragedy phenomenon out of the Greek polis. And more than that:
the development and growth of the city, in every instance, especially
political and "democratic" is vital to tragedy development, from ritual to
the increasing emphasis on dialogue.
Keywords: Tragedy; Polis; Philosophy.
Introdução
Cidade e teatro. Uma relação viva, a despertar inúmeras conexões.
Como pensar a interferência do teatro na paisagem e no espaço urbano?
Hoje, sobretudo, esta é uma relação e uma desconstrução cada vez mais
viva e atual, cada vez mais presente na cena contemporânea. Teatro de rua.
Intervenção urbana. Happening. Performance... Contudo, muito antes do
teatro querer ganhar a cidade, já houve um momento em que o teatro era
feito pela cidade, e mais: era o ápice da vida em comum na cidade, um
momento em que toda a cidade parava e se congregava em torno do
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Professora adjunta DEART/UFOP. e-mail: lucianacdias@yahoo.com.br
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As diferenças entre as pólis não só eram notórias como também, algumas vezes, objeto de disputas entre
os próprios gregos, como retratado comicamente por Aristófanes (por exemplo, em Lisístrata e As
vespas).
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Logos
A Grécia viveu uma radicalização da palavra, sintoma de uma
transformação entre dois modos de vida, ou entre duas percepções distintas
da realidade. A pólis, espaço urbano por excelência, viu a poesia – que,
como Jaeger (2011) coloca, era o “centro da educação aristocrática agrária
anterior” – ter seu lugar questionado. A palavra do poeta (que em seu
canto, "verdade revelada de inspiração divina", relembrava e mantinha vivo
“aquilo que não podia ser esquecido”) tivera papel fundamental na
sociedade grega mais antiga. Por toda a Grécia arcaica, como coloca
Detienne (1988), os poetas foram os “mestres da verdade”, os grandes
mestres e detentores do conhecimento, da palavra inspirada,
ritualisticamente declamada. Eram os senhores de uma visão mítica de
mundo, daquilo que Mircea Eliade (1989) coloca como sendo o tempo
mítico das origens, que tanto pertence a um passado longínquo como se
mantém sempre vivo e atual, por dar sentido ao presente. Ou seja, o
processo racional que descambou na laicização da palavra em todas as
instâncias, atingiria a própria visão poético-mítico-arcaica de mundo grego,
radicalmente transformada dentro do espaço urbano.
Quando a verdade passa a se constituir a partir da persuasão, da
argumentação e da racionalidade, elementos que se tornam a chave da vida
no espaço da pólis, surge a palavra dialogada, “lógica” e até mesmo
sofística. O desenvolvimento da argumentação e do diálogo é a mudança
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radical que a pólis viu acontecer e que imprimiria sua marca no mundo
ocidental de modo indelével. Surgiu, com o fenômeno urbano, algo até
então inédito: a preeminência da palavra racional, dialogada e logicamente
sustentada, em detrimento da palavra revelada, mítica. Com isto, o espaço
urbano da pólis possibilitou o advento de uma situação histórica inédita,
caracteristicamente marcada pelo conflito entre duas mentalidades ou
visões de mundo: de um lado, o mundo arcaico, mítico, da palavra revelada
e das limitações do homem frente ao divino; do outro, a mentalidade
clássica nascente, já a por em xeque toda determinação e autoridade
míticas, toda a simetria e perfeição do cosmos mítico.
À medida que as transformações sociais iam sendo acompanhadas de
novos ideais quanto ao caráter e à conduta do ser humano, os poetas
puderam eles mesmos alterar, corrigir ou expurgar a teologia
homérica e hesiódica [...]. De um modo geral, foram os filósofos que
influenciaram os poetas, pois foram eles que fizeram incidir uma
crítica racional sobre uma teologia que se atribuía aos primeiros
poetas. (Cornford, 1989, p. 236)
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Ao que conste, como Cornford (1989) coloca na obra citada destaca, o jovem Platão teria chegado,
inclusive, a escrever tragédias, as rasgando e destruindo todas, porém, após conhecer Sócrates.
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Não se pode confundir estas mudanças, originadas pelo fenômeno urbano e que conduziram da palavra-
mítica à palavra-diálogo, do mythos ao logos, como equivalentes à revolução cientificista que o ocidente
enfrenta desde o século XIX. Os deuses não são nem nunca foram expulsos da cidade grega, antes são, de
algum modo, "re-configurados" dentro da nova mentalidade que a vida urbana vem a propiciar e
constituir. É o começo da caminhada autônoma e racional do homem, distante ainda de sua consolidação
como método científico na Modernidade.
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