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PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Registro: 2017.0000264082

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação nº


1000942-47.2016.8.26.0004, da Comarca de São Paulo, em que é apelante MICHEL
ROVERE ALVES MOTOS ME, é apelado LEANDRO SOUZA ROCHA.

ACORDAM, em sessão permanente e virtual da 21ª Câmara de Direito Privado


do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: por v.u. negar provimento
ao recurso, com observação, de conformidade com o voto do relator, que integra este
acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores VIRGILIO DE


OLIVEIRA JUNIOR (Presidente) e MAIA DA ROCHA.

São Paulo, 19 de abril de 2017.

Itamar Gaino
Relator
Assinatura Eletrônica
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Voto n°: 37415


Apel. n°: 1000942-47.2016.8.26.0004
COMARCA: SÃO PAULO F.R. da Lapa 4ª Vara Cível
APTE. : MICHEL ROVERE ALVES MOTOS ME.
APDO. : LEANDRO SOUZA ROCHA

Execução Cheques Desacordo comercial Ônus da Prova


Art. 333, II, do CPC de 1973 Consignação extrajudicial em
pagamento Requisitos.

1. Para a desconstituição total ou parcial do cheque, o devedor


deve provar, de forma irrefutável, cabal e convincente, que ele
não tem causa ou essa é ilegítima ou demonstrar qualquer outro
fato impeditivo ou extintivo do direito nele representado.

2. Tratando-se de dívida líquida, representada por cheques, a


consignação extrajudicial de parte do valor, em instituição
bancária, com fundamento no art. 890 do CPC de 1973, não é
capaz de liberar o devedor da obrigação, devendo tal depósito
ocorrer pelo valor nominal, acrescido dos encargos moratórios,
nos termos do art. 315 do Código Civil.

Embargos improcedentes. Recurso improvido, com observação.

Trata-se de recurso de apelação contra a r. sentença de fls.


54/56, cujo relatório se adota, que julgou improcedentes os embargos à
execução, condenando o embargante no pagamento dos honorários advocatícios
arbitrados em 15% sobre o valor da causa.
Após discorrer sobre os fatos, o embargante alega que o
depósito realizado em estabelecimento bancário oficial, no valor de R$ 6.800,00,
sem que houvesse oposição do embargado, resultou na quitação das cártulas.
Por outra, argumentou que o valor consignado extrajudicialmente restou
incontroverso, não havendo impugnação específica aos fatos articulados nos
presentes embargos. Pleiteia, destarte, a extinção da execução, “sem prejuízo à
liberação do valor depositado extrajudicialmente no Banco do Brasil” em favor do
embargado (fls. 90/102).
Recurso tempestivo, preparado e respondido (fls. 105/110).

É o relatório.

I Trata-se de embargos à execução consubstanciada nos


dois cheques pós-datados para 05/07/2015, cada um no valor de R$ 4.999,99
(quatro mil novecentos e noventa e nove reais e noventa e nove centavos).
Restou incontroverso que, em abril de 2015, o embargado

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adquiriu do embargante a motocicleta de placas EOH-1557, no valor de R$


22.000,00, restando convencionado que o pagamento ocorreria através da dação
da motocicleta de placas EUB-0019, no valor de R$ 14.500,00, além de R$
7.500,00 em dinheiro (cf. fls. 35).
Incontroverso, ainda, que, em 02/06/2015, o embargante
recomprou a motocicleta de placas EOH-1557, pelo valor de R$ 20.000,00, a ser
pago através de cheques (cf. fls. 34), dentre os quais, os que consubstanciam a
execução (cf. fls. 34).
As partes são unânimes em afirmar que a motocicleta de
placas EUB-0019 foi entregue ao embargante em razão de dação em pagamento,
permanecendo em seu poder, mesmo após a recompra do outro veículo, sendo
alienada, posteriormente, a terceiro.
A discussão reside na suposta apresentação de vicio oculto
na motocicleta dada como parte de pagamento pelo embargado.
Segundo o embargante, tal motocicleta foi alienada ao Sr. Eli
Celso em 01/07/2015, ocorrendo o distrato logo em seguida, em 15/07/2015 (cf.
fls. 11), por constatação de avaria no quadro localizado abaixo do reservatório de
combustível.
O embargante alegou ter despendido o valor de R$ 3.200,00,
sendo R$ 2.800,00 referentes ao conserto do equipamento e R$ 400,00, alusivos
à regularização da documentação da motocicleta, pugnando pelo desconto de
tais despesas sobre o valor correspondente aos dois cheques, confessando-se,
assim, devedor da quantia de R$ 6.800,00.
Pensando que poderia quitar a inadimplência, o embargante
efetuou a consignação extrajudicial de tal valor (R$ 6.800,00) perante o Banco do
Brasil, nos termos do artigo 890 do Código de Processo Civil de 1973, aplicável
ao caso.
Restou incontroverso que o embargado não impugnou o valor
depositado, tampouco requereu tal levantamento.
Por sua vez, o embargado afirmou que a motocicleta dada
como parte de pagamento não apresentava qualquer avaria no momento da
negociação, como se denota do recibo de fls. 09, tendo constatado, algum tempo
depois, ao voltar ao estabelecimento do embargante, que ela havia sido batida e
repintada, chamando a atenção a divergência de cores, frente à pintura original
(fls. 29/33).
O MM. Juiz “a quo” julgou improcedentes os embargos. Da
bem lançada sentença extrai-se que:

“O embargante alegou que a moto recebida do embargado


como forma de pagamento estava com avarias e que ele experimentou prejuízos.
Assim sendo, ao realizar a recompra da outra moto que a embargante havia
vendido ao embargado, ela realizou o pagamento com dois cheques, sustou-os e
realizou uma consignação extrajudicial abatendo os prejuízos de manutenção.

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Sustenta ainda que a referida consignação retirou dos cheques sua liquidez e
exigibilidade.
As alegações da embargante não devem prosperar uma vez
que ela é uma representante especializada em motocicletas e deveria ter
verificado a susposta avaria no momento em que realizou o negócio, e não
posteriormente, após ter vendido a moto para um terceiro.
No que diz respeito à recompra da moto, a embargante
efetuou o pagamento com dois cheques e deveria honrá-los. Não há que se falar
em abatimento do valor em decorrência da suposta avaria, porque não há como
provar que a motocicleta estava com avarias no momento da negociação entre a
embargante e o embargado, e por isso, rejeito a tese defensiva.
A consignação extrajudicial realizada em benefício do
embargado em valor menor do que o representado pelos cheques não retira
deles sua liquidez e certeza de exigibilidade. Ou seja, a consignação extrajudicial
parcial não retira a mora do devedor e sendo assim rejeito a tese da embargante.”
(fls. 55/56).

Com efeito. Tal solução deve prevalecer.


O cheque constitui uma ordem de pagamento incondicional,
em dinheiro e à vista, contra uma instituição financeira.
Assim, como todo título de crédito, o cheque é literal,
autônomo e abstrato.
A autonomia significa, nas palavras de WALDO FAZZIO
JÚNIOR, que “cada obrigação contida no documento é autônoma, existe por si
só, de modo que o adquirente ou portador do título pode exercitar seu direito sem
qualquer dependência das outras relações obrigacionais que o antecederam”
(Manual de Direito Comercial, 4ª edição, São Paulo: Atlas, 2004, p. 372).
Já a chamada abstração cambiária pode ser definida como
sendo “a desvinculação de um título de crédito em relação ao negócio jurídico
que motivou a sua criação” (FÁBIO BELLOTE GOMES, Manual de Direito
Comercial, Barureri: Manole, p. 155).
Em outras palavras, tratando-se de títulos de crédito
formalmente perfeitos, cabe ao devedor que suscita a discussão da causa
debendi ou excesso de execução, o ônus de provar a ausência de causa ou que
sua causa é ilegítima, ou ainda, haver excesso na sua cobrança, devendo fazê-lo
por meio de prova irrefutável, cabal e convincente (CPC de 1973, art. 333, II e
Novo CPC, art. 373, II).
Logo, bastam os cheques para comprovar a dívida. Sua
desconstituição, total ou parcial, caberia ao devedor, ônus do qual ele não se
desincumbiu.
Restou incontroverso que os títulos foram entregues ao
embargado em razão de contrato de compra e venda de motocicleta.
Segundo o embargante, do valor devido ao embargado (R$
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10.000,00), deveriam ser descontados R$ 3.200,00, em razão de reparos


mecânicos e despesas com registro de titularidade do veículo, ensejando a
consignação extrajudicial em estabelecimento bancário do valor correspondente à
diferença (R$ 6.800,00).
Ocorre que tal consignação não é capaz de liberar o devedor
do montante representado pelos cheques, por se tratar de dívida líquida, que
somente poderia ser depositada pelo valor nominal (CC, art. 315), acrescida dos
encargos moratórios. Nesse sentido:
“A mora do devedor não lhe retira o direito de saldar seu
débito, devendo o credor receber, desde que o pagamento se faça com os
encargos decorrentes do atraso e a prestação ainda lhe seja útil” (STJ 3ª T.,
REsp 39.862, Min. Eduardo Ribeiro, j. 30.11.93, DJU 7.2.94).
Sobre a validade da consignação extrajudicial, Nelson Nery
Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, esclarecem que:

“A validade do depósito e, consequentemente, do pagamento


depende de estarem preenchidos os requisitos do CC 336 (CC/1916 974). Quem
deve pagar (CC 304 a 307; CC/1916 930 a 933) e a quem se deve pagar (CC 308
a 312; CC/1916 934 a 938); o que se deve pagar (CC 313 a 326; CC/1916 939 a
949); onde se deve pagar (CC 327 a 330; CC/1916 950 e 951); quando se deve
pagar (CC 331 a 333; CC/1916 952 a 954). (...)
O pagamento em dinheiro far-se-á na forma prescrita no CC
315 (CC/1916 947), devidamente corrigido para resguardar o credor do
aviltamento da moeda pela inflação. V. ex-CCom 195; D 55762/65 17; DL 857/69;
CTN 162” (in Código de Processo Civil Comentado, 9ª edição, Ed. RT, págs.
889/890).
Nesse sentido, revela-se oportuna a lição de Theotônio
Negrão, com arrimo na jurisprudência:
“Não cabe ação de consignação em pagamento: para que o
autor obtenha declaração de que não é obrigado a pagar (RT 560/107)”, bem
como, “para quitar-se o autor de parte de dívida, 'com promessa de discutir o
restante em ação declaratória futura' (STJ-3ª T., Ag 15.594-AgRg, Min. Dias
Trindade, j. 19.11.91, DJU 16.12.91).” (in Código de Processo Civil e legislação
processual em vigor, 45ª edição, Ed. Saraiva, pág. 978).
Destarte, havendo depósito em quantia bem inferior ao valor
nominal dos títulos, outra não poderia ser a conclusão, senão a que chegou o
MM. Juiz “a quo”, de que “a consignação extrajudicial parcial não retira a mora do
devedor”.
Por outra, o embargante não se desincumbiu do ônus de
demonstrar que a motocicleta dada como parte de pagamento pelo embargado
apresentava vício oculto no momento da negociação.
Pelo recibo de fls. 09, o devedor declarou “que examinou
criteriosamente o veículo acima indicado em todos os seus itens e componentes,

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verificando o motor, lataria e o estado geral do mesmo, razão pela qual o adquire
no estado que se apresenta.”.
Não é crível que o veículo apresentasse “rachadura no
quadro localizado sob o tanque de combustível”, sem que o embargado
percebesse tal vício no ato da vistoria, por se tratar de profissional experiente no
ramo de comercialização de motocicletas (fls. 38/40 e 82/87).
Importante mencionar que o embargado entregou sua
motocicleta ao embargante em abril de 2015, havendo notícia de que ela
apresentava defeito somente em julho de 2015, restando bem provável que em
tal intervalo o veículo tenha se envolvido em acidente.
Insta consignar que o embargado mencionou que a
motocicleta teria sido “batida”, sendo, inclusive, repintada de outra cor, restando
incontroversa tal alegação.
Se não bastasse, denota-se que o orçamento no valor de R$
2.900,00 (fls. 53), foi elaborado em 03/03/2016, ou seja, mais de sete meses
após a consignação extrajudicial (cf. fls 16/18 e 53), tornando incrédulas as
alegações do embargante.
Por fim, observa-se que o depósito no valor de R$ 6.800,00,
realizado perante o Banco do Brasil, poderá ser levantado pelo embargado,
servindo tal quantia, atualizada, para encontro de contas, prosseguindo a
execução pelo saldo devedor, por aplicação analógica do § 2º, do art. 899 do
CPC de 1973.

II Ante o exposto, nega-se provimento ao recurso, com


observação, majorando-se os honorários advocatícios ao percentual de 20, nos
termos do art. 85, § 11, do NCPC.

ITAMAR GAINO
Relator

Apelação nº 1000942-47.2016.8.26.0004 -Voto nº 37415 6

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