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Interpretação das obras para castrati na atualidade

1. Resumo
Fala-se sobre os castrati e de que forma estes cantores revolucionaram a Ópera
Séria no período Barroco. Faz-se referência ao interesse crescente pela música
barroca nos nossos dias e à consequente busca pela voz do contratenor, a voz
masculina mais aguda. Estuda-se as diversas possibilidades de execução dos
papéis para castrato na atualidade, ilustrando os prós e contras de cada uma e
defendendo que é impossível encontrar uma voz capaz de igualar os padrões da
voz do castrato. Conclui-se, armando que é razoável a procura por uma
interpretação das óperas centradas em castrato cada vez mais próxima do
pretendido pelo compositor.

2. Introdução
Historicamente, o período Barroco constitui um movimento socio-cultural e artístico
que decorreu durante o Antigo Regime; foi durante este período que ocorreu a
armação dos grandes ideais absolutistas e o reinado de grandes monarcas, tais
como Luís XIV em França, Maria Teresa em Áustria e D. João V em Portugal, entre
outros. Estas cortes desempenharam um papel de grande destaque no panorama
europeu da altura.

A nível político, quase toda a Europa esteve envolvida na Guerra dos 30 anos
(1618- 1648) e, posteriormente, decorreu a Guerra Civil inglesa (1649-1660), que
terminou com a restauração da monarquia por Carlos II. Em Portugal, a dinastia
lipina chegou ao m com a restauração portuguesa em 1640. Também a nível
religioso se viveram tempos conturbados em seguimento da Reforma Protestante e
consequente Contrarreforma, o que levou à formação de dois grandes polos: a
Igreja Católica e o Protestantismo.

A existência destes regimes absolutistas e tumultos religiosos, onde se destaca o


fenómeno da Inquisição, acabou por se revelar favorável ao desenvolvimento das
artes em geral e, em particular, da música; os traços mais característicos desta arte
barroca são o uso excessivo de ornamentação e de uma grande quantidade de
estilos e formas, bem como a tendência para a grandiosidade e o imponente.
Musicalmente, nesta altura, os compositores começaram a utilizar mais sustenidos e
bemóis, o que levou à desagregação do sistema de modos e consequente
desenvolvimento do sistema tonal. Por outro 1 lado, surgiram também novas formas
e congurações estruturais, entre as quais a Ópera.

Até nais da Idade Média não se havia sentido a falta de vozes femininas, uma vez
que as melodias eram bastante simples e as vozes dos rapazes mais novos
equilibravam essa ausência; no entanto, a música polifónica contrapontística dos
nais do século XVI / inícios do século XVII tornou-se gradualmente mais complicada,
o que resultou na necessidade de vozes mais agudas e cantores com mais
preparação musical, sobretudo na música sacra. É nesta altura que os castrati
entram no mundo da música, uma vez que não era permitido às mulheres participar
nos coros das celebrações religiosas.

3. Os castrati na música barroca


Os castrati são cantores que tiveram imensa popularidade durante os séculos XVI a
XIX. Estes homens possuíam um tipo de voz muito particular. Geralmente, os
castrati eram rapazes órfãos ou provenientes de famílias de baixa condição social
que possuíam vozes excecionais e que eram oferecidos para castração com o
intuito de preservar a sua voz.

A castração era efetuada antes da puberdade, o que resultava no


subdesenvolvimento da laringe e, desta forma, a tessitura vocal da criança era
conservada e desenvolvia-se de uma forma única: à medida que o rapaz (castrato)
crescia, a falta de testosterona impedia que as epíses solidicassem de forma natural
(a cartilagem episária promove o crescimento durante a infância e a adolescência,
sendo substituída por osso compacto na idade adulta, o que interrompe o
crescimento), o que levava a que os seus membros e costelas crescessem mais do
que o habitual. Estas características físicas, combinadas com árduas horas de
estudo, concediam-lhes uma capacidade pulmonar e de respiração ímpar. Desta
forma, a voz destes cantores era doce como a de uma criança e unia o poder vocal
de um homem com um registo mais agudo que o de uma mulher, possuindo
exibilidade e brilhantismo inigualáveis. Existiam, essencialmente, duas categorias
vocais nas quais estes cantores se dividiam: os castrati soprano e os castrati
contralto. Os castrati dominaram o mundo da Ópera Séria: eram conhecidos por
primo uomo ou primo musico. Foi com a criação deste género (Ópera Séria), no
século XVIII, que a sua fama se consolidou e que atingiram o seu auge. Era nos
espetáculos de Ópera Séria que os castrati podiam exibir de forma mais virtuosa as
suas capacidades vocais, visto que os papéis femininos lhes eram atribuídos. O
público, proveniente de diversos estratos sociais, frequentava a ópera com o intuito
de aplaudir os seus cantores preferidos, os seus ídolos, e a forma de estar durante
os espetáculos era muito diferente da do público atual. Desta forma, foi em nais do
século XVIII que a popularidade dos castrati entrou em declínio, consequência de
mudanças nos gostos operáticos, em particular o novo estilo romântico aperfeiçoado
por compositores como Rossini, e nos comportamentos socialmente aceitáveis. O
último grande castrato a executar um papel operático especíco para castrato foi
Giovanni Batista Velluti (1781-1861), ao interpretar o papel de Armando em Il
crociato in Egitto (A cruzada no Egito). Os castrati começaram a ser substituídos por
tenores nos palcos das óperas.

Após a unicação de Itália em 1861, a castração de crianças com a nalidade de


satisfazer necessidades a nível musical foi ocialmente considerada ilegal e, em
1878, o Papa Leo XIII proibiu a contratação de novos castrati pela Igreja.
Formalmente, os castrati deixaram de ser utilizados em 1903, após serem expulsos
do coro da Capela Sistina pelo Papa Pio X ; o último castrato a cantar neste coro foi
Alessandro Moreschi.
4. Voz feminina

Dadas estas questões, existem outras opções a considerar quando se trata de


escolher uma substituição para o castrato; uma delas é a voz feminina. Quando
Händel precisava de substituir um castrato, quase sempre escolhia uma mulher para
o fazer e, quando escrevia uma ópera para a qual nenhum castrato se encontrava
disponível, muitas vezes escolhia uma mulher para executar o papel e, assim que
possível, substituía-a por um castrato. Muitos outros compositores em Itália
procederam desta forma durante o século XVIII e inícios do século XIX.

Ao optar por uma voz feminina, a primeira diculdade reside em escolher a categoria
vocal mais apropriada: para substituir um castrato soprano, deve optar-se por uma
soprano e não por uma mezzo-soprano; da mesma forma, para substituir um
castrato contralto, a escolha mais adequada é uma mezzo-soprano e não uma
soprano (o que não signica que os registos da soprano e da mezzo-soprano sejam
equivalentes aos do castrato 6 soprano e do castrato contralto, respetivamente). O
ressurgimento do bel canto após a Segunda Guerra Mundial foi liderado,
essencialmente, por cantoras, das quais se destacam Maria Callas e Joan
Sutherland, que interpretaram os papéis principais das óperas, sendo os papéis
originalmente escritos para castrato contralto executados por mezzo-sopranos, tais
como Janet Baker e Marilyn Horne. Esta abordagem feminina à ópera barroca
também implicou muitas vezes que fossem efetuados arranjos da música, uma vez
que, muitas vezes, os papéis para castrato contralto situam-se num registo um
pouco grave para a maioria das mezzo-sopranos.

Após escolher a categoria vocal mais apropriada, é necessário ter atenção ao tipo
de voz, que deverá ser uma voz ‘larga’:

“Um castrato não pode ser substituído por uma soprano ou uma mezzo-soprano
com uma voz pequena. No palco estão mulheres cujas vozes não são ‘largas’ nem
em comparação com uma mezzo-soprano. Devemos aceitar o facto de que não
existe um grupo grande de sopranos e mezzo-sopranos com vozes `largas'. Não
podemos exigir que estas cantoras correspondam aos padrões de um castrato, pois
isso é uma façanha fisicamente impossível.” (DEMARCO, 2002)

Desta forma, o maior obstáculo com que nos deparamos, mas que poderá ser
contornado, é o facto de existirem poucas executantes capazes de desempenhar os
papéis para castrato de uma forma aproximada:

“ Esta conclusão, no entanto, não é totalmente sombria. Se existe um apetite para


levar estas óperas a palco, ou se é provável que venha a existir, não há razão para
que as sopranos e mezzo-sopranos com vozes `largas' não sejam induzidas a
cantar este repertório, desde que, primeiro, sejam ensinadas a desenvolver uma
técnica vocal satisfatória para expressar a música melismática. Uma cantora como
Dolora Zajick, por exemplo, claramente tem vigor suficiente para tentar executar um
papel para castrato contralto. . .” (DEMARCO, 2002)

5. Conclusão

Não é possível sobrevalorizar a importância do período Barroco no desenvolvimento


das artes e, em particular, da música. Por sua vez, é impossível sobrevalorizar a
importância dos castrati no desenvolvimento da música barroca e, em particular, da
Ópera Séria. O fascínio que estes cantores despertavam nas audiências através da
sua voz e das suas interpretações esplêndidas perdura até aos dias de hoje, e
manifesta-se claramente em cada vez que se interpreta uma obra para castrato,
cada vez que se fala da música vocal de Händel, cada vez que se estuda a criação
da Ópera. Estar à altura das capacidades vocais e de interpretação de um castrato
é uma tarefa impossível, essencialmente pelas suas características fisionómicas,
mas também, devido às enormes diferenças entre o ambiente social que se vivia
naquela época e aquele em que nos encontramos nos dias de hoje. Tudo o que
decorreu no mundo da música antes do surgimento dos castrati, a armação do
sistema tonal, a necessidade de um género vocal de relevo, bem como todo o clima
de exuberância e grandiosidade característico do período Barroco, despoletou este
fenómeno.

No entanto, esta procura por uma perfeição que nunca poderá ser atingida tem
servido de motivação e estímulo para que muitos cantores, músicos e musicólogos
expandam cada vez mais os seus limites e impulsionem o interesse das audiências
por aquilo que foi uma época de viragem na história da música.

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