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Múltiplos ordenamentos de realidade: o debate

iniciado por Lévy-Bruhl


Stanley Tambiah
Harvard University, Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos
tradução: Daniel Belik, Stella Zagatto Paterniani
University of Aberdeen, Aberdeen, Escócia
Universidade de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil
revisão técnica: Iracema Dulley
Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil

DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v22i22p193-220 É importante notar que Lévy-Bruhl contra-


pôs-se à posição de Tylor-Frazer ao referir-se não
Sobre Lévy Bruhl (1857-1939) ao ponto de vista da psicologia individualista ou
das leis da aptidão individual universal, mas, sim,
Lévy-Bruhl foi, antes de mais nada, um fi- como Durkheim, às representações coletivas e à
lósofo, nomeado à cátedra de história da filoso- influência das coletividades sobre os indivíduos.
fia moderna na Sorbonne em 1904. Teve seus Em segundo lugar, mesmo levando em conside-
primeiros trabalhos publicados na área de filo- ração as ideias de Durkheim e Mauss, seus inter-
sofia, e o mais importante deles versava sobre locutores, Lévy-Bruhl desviou-se destas ao não
o “positivismo cético e esclarecido” (segundo defender quaisquer teses sobre o desenvolvimen-
Gurvitch1), intitulado La morale et la science des to contínuo do pensamento primitivo em direção
mœurs (1903), sucedido por outros seis volumes ao pensamento moderno. Lévy-Bruhl não acei-
acerca do tema da “mentalidade primitiva”2. tava a tese de Durkheim segundo a qual as ideias
Já em seu primeiro trabalho filosófico sobre de força contidas nas religiões (primitivas) seriam
a moral, Lévy-Bruhl chegara à conclusão de que as precursoras da ideia de causalidade na ciência
a busca por “moralidades teóricas” universal- moderna. É desnecessário dizer que ele tampouco
mente válidas, ou uma ciência universal de “éti- estava de acordo com Tylor e Frazer e sua concep-
cas teóricas”, estaria fadada ao fracasso; e uma ção evolucionista sobre a passagem da selvageria à
vez que as moralidades variam no tempo e no civilização, ainda que Lévy-Bruhl tenha proposto
espaço, deveriam ser estudadas objetivamente, sua própria visão sobre essa transição.4
tal qual formações sociais. Deste modo, em La Contudo, é necessário reconhecer que as pri-
morale et la science des mœurs, Lévy-Bruhl ata- meiras ideias de Lévy-Bruhl foram radicalmente
caria frontalmente o postulado da unidade da modificadas em seus trabalhos mais maduros, de-
natureza humana, delineando os fundamentos vido a críticas recebidas, conforme se observa na
de sua sociologia relativista e pluralista3. Inte- publicação póstuma de seus cadernos, Les Carnets
ressou-se pela mentalidade primitiva ao compa- de Lucien Lévy-Bruhl (1949). Seu pensamento
rá-la com a mentalidade do homem civilizado; evoluía constantemente e, ao final de sua vida,
a extrema distância entre elas provaria sua tese Lévy-Bruhl passou de um positivismo cético para
pluralista e relativista. a sociologia do conhecimento e uma interpreta-

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ção fenomenológica da experiência do primitivo5. de distinta da nossa6? A crítica de Lévy-Bruhl a


Quando mais jovem, propusera a desafiadora tese Comte e seus seguidores britânicos tomou a se-
de que a mentalidade primitiva não deveria ser guinte forma: a investigação filosófica e as ciên-
considerada como uma forma primeva, rudimen- cias aplicadas pareciam ter elevado o pensamento
tar ou patológica da moderna mentalidade civili- ocidental a um nível tão alto que o tornaram
zada, mas, sim, uma manifestação de processos e referência para outros sistemas de pensamento.
procedimentos do pensar que seriam completa- Muitos vitorianos sustentavam que o objetivo da
mente diferentes das leis que governam o pensa- antropologia era explicar como se originaram as
mento científico lógico racional moderno. concepções equivocadas dos povos mais simples.
Ele optou pelo infeliz termo “mentalidade “Mas era ao mesmo tempo desejável demonstrar”,
pré-lógica” para descrever a mentalidade primiti- Needham ressalta, “que os erros eram razoáveis e
va, em oposição à moderna “mentalidade lógica”, passíveis de compreensão em suas circunstâncias,
tendo-a chamado também de “mentalidade místi- uma vez que a evolução tenderia naturalmente a
ca” – um rótulo menos problemático. No entanto, corrigi-los, tanto mais rapidamente quanto os sel-
não são os rótulos que aqui nos interessam, mas vagens copiassem os padrões europeus de obser-
as caracterizações substantivas dessa mentalidade vação e discurso” (NEEDHAM, 1972, p. 180)7.
como imbuída das leis e relações de participação. A inconteste tarefa do antropólogo seria descobrir
Por “pré-lógico”, Lévy-Bruhl entendia o pen- onde e por que os primitivos tinham se desviado
samento primitivo como representação coletiva (e do caminho correto. Lévy-Bruhl propôs substi-
eu insisto que com isso ele não estava, na maior tuir a ideia de que o pensamento primitivo seria
parte das vezes, referindo-se à questão das estru- “irracional” ou teria se equivocado na aplicação
turas inatas da mente e do cérebro do indivíduo) das leis do pensamento pela ideia de que ele teria
e que não engendrava regras semelhantes àquelas sua própria organização, coerência e racionalida-
seguidas pela lógica moderna – tais como as leis de características. Essa organização fundava-se na
de contradição e as regras de dedução e prova. “lei de participação”.
Por mentalidade “mística”, Lévy-Bruhl referia-se São, pois, as relações de participação que me-
a crenças em forças suprassensíveis: porquanto o recem nossa mais minuciosa investigação e com-
“selvagem”, como ele apontava, não distinguia o preensão, porque eu acredito – e é este o tema
domínio da natureza como oposto ao da sobrena- deste capítulo – que no arcabouço dos conceitos
tureza, o melhor a fazer era descrever seu ponto participação versus causalidade reside a questão da
de vista sobre certos seres, forças ou poderes como coexistência de duas mentalidades, ou dois mo-
“suprassensível”, e não como crenças em “seres dos de pensamento e ação na humanidade; e isso,
sobrenaturais”. Ciente do problema da tradução, por sua vez, conduz-nos à imensa e fértil, embora
Lévy-Bruhl afirmava que o pensamento dos pri- nebulosa, questão da ciência versus religião.
mitivos percorria “um caminho muito difícil de Participação, segundo Lévy-Bruhl, é uma
seguir”. associação entre pessoas e coisas no pen-
Em Les Fonctions mentales dans les sociétés samento primitivo, a ponto de significar
inférieures (1910), o problema é colocado da se- identidade e consubstancialidade. O que o
guinte forma: será que as representações coletivas pensamento ocidental consideraria como as-
das sociedades primitivas derivariam de funções pectos logicamente distintos de realidade, o
mentais mais elevadas, semelhantes às nossas, ou primitivo seria capaz de fundir numa única
estariam elas relacionadas com uma mentalida- unidade mística8.

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Uma das mais intrigantes exegeses feitas por ancestrais –, os espíritos e deidades e os vivos, ele
Lévy-Bruhl foi a da relação entre a personali- foi tão convincente quanto Tylor ou Frazer. Ade-
dade e a sociedade primitivas. A personalida- mais, tampouco era menos plausível, nos termos
de primitiva é muito mais ampla: incorpora a de sua teoria, a maneira de lidar com a farmaco-
ideia de mana que se alastra do indivíduo por peia nos processos rituais de cura, em que as rela-
sua sombra, cabelo, unhas, roupas e ambien- ções místicas também estavam implicadas.10
te. Por outro lado, a personalidade primitiva O que Lévy-Bruhl esforçou-se por descrever
é muito menos diferenciada do que nossa con- com o conceito de participação foi, na verda-
cepção a seu respeito, e muito menos ampla em de, levado adiante e esclarecido por seu amigo
conteúdo. “Também a noção de sociedade é Maurice Leenhardt, quem, ao contrário de Lévy-
inteiramente diferente para a mente primitiva. -Bruhl, tinha um profundo conhecimento em
A sociedade consiste não apenas nos vivos, mas primeira mão da vida melanésia. Voltarei a Lee-
também nos mortos, que continuam ‘vivendo’ nhardt mais adiante, mas cabe aqui, brevemen-
em algum lugar na vizinhança e têm um papel te, destacar que o conceito de participação que
ativo na vida social antes de morrerem pela se- Lévy-Bruhl empenhou-se por ilustrar a partir de
gunda vez (...) os mortos reencarnam nos vivos relatos missionários e de viajantes sobre os povos
e, segundo o princípio da participação mística, a primitivos foi magistralmente documentado por
sociedade se funde no indivíduo tanto quanto o Foucault em As palavras e as coisas ([1966] 1999),
indivíduo se funde na sociedade. É por isso que em termos do que o pensamento europeu do sé-
o legado durkheimiano de uma sociedade arcai- culo XVI chamou de “doutrina das assinaturas”,
ca que transcende e absorve o indivíduo deve ser na qual a noção de “semelhança” ocupava um pa-
abandonado de uma vez por todas”. pel fundamental na relação entre o homem e os
Uma horda australiana não “possui” suas ter- fenômenos de seu cosmo11.
ras hereditariamente transmitidas, de acordo com No entanto, entre 1910 e 1938, Lévy-Bruhl
nossos termos sobre a posse de propriedade, sim- foi alvo de comentários críticos por parte de
plesmente porque para ela a separação entre horda seus colegas franceses e de Evans-Pritchard,
e terra não é sequer concebível. Quando um boro- cujos ensaios redigidos no Cairo no início dos
ro declara ser uma arara, é exatamente isso que ele anos 1930, bem como sua magnum opus, Bru-
quer expressar: uma inexplicável identidade místi- xaria, oráculos e magia entre os Azande ([1937]
ca entre ele e o pássaro9 . Esse sentido de participa- 2005), travaram importantes diálogos com
ção implica uma união física e mística; não é uma Lévy-Bruhl – que, inclusive, o levariam a mo-
mera representação (metafórica). A mente primi- dificar seus pontos de vista e a esclarecer seu
tiva, disse Lévy-Bruhl, diferentemente de nossas posicionamento final em Les Carnets 12.
próprias noções de causalidade, é indiferente a As duas asserções mais interessantes do con-
causas “secundárias” (ou mecanismos de interfe- junto de textos de Lévy-Bruhl, em seu estado
rência): a conexão entre causa e efeito é imediata, final mais refinado, são as seguintes:
e elos intermediários não são reconhecidos. 1) A primeira é que aceitar as noções de uni-
Lévy-Bruhl considerou como exemplos de dade psíquica da humanidade e “estrutura funda-
participação fenômenos familiares tais quais tabus mental da mente” não coloca em risco sua tese de
e evitações, ritos de intensificação e ritos de separa- que representações coletivas de diferentes socie-
ção: ao descrevê-los como eventos que evidenciam dades poderiam ser construídas sobre premissas e
a participação entre os mortos – especialmente os categorias culturais muito diferentes da forma de

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pensamento e conhecimento matemático-lógico atividade, ou de uma forma de vida”. Voltaremos a


típica da ciência moderna – a qual, por sua vez, Wittgenstein nos próximos capítulos14.
também deve ser vista como um fenômeno co- Uma ideia sugestiva encontrada nos escritos
letivo. Disso depreende-se ainda que é possível de Lévy-Bruhl, que ele mesmo não desenvolveu
haver princípios de pensamento nos contextos so- sistematicamente, mas a Escola dos Annales ex-
cioculturais mais antigos ou pré-modernos cujas plorou, é a suposição de que se as representações
conexões e “lógicas”, ou coerências, são internas. coletivas são função das estruturas sociais, ou
Esses sistemas de pensamento seriam totalidades estão integralmente conectadas com elas, então
que se diferenciariam das nossas formas domi- à medida que estas estruturas sociais variarem,
nantes de pensamento moderno de tal maneira as representações coletivas a elas associadas tam-
que nossas teorias cognitivas e sistemas lógicos bém irão variar. Lévy-Bruhl sustentava que os
poderiam ser insuficientes para explicá-los. Em primitivos não comprovariam conexões causais
suma, é-nos proposto encarar a possibilidade de de modo científico, não por causa de deficiên-
que outras culturas, civilizações ou épocas possam cias em suas estruturas mentais individuais, mas
nos apresentar categorias e sistemas de pensamen- porque esse tipo de exame era impedido ou ex-
to alternativos: um extremo desafio a nossas capa- cluído por suas doutrinas sociais e pelos parâme-
cidades de empatia e tradução. tros de seus sistemas de conhecimento.
Contudo, não se espera que justamente no Lucien Febvre (1878-1956), fundador dos
mundo anglo-saxão, onde é latente o desconfor- Annales com Marc Bloch, expressamente in-
to com noções como “espírito”, “mentalidade” e vocou Lévy-Bruhl em seu famoso livro O pro-
“representações coletivas”, a tese de Lévy-Bruhl blema da incredulidade no século XVI ([1947]
tenha sido levada a sério. As aplicações mais signi- 2009), escrito com o intuito de refutar as teses
ficativas dessa primeira tese na escrita histórica fo- de Abel Lefranc, propostas em 1902, no sentido
ram feitas pela Escola Francesa conhecida como a de mostrar que a mensagem secreta dos ricos e
Escola dos Annales. Antes, porém, de me reportar exuberantes escritos de Rabelais era um ataque
às discussões de Lucien Febvre e Marc Bloch, que absoluto ao cristianismo15. Febvre começou por
prestaram reconhecimento a Lévy-Bruhl13, gosta- demonstrar que o pensamento livre anti-cristão,
ria de apontar para um desenvolvimento paralelo. como forma de ateísmo, era impossível na Fran-
Algumas décadas depois, tomaria forma alhu- ça do século XVI, dados os contornos e as limi-
res uma tradição filosófica em nada inspirada por tações da mentalidade coletiva predominante.
Lévy-Bruhl, mas que também viria nos confrontar Para mostrar que uma ruptura com o cristia-
com a questão da comensurabilidade e inteligibili- nismo era impossível no século XVI, ele docu-
dade de outras tradições nos termos das noções mo- mentou detalhadamente o lugar dominante da
dernas de explicação. Refiro-me, evidentemente, às religião na vida dos homens. Um cristão daquele
provocativas sugestões de Wittgenstein em Investi- tempo vivia toda sua vida – privada, profissio-
gações filosóficas (2005) – particularmente a noções nal e pública – envolto pelo cristianismo. “Pois
como “formas de vida”, “jogos de linguagem” etc., hoje”, afirmou Febvre, “escolhe-se. Ser cristão ou
que tiveram sérias implicações para os problemas não. No século XVI, não havia escolha” (FEB-
de relatividade entre culturas, tradução de culturas VRE, 2009, p. 292). O batismo, o sacramento
e entendimento de lógicas culturais. Um jogo de do casamento, os ritos fúnebres, as proibições
linguagem, afirmou ele, “deve conferir proeminên- alimentares eram todos orquestrados pela reli-
cia ao fato de que falar uma língua é parte de uma gião. A mediação dos santos era necessária para

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a cura; as peregrinações e os votos tinham de ser de julgá-los, que nenhuma destas palavras, em
feitos para expiar pragas e epidemias; os sinos da todo o caso, estava à disposição dos franceses
igreja proclamavam “da manhã à noite, em horas de 1520, de 1530, de 1540 ou de 1550 se eles
conhecidas, a sucessão das preces e dos ofícios” quisessem pensar e traduzir seus pensamentos
(FEBVRE, 2009, p. 298). Até mesmo as gradu- em francês, para franceses” (FEBVRE, 2009, p.
ações acadêmicas não eram meros exames, mas 309). As palavras que se apresentavam aos fran-
atos religiosos: o candidato defendia sua tese de ceses do século XVI quando raciocinavam “não
frente para o altar – mesmo sendo luterano –, eram palavras feitas para raciocinar, nem para
em uma cerimônia de grande pompa, entre uma explicar, nem tampouco demonstrar”. E apesar
missa e uma ação de graças. “Essa religião, o cris- de os franceses dominarem o latim à época, se-
tianismo, é o manto da Virgem de Misericórdia, quer ele lhes teria servido para melhor filosofar.
tão frequentemente representada então em nossas Em vez de resumir os principais argumentos
igrejas. Todos os homens, e de todos os estados, de Marc Bloch em Os reis taumaturgos ([1924]
abrigam-se sob esse manto. Pretender escapar 1993), prefiro dirigir-me à discussão de Trevor-
dele? Impossível. Aconchegados sob essas pregas -Roper acerca da caça às bruxas do século XVII.
maternais, os homens nem sequer sentem que Este brilhante e eclético historiador volta-se para
lhes são prisioneiros. Para insurgir-se seria preciso, o conceito de mentalité de Lucien Febvre para ar-
primeiro, espantar-se” (FEBVRE, 2009, p. 304). gumentar que a caça às bruxas é compreensível
Febvre, então, enfoca uma requintada docu- apenas se localizada em uma cosmologia e em
mentação para explicar “de que tipo de clareza, um modo de pensamento e ação totalizantes.
compreensão e eficácia” o pensamento humano Valendo-me da terminologia de Thomas Kuhn:
era capaz no século XVI. Ele afirma que as se- Trevor-Roper parece dizer que a caça às bruxas fa-
guintes palavras estavam ausentes do vocabulário zia parte de todo um “paradigma” e que parece ter
daquele século: adjetivos como “absoluto” ou “re- sido necessária uma mudança total de paradigma
lativo”; “abstrato” ou “concreto”; “intencional”, (ou mentalidade) antes que um outro tipo de ra-
“inerente”, “transcendental”; substantivos como zão e racionalidade pudesse prevalecer na Europa.
“causalidade” e “regularidade”; “conceito” e “crité- A interpretação de Trevor-Roper acerca da caça
rio”; “análises” e “sínteses”; “dedução” e “indução”, às bruxas europeia enfatiza dois pontos principais:
“coordenação” e “classificação”; e esta ausência, o primeiro deles é que a crença nas bruxas, daque-
do ponto de vista do pensamento filosófico mo- le tempo, deve ser alocada em seu contexto geral, e
derno, constituiria uma “deficiência ou lacuna de isso exige que a vejamos também como parte inte-
pensamento” (FEBVRE, 2009, p. 308). grante de toda a cosmologia de seu tempo e como
Até mesmo a palavra “sistema” apenas pas- parte das arraigadas formas sociais ancoradas em
sou a ser usada em meados do século XVII. “Ra- atitudes sociais não menos consolidadas. Portan-
cionalismo” por sua vez, só se cristalizou como to, parece artificial descolar as crenças na bruxaria
expressão bem tardiamente no século XIX. De de seu contexto e perguntar como elas puderam
maneira semelhante, faltavam ao vocabulá- ser tomadas por verdade dados seus absurdos
rio daquele tempo todos os -ismos: “Teísmo”, manifestos quando vistas a partir dos padrões
“Panteísmo”, “Materialismo”, “Naturalismo”, “racionais” dos dias de hoje. Trevor-Roper afirma
“Fatalismo”, “Determinismo” (que viria depois, que seria equivocado considerarmos a “razão” e a
com Kant), “Ceticismo” (este começou com “lógica” atuais como um sistema independente,
Diderot) e “Idealismo”. “Imaginemos, antes autocontido, de validade permanente. “Nós reco-

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nhecemos que até mesmo o racionalismo é relati- Um comentário sobre Robin Horton
vo, que ele opera dentro de um contexto filosófico
geral e não pode ser descolado deste contexto” Um ensaio de Horton17 argumenta que o “pen-
(TREVOR-ROPER, 1969, p. 105) 16. samento teórico” em nossa cultura ocidental tem
O corolário dessa perspectiva holista é que as um equivalente africano, cuja diferença residiria
crenças e práticas relacionadas à bruxaria, bem apenas no fato de estarem ancorados em idiomas
como os excessos dos séculos XVI e XVII, não distintos. Mas há um porém nessa analogia, pre-
poderiam ser desmanteladas ou erradicadas iso- judicial, em última instância, não apenas ao pen-
ladamente, mas apenas se todo o contexto des- samento africano mas a todos os outros sistemas
sas visões de mundo fosse revisto. A menos que de pensamento que não o moderno “científico”.
ocorresse uma transformação social, as bases so- A visão idealizada de ciência, contida em Horton
ciais das crenças iriam continuar e, a menos que e herdeira de Karl Popper, se esquiva de Kuhn. O
ocorresse uma mudança decisiva em toda a cos- ensaio de Horton nos confronta com a seguinte
mologia, as crenças continuariam intactas. Para questão: seriam as cosmologias populares africanas
destruir o mito, para drenar a poça envenenada, e os sistemas científicos especializados ocidentais
todo o intelecto e a estrutura social que os con- passíveis de comparação, ou a relação entre eles se-
têm e que se solidificaram à sua volta teriam de ria de “exclusividade incomensurável”, para tomar
ser quebrados. Assim, quando a mudança veio, emprestada a expressão de Bernard Williams?
ao final do século XVII, ocorreu uma “revolução A tese de Horton é a seguinte: as cosmologias
filosófica que mudou todo o conceito de Natu- africanas têm como propósito a explicação da
reza e suas operações”, dando início ao moderno vasta diversidade de experiências cotidianas em
“racionalismo” e rejeitando o fundamentalismo termos da ação de alguns poucos tipos de força.
bíblico. A última vitória, que liberou a natureza Tais forças seriam os deuses personificados. Assim
do fundamentalismo bíblico, veio, de um lado, como átomos, moléculas e ondas são conceitos
através dos pietistas alemães e dos deístas ingle- revestidos de um idioma impessoal nas teorias
ses (os herdeiros dos hereges protestantes do sé- científicas modernas, os deuses revestem-se de um
culo XVII) e, de outro, de Descartes e suas leis idioma pessoalizado na África e são de fato cons-
“mecânicas” universais da natureza. trutos teóricos que representam, ou introduzem,
Esses métodos interpretativos, que colo- restrições ordenadoras e reguladoras. O idioma
cam Lucien Febvre, Marc Bloch (e a Escola teórico africano é marcado pelo modo personifi-
dos Annales de uma forma geral), o segundo cado porque, para os africanos, as relações sociais
Wittgenstein e recentemente Foucault, e até são a principal fonte de preocupação e de senso de
mesmo Frances Yates no mesmo campo, soam- ordenamento da realidade, enquanto o mundo da
-me avassaladoramente antitéticos em relação natureza é estranho e escapa ao seu controle. O
às comparações entre o pensamento africano idioma científico ocidental moderno é marcado
(e primitivo em geral) e o pensamento ociden- pelo modo impessoal porque nele ocorre o con-
tal, nas quais o antropólogo Robin Horton se trário – a natureza e seus trabalhos são mais com-
engajou – comparações estas que não se ampa- preensíveis, e fornecem o idioma da causalidade
ram em análises linguísticas refinadas de cons- mesmo no que diz respeito às relações sociais, que
trutos intelectuais e não são suficientemente são menos compreensíveis e menos previsíveis.
sensíveis à questão da comensurabilidade entre Existe uma tendência a aplaudir a consciên-
diferentes mentalidades. cia liberal nessas assunções, embora seu perigo

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seja iminente. Tendo estabelecido sua compara- teorizar ingenuamente, ou o faziam em busca de
bilidade “analogicamente”, somos informados seus próprios valores e interesses?
de que no final das contas o pensamento teóri- 2) O segundo principal legado do pensa-
co africano é inferior ao pensamento científico mento tardio de Lévy-Bruhl foi o postulado de
ocidental – ou seja, o pensamento africano não duas mentalidades coexistentes na humanidade
é reflexivo ou crítico; é fechado, e não aberto; em todo lugar – a mentalidade mística e a men-
é incapaz de lidar com concepções alternativas talidade lógico-racional, embora seu peso e pre-
ao seu dogma; ignora o método experimental ponderância relativos possam diferir dos tempos
e o conceito de acaso; recorre a racionaliza- primitivos aos tempos modernos. Em Les Car-
ções secundárias para proteger suas premissas, nets, Lévy-Bruhl sugeriu existir uma mentalidade
em vez de confrontar-se de forma corajosa mística presente em toda mente humana, embo-
com a falseabilidade. Horton certamente teria ra fosse mais marcada e mais facilmente observá-
sido repreendido, tivesse ele se deparado com vel entre os primitivos do que no nosso tempo.
a apresentação de Kuhn sobre os estratagemas Essa experiência mística seria tocada por uma
convencionalmente empregados pelos prati- emoção característica: o sentimento da presença
cantes da ciência normal contemporânea para e da ação de um poder invisível, ou do conta-
manter seus pensamentos intactos18. to com uma realidade que não a que está dada
À luz de minhas referências a Febvre (e a Tre- nas circunstâncias reais ou cotidianas21. Ele foi
vor-Roper) e outros retratistas de mentalidades mais além ao argumentar que essas experiências
holísticas, sensíveis à tradução de conceitos e resis- de participação estariam progressivamente sujei-
tentes a comparações parciais descontextualizadas, tas, no pensamento ocidental, a demandas que
espero ter deixado claro o porquê de a comparação as considerem em termos lógicos – desenvolvi-
feita por Horton parecer-me mal colocada e equi- mento que colocou a metafísica em uma situa-
vocada. (Ela também se choca, como meu capítu- ção difícil. Mas Lévy-Bruhl afirmou e advertiu:
lo sobre Tylor 19 deve deixar claro, com o espírito “Em toda mente humana, qualquer que seja seu
das ideias tylorianas. Para Tylor, a relação entre a desenvolvimento intelectual, subsiste um inex-
ideia de sobrenaturezas personalizadas e os concei- tinguível fundo de mentalidade primitiva (...)
tos da ciência era de antítese e irreconciliabilidade. É provável que ele jamais desapareça ... Porque
Assim, a reivindicação de Horton de ser um bom com isso talvez também desaparecessem a poesia,
neo-tyloriano também é questionável, da mesma a arte, a metafísica e a invenção científica – em
maneira como sua interpretação de Durkheim é suma, quase tudo que é responsável pela beleza
parcial e tendenciosa)20. Em última análise, Hor- e grandiosidade da vida humana”. Ela [a men-
ton precisa ser visto como assumindo um ponto talidade primitiva] “representa algo fundamental
de vista intelectualista frazeriano: na medida em e indestrutível na natureza do homem” (LÉVY-
que a religião africana volta-se para a explicação -BRUHL apud NEEDHAM, 1972, p. 166).
e o controle da natureza, ela é mal direcionada e Então, é em relação a essa dita co-presença de
falaciosa. Há aqui, contudo, um irônico contraste duas mentalidades do homem que podemos nos
com as ideias de Frazer, que pensava a magia, e voltar de forma significativa para alguns pontos
não a religião (cuja base estaria localizada na psi- do diálogo entre Evans-Pritchard e Lévy-Bruhl,
cologia individual) como irmã bastarda da ciên- ocorrido em 1934, alguns anos antes da publica-
cia. Pode-se também colocar a Horton a seguinte ção de Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande
questão: os africanos praticavam a religião para ([1937] 2005)22. Endossando o apelo de Malino-

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wski por uma etnografia totalizante, Evans-Pri- um ponto que também preocupou Malinowski24
tchard apontou o perigo da dupla seleção pela – nas quais uma pessoa pode, num certo contexto,
qual se descrevem os selvagens inteiramente em comportar-se de maneira mística, e então mudar,
termos de suas crenças místicas, ignorando mui- noutro contexto, para uma enquadramento práti-
to de seu comportamento empírico no cotidia- co, empírico e cotidiano da mente. (Por exemplo,
no; e com base na qual os europeus são descritos o espaço habitacional de um grupo nuer contém
inteiramente nos termos do pensamento cientí- santuários para seus ancestrais – num momento
fico lógico-racional, quando eles tampouco ha- específico, esses objetos e o espaço ao seu redor
bitam esse universo mental o tempo todo. Dessa tornam-se sagrados e os espíritos dos ancestrais são
maneira, deveríamos evitar caricaturas, tanto da neles imanentes; mas fora do palco dos rituais, os
mentalidade primitiva quanto da moderna, e não mesmos objetos são tratados casual e fortuitamen-
deveríamos representar os ocidentais como pen- te). Portanto, parece que é esse contexto – no qual
sando cientificamente o tempo todo, porquanto se evocam atitudes sagradas e ocorrem mudanças
a atividade científica é a exceção, praticada em de código – que permanece para nós como princi-
circunstâncias muito específicas. Devem-se com- pal fenômeno a ser interpretado.
parar iguais com iguais: o nosso pensamento Ora, a ideia de duas (ou mais) mentalida-
cotidiano com o deles23. Além disso, Evans-Pri- des simultaneamente presentes na humanidade
tchard acusou Lévy-Bruhl de não ter distinguido pode ser levada ainda mais adiante. Para tanto,
os vários níveis e estilos de pensamento entre os é preferível substituir o termo “mentalidades”
segmentos sociais das sociedades ocidentais mo- pelo termo “múltiplas orientações de realida-
dernas, nas quais os intelectuais pensam de for- de”, ou “ordenamentos de realidade”, para evi-
ma diferente dos camponeses, e assim por diante. tar qualquer ênfase indevida ao “caráter inato”
Pode-se, aliás, apontar que basicamente a mesma das coisas e incluir a construção social dos sig-
crítica foi levada a cabo por E. P. Thompson à nificados e sistemas de conhecimento.
forma como Keith Thomas deu conta das mu- Para fazer jus a essa questão, devo incursionar
danças nas ideias sobre religião e magia no sé- por diversos terrenos de pensamento – como as
culo XVII e nos seguintes. Novamente, tivesse ideias psicanalíticas de Freud, as teorias estéticas de
Lévy-Bruhl também discutido as mudanças nos Suzanne Langer, as especulações fenomenológicas
padrões europeus diacronicamente, quer dizer, de Alfred Schutz, a tese psicológico-desenvolvi-
as mudanças manifestas na mesma sociedade em mentista feminista de Carol Gilligan, as compa-
diferentes momentos de sua história, ele poderia ração entre os processos de desenvolvimento do
ter evitado uma dicotomia demasiado simplista. ego indiano e ocidental de Sudhir Kakar e os mo-
Em suma, a crítica de Evans-Pritchard, que dos de construção de mundos como retratado por
Lévy-Bruhl conheceu em grande medida em sua Nelson Goodman. Essa jornada nos indicará onde
maturidade, antecipou duas ideias, que não eram ocorrem certas convergências de pensamento, e
tão originais quanto oportunas, somando-se a talvez, ainda mais importante do que isso, quanto
uma confluência de ideias já em voga. Uma delas é mais precisamos saber antes de podermos apreciar
que o pensamento místico e o científico poderiam o enigma das faculdades humanas e da diversidade
ser melhor comparados como sistemas ideacionais de seus ordenamentos de realidade.
normativos na mesma sociedade, especialmente se É inegável que, em termos das posições pro-
contemporânea. A segunda é que nós deveríamos eminentes na filosofia da ciência atualmente, das
ser especialmente sensíveis às situações – e este foi propriedades da linguagem (especialmente como

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enunciadas por Chomsky) e da natureza das ope- discursivo, verbal e segue as leis da lógica formal.
rações simbólicas humanas, as ideias de Freud, Já os processos primários são característicos do
Langer e Schutz teriam de ser modificadas e rein- pensamento inconsciente, por sua vez, não dis-
terpretadas, e as inadequações de alguns outros cursivo, condensado, icônico e que não considera
autores, expostas. Tal aproximação crítica, en- as categorias de espaço e tempo. Em Interpretação
tretanto, poderá ser mais bem trabalhada depois dos sonhos (1987), Freud descreve os processos de
de esboçados os pontos de vista desses autores e formação e reminiscência dos sonhos em termos
apontadas as interessantes convergências entre dos conceitos de condensação, deslocamento,
eles e as concepções de Lévy-Bruhl. representabilidade, revisão secundária e assim
por diante. São as estruturas não discursivas e de
A interpretação dos sonhos de Freud condensação dos sonhos que os separam drama-
ticamente da estrutura linear do pensamento ló-
Ruth Bunzel diz-nos que Lévy-Bruhl, ten- gico analítico. Os elementos dos pensamentos do
do conhecido Freud, não poderia ignorar seus sonho, segundo Freud, estão sob a pressão “con-
escritos. Ela observa: “O pensamento de Freud torcida, fragmentada e acumulada – quase como
corre paralelo ao de Lévy-Bruhl de muitas ma- placas de gelo em banquisas sobre o oceano” – da
neiras: na ênfase em fontes de comportamento prática onírica. Em outras palavras, o sonho faz
não-racionais, no papel do inconsciente em as relações lógicas colapsarem, ou no mínimo ele
estruturar as percepções da realidade, na im- não dispõe de nenhum meio para representar re-
portância dos mecanismos de projeção, intro- lações como as de “e se”, “porque”, “tais como”,
jeção e identificação que engendram a relação “isso ou aquilo” e relações de “causa”, “conexão”
do homem com seus significados de mundo”25. e “contradição”.
Lévy-Bruhl, ao abordar o problema dos pro- Assim sendo, nos sonhos, vários recursos
cessos psíquicos por meio da filosofia e da antropo- apresentam-se como dispositivos auxiliadores
logia, desenvolveu o conceito de uma mentalidade para expressar relações entre pensamentos oní-
pré-lógica imbuída de emoção. Freud, ao abordar ricos: conexões lógicas podem ser sugeridas por
o problema das percepções da realidade por meio simultaneidade no tempo (ex.: contiguidade
da prática psiquiátrica, estava desenvolvendo seu espacial como equivalente à continuidade tem-
conceito de “processos primários” – o pensamen- poral: duas coisas acontecendo juntas implicam
to não racional que delineia os sonhos. Afirma-se sua adjacência no espaço e vice-versa). Uma rela-
que cada um deles contribuiu, à sua maneira, para ção causal pode se expressar de diversos modos.
um melhor entendimento de como as pessoas – Apresento dois exemplos: a) introduzindo uma
não apenas os “nativos” – pensam. cláusula dependente como um sonho introdu-
Parece-me que agora é pertinente direcio- tório e a cláusula principal como o sonho mais
nar nossa atenção ao clássico livro de Freud A importante. (ex.: “sendo isso verdade, aquilo e
Interpretação dos Sonhos (1987) e ver que tipos aquilo outro estariam destinados a acontecer”);
de comparações podem ser feitas entre as no- b) uma imagem em um sonho, quer uma pessoa,
ções freudianas de processos “primários” e “se- quer uma coisa, como sendo transformada em
cundários” das funções mentais e os modos de outra. A noção de contradição pode ser repre-
pensamento místico e lógico de Lévy-Bruhl. sentada por uma inversão. (ex.: um pedaço do
Os processos secundários, segundo Freud, são conteúdo do sonho é invertido). A identifica-
encontrados no pensamento consciente, que é ção pode ser concebida como uma relação (en-

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tre apenas uma pessoa e um elemento comum) nova Chave ([1942] 2004) e Sentimento e for-
cujo conteúdo representa o conteúdo do sonho. ma ([1953] 2006), entre a forma discursiva da
Reciprocamente, uma figura composta pode ser linguagem e a forma de apresentação das artes
construída para representar uma nova unidade (dança, música, pintura).
de traços compartilhados por uma coletividade. Em Filosofia em nova chave (2004), Suzan-
Ora, Freud é, ao mesmo tempo , intrigante e ne Langer escreve sobre a linguagem discursiva:
controverso em sua tentativa (frouxa) de ligar os “(...) as palavras têm uma ordem linear, discreta,
processos inconscientes do sonho aos processos de sucessiva; estão enfiadas uma após outra, como
simbolização nas artes criativas. Ele menciona que contas de um rosário (...) não podemos falar em
“o trabalho das artes plásticas da pintura e da escul- feixes de nomes simultâneos” (LANGER, 2004,
tura, está, de fato, sob uma limitação semelhante p. 89). Formas visuais, em comparação – linhas,
àquela da prática onírica se comparada à poesia, cores, proporções, igualmente capazes de arti-
que por sua vez pode se valer de enunciação”. Aqui, culação – diferem totalmente das leis de sintaxe
Freud alude a Gregory Bateson (1972)26, que dis- que governam a linguagem. Formas visuais “não
tingue entre o código verbal (ou digital) e icônico apresentam seus componentes sucessiva, mas si-
(ou analógico) e relaciona esta dualidade aos ní- multaneamente, de maneira que as relações de-
veis consciente e inconsciente da mente. Bateson terminantes de uma estrutura visual são captadas
(1972) argumenta que as mensagens e os sentidos em um ato de visão” (LANGER, 2004, p. 100)28.
comunicados pelas artes, como o movimento ci- Poderemos então, perguntar de que modo
nético e motor da dança ou as representações da as leis de participação de Lévy-Bruhl podem ser
pintura, são atingidos, ao menos parcialmente, similares a alguns processos representacionais do
pelo nível do inconsciente, ou na interface entre pensamento inconsciente (como identificação,
o consciente e o inconsciente. Bateson sublinha o fusão e condensação) e ao das artes de apresenta-
ponto anteriormente enunciado por Freud, de que ção, tais como desenvolvidos por Freud, Bateson e
os dispositivos da linguagem proposicional e do Langer? Fico tentado a dizer que o que Lévy-Bruhl
discurso verbal – tais como modos verbais, negati- se esforçou para caracterizar como processos de
vos simples, marcas modais – não estão disponíveis participação e orientação mística está em concor-
para comunicações icônicas, como a dança. Ao dância com os processos de codificação icônicos
mesmo tempo, as formas artísticas são capazes de e de apresentação, como propostos por Langer,
comunicar com intensidade uma experiência in- Freud e Bateson. Além disso, essa questão tem
disponível, ordinariamente, para o discurso verbal. potencial para ser testada em outros escritos.
Isso é vividamente transmitido pelo depoimento Mas antes de fazer isso, é necessário avaliar cri-
de Isadora Duncan de que “se eu pudesse dizer ticamente as proposições de Freud e Langer em
o que significa, dançar não faria sentido algum”. termos das teorias linguísticas e semióticas que
Foi muito satisfatório encontrar pelo caminho têm sido formuladas por seus sucessores e, depois
o depoimento consciente daquela que talvez foi disso, resgatar dessa crítica certas concepções que
uma das maiores artistas da dança contemporânea, podem ser sustentadas em uma forma revista.
Martha Graham: “Eu não quero me fazer enten-
der, eu quero me fazer sentir”27. Uma crítica a Langer e Freud
Tudo isso, significativamente, se não exata e
logicamente, liga-se com o contraste proposto No que concerne às concepções de Freud
pelos trabalhos de Suzanne Langer: Filosofia em sobre os processos primários, a questão que de-

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vemos levantar é como podemos correlacionar que existem dois modos de arranjo do compor-
significativamente as atividades inconscientes tamento verbal: seleção e combinação. Ao atestar a
dos sonhos com os processos conscientes predo- seleção como “produzida na base da equivalência:
minantes, mas não exclusivos, da criação artística similaridade e dissimilaridade, sinônimo e antôni-
e da enunciação. Seriam os processos de simbo- mo; e a combinação como a construção da sequ-
lização no sonho semelhantes ou iguais aos da ência baseada na contiguidade”, Jakobson definia
criação artística? Afinal de contas, a motivação a “função poética” como “projeção do princípio de
para a substituição e a condensação durante o equivalência do eixo da seleção ao eixo da combi-
sonho é “censurada” pelo superego, enquanto a nação” (JAKOBSON, 1960, p. 358).
motivação para as representações artísticas reside Mesmo o discurso cotidiano, postas de lado
no “realce” e na “intensificação” do significado e as trabalhadas obras literárias, não se esquiva
dos padrões emotivos. Em que consiste a dife- das características que Langer atribui somen-
renciação da simbolização quando ela ocorre – te às formas artísticas de apresentação e que
como é frequente na arte – de forma consciente Freud associa somente às formas inconscientes
e criativa e emerge como metáfora, e quando ela dos processos primários. Assim como Freud
ocorre inconscientemente, sob as limitações do não atentava inteiramente para os processos de
sonho, e emerge como imagem onírica? Acre- simbolização consciente empregados nas artes
dita-se que a simbolização seja uma capacidade criativas, Langer opôs expressamente os proces-
geral da mente humana, usada tanto consciente sos envolvidos na compreensão de discursos da
quanto inconscientemente, na vigília e no sono, fala às apresentações de formas visuais29.
de maneira neurótica ou criativa, no discurso e Um sistema de signos ou mídia pode ter múl-
na escrita, nas artes e nas ciências, com ou sem tiplas capacidades representativas e funções co-
insights sobre suas possibilidades e implicações. municativas. Se o leitor quiser, em relação a este
Além disso, mesmo no sistema freudiano, o ponto, lembrar a semiótica de Peirce, especial-
consciente e o inconsciente relacionam-se diale- mente o tratamento que ele dá à tríade de signos
ticamente na maior parte de nossa vida desperta, classificados como símbolo, ícone e índice e suas
mesmo que só parte de nossa vida mental esteja intersecções e combinações, veremos de manei-
aberta a articulações conscientes. ra mais clara que uma mídia como a linguagem
Tanto a caracterização da linguagem de presta-se a múltiplas modalidades representati-
Langer, quanto a de Freud, como exclusivamen- vas e funções comunicativas. O mesmo ocorre
te linear, discursiva e conformada às leis da lógica para formas visuais como a pintura e os desenhos
são concepções por demais estreitas. Mesmo que, gráficos. (A música, no entanto, como uma for-
no discurso e na escrita a linguagem se desenvol- ma de arte sonora, é primeiramente uma mídia
va de uma maneira linear, as regras sintáticas (e “não representacional” e tem suas capacidades e
gramaticais) que geram os atos do discurso e as padronizações específicas, através das quais per-
sentenças são recursivas, combinatórias e ordena- forma seus efeitos). Finalmente, dadas as suas po-
das hierarquicamente (como Chomsky demons- tencialidades, é possível inter-relacionar estes (e
trou). A estrutura da poesia, como, por exemplo, outros) sistemas de signos e mídia em totalidades
canonizada por Roman Jakobson, dificilmente complexas como performances teatrais, rituais,
pode ser descrita em termos da sucessão linear e exposições científicas e feiras comerciais.
discursiva de palavras. Jakobson nos lembrou que As categorias semióticas de Peirce também nos
a comunicação verbal possui múltiplas funções e permitem arranjar os signos em um continuum de

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acordo com suas capacidades representacionais e dois polos de um continuum, gostaria de retomar
comunicativas. Em um extremo, podemos colo- outros escritos que tiveram como tema central o
car os signos ou complexos de signos que são usa- posicionamento de duas ou mais mentalidades,
dos em um contexto particular, principalmente modos de construção e experimentação da rea-
em sua capacidade referencial para transmitir in- lidade ou modos de fazer-o-mundo. Esses escri-
formações de modo científico; no outro extremo, tos nos permitem continuar a discutir questões
os signos usados principalmente por sua capaci- levantadas por Lévy-Bruhl.
dade em comunicar sensações de um modo de
apresentação ou participativo. Como exemplos do
primeiro modo, podemos apontar um depoimen- As duas vozes de homens e mulheres
to de um físico acerca de um experimento, ou um
argumento proferido por um lógico. Um poema Façamos uma pausa para olhar a recente
ou uma ficção comporiam o segundo modo. Um discussão proposta por Carol Gilligan em In a
desenho da ponte do Brooklyn por um engenhei- Different Voice (1982)30, em que ela fala sobre
ro está mais perto do polo referencial e icônico, dois modos segundo os quais homens e mu-
enquanto um pintor inspirado em uma noite lheres descrevem suas relações interpessoais e
estrelada está mais próximo do polo sensorial. A preocupações morais.
dança, a música, a escultura, a pintura, a ópera, Essa discussão nos é pertinente porque Gilli-
prestam-se mais a efeitos estéticos, polivalentes e gan identifica o que foi previamente classificado
participativos do que à clareza e transparência de como racionalidade discursiva, lógica, competitiva
propósitos referenciais e de informação. Dito isso, e instrumental não somente como a voz masculi-
eu gostaria de introduzir aqui um ponto que espe- na, mas também como a ideologia dominante dos
ro desenvolver mais à frente: a mídia comunicativa Estados Unidos; e ela identifica as conexões morais
ou o sistema de signos, tais como a fala, a escrita, a e a expressa preocupação com os relacionamentos
música, as canções, a dança, a pintura, a escultura em termos de intimidade e cuidado não só como
e outros canais auditivos, visuais, tácteis, olfativos a voz feminina, mas também como a ideologia
e gustativos podem ser implantados sozinhos ou oprimida e subordinada da nossa sociedade. As-
em combinação para maximizar diferentes men- sim, Gilligan propõe duas vozes, diferenciadas por
sagens e seus efeitos, os quais, para nossos propósi- sexo ou gênero, dentro de uma mesma sociedade.
tos, eu colocaria em dois polos (de um continuum) Consideremos a proposta de Gilligan. Ela
– o referencial, informacional, “científico”, lógico, critica as teorias reinantes na psicologia desen-
causal; e o sensório, polivalente, de apresentação e volvimentista, formulações características de
participatório. Além disso, esses efeitos e propósi- teóricos homens, que adotaram o ciclo mascu-
tos podem ser mais bem atingidos de acordo com lino da vida como descrição normativa. Freud,
a maneira pela qual um sistema comunicativo im- Piaget, Kohlberg e Erikson: todos comparti-
plementa e enfatiza as potencialidade das mídia e lham desse viés. Freud construiu sua teoria do
de canais auditivos, tácteis, temporais ou espaciais. desenvolvimento psíquico-sexual em torno das
Tendo feito esses esclarecimentos e revisões experiências de uma criança do sexo masculino
de Freud e Langer, após sugerir ser ainda possível que culminou no complexo de Édipo; a ligação
contemplar a possibilidade de dois sistemas co- das mulheres às suas mães e a exclusão do surgi-
municativos ou dois discursos retratarem diferen- mento e resolução do complexo de Édipo foram
tes orientações do mundo, sendo esses sistemas vistas como sinal de retardo no desenvolvimento

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do superego e seu senso de justiça legal. Uma e da autonomia, pode ser contraposta a “mora-
suposta falha das mulheres em se separarem e se lidade da responsabilidade” feminina, que pre-
individualizarem cedo na vida é vista, por defi- za, primeiramente, pela conectividade e pelos
nição, como uma falha em se desenvolver. relacionamentos.
De maneira similar, as conclusões de Piaget, A primeira orientação reflete “a lógica da
a partir do estudo de regras de brincadeiras en- abordagem da justiça” com um ordenamento hie-
tre meninos e meninas, conferem destaque aos rárquico de regras, enquanto a segunda reflete a
garotos, que desde cedo seriam fascinados pela “ética do cuidado e da responsabilidade”, sensível
elaboração de regras e pelo desenvolvimento de à potencialidade dos conflitos de fragmentar as
procedimentos baseados na justiça e na pragmáti- relações humanas e, portanto, atenta à preserva-
ca para sanar conflitos. Nesse mesmo rastro, Kohl- ção dessas relações a todo custo, sem proferir juí-
berg observa que “ao invés de elaborar um sistema zos absolutos. Essa instância feminina, que define
de regras para solucionar disputas, as meninas o “eu” através de conexões e analisa problemas em
subordinam a continuação do jogo à continuação termos de redes de relações, mesmo relutante em
dos relacionamentos” (GILLIGAN, 1982, p. 10). generalizar e categorizar, tem um sofisticado en-
Por fim, os estágios de desenvolvimentos psicosso- tendimento sobre a natureza das escolhas.
ciais de Erikson acentuam a individuação durante Há alguns problemas inerentes ao livro de
o desenvolvimento da identidade na adolescência, Gilligan, como o apresentamos. Com o intuito
e essa celebração de individuação, autonomia e se- de esclarecimento, é desejável diferenciar os con-
paração coloca as meninas em uma posição subor- ceitos de “ideologia” e de “propensões inatas”, e
dinada por sua carência. A orientação machista da também especificar como “voz” se relaciona com
tese de Erikson vê a identidade masculina como ambos. Tampouco me é claro se as vozes mascu-
forjada nas relações com o mundo e a feminina, à lina e feminina de que ela trata aplicam-se apenas
espera do despertar de um relacionamento íntimo aos Estados Unidos – e nesse caso a diferença dos
para se desenvolver. atributos de gênero é, pelo menos parcialmente,
Gilligan, com base em sua própria pesquisa uma função das circunstâncias e práticas cultu-
e no trabalho de outras psicólogas, defende uma rais, sociais e político-econômicas etc. – ou se re-
apreciação e, portanto, uma caracterização posi- metem universalmente a diferenças sexuais entre
tiva da força moral da mulher – de como seu en- homens e mulheres e, nesse caso, haveria uma
volvimento pessoal e sua incansável preocupação sugestão de diferenças e estruturas inatas (o códi-
com relacionamentos e responsabilidades não go genético). Toda generalização, evidentemente,
parecem um estágio inferior numa sequência que coloca em perigo muitas das recentes reivindica-
culminaria na individuação, no legalismo, nas ções feministas sobre a equidade de habilidades e
capacidades instrumentais masculinas; mas sim aptidões entre homens e mulheres e as necessá-
um amadurecimento em seus próprios termos. rias ações afirmativas. Soa irônico, então, quando
Assim, essas duas orientações morais e inte- Gilligan diz que “num tempo em que se esforça
lectuais, masculina e feminina, podem ser carac- para erradicar a discriminação entre os sexos na
terizadas como formulações contrastivas, porém luta por igualdade social e justiça, as diferenças
igualmente maduras, cada qual à sua maneira. entre os sexos estão sendo redescobertas nas ciên-
À “moralidade dos direitos”, assentada no cias sociais” (GILLIGAN, 1982, p. 06).
masculino, com sua preocupação com a indivi- Kristeva pensa que uma posição maniqueísta
duação e a definição de si através da separação não faz jus à questão. Se as mulheres dizem que

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devem se apropriar do “aparato lógico, dominante, enfrentam o problema de que, ao manter esses
científico e teórico” dos homens e tornar-se tam- relacionamentos, mascaram seus desejos e con-
bém médicas e teóricas, então é difícil defender, flitos e devem encarar a confusão sobre o locus
simultaneamente, a particularidade das mulheres. da responsabilidade e da verdade. “A experiência
Ao caracterizar as diferenças entre homens e crítica, então, torna-se não intimidade, mas esco-
mulheres em termos de dois tipos de discurso, lha, ao criar um encontro com o self que esclarece
Kristeva descreve o dilema das mulheres: uma o entendimento de responsabilidade e de verda-
mulher pode enquadrar-se no de” (GILLIGAN, 1982, p. 163-164). Então, os
dois modos disparatados de experiência estão,
discurso dominante – teórico, científico – e a partir no fim das contas, integralmente conectados. A
disso, encontrar um lugar extremamente gratifican- retórica de Gilligan funciona: “Enquanto uma
te na sociedade, mas em detrimento de expressar ética da justiça for orientada por uma promessa
seu pertencimento individual e particular de mu- de equidade – de que todos devem ser tratados
lher. Baseado neste fato, parece-me então que não como iguais –, uma ética do cuidado repousará
se deve tentar negar os dois aspectos da comunica- na premissa da não violência – de que ninguém
ção linguística – o aspecto dominante e o aspecto deve sofrer” (GILLIGAN, 1982, p. 174).
que remete ao corpo e aos impulsos – mas tentar,
em cada situação, para cada mulher, encontrar uma O mundo interior dos indianos e o
articulação própria entre esses dois elementos... Pen- mundo exterior dos ocidentais
so que é dado o momento em que não mais deve-
mos falar por todas as mulheres. Temos que falar Por ser um pesquisador comparativo e asiáti-
das mulheres como indivíduos, e do lugar de cada co, chamou-me à atenção uma nativa e sensível
uma dentro de cada um desses dois polos. Um dos interpretação da personalidade indiana, feita de
perigos mais graves do feminismo é o impulso à ge- uma maneira próxima à abordagem de Gilligan.
neralização (BARUCH E MEISEL, 1984, p. 123). Em The Inner World, A Psychoanalytic Study of
Childhood and Society in India (1978)31, Sudhir
De qualquer modo, é interessante recordar Kakar faz uso da terminologia de Freud e Eri-
que Gilligan, ao final, propõe uma dupla passa- kson ao dizer que “na Índia, o processo de de-
gem ideal no desenvolvimento das carreiras de senvolvimento do ego se dá de acordo com um
homens e mulheres, nas quais ambas as vozes, de modelo que difere nitidamente do dos psicólo-
homens e de mulheres, são restauradas. No caso gos ocidentais. (...) O processo de diferenciação
do homem, o poder e a separação asseguram-lhe por que passam as crianças [indianas] em relação
sua identidade por meio do trabalho, mas dis- a suas mães (e, consequentemente, a separação
tanciam dos outros: relações de intimidade tor- entre o ego e o id) é estruturalmente mais fraco e
nam-se experiências críticas que trazem o “eu” de cronologicamente tardio em relação às crianças
volta à conexão com os outros. Por isso, é a inti- do ocidente”. O resultado é que “os processos
midade a experiência transformadora para o ho- mentais característicos da simbiose da infância
mem, através da qual a identidade adolescente se assumem um protagonismo relativo na persona-
metamorfoseia na generalidade do amor adulto e lidade dos adultos indianos” (KAKAR, 1978).
se alinha com o trabalho. As mulheres, por ou- Quer dizer, os processos mentais primários
tro lado, tendem a definir sua identidade através (nos quais o pensamento é representacional e afeti-
das próprias relações de intimidade e cuidado; e vo, amparado mais em imagens visuais e sensoriais

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do que os processos mentais secundários, cujas re- é uma atualização do contraste cultural entre o
ferências são abstratas e conceituais) avolumam- ocidente e o oriente. E esse contraste é, por sua
-se, diz-nos Kakar, muito mais na psique indiana vez, paralelo ao contraste entre masculino e fe-
do que na ocidental. “Comparada com as crianças minino apontado por Carol Gilligan dentro de
ocidentais, uma criança indiana é encorajada a um país ocidental – os Estados Unidos. Esse pa-
continuar a viver no mundo mítico e mágico por ralelismo em dois diferentes níveis e contextos de
um longo tempo. Nesse mundo, os objetos, os contraste levanta dúvidas sobre a compatibilidade
eventos e as outras pessoas não existem por si só, dessa comparação. Apesar de Kakar não dispôr
mas estão intimamente relacionadas ao self e a seus da mesma segurança que Gilligan ao defender as
humores misteriosos” (KAKAR, 1978). Tradicio- orientações subordinadas como maduras e igual-
nalmente, os indianos têm procurado transmitir mente dotadas de valor, creio que ambos os escri-
conceitos abstratos através de vívidas imagens tores estão de certa forma sugerindo que há uma
concretas. “Nunca, na tradição indiana, o pensa- combinação dos dois modos, da voz “feminina”
mento causal gozou de preeminência compará- com a “masculina”, ou do processo de desenvol-
vel ao que goza na filosofia ocidental” (KAKAR, vimento do ego ocidental com o indiano, no es-
1978). A propensão indiana é muito mais afeita forço de criação de um ser humano exemplar; e
a expandir o mundo interior (expansão radical- que o modo causal e instrumental de se relacionar
mente manifesta na meditação iogue e no sadhana com o mundo, embora predominante, precisa ser
artístico) do que a atuar no exterior. E tanto a res- complementado e nutrido pelo modo orientado
ponsabilidade indiana quanto sua realidade inte- para a participação e fusão.
grada são, por meio da narrativa, transferidas da
mãe – de quem se é prolongadamente dependente Uma apreciação fenomenológica de
na primeira infância – para o resto da família e múltiplas realidades e suas finitas
as outras instituições sociais. Então, em processos províncias de sentido
de tomada de decisão, “o indivíduo funciona mui-
to mais como um membro de um grupo do que Uma outra discussão, de natureza fenome-
como um átomo solitário” (KAKAR, 1978). Para nológica, ressoa e complementa as ideias de
que as interações sejam previsíveis, os indianos são Lévy-Bruhl concernentes à ordenação dual – tal-
incentivados a responder de acordo com padrões vez múltipla – da realidade pelo homem. Tomo
tradicionais já experimentados. Kakar também como exemplo a discussão de Alfred Schutz,
conecta a dependência emocional prolongada da cujas ideias principais com que vou trabalhar fo-
criança indiana para com sua mãe à preponderân- ram resumidas por Bellah (1976) como se segue:
cia da devoção religiosa bhakti, orientada emocio-
nalmente em seu zelo por cuidado, dependência, A ideia básica de Schutz é que a realidade nun-
temor e humildade – que conota, em casos extre- ca é dada, mas sim construída. A apreensão da
mos de santos como Sri Ramakrishna, uma “femi- realidade é sempre um processo ativo, envolven-
nilidade religiosamente sublimada”. do sujeito e objeto. A variedade de necessida-
Creio já ter me reportado ao trabalho de Kakar des de consciência e esquemas de interpretação
o suficiente para poder dizer que, num certo sen- desses faz emergir múltiplas realidades. Schutz
tido, sua distinção entre a personalidade indiana apontou que além do mundo da vida cotidiana
(permeada por processos primários) e a ociden- – social por excelência – há o mundo dos so-
tal (dominada pelo pensamento lógico abstrato) nhos, da arte, da ciência, da religião. Ao mostrar

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a relativa autonomia de que são dotados esses qual a predominância recai sobre interesses prá-
mundos, e sua mútua irredutibilidade, Schutz ticos, ao invés de teóricos” (SCHUTZ, 1962,
deu-nos outro poderoso argumento em prol da p. 208). É a atitude “pragmática” que orienta
abertura e multiplicidade do espírito humano nossa atitude “natural” com relação a esse mun-
(BELLAH, 1976, p. 242). do prático e é o “trabalho”, lido como as ações
tomadas nesse mundo com a intenção de levar
Bellah fez uso da noção de múltiplas reali- adiante um projeto prático, seu modo típico.
dades de Schutz para defender a realidade da “O mundo do trabalho como um todo destaca-
religião. Mas antes de discutir a utilidade de -se como soberano perante os outros inúmeros
Schutz para os nossos propósitos, vamos en- sub-universos da realidade. (...) É através do
tender e considerar seu mapa de construção da meu trabalho que eu penetro no mundo exte-
realidade e da consciência32. rior e o modifico” (SCHUTZ, 1962). O mun-
As formulações de Schutz concernentes do do trabalho é experienciado com base em
às múltiplas realidades são elaboradas a partir dois planos de referência: o prospectivo, ou os
de contribuições de William James e Bergson. motivos “em relação a”; e o retrospectivo, ou os
William James, em seu The Principles of Psychology motivos “por causa de”. O primeiro tipo engen-
(1950), declarara que a origem de toda realidade dra uma teleologia dos propósitos e o segundo,
é subjetiva, e que haveria diversas ordens ou “sub- a causalidade dos motivos.
-universos” de realidade. William James iden- Apesar de vivermos ordinariamente no do-
tificou o mundo dos sentidos das coisas físicas mínio soberano da vida cotidiana, nós frequen-
como a realidade soberana e apontou outros sub- temente a abandonamos quando, por exemplo,
-universos que o homem pode adentrar – como experienciamos um choque específico que nos
o mundo da ciência, da mitologia e da religião, e impele a mudar de província de sentido. “Alguns
mesmo o mundo da loucura. James afirmou que exemplos dessas situações são: o salto ao mundo
“[c]ada mundo frequentado é real segundo sua dos sonhos pelo choque de cair no sono; a ínti-
própria lógica, e só a realidade não exige atenção ma transformação que sentimos no mundo do
porquanto existe por si mesma” (JAMES,1950). espetáculo quando a cortina do teatro se abre; a
A filosofia de Bergson também delineia a visão de mudança radical de atitude ao adentrar o mun-
que nossa vida consciente mostra-nos numerosos do pictórico quando diante de um quadro.
planos distintos, variando do plano da ação, em Com essa introdução, Schutz avança para
um extremo, ao plano do sonho, em outro; sendo sua tese principal, a de que todos esses mundos
o primeiro dotado da maior tensão de consciên- – o mundo dos sonhos, da arte, da experiência
cia e o segundo, da menor. religiosa, da contemplação científica etc. – são
Assim, podemos observar que a tese de “províncias de sentido finitas” que têm, por sua
Schutz acerca das realidades múltiplas fun- vez, seus peculiares estilos cognitivos e especí-
damenta-se principalmente na “realidade do ficas ênfases de realidade. Aquilo que pode ser
mundo cotidiano”, atribuindo um caráter compatível com uma província de sentido pode
complementar à todas as outras províncias de ser incompatível com outra. Assim, a passagem
realidade situadas ao seu redor e nas quais in- de uma província à outra só pode ser performa-
variavelmente se pode entrar e sair. Schutz des- da mediante um salto e não por meio de uma
creve esse mundo da vida cotidiana como “um fórmula de transição ou transformação. Além
mundo intersubjetivo comum a todos nós e no disso, a cada estilo cognitivo, peculiar a cada

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Múltiplos ordenamentos de realidade | 209

província de significado, corresponde uma ten- e metodológicas, como a exigência da consistên-


são da consciência, uma epoché, uma experiência cia entre proposições, seu teste por observação –
própria e uma forma de socialidade específicas. sendo esta as experiências imediatas dos fatos do
Ora, é de nosso imediato interesse perscrutar mundo – e assim por diante.
como Schutz apresenta os domínios da religião É por isso que o cientista põe sua existên-
e da ciência como mudanças do mundo da re- cia entre parênteses. Nesse sentido, “o teórico é
alidade cotidiana. Schutz considera que tanto a solitário, ele não pertence a nenhum ambiente
experiência religiosa quanto a atividade de um social, ele permanece fora de qualquer relação
cientista – que toma a decisão de “substituir toda social” (SCHUTZ, 1962, p. 253).
a paixão que tem ‘deste mundo’ por uma atitude Pode-se perguntar em que medida essa refe-
contemplativa e desinteressada” – são saltos da rência a Popper pode se alinhar às ideias de Kuhn
realidade cotidiana (SCHUTZ, 1962, p. 231). acerca da prática da “ciência normal” por uma
Na verdade, Schutz está particularmente in- “comunidade científica”. De qualquer modo, pa-
teressado em esclarecer “a relação existente entre rece-me que Schutz defende o importante ponto
a realidade do mundo da vida cotidiana e a da de que a atividade científica circunscreve-se à cir-
atividade científica” (SCHUTZ, 1962, p. 208). cunstâncias especiais e restritas e, realizada por se-
Sua visão idealizada do mundo da ciência é uma res humanos parciais, é, consequentemente, parte
reminiscência de Karl Popper. Isso porque a ati- de um ordenamento específico da realidade: ape-
vidade de teorização científica está preocupada nas um dentre muitos.
em observar e possivelmente entender o mundo, Além disso, Schutz sugere que a prática da ci-
mais do que tentar dominá-lo ou destinar seu ência não pode, ou não precisa, abarcar todo nos-
conhecimento à invenção de aparatos técnicos. so espaço e vida mental, pois o mesmo indivíduo
O uso da ciência aplicada para propósitos mun- pode participar de diferentes províncias de senti-
danos não é, por excelência, parte integral do do. Como último recurso, as múltiplas realidades,
pensamento e da teorização científica. ou, se preferir, a ordem das experiências religiosas
Assim, ao contrário da orientação do mundo e a do pensamento científico, são nada mais que
da vida cotidiana, em que o esforço do trabalho “diferentes tensões de uma e mesma consciência,
é direcionado ao mundo exterior, o pré-requisito e é a vida mundana, a mesma vida que para todos
para qualquer teorização cientifica é a atitude do varia do nascimento à morte, que é acessada de
“observador desinteressado”. Essa atitude é um diferentes maneiras” (SCHUTZ, 1962, p. 258).
“salto” a uma ordem especial da realidade, e repre- Devo confessar, no entanto, que considero pro-
senta uma abertura para colocar o conhecimento blemática a correspondência que Schutz estabelece
sempre em questão’. O cientista coloca sua pró- entre o postulado da “soberana realidade da vida
pria existência “entre parênteses” para impedir que cotidiana” e sua orientação “pragmática” como
seus problemas pessoais invadam seu ambiente uma condição “natural” (cultural e socialmente in-
científico. Visto que o salto à província de insights dependente?). Sem aceitá-la, e colocando-a entre
teórico-científicos obriga o indivíduo a suspender parênteses, no entanto, eu considero sua noção de
seu ponto de vista subjetivo, pode-se dizer que o “províncias finitas de sentido” e de “múltiplas rea-
cientista (em questão) assume um papel que cobre lidades” (se lidas como múltiplos “ordenamentos”
apenas parte dele mesmo. Em outras palavras, a da realidade) como pertinente e sugestiva.
prática da ciência, a entrada no mundo da ciência Justamente porque evita a mesma dificulda-
implica na sujeição a certas regras epistemológicas de, é crucial introduzir neste ponto da discussão a

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210 | Stanley Tambiah

noção filosófica de “formas de se fazer o mundo” 1- Ele aceita as ciências em todo o seu valor
de Nelson Goodman, considerada por ele como como marco de referência (como Schutz tam-
preocupada com “a estrutura dos diversos sistemas bém o faz).
simbólicos da ciência, filosofia, arte, percepção
e discurso cotidiano” (GOODMAN, 1985)33. 2- Ele endossa que existe uma diferença entre
Goodman descrevera sua posição como um “re- ao menos duas maneiras de fazer o mundo, ou
lativismo radical sob rigorosos limites”, e mantém dois modos de função referencial: a denotação e
que o mundo pode ser descrito de acordo com a a exemplificação. A denotação é algo particular à
existência de “múltiplos enquadramentos”. Ao op- descrição científica, literal, linguística ou matemá-
tar pela possibilidade de “múltiplas versões de mun- tica do mundo (ainda que instrumentos análogos
do” (e rejeitar a existência de uma multiplicidade e o uso de metáforas nas medições não sejam es-
de mundos ou “mundos em si mesmos”, Goodman tranhos à ciência); enquanto a exemplificação, ou
atesta sua posição anti-reducionista, como segue. referência “ao que possui em relação à propriedade
Não é possível transitar ordinariamente pela possuída” é típica das formas artísticas e não-re-
diversidade de visões de mundo. Não existe algo presentacionais, que nada denotam, mas “muito
como “um conforto na intertradutibilidade”34, mostram” e transmitem sentimento.35
“nenhuma regra definida para transformar a fí-
sica, a biologia e a psicologia uma na outra, e Os mundos da ficção, da poesia, da pintura, da
certamente nenhuma forma de transformá-las na música, da dança e de outras artes são construídos
visão de Van Gogh” (GOODMAN, 1985). As através de mecanismos não literais (como a metá-
muitas versões de mundo são de interesse e im- fora) e não-demonstrativos (como a exemplifica-
portância independentes, irredutíveis a qualquer ção e a expressão), e frequentemente se valem de
pressuposição ou a uma única base. O pluralista, figuras, sons, gestos e outros símbolos de sistemas
ao contrário de ser anticientífico, valoriza plena- não linguísticos (GOODMAN, 1985, p. 102).
mente a ciência. Seu adversário típico é o materia-
lista monopolista que afirma a supremacia de um 3- Por fim, Goodman defenderia a ideia
sistema – o físico –, de tal modo que “qualquer de que a “verdade” da ciência, que corres-
outra versão deve ser reduzida a ele, ou rejeitada ponderia a um mundo já pronto, não é senão
como falsa ou vazia de significado.” (GOOD- uma moldura de referência, enquanto uma
MAN, 1985, p. 4). O argumento leva à inevitável forma e figura não-denotativa incorporam
conclusão de que “[s]e diferentes versões não-re- uma certa estética da verdade ou do certo,
dutíveis umas às outras se assemelham, a unida- cujas bases são a densidade sintática e semân-
de deve ser buscada não em algo ambivalente ou tica e os padrões de reconhecimento, além
neutro acobertado por essas mesmas versões mas, dos processos de fazer-o-mundo como com-
pelo contrário, em uma organização geral que posição, ordenamento, ponderação e assim
abarcaria todas elas” (GOODMAN, 1985, p. 5). por diante.
Isso é o mesmo que dizer que os modos de fazer
o mundo e suas relações são construídas por meio Em Toward a Transformation of Philosophy
de sistemas de símbolos. (1980), Karl-Otto Apel postula a dualidade de
Para os nossos propósitos a importância das orientações, algo que pode ser útil para concluir
teorizações sobre “modos de se fazer o mundo” nossa discussão acerca dos teóricos das múlti-
de Goodman reside no seguinte: plas realidades de fazer o mundo. Apel atesta:

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Múltiplos ordenamentos de realidade | 211

na minha opinião, a investigação hermenêutica Participação versus causalidade: duas


genuína se coloca em uma relação complemen- orientações de mundo
tar com a objetividade científica da natureza e
sua explicação dos eventos. Ambos os tipos de Eu gostaria de concluir propondo que, à luz
investigação são mutuamente excludentes e no de nossas discussões, é possível separar analitica-
entanto, ainda assim complementam um ao ou- mente pelo menos duas orientações para o nosso
tro. (...) Como Peirce identificou, a coalescência cosmos, dois ordenamentos de realidade que mu-
das experiências dos cientistas naturais sempre lheres e homens em todos os lugares são capazes
expressa uma coalescência de interpretação se- de experienciar, embora a interpolação, a hibri-
miótica. (...) O acordo linguístico sobre o que dação, as preponderâncias e complementaridades
um significa e o que o outro deseja complemen- entre esses dois ordenamentos possam variar en-
ta a ciência objetiva (APEL, 1980, p. 52-53). tre indivíduos e grupos em uma dada cultura, e
entre culturas tomadas como entidades coletivas.
Parece-me que, basicamente, o homem tem Essas duas orientações chamarei de participa-
dois interesses cognitivos complementares igual- ção versus causalidade. Causalidade é, fundamen-
mente importantes e idênticos: talmente, representada por categorias, regras e
metodologia das ciências positivas e da racionali-
1. Um interesse que é determinado pela ne- dade discursiva lógico-matemática. O foco cientí-
cessidade de uma praxis técnica como base dos fico envolve um tipo particular de distanciamento,
insights sobre as leis naturais. uma neutralidade afetiva e certa abstração em re-
lação aos eventos do mundo. Particularmente nas
2. Um interesse que é determinado pela chamadas “ciências duras”, as relações de causa e
necessidade de uma praxis social e moral- efeito no espaço e no tempo são concebidas em
mente relevante. termos de impactos mensuráveis de energia e for-
ça, e pela progressiva atomização da informação,
O segundo caso direciona-se ao acordo – já através da qual entidades são progressivamente
pressuposto pela práxis técnica – sobre a pos- quebradas: de moléculas a átomos, e de átomo a
sibilidade e normas de um ‘estar-no-mundo’ partículas subatômicas, cujas interações então nos
humano significativo. Esse interesse no enten- oferecem a imagem de causalidade.
dimento do sentido não almeja apenas a comu- Creio ser desnecessário retomar à filosofia e à
nicação entre contemporâneos, mas também metodologia das ciências de prestígio aqui, mas
pode ser entendido como uma espécie de me- gostaria de enfatizar os contornos da participa-
diação da tradição pela comunicação dos vivos ção como modo de construir e de se relacionar
com as gerações passadas. De fato, é principal- com a realidade. A noção de causalidade é des-
mente por meio dessa mediação de tradição locada e a de participação, por demais utilizada
que os humanos acumulam seu conhecimento na descrição de orientações estéticas ou religio-
técnico e se aprofundam no entendimento dos sas36. Lévy-Bruhl, de seu jeito um pouco nebu-
possíveis sentidos das motivações, o que lhes loso; Maurice Leenhardt, de uma maneira mais
concede a superioridade sobre o reino animal” concreta; e Suzanne Langer, de um jeito imagi-
(APEL, 1980, p. 59) Os mundos de Apel forne- nativo, estavam todos falando de apreensões ho-
cem-me o prelúdio à minha contribuição sobre lísticas e sistemáticas de totalidades, integradas
o que entendo por duas orientações de mundo. ao desfrute estético e à consciência mística.

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212 | Stanley Tambiah

Atentemos a como Leenhardt enfrenta a santo está vivo no seu santuário. (...) Em certas
questão. Maurice Leenhardt, missionário na ocasiões – por exemplo, quando [Tuhami, o in-
Melanésia por cerca de vinte e quatro anos formante em questão] fala sobre ir ao “Moulay
(1902-1925) que ocupou, como antropólogo Idriss” – há ainda mais ambiguidade, porque
profissional, a cadeira de Marcel Mauss na Éco- “Moulay Idriss” refere-se não somente ao santo
le Pratique des Hautes Études, elaborou e refinou e ao seu santuário, mas também à aldeia onde o
a noção de “participação” como recurso central santuário está localizado, a aldeia em que ele re-
da “sensibilidade mítica” nos novos caledônios. side. (...) Associadas aos santos há uma gama de
Em virtude de seu experimento etnográfico rituais, variando da declamação comunal de um
prolongado e desenvolvido, Leenhardt preen- grande número de rezadores e danças altamente
cheu a noção de participação com um realismo estilizadas a massagens especiais com rochas car-
e uma intensidade que deram à noção o corpo regadas de baraka, banhos em águas sagradas, a
e a substância que Lévy-Bruhl jamais atingira. remoção de um punhado de terra do santuário,
Leenhardt via a vida melanésia37 como to- ou simplesmente a procissão com a tumba do san-
talidades dinâmicas tecidas pela natureza, pela to. Peregrinos frequentemente dormem no santu-
sociedade, pelo mito e pela tecnologia; e via as ário, na esperança de sonhar; sonhos considerados
aldeias melanésias como o centro de uma pai- mensagens ou mesmo visitações do santo. Alguns
sagem cercada por uma atmosfera mítica, onde marroquinos, como Tuhami, reivindicam que os
montanhas, pedras, árvores e animais eram vis- santos estão vivos em suas tumbas. Para eles, os
tos como familiares e dotados do poder de seus santos se parecem mais com os jnun do que com
ancestrais-deuses, com vida totêmica. Tais entes os humanos mortos. Não se crê em fantasmas
e fenômenos da natureza eram considerados pre- nem em espíritos ancestrais no Marrocos.
senças discretas nas quais os vivos estavam impli- Os santuários tendem a ser especializados, porém
cados. A paisagem seria uma mediadora entre os nunca completamente. Eles podem servir como
mundos visível e invisível, uma área de “mito vi- uma arena sagrada para decisões jurídicas e legais
vido”, e a vida de cada grupo seria guardada por ou, como nas igrejas da Europa medieval ou nos
seus totens e ancestrais imanentes ao ambiente. templos budistas do Vietnã, como um lugar de
O conceito de participação transmitia a Leenhar- asilo político. Eles são visitados por peregrinos
dt essa relação sentida entre o self (e a pessoa) e ansiosos pela cura de qualquer disfunção físi-
os fenômenos da paisagem mítica; em última ca, desde um reumatismo ou cólicas menstruais
instância, participação ordenava a relação entre o até ataques demoníacos e possessões espirituais.
homem e o imanente e/ou o transcendente. Eles também são visitados para se obter inspi-
O senso de “participação” em Leenhardt, ração poética, proezas acrobáticas, sucesso nos
numa paisagem mítica ou numa geografia sagra- negócios ou na escola; pelo nascimento de uma
da, como uma orientação de realidade, pode ser criança do sexo masculino ou pela preservação do
ilustrado por várias etnografias de outros povos, casamento, ou simplesmente por sentimentos de
que não os melanésios. Segue um exemplo do bem-estar associados aos dons de baraka. Muito
marabutismo do Marrocos, o culto dos santos. frequentemente, os peregrinos suplicantes prome-
Vincent Crapanzano (1980) explica: tem sacrificar algo – uma ovelha, uma cabra, ou
talvez uma galinha –, ou dar algo – comida, velas
Os marroquinos falam da visita a um santuário ou dinheiro – ao santo se ele atender às suas sú-
como “visitar o santo” porque acreditam que o plicas. Tal desejo conecta o suplicante ao santo, e

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a falha em dar continuidade ao laço resulta num do, numa vila da Calábria, no sul da Itália, avós
maior mal a ele e a sua família: eles se tornam vul- falam de suas raízes vinculadas às fazendas e vila-
neráveis aos demônios, porque o santo deixará de rejos; quando jovens e velhos americanos, aterro-
protegê-lo se ele realmente não incitar o jnun a rizados pela devastação nuclear e pelo desperdício
atacar (CRAPANZANO, 1980, p. 16-17). industrial resolvem massivamente proteger o meio-
-ambiente e a ecologia, a flora e a fauna; quando
Sobre o modo hindu de participação numa os poetas românticos Wordsworth, Coleridge e
geografia sagrada, Diana Eck (1981) afirma: Shelley tratavam eloquentemente da presença e
da comunhão com a natureza; quando monu-
Peregrinos caminham em procissão por toda a Ín- mentos nacionais como os memoriais de Lincoln
dia como uma terra sagrada, visitando o dhan em e Jefferson, ou os túmulos como os do cemitério
cada ponto da bússola, marcando com seus pés o de Arlington, ou os campos de batalha como o de
perímetro do todo, trazendo consigo areias do sul Gettysburg, são tidos como consagração da his-
da Índia, Ramesvaram, para colocá-las no Ganga tória de um povo, ou como disseminação de suas
[o rio Ganges] quando chegam, e retornando com glórias nacionais – em todas essas instâncias, ve-
a água do Ganga para espalhar a linga pelo Ra- mos manifestações de ‘participação’ entre pessoas,
mesvaram. A rede de tirthas [lugares de passagem lugares, natureza e objetos. Além disso, a relação de
ou cruzamentos] constitui o esqueleto da Índia participação também pode ocorrer entre pessoas:
enquanto unidade cultural (ECK, 1981, p. 336). o vínculo entre pais e filhos, a relação entre paren-
tes por laços de sangue e amizade; a transmissão
Eck refere-se a esse conduto como “uma de carisma ou metta através de amuletos e talismãs
ontologia sacramental natural”, cujos símbolos entre um santo budista e seus seguidores (ou entre
constituem o inteiro (e não o sagrado)38. a realeza thai e seus súditos); o conceito indiano
A participação pode ocorrer quando pessoas, de darshan de uma deidade cujo cuidado recai so-
grupos, animais, lugares e fenômenos da nature- bre seus devotos à medida em que estes também
za são representados em relação de contiguidade olham por ela – tudo isso são intimações de parti-
e essa relação é transladada a uma relação de exis- cipação. A conectividade entre pessoas, a sensação
tência imediata e afinidades compartilhadas. (Na de fazer parte de um todo de relacionamentos, tal
linguagem semiótica, humanos, por um lado, e como descrita por Gilligan e Kakar, também são
lugares, objetos e fenômenos da natureza, por ou- pontes para a realidade da participação.
tro, representam-se um ao outro “iconicamente”, e Apesar de “causalidade” e “participação”
transferem energias e atributos “indexicamente”). parecerem orientações de mundo diferentes
Quando os trobriandeses narram, em seus mitos e contrastantes, o analista deve ter em conta
de origem, seu nascimento a partir de buracos no que ambas são projetadas nas capacidades de
solo ou associado a rochas primevas; quando o léxi- experienciação e simbolização das mesmas mo-
co do nome de um camponês em Kandyan, terras dalidades sensoriais humanas: o tato, o pala-
altas do Ski Lanka, denota sucessivamente seu vi- dar, a audição, a visão. Enquanto boa parte do
larejo de origem (vasagama), casa de seus ancestrais discurso da causalidade e das ciências positivas
(gedera, à qual sua família é associada) e seu nome é enquadrado em termos de distanciamento,
pessoal, que funde então localização, território, neutralidade, experimentação, e segundo a lin-
residência, casta e status familiar, ancestralidade guagem da razão analítica, muito do discurso da
numa identidade singularmente composta; quan- participação pode ser enquadrado em termos de

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214 | Stanley Tambiah

imediação simpática, atos de fala performativos Algumas representações de “causalidade” e


e ações rituais. Se a participação enfatiza a co- “participação”
municação afetiva e sensorial, e a linguagem das Causalidade Participação
emoções; a causalidade sublinha a racionalidade
da ação instrumental e a linguagem da cognição. O ego contra o mundo. Ego- O ego/a pessoa com o mun-
Mas essas são extrapolações, tipos ideais, e uma centrismo. Individualismo do, um produto do mundo.
não existe sem dispositivos da outra. atomizado. A linguagem do Sociocentrismo. A linguagem
Pode-se sugerir que uma maneira signifi- distanciamento e da neutrali- da solidariedade, unidade,
cativa de contrastar participação e causalidade dade na ação e reação. O para- holismo e continuidade no
seja por meio da comparação entre a religião digma da evolução no espaço espaço e no tempo. Ação ex-
e a ciência como orientações de mundo con- e no tempo. Ação instrumen- pressiva manifesta através de
trastivas e complementares. Nossa intenção até tal em que a mudança impor- entendimentos convencionais
aqui tem sido enfatizar a plausabilidade de pelo ta e eficácia causal dos atos e intersubjetivos, a contação
menos dois modos de ordenamento do mundo técnicos. Sucessiva fragmen- de mitos e a encenação de
estarem simultaneamente à disposição dos seres tação dos fenômenos, e sua rituais. A eficácia performati-
humanos como interesses cognitivos e afetivos; atomização, na construção do va das ações comunicativas.
ordenamentos esses que, na linguagem analíti- conhecimento científico. A lin- Padrões de reconhecimento,
ca e reflexiva, podem ser chamados de “causali- guagem da classificação “di- e totalização dos fenômenos.
dade” e “participação”, respectivamente. mensional” (Piaget). Ciência O sentimento de abrangên-
A simultaneidade de disposição desses dois e experimentação. A doutrina cia da unidade cósmica. A
modos de ordenamento do mundo aponta para da “representação” (Foucault). linguagem da classificação
nossa cada vez maior percepção de que pessoas “Explicação” (Wittgenstein). “complexa” (Piaget), ditada
de todas as culturas e sociedades engajam-se em “Objetificação e explicação de por relações de contiguidade
distintos gêneros de discurso que se relacionam e eventos pelas ciências natu- e pela lógica da interação.
são acionados por diferentes contextos de comu- rais” (K. Apel). A doutrina da “semelhança”
nicação e “prática” (tal como definida por Bour- (Foucault). “Forma de vida”
dieu). De acordo com a ocasião e o contexto, nós (Wittgenstein) e a totalidade
invocamos, empregamos e manipulamos corpus das experiências a ela asso-
de idiomas e conceitos, culturalmente disponíveis ciadas.
e adaptados para se encaixar em diferentes siste-
mas de conhecimento, estilos de racionalidade e
retórica, e modos de experiência emocional. Nes- Alguns dos contextos em que discursos de
se sentido, nós somos flexíveis e plurais e nos en- perspectiva predominantemente de causalidade
gajamos em muitos modos de fazer-o-mundo. E são encenados são: experimentos científicos de
apesar de sociedades e culturas de fato se diferen- laboratório; reuniões profissionais de cientistas,
ciarem umas das outras pela variedade de discur- engenheiros, médicos, em que seus achados de
sos que cada uma permite e incentiva, certamente pesquisa são divulgados; a promulgação de pla-
não há notícia, até agora, de uma sociedade co- nos de crescimento e desenvolvimento econô-
nhecida como praticante inveterada de apenas mico, e controle da inflação, por economistas
uma das orientações. Os tipos de conceitos e ca- desenvolvimentistas; consultas entre médico e
racterísticas que podemos atrelar a participação e paciente conduzidas pelo paradigma biomédico
causalidade são os seguintes: da doença e da cura; muitos tipos de didáticas

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aplicadas na universidade que tentam reduzir conduzidos e do equipamento utilizado, tem


complexidades a princípios elementares. alguma influência sobre as observações e, nesse
Alguns dos contextos em que atos predomi- sentido, constrói uma realidade “participató-
nantemente de participação são performados são: ria”. Parece que o princípio de “indeterminis-
cortejo e união sexual; certas ocasiões e cerimônias mo” ou “incerteza” de Heisenberg contribuiu
da vida familiar, como almoços de domingo, ritos para a formulação de Bohr do princípio da
de passagem (aniversários, casamentos, funerais “complementaridade”, que declarava que ne-
etc.); meditação budista; devoção e serviços ecle- nhum fenômeno quantum elementar é um
siásticos; festivais coletivos, religiosos e seculares, fenômeno até que seja registrado como tal,
inclusive os chamados de “religião cívica” (Dia e que, portanto, o ato do registro tem uma
do trabalho, Dia da Independência); adoração consequência inescapável para o que se pode
bhakti, devotada à união com deus; movimentos dizer sobre o elétron. “Podemos instalar um
milenaristas; jogos de futebol e beisebol. dispositivo para medir a posição do elétron
Friso a palavra “predominantemente” nos dois ou seu momentum”, mas não podemos en-
parágrafos precedentes para apontar o óbvio e in- caixar ambos os dispositivos de medição no
conteste fato de que os elementos de participação mesmo lugar, ao mesmo tempo, e fazer me-
não estão ausentes nos discursos científicos, e os dições simultâneas de posição e momentum.
recursos de causalidade não estão necessariamente A implicação para as teorias ondulatória e de
ausentes nas performances de participação. Ana- partículas da luz é que elas são complementa-
liticamente separados, entrelaçam-se de diversas res: “nós podemos inventar um experimento
maneiras, e apontei contextos e discursos em que que faça aflorar o caráter de partícula da luz,
um ou outro modo predomina. ou podemos colocar em evidência a natureza
Apesar de ter descrito participação e cau- de onda da luz. Mas não podemos inventar
salidade como orientações de mundo contras- um experimento que coloque ambas as ca-
tivas, complementares e coexistentes, talvez racterísticas em evidência ao mesmo tempo”
bem ilustradas pelos complexos chamados (WHEELER, 1982, p. 11).
de “religião” e “ciência”, é fundamental no- A maneira como um cientista, enquanto
tar que “participação”, definida num sentido observador-participante, influencia as medi-
especial, tem ocupado um importante posto das, bem como seu papel na construção de
na teoria científica da física moderna. Nesse uma realidade “participatória” parecem afrou-
sentido especial, “participação” tem tornado xar a validade de se considerar “participação”
parte, ou incorporado, o âmbito da “raciona- e “causalidade” como dois ordenamentos de
lidade científica”. realidade excludentes e diferentes. Entretanto,
O provocativo ensaio de J. A. Wheeler in- é fundamental notar que o princípio de “in-
titulado Bohr, Einstein and the Strange Lesson certeza” de Heisenberg e o princípio de “com-
of the Quantum (1982) discute os desacordos plementaridade” de Bohr se relacionam com
fundamentais entre Albert Einstein e Niels o escopo das observações sob a perspectiva da
Bohr sobre a natureza do quantum e a nature- racionalidade científica que pressupõe a repeti-
za do mundo: se a realidade “exterior” deve ser ção de observações por diferentes observadores
descoberta pelo observador ou se o cientista, conduzindo os mesmos experimentos e orien-
enquanto observador e participante, através de tados a procurar relações entre as observações
suas perguntas e interesses, dos experimentos de maneira causal.

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216 | Stanley Tambiah

Notas 6. Veja Rodney Needham (1972), cujo comentário es-


1. Georges Gurvitch (1894-1965). Sociólogo e jurista clarecedor e detalhado eu sigo aqui.
russo, lecionou sociologia da lei na Universidade de 7. Esta e todas as citações cujas obras não possuem tra-
Sorbonne. [N.T.] dução para o português foram livremente traduzidas
2. Os livros mais conhecidos de Lévy-Bruhl relativos à por nós; as referências correspondem às páginas das
temática da “mentalidade primitiva” são: Les Fonctions edições em inglês, citadas por Tambiah. As citações
mentales dans les sociétés inférieures (1910), traduzido para de obras já traduzidas para o português e publicadas
o inglês como How Natives Think (1926); La Mentalité correspondem às páginas das edições em português,
primitive (1922), traduzido para o inglês como Primitive assinaladas após cada citação e listadas nas referências
Mentality (1923) [e para o português como A mentali- bibliográficas, ao fim do texto. [N.T.]
dade primitiva (2008). N.T.]; L’Âme primitive (1927), 8. Veja Gurvitch (1939, p. 68). Veja também Robert H.
traduzido para o inglês como The ‘Soul’ of the Primitive Lowie (1937).
(1927); Les Carnets de Lucien Lévy-Bruhl (1949), tradu- 9. Segundo Lévy-Bruhl, em seu How Natives Think
zido para o inglês como Notebooks on Primitive Mentali- (1966, p. 62): “Quando os Bororo dizem que são
ty – este último publicado postumamente. araras vermelhas, isso indica uma identidade real ou
3. Ver o ensaio de Jean Cazeneuve intitulado “Lucien participação, que é representada em diversas formas,
Lévy-Bruhl (1857-1939)” em International Encyclo- “contato, transferência, simpatia, telepatia, telesineste-
pedia of the Social Sciences, vol. 2, Parte I, 1934. Ainda sia etc” (LEVY-BRUHL, 1966, p.62).
mais iluminador e estimulante é o memorial de Geor- 10. Veja Lévy-Bruhl (1966, p. 54-81).
ges Gurvitch intitulado “The Sociological Legacy of 11. Em As palavras e as coisas: uma arqueologia das ci-
Lucien Lévy-Bruhl” publicado em Journal of Social ências humanas (1999), Foucault discute o papel de
Philosophy, New York, 1939, vol. 5, no. I, p. 61-70. “semelhança” (como oposto ao de “representação”) e
4. Em seus primeiros escritos, tais como Les Fonc- sua figuração fundamental na construção do conhe-
tions mentales dans les sociétés inférieures (1920), ele cimento europeu do século XVI. A cadeia semântica
esboçou a transição da mentalidade pré-lógica ao de “semelhança” é constituída por noções como con-
pensamento lógico em função da ocorrência de um venientia (similaridade de adjacência), e convenience
distanciamento do sujeito em relação ao objeto, e da (“semelhança” a uma certa distância). Simpatias entre
progressiva separação e personificação do sobrenatu- o homem e os fenômenos mundanos foram vistas
ral. Esses desenvolvimentos denotavam a crescente como atravessando grandes distâncias espaciais ca-
importância do aspecto cognitivo do pensamento, pazes de gerar e estabelecer assimilações e misturas.
inclusive do mítico. Lévy-Bruhl não pensava que es- Em um campo de relações polivalentes, o Homem se
ses desenvolvimentos eram automáticos e universais, colocava como o centro, e as semelhanças irradiavam
mesmo porque, para ele, essa transição não teria ocor- dele para o mundo e de volta a ele, novamente.
rido na Índia ou na China. A “doutrina das assinaturas” incorporava uma teoria
5. Como Gurvitch (1939: 62) explica, Lévy-Bruhl não da linguagem, a saber, como o nome das coisas tinha
teria sido o tipo de gênio que estabelece um tema cen- uma afinidade integral com o que elas nomeavam.
tral de pesquisa e “devota” a vida inteira a seu desen- As semelhanças de assinaturas abrangiam um entre-
volvimento, e funda uma escola. Ele teria sido outro laçamento tanto da linguagem verbal quanto não-
tipo de gênio, que se desenvolve vagarosamente e por -verbal. Essa teoria dos nomes e a maneira com que
etapas, mudando periodicamente seu campo de pes- faz engajar a linguagem e o mundo têm relevância
quisa, e dentro de cada área, enveredando por diversos crítica para o uso da linguagem também na magia e
pontos de vista. Sobre este segundo tipo de genialida- nas artes ocultas.
de, Gurvitch comenta: “Seu desenvolvimento é mais De acordo com Foucault, uma nova visão da lingua-
dramático e também mais dolorido, mas suas conclu- gem como um fenômeno convencional que cunhava
sões são mais ricas, e seus resultados, mais diversos e ser a relação entre a língua e o mundo que ela descre-
frutíferos”. Durkheim pode ser considerado um repre- ve uma única representação – uma teoria cultivada
sentante do primeiro tipo, e Lévy-Bruhl, do segundo. pela Escola Port Royal (Port Royal School) - demons-
Os últimos dezessete anos de sua vida foram também trava uma mudança de episteme (ou paradigma) de
os mais férteis. uma mentalidade para a outra.

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12. Evans-Pritchard, em alguns ensaios publicados num 16. Há uma tradução desse texto de Trevor-Roper em
obscuro periódico egípcio, foi o primeiro a introduzir português (TREVOR-ROPER, 1981), mas optamos,
seriamente as ideias de Lévy-Bruhl aos antropólogos nesse trecho, traduzirmos nós mesmos da citação de
anglo-saxões. Malinowski censurou e desdenhou as Tambiah. [N.T.]
ideias de Lévy-Bruhl, merecedoras de uma escuta 17. Robin Horton, “African traditional thought and Wes-
mais atenta. Veja o livro de Evans-Pritchard, Theories tern science” (1967); veja também “Ritual Man in
of Primitive Religion, e seu ensaio “Lévy-Bruhl’s The- Africa” (HORTON, 1964); e, ainda, do mesmo autor,
ory of Primitive Mentality” (1934). “Lévy-Bruhl, Durkheim and the Scientific Revolution”,
13. Também gostaria de lembrar o clássico Bruno Snell, em Modes of Thought (HORTON E FINNEGAN
que em seu The Discovery of the Mind (1960), utiliza (orgs.), 1973).
a distinção entre pensamento lógico e pré-lógico para 18. Para uma introdução ao pensamento de Kuhn, toma-
descrever a mudança, ao longo do tempo, do pensa- mos a liberdade de sugerir a leitura de A estrutura das
mento grego: do modelo mítico ao lógico. No pen- revoluções científicas (1991). [N.T.]
samento mítico, metáforas e símiles são usados como 19. Aqui, Tambiah refere-se ao capítulo III, “Sir Edward
imagens sensitivas com propriedades metafísicas. A Tylor versus Bronislaw Malinowski: is magic false scien-
mudança ao pensamento lógico implica descrições ce or meaningful performance?”, do livro que contém
acuradas e conexões causais de ordem natural, rumo este capítulo que traduzimos (TAMBIAH, 2006).
já a um modo científico de pensamento. 20. Refiro-me aqui ao seu ensaio “Lévy-Bruhl, Durkheim
A proposta de Snell, sobre um processo descontínuo and the Scientific Revolution”.
de mudança, é questionada por G. E. R. Lloyd em 21. Veja Needham (1972, p. 131).
Polarity and Analogy. Two Types of Argumentation in 22. Veja, em particular, “Lévy-Bruhl’s Theory of primi-
Early Greek Thought (1966). tive Mentality”, de Evans-Pritchard. Veja também
Lloyd diz-nos que o desenvolvimento da lógica dos seu Theories of primitive religion (1965). Há outros
gregos mostra um gradual reconhecimento de prin- dois ensaios publicados na mesma época que são
cípios lógicos imbricados em crenças arcaicas. A des- relevantes para apreciar as tendências e tensões no
coberta da lógica “apenas presta-se a tornar explícitas pensamento de Evans-Pritchard. “The intellectualist
certas regras de argumentação outrora já tacitamente (English) Interpretation of Magic” (1933), e “Science
observadas em escritores precedentes”. Veja também and Sentiment: An exposition and Criticism of the
minha discussão precedente acerca do último livro de Writings of Pareto” (1936).
Lloyd [Tambiah refere-se ao capítulo I, “Magic, scien- 23. Lowie (1937: 221) faz a mesma crítica de maneira in-
ce and religion in Western thought: anthropology’s dependente, citando R. Thurnwald como fonte: “Ele
intellectual legacy” do livro que contém este capítulo [Lévy-Bruhl] estabelece esse contraste não comparan-
que traduzimos. N.T.]. do homens civilizados e primitivos, mas, na astuta
caracterização de Thurnwald, “Os maiores alcances
14. Tambiah refere-se ao capítulo VI do livro que con- do intelecto moderno” – nota bene, somente concer-
tém este capítulo que aqui traduzimos, “Rationality, nente a atividades profissionais “com uma vaga ‘pri-
relativism, the translation and commensurability mitividade’”. (A referência de Thurnwald é Deutsche
of cultures”, especialmente p. 115-116. Sugerimos Literaturzeitunge, 1928, p. 486-94)
também a consulta ao cap. III, “Sir Edward Tylor 24. Mary Douglas, em seu devoto memorial a seu pro-
versus Bronislaw Malinowski: is magic false science fessor, intitulado Evans-Pritchard (1980), extrapola
or meaningful performance?” (TAMBIAH, 2006, uma comparação entre os procedimentos interpreta-
p. 54-64). [N. T.] tivos de Evans-Pritchard e a noção de Wittgenstein
15. Lucien Febvre, O problema da incredulidade no século de jogos de linguagem, e sua visão da linguagem em
XVI: a religião de Rabelais (2009). O título do livro em termos de seus usos sociais para atingir fins huma-
francês é Le Problème de l’incroyance au XVIe siècle: La nos etc. Enquanto não se vê uma possível conver-
religion de Rabelais. Marc Bloch talvez seja igualmen- gência entre os dois professores, é justo apontar que
te conhecido pelo livro Os reis taumaturgos ([1924] Evans-Pritchard é gravemente deficiente em não nos
1993), em que se dedicou a construir a mentalité que apresentar uma teoria pragmática da linguagem;
atribuía poderes de cura ao toque pelas mãos do Rei. uma teoria que foi fundamentalmente proposta por

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218 | Stanley Tambiah

Malinowski. Eu diria, portanto, que Malinowski 36. No original, The notion of causality is much out of
aparenta estar mais próximo do espírito das Inves- place, and that of participation is very much in place.
tigações Filosóficas de Wittgenstein. Evans-Pritchard Percebe-se aí um jogo de palavras intransponível para
estava, de alguma maneira, tentando negociar entre o português. [N.T.]
os enquadramentos de Tylor, Lévy-Bruhl e Pareto. 37. Veja especialmente a obra de Maurice Leenhardt: Do
Veja meu “Form and Meaning of Magical Acts”, Kamo: Person and Myth in the Melanesian World. (ed.:
publicado pela primeira vez em Horton e Finnegan James Clifford, 1982), um trabalho heterodoxo sobre
(orgs., 1973). fenomenologia religiosa. Uma inspiradora biografia
25. Veja a introdução de Ruth Bunzel a How Natives comentada sobre Leenhardt está nessa edição.
Think, de Lucien Lévy-Bruhl ([1926] 1966). 38. No original, “the symbols constitute the whole (ra-
26. Steps to an Ecology of Mind de Gregory Bateson ther than the Holy)”, o autor faz um jogo fonético
(1972), especialmente o ensaio em “Style, Grace and e semântico entre os termos whole (inteiro) e Holy
Information in Primitive Art”. (sagrado), intransponível para o português. [N.T.]
27. The Sunday New York Times, 19 de Fevereiro de 1984.
28. Pode ser que Langer tenha exagerado a distinção em
certos aspectos. Trabalhos recentes em percepção visu-
Referências Bibliográficas
al mostram que procedimentos de visualização estão
acontecendo e que não existe percepção de configura-
ção sem exame total da obra. De qualquer modo, exis- APEL, Karl-Otto. Toward a Transformation of Philosophy.
te uma distinção relativa a ser feita entre a sequência Londres: Routledge e Kegan Paul, 1980.
linear da elocução discursiva, as sentenças escritas e a BARUCH, Elaine; MEISEL, Perry. “Two interviews with
configuração perceptiva das formas visuais. Julia Kristeva”. Partisan Review, I, 1984.
29. Langer exagerou a distinção entre a recepção linear BATESON, Gregory. Steps to an Ecology of Mind. Lon-
auditiva da linguagem e a simultânea configuração da dres: Intertext Books, 1972.
percepção visual de uma outra maneira. O entendi- BELLAH, Robert Neelly. Beyond belief: essays on religion
mento da comunicação verbal, mesmo recebido em in a post-traditional world. Nova York: Harper and
sequência auditivamente, envolve operações recursi- Row, 1976.
vas entre a parte e o todo.
BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural
30. Há uma tradução portuguesa desse livro (GILLIGAN,
do poder Régio. França e Inglaterra. São Paulo: Com-
1997), mas não tivemos acesso a ela e por isso as cita-
panhia das Letras, [1924] 1993.
ções foram livremente traduzidas por nós a partir do
original em inglês citado por Tambiah. [N.T.] CAZENEUVE, Jean. “Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939)”.
31. As referências foram tiradas das páginas 104-112. International Encyclopedia of the Social Sciences, vol. 2,
32. Minha fonte principal de consulta está em Alfred Parte I, 1934.
Schutz: Collected Papers I. The Problem of Social Reali- CRAPANZANO, Vincent. Tuhami, Portrait of a Moroc-
ty (1962), editado por e com introdução de Maurice can. Chicago e Londres: University of Chicago Press,
Natanson especialmente pp. 207-59, “On multiple 1980.
realities”. [Em português, indicamos uma coletânea DOUGLAS, Mary. Evans-Pritchard. Sussex: The Harves-
de textos de Alfred Schutz, Fenomenologia e relações ter Press, 1980.
sociais (1979). N.T.]
ECK, Diana L. “India’s Tirthas: ‘Crossings’ in Sa-
33. Ver também seu Languages of Art. An Approach to a
cred Geography”. History of Religions. vol.20, nº4,
Theory of Symbols ([1976] 1985).
maio/1981, p. 336.
34. No original, intertranslatability. Note-se que este ter-
mo contém também uma ideia de translação [N.T.]. EVANS-PRITCHARD, E. E.. “The intellectualist (English)
35. Goodman é cuidadoso ao notar que “Mesmo que o Interpretation of Magic”. Bulletin. vol. I, parte 2. Cairo:
produto último da ciência, ao contrário do da arte, Faculty of Arts, Farouk University, 1933, pp. 282-311.
é uma teoria verbal, literal ou matemática, ciência e _____. “Lévy-Bruhl’s Theory of Primitive Mentality”.
arte em muito se assemelham em seus procedimentos Bulletin. vol. II, parte 2. Cairo: Faculty of Arts, Fa-
de procura e construção”. (1985, p. 107). rouk University, 1934, pp. 1-36.

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traduzido de
TAMBIAH, Stanley. [1990] Magic, Science, Religion and the Scope of Rationality. Cambridge
University Press, 2006. Cap. 05. Multiple Orderings of Reality: The Debate Initiated by Lévy-Bruhl.

tradutor Daniel Belik


Mestre em Antropologia Social pela University of Aberdeen

Stella Zagatto Paterniani


Mestra em Antropologia Social pela Unicamp

revisor a Iracema Dulley


Doutora pela Universidade de São Paulo

Recebida em 04/07/2013
Aceito para publicação em 20/10/13

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