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O drama do personagem, interpretado por Bruno S., que não era ator profissional,
mas que trabalhou com muito esforço com o diretor alemão, é iniciado, mostrando-o
sozinho, sentado, isolado, emitindo sons como de um animal, envolvendo um pano
velho em um cavalo de brinquedo. Ele se encontra preso por um corrente, bebe água
e come um pedaço de pão. É quando chega um homem vestido de preto, põe um
banquinho à sua frente, entregando-lhe um papel e um lápis, forçando-o a escrever.
Kaspar Hauser tenta segurar o lápis e escrever algo sozinho. Diante disso, levanta-se
outra questão: já há no ser humano uma predisposição para a linguagem, em termos
de uma ação consciente?
Em seguida, ele é carregado pelo homem, que o leva para o alto de um monte, pois o
nosso personagem não sabe sequer andar. Com muita dificuldade, ele dá os primeiros
passos. Aqui, fica explícito o entendimento de que o ambiente determina tanto
aspectos físicos, quanto psico-sociais ao ser humano.
Ao ouvir o piano, já na casa do Sr. Daumer, ele diz: “Soa forte no meu peito a
música. Estou muito velho? Por que tudo é tão difícil para mim? Por que não posso
tocar piano como respiro?”... O Sr. Daumer responde a ele que, passados dois anos
de convívio, ele já aprendera muita coisa, mas que ainda deve aprender tudo, pois
nunca estivera entre os homens antes. Ao que Kaspar Hauser responde: “Para mim os
homens são como os lobos”. Aqui, percebemos que, ao ter o domínio da linguagem, o
personagem começa a colocar uma dúvida sobre a sua suposta “pureza”, como se
essa denotasse uma impossibilidade de análise mais depurada da realidade. O que
parece aqui ser ponto para reflexão é: a dita “civilização moderna” não delimita o
poder de criticidade do homem, quando de seu processo de socialização?...
A própria existência de Deus é levada por dois teólogos a Kaspar Hauser, com o
objetivo de doutriná-lo. “Já tinha alguma idéia de Deus?”, pergunta um dos teólogos.
Ele apenas responde: “No cativeiro eu não pensava em nada, e não consigo imaginar
que Deus do nada criou tudo, como vocês me disseram”. Um dos teólogos retruca
imediatamente: “Deve admitir o mistério da fé sem procurar entender”. Mas,
sabiamente, responde Kaspar Hauser: “Primeiro, preciso aprender a ler e a escrever
melhor para compreender o resto”...
Vê-se que são questões polêmicas, agora situadas no contexto de uma possível
resposta crítica a ser dada pelo personagem, como se o mesmo tivesse agora que
lutar contra um sistema de códigos lingüísticos, ideológicos, estéticos, lógicos,
teológicos, morais, prontos para extrair de sua mente uma resposta pronta e
acabada. Duas cenas são marcantes para ilustrar esse embate: a primeira, em que
Kaspar Hauser pergunta à governanta do Sr. Daumer: “para que servem as mulheres,
e por que só lhe permitem cozinhar e fazer crochê?”, ao que ela desconversa e pede
que isso seja perguntado ao Sr. Daumer; a segunda, quando um professor de lógica
lança uma situação problema de caráter lógico dedutivo, dizendo que só há um modo
de respondê-la, e depois da demonstração do professor, Kaspar Hauser apresenta
outra possibilidade de resposta, o que, obviamente, não é aceito pelo ortodoxo
professor. Pessoas como Kaspar Hauser são nessas horas consideradas loucas e
inoportunas...
Com isso, o convívio social torna-se uma tortura para o nosso personagem. Numa
recepção nobre, na casa de um conde inglês, ele se sente mal e sai, depois de
expressar no piano o que sentia em sua alma através da valsa em Fá Maior, de
Mozart. Em seguida, ele sai correndo da igreja, dizendo que a canção dos fiéis soa
em seus ouvidos como um grito horrível. Fica aqui explícita a idéia de que não há
enquadramento possível para Kaspar Hauser, capaz de satisfazer a sua busca interior.
É quando ele é agredido em sua casa, com duas pauladas na cabeça. Ele parecia
incomodar algumas pessoas. A sua indiferença aos padrões. O seu jeito “anti-social”.
Mas faltava uma coisa a ser dita por ele. É quando ele tem uma visão profética. “Eu
vi o mar. Eu vi uma montanha, e muita gente. Estavam todos subindo a montanha,
como uma procissão. Havia muita neblina. Eu não conseguiria enxergar claramente. E
lá em cima, estava a morte”.
Observa-se desse modo que é mais cômodo colocar a culpa da não sociabilidade do
personagem a algum fator fisiológico, do que mergulhar fundo na questão
antropológica da vida social e seus desdobramentos nem sempre logicamente
demonstráveis e cientificamente comprováveis. Não estaria o filme de Herzog
levantando outra possibilidade de responder à polêmica acerca de uma natureza pura
do homem ou de uma racionalidade inata, que também necessitaria, para ser melhor
compreendida, de afetividade, imaginação, criatividade e amor? Fica para nós a
reflexão, em tons de polêmica e controvérsias...
Jorge Leão
Professor de Filosofia do Instituto Federal do Maranhão, e membro do Movimento
Familiar Cristão
Em: 03 de março de 2009