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Stella Maris Bortoni de Figueiredo Ricardo

Estado do Acre

Governador
Jorge Viana

Vice-Governador
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Secretaria de Estado de Educação do Acre


Maria Corrêa da Silva

Coordenadora de Ensino Superior da SEEA


Maria José Francisco Parreira

Fundação Universidade de Brasília — FUB/UnB

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Decano de Ensino e Graduação


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Decano de Pesquisa e Pós-graduação


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Faculdade de Educação — FE/UnB

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Coordenadora Pedágogica
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Centro de Educação a Distância — CEAD/UnB

Diretor
Professor PhD. Bernardo Kipnis

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Gestão Pedagógica
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Gestão de Produção
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Design Gráfico
João Baptista de Miranda

Equipe de Revisão
Bruno Rocha
Daniele Santos
Fabiano Vale
Leonardo Menezes
Roberta Gomes

Apoio Logístico
Fernanda Freire Pinheiro


Sumário

Conhecendo a autora_______________4

Seção 1
A sociedade brasileira: características sociológicas _________7
Introdução____________________________________________8
Diversidade lingüística e pluralidade cultural no Brasil ____ 13
A comunidade de fala brasileira_________________________22
Analisando o Português do Brasil_______________________ 26

Seção 2
A variação lingüística em sala de aula____________________43
Competência comunicativa____________________________ 50
Seção 3
Revendo a variação lingüística no Português do Brasil____ 59

Referências_______________________ 82


Conhecendo a autora

Stella Maris Bortoni de Figueiredo


Ricardo

Possui graduação em Letras Português e Inglês pela Uni-


versidade Católica de Goiás (1968), mestrado em Lingüística pela
Universidade de Brasília (1977) , Doutorado em Lingüística - Univer-
sity of Lancaster (1983) e pós-doutorado em Etnografia Educacional
na Universidade da Pennsylvania (1990). Atualmente é professora
adjunta da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Foi
presidente da ANPOLL (1992-4) e vice-presidente e presidente em
exercício da ABRALIN (2003-5). Foi diretora do Instituto de Letras da
UnB (1993-7). Já publicou no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa
e no Japão. Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase em
Educação e Lingüística, trabalhando principalmente com os seguin-
tes temas: educação em língua materna, formação de professores,
alfabetização, etnografia de sala de aula e letramento. Vem atuando
nos últimos cinco anos como consultora para o MEC em diversos
projetos de formação continuada de professores. Mantém na in-
ternet a página http://www.stellabortoni.com.br, dirigida especial-
mente a professores em atividade e em formação.



1
A sociedade

brasileira:
características

sociolingüísticas
Objetivos: identificar as principais características sociolingüísticas da
sociedade brasileira e suas implicações para a educação.
Introdução

Caro(a) cursista,

Para começarmos a conversar sobre nossa língua ma-


terna e as tarefas que temos de realizar em sala de aula a fim de aju-
dar nossos alunos a desenvolverem sua competência comunicati-
va, escolhemos para você este pequeno trecho do livro Rememórias
Dois, de Carmo Bernardes, no qual o autor narra uma experiência
interessante dos seus primeiros dias na escola:

Entrei numa lida muito dificultosa. Martírio sem fim o não entender
nadinha do que vinha nos livros e do que o mestre Frederico falava.
Estranheza colosso me cegava e me punha tonto. Acho bem que foi
desse tempo o mal que me acompanha até hoje de ser recanteado e
meio mocorongo. Com os meus, em casa, conversava por trinta, tinha
ladineza e entendimento. Na rua e na escola - nada; era completamente
afrásico. As pessoas eram bichos do outro mundo que temperavam um
palavreado grego de tudo.

Já sabia ajuntar as sílabas e ler por cima toda coisa, mas descrencei e
perdi a influência de ir à escola, porque diante dos escritos que o mes-
tre me passava e das lições marcadas nos livros, fiquei sendo um quar-
ta-feira de marca maior. Alívio bom era quando chegava em casa.

Os meninos que arrumei para meus companheiros eram todos filhos


de baiano. Conversavam muito diferente do que estava escrito nos li-
vros e mais diferentes ainda da gente de minha parentalha. Custei a
danar a aprender a linguagem deles e aqueles trancas não quiseram
aprender a minha. Faziam era caçoar. Nestes casos, por exemplo: eu
falava “sungar”, os meninos da rua falavam “arribar”, e mestre Frederico
dizia “erguer”. Em tudo o mais era um angu-de-caroço que avemaria.

Um dia cheguei atrasado e dei a desculpa de que o relógio lá estava


“azangado”. Aí o mestre entortou o canto da boca e enrugou o couro
da testa e derreou a cabeça e ficou muito tempo assim de esguelha
fisgado em mim, depois estralou:

-O rélogio está o quê?!!

Ah, meu Deus... Tampei a cara com o livro, e uma coceira descomedida
nas popas me pôs a retocar e a esfregar no banco, como quem tinha
panhado bicho. Um menino que gostava muito de mim foi me salvar e
embaraçou-se todo também:

-Ele está dizendo que o relógio da casa dele “escanchelou”!


Mestre Frederico derreou a cabeça para o outro lado e tornou a


estralar:

-O quê!!!

Ajuntou a boca no maior afinco de estancar um riso quase vertente,


ínterim em que a risadagem já ia entornando na sala toda.

-Silên...cio!...

E, peculiarmente, a palmatória surrou miúdo no tampo da mesa. Em


tudo o mais era nesse teor. Era – não: é. Vivi até hoje empenhado na pe-
leja mais dura, com o viso de me acostumar a falar de acordo, e não sou
capaz. Em estando muito prevenido é que às vezes dou conta de puxar
mais ou menos os efes e erres, assim mesmo sujeito a desastrosas sila-
badas... Descuidei, que seja, resvalo, e quando quero acudir é tarde.

Sem maior esforço, dou conta de arrumar direitinho um fraseado com


aparência de erudito, e em pouco prazo estiro no papel uma chorola
certinha, conforme preceitua a gramática. Contar um caso bem conta-
do, com cautela de não dar motivos a enjoamento em quem vai ler, é
que não sou capaz porque tolhido dentro das regras que Mestre Frede-
rico me ensinou nunca pude armar uma estória que prestasse. A coisa
não se expressa, fica tudo pálido, enxabido, um negócio maninho que
não há que traga.

Só desaçaimado de tudo quanto é fiscalização de regras e formas, sou


capaz de ajeitar uma prosa sofrível. Aí vou desaloiando de dentro de
mim as palavras e as formas que trago na massa do sangue., olvido o
mundo que me cerca e me engolfo numa lembrança qualquer mal apa-
gada, e assim, às vezes arrumo uma escrita que não enfada muito.
(BERNARDES, Carmo. Rememórias Dois, Goiânia: Leal, 1969, pp. 18-20.)

Carmo Bernardes foi um grande escritor regionalista


nascido em Patos de Minas, em 1915, e já falecido. Seu nome ge-
ralmente é associado ao movimento literário regionalista goiano,
pois foi em Goiás que ele passou toda sua vida e ambientou vários
de seus livros, como Vida Mundo, Jurubatuba, Rememórias e Reme-
mórias Dois. Sua produção literária reflete com fidelidade a rique-
za da cultura rural da região onde nasceu e viveu. A narrativa que
lemos é uma retrospectiva de sua experiência na Escola Municipal
de Formosa – GO, município para onde sua família se mudou, trans-
portada por tropas de burros em 1915. O episódio relatado deve ter
ocorrido em meados da década de 20.

Ao ler o texto, você encontrou algumas palavras que


não fazem parte de seu repertório lingüístico. Você não as conhece
porque algumas delas são palavras e expressões características da
cultura rural da região Centro-Oeste onde o autor nasceu e foi cria-
do. Outras, além de pertencerem ao léxico regionalista também são
arcaicas, isto é, já não são usadas com freqüência, tendo sido pre-
servadas na cultura de grupos sociais mais isolados, como é o caso
das comunidades rurais. Há ainda no texto expressões que são mais
comuns na língua oral que na língua escrita. Vamos reler o texto
sublinhando essas palavras.


Entrei numa lida1 muito dificultosa. Martírio sem fim o não entender
nadinha do que vinha nos livros e do que o Mestre Frederico falava.
Estranheza colosso me cegava e me punha tonto. Acho bem que foi
desse tempo o mal que me acompanha até hoje de ser recanteado2 e
meio mocorongo. Com os meus, em casa, conversa por trinta, tinha la-
dineza3 e entendimento. Na rua e na escola - nada; era completamente
1 “Lida” – é um substantivo derivado afrásico4. As pessoas eram bichos do outro mundo que temperavam
do verbo ‘lidar’ que significa ‘trabalhar’ um palavreado grego de tudo.
ou ‘lutar’. Confira seu significado em
um dicionário. Os substantivos que são Já sabia ajuntar as sílabas e ler por cima toda coisa, mas descrencei5 e
formados de verbos com a junção das perdi a influência6 de ir à escola, porque diante dos escritos que o mes-
vogais – o,-a,-e ao radical do verbo são tre me passava e das lições marcadas nos livros, fiquei sendo um quar-
chamados deverbais, e o processo de ta-feira de marcar maior7. Alívio bom era quando chegava em casa.
sua formação é conhecido como deriva-
ção regressiva. Veja a pequena relação Os meninos que arrumei para meus companheiros eram todos filhos
abaixo e depois a complete para que de baiano. Conversavam muito diferente do que estava escrito nos li-
você fixe bem o processo de derivação vros e mais diferentes ainda da gente de minha parentalha8. Custei a
regressiva. Lembre-se de que ao traba- danar a aprender a linguagem deles e aqueles trancas9 não quiseram
lharmos com a formação das palavras, aprender a minha. Faziam era caçoar. Nestes casos, por exemplo: eu fa-
estamos no campo da Morfologia. lava “sungar”, os meninos da rua falavam “arribar”, e mestre Frederico di-
zia “erquer”. Em tudo o mais era um angu-de-caroço que avemaria.
lid + ar > lid + a (lidar > lida)
abal + ar > abal + o (abalar > abalo) Um dia cheguei atrasado e dei a desculpa de que o relógio lá estava
afag + ar > afag + o (afagar > afago) “azangado”. Aí o mestre entortou o canto da boca e enrugou o couro
enlaç + ar > enlac + e ( enlaçar > enla- da testa e derreou10 a cabeça e ficou muito tempo assim de esguelha11
ce) fisgado em mim, depois estralou:
chor + ar > chor + o ( _____> _______)
recu + ar > recu + o ( _____> _______) -O relógio está o quê?!!
toc + ar > toqu + e ( ______> _______)
busc + ar > busc + a ( _____> _______) Ah, meu Deus... Tampei a cara com o livro, e uma coceira descomedida
nas popas me pôs a retocar e a esfregar no banco, como quem tinha
2 “Recanteado” – é um adjetivo deri-
panhado12 bicho. Um menino que gostava muito de mim foi me salvar
vado do substantivo ‘recanto’. Confira
e embaraçou-se todo também:
no dicionário o significado de recanto,
mas lembre-se de que, entre os diver-
-Ele está dizendo que o relógio da casa dele “escanchelou”!
sos significados que o dicionário apre-
senta, você vai selecionar o significado Mestre Frederico derreou a cabeça para o outro lado e tornou a
adequado ao contexto. No nosso caso, o estralar 13:
significado é o de esconderijo. ‘Recante-
ado’ é, então, aquela pessoa que gosta -O quê!!!
de se isolar num lugar reservado. Ao se
referir ao menino como ”recanteado”, o Ajuntou a boca no maior afinco de estancar um riso quase vertente,
autor quis enfatizar seu temperamen- ínterim em que a risadagem já ia entornando na sala toda.
to introvertido. O adjetivo ‘mocorongo’
que também usou tem um significado -Silên...cio!...
semelhante. Confira-o no dicionário.
E, peculiarmente, a palmatória surrou miúdo no tampo da mesa.
3 “Ladineza” – é um substantivo deriva- Em tudo o mais era nesse teor. Era – não: é. Vivi até hoje empenhado
do do adjetivo ladino com o acréscimo na peleja14 mais dura, com o viso de me acostumar a falar de acordo, e
do sufixo – eza. É um caso de derivação não sou capaz. Em estando muito prevenido é que às vezes dou conta
sufixal, que ocorreu assim: ladin + eza. de puxar mais ou menos os efes e erres, assim mesmo sujeito a desas-
Escreva ao lado outros substantivos trosas silabadas... Descuidei, que seja, resvalo, e quando quero acudir é
formados com esse sufixo. Vamos agora tarde.
ao dicionário para ver o significado de
‘ladino’. Ladino é o mesmo que ‘astuto’, Sem maior esforço, dou conta de arrumar direitinho um fraseado com
‘esperto’. “Ladino” e ”ladineza” são pala- aparência de erudito, e em que pouco prazo estiro no papel uma cho-
vras que estão caindo em desuso, mas rola15 certinha, conforme preceitua a gramática. Contar um caso bem
não chegam a ser arcaísmos. contado, com cautela de não dar motivos a enjoamento em quem vai
ler, é que não sou capaz porque tolhido dentro das regras que mestre
Frederico me ensinou nunca pude armar uma estória que prestasse. A
coisa não se expressa, fica tudo pálido, enxabido16, um negócio mani-
nho17 que não há que traga.

Só desaçaimado18 de tudo quanto é fiscalização de regras e formas,
sou capaz de ajeitar uma prosa sofrível. Aí vou desalojando de dentro

10
de mim as palavras e as formas que trago na massa do sangue., olvido
o mundo que me cerca e me engolfo19 numa lembrança qualquer mal
apagada, e assim, às vezes arrumo uma escrita que não enfada muito.
(BERNARDES, Carmo. Rememórias Dois, Goiânia: Leal, 1969, pp. 18-20.)

O texto de Carmo Bernardes, além de nos ensinar mui-


tas palavras e expressões novas, que ilustram a riqueza da cultura e
4 “Afrásico” – não é uma palavra do lé-
da linguagem rural nos conduz a uma reflexão sobre a Língua Por- xico regionalista, como as outras que
tuguesa no Brasil, suas características e variação, especialmente as acabamos de ver. É uma palavra com-
diferenças entre o Brasil urbano e o Brasil rural. Vimos que o episó- posta com o prefixo a-, que herdamos
dio que o autor nos narrou transcorreu na década de 20. Como era do grego antigo e que tem o sentido de
negação. Afrásico significa que é mudo,
o Brasil naquele tempo? No ano de 2000, o IBGE iniciou um censo sem linguagem. É claro que o autor usou
que nos vai mostrar quantos somos e como a sociedade brasileira a palavra como um exagero, para enfati-
se constitui e se organiza. Vamos saber, então, quantos brasileiros zar a sua dificuldade de se expressar no
vivem no campo e quantos já estão radicados nas áreas urbanas. No ambiente da escola. O uso de exageros
para dar ênfase a um conceito é conhe-
censo de 1996, a população brasileira era de aproximadamente 157 cido como hipérbole.
milhões de habitantes, dos quais 78,35% viviam em área urbana e
21,6% em área rural. Ao longo dos dois últimos séculos, a população 5 ”Descrencei” – o verbo ‘descrençar’ é
do Brasil cresceu muito e houve uma intensa migração do campo formado pelo prefixo des-, de origem
latina, que contém a idéia de negação.
para as cidades. Observe na tabela seguinte esse processo. Em se- ‘Descrençar’, então, é perder a crença,
guida, complete a tabela com os dados referentes ao censo de 2000. mas na cultura rural em que Carmo Ber-
Esses dados você pode obter no IBGE. nardes foi criado, ‘descrençar’ significa
perder o entusiasmo, a motivação. Você
Tabela 1: Crescimento da população rural e urbana no certamente já ouviu pessoas usando
Brasil. esse verbo nessa acepção. E você? Tam-
bém tem o costume de usar o verbo
‘descrençar’ para significar a perda de
estímulo e motivação?

6 ”Influência” – essa palavra foi usada


no sentido de entusiasmo, animação.
Nesse sentido, a palavra é característica
das falas regionais e rurais. Confira-a no
dicionário.

7 ”Quarta-feira de marca maior” – essa


expressão equivale a ‘preguiçoso’, ‘relap-
so’, ‘descompromissado’. Observe que a
expressão, além de ter um caráter regio-
Como você pôde ver, quando a família de Carmo Ber- nalista, é também própria da linguagem
oral, coloquial.
nardes se radicou na zona rural de Formosa – GO, na década de 20,
assim como eles havia mais de 26 milhões de brasileiros vivendo no 8 Observe a formação do substantivo
campo.Vejamos agora na tabela 2 como esse processo de concentra- ‘parentalha’, com o sufixo -alha, que
ção populacional nas cidades teve conseqüências na escolarização. formam palavras de uso popular como
‘gentalha’.

Tabela 2: A evolução da alfabetização no Brasil. 9 ”Trancas” – é um regionalismo que sig-


nifica indivíduo que serve de empecilho
ou tem mau caráter. Confira-o no dicio-
nário.

10 O verbo ‘derrear’, que significa ‘arrear’,


tem hoje em dia uso restrito e é mais en-
contrado no linguajar rural.

Quando olhamos a tabela 2, ficamos animados ao ver


que o percentual de população não-alfabetizada vem diminuindo.
Mas não podemos nos deixar enganar com esse declínio nos nú-
meros percentuais, por várias razões: primeiro porque os números

11
11 “olhar de esguelha” quer dizer ‘olhar totais da população não-alfabetizada não têm um movimento des-
enviesado, ‘olhar de lado’. cendente e, sim, ascendente. Em segundo lugar porque, se exami-
narmos os dados com mais detalhamento, verificamos que o anal-
12 Em ‘panhado’ vemos a perda do pre-
fabetismo não atinge igualmente toda a população: concentra-se
fixo a-. Na história da Língua Portugue-
sa, temos muitas palavras que se preser- na população rural, que é, secularmente, a menos beneficiada no
varam com duas formas: com o prefixo processo de desenvolvimento do país. A tabela 3 mostra essa distri-
a- e sem esse prefixo. Exemplos desse buição. Os dados se referem aos censos de 1970 e 1980.
fenômeno são juntar/ajuntar; sentar/as-
sentar; soprar/assoprar; mostrar/amos-
trar; voar/avoar. Observe que, nesses Tabela 3: Taxas de alfabetização na população brasileira
pares de palavras, uma delas passou de 15 anos ou mais.
a ser a forma de prestígio, enquanto a
outra ficou restrita aos falares rurais. No
par ‘arreparar’/’reparar’, a primeira forma
hoje em dia só é encontrada no repertó-
rio de falantes de origem rural enquan-
to a segunda, é encontrada nos falantes
urbanos. Isso não significa que uma seja
errada e outra certa, como você já sabe.
Trata-se de duas variantes da mesma
palavra que caracterizam diferentes fa-
lares da nossa língua. Ao longo desta
unidade, vamos falar muito sobre essa
questão de variação, prestígio e precon-
ceito.

13 O verbo ‘estralar’ foi usado aí num


sentido figurado significando ‘esbrave-
jar’, ‘xingar’.

14 “Pelejar” é uma palavra de pouco uso


por pessoas de origem urbana, mas mui-
to empregada em áreas rurais. Significa
‘luta’, e, por extensão, ‘esforço’, ‘trabalho’.

15 “Chorola” é um termo regional que o


autor usou com o sentido de texto in-
formal.

16 “Enxabido” é o mesmo que ‘desenxa-


bido’, ou seja, ‘sem sabor’, insípido’. Confi-
ra no dicionário.
Ano base: 1996
17 “Maninho” é sinônimo de ‘esteril’, ‘não
aproveitável’.

18 O adjetivo “desaçaimado” é formado


com o prefixo-des, que você já conhece,
mais o verbo ‘açaimar’, que significa ‘pôr
um açaimo’, que é um tipo de cabresto
que se coloca em cavalo para montaria.
O adjetivo desaçaimado foi usado em
sentido figurado, isto é, ‘sem cabresto’,
‘sem repressão’.

19 Engolfar’ é uma palavra formada


com o prefixo em- ou en, de origem
latina que significa ‘movimento para
dentro’, como em ‘embarcar’, ‘enterrar’.
No texto foi usado em sentido figurado,
ou conotativo para significar ‘penetrar’,
‘mergulhar’.

12
Atividade

Com base nos dados percentuais da tabela 3, construa


dois gráficos sobre a distribuição da população não-alfabetizada no
Brasil: o primeiro contemplando a variável “localização de domicílio”
(rural e urbano) e o segundo contemplando a variável “gênero” (ho-
mens e mulheres). Leve seus gráficos para a sala de aula e os mostre
para seus alunos. Será interessante para eles descobrirem quais os
grupos sociais que mais sofrem com a falta de escolarização.

Reflita

1) – Por que o percentual de não-alfabetizados na zona


rural é quase o dobro do percentual de área urbana?

2) – Por que, na faixa de 15 a 19 anos, o percentual de


homens não-alfabetizados (7,9%) é muito superior ao percentual
de mulheres não-alfabetizadas (4,0%)? Observe que o mesmo fe-
nômeno está ocorrendo em proporções menores nas faixas de 20
a 24, de 25 a 29 e de 30 a 39 anos. Quando chegamos às faixas de
mais de 40 anos, a tendência se reverte: o percentual de mulheres
não alfabetizadas é superior ao dos homens não-alfabetizados. Que
características sócio-econômicas e culturais da sociedade brasileira
explicam essas tendências? Discuta essas questões com seus cole-
gas e, em seguida, com seus alunos.

Diversidade lingüística e pluralidade cul-


tural no Brasil
Voltemos agora à narrativa da experiência do autor Car-
mo Bernardes, na escola do Mestre Frederico. Ele nos fala de sua
experiência em casa, com sua parentalha, na rua com os “filhos de
baiano” e na escola onde encontrava um palavreado grego de tudo.
Esses são os três ambientes onde uma criança começa a desenvol-
ver o seu processo de sociabilização: a família, os amigos e a escola.
Podemos chamar esses ambientes, usando uma terminologia que
vem da tradição sociológica, de domínios sociais. Um domínio so-
cial é um espaço físico onde as pessoas interagem assumindo cer-
tos papéis sociais. Os papéis sociais são um conjunto de obrigações
e de direitos definidos por normas socioculturais. Os papéis sociais
são construídos no próprio processo da interação humana. Quando
usamos a linguagem para nos comunicar, também estamos cons-
truindo e reforçando os papéis sociais próprios de cada domínio.
Vejamos alguns exemplos. No domínio do lar, as pessoas exercem
os papéis sociais de pai, mãe, filho, filha, avô, tio, avó, marido, mulher,
etc. Quando observamos um diálogo entre mãe e filho, por exem-
plo, verificamos características lingüísticas que marcam ambos os
papéis. As diferenças mais marcantes são as intergeracionais (ge-
ração mais velha/geração mais nova) e as de gênero (homem/mu-
lher). Você, caro (a) cursista, conhece bem essas diferenças sociolin-

13
güísticas que ocorrem na interação no seio de sua própria família.
No segundo fascículo, você terá mais informações sobre esse tema.

Discuta
Este é um bom tema para você discutir com colegas,
amigos, com seus familiares e até com seus alunos: no ambiente
familiar, como os papéis que as pessoas exercem são determinan-
tes da linguagem que elas usam? Em outras palavras, quais as dife-
renças entre a linguagem do marido e da mulher, ou da mãe e dos
filhos?

Atividade
Com base na sua reflexão e discussão, monte com seus
alunos uma pequena peça de teatro em que fiquem bem claras as
diferenças lingüísticas observadas no interior da família e relaciona-
das aos papéis sociais.

Carmo Bernardes, nas suas memórias, nos diz que, com


seus parentes “conversava por trinta, tinha ladineza e entendimen-
to”. É, sem dúvida, no domínio do lar e da família onde nos sentimos
mais à vontade para conversar. Por isso, o menino em sua casa era
tão tagarela. Não se sentia constrangido. Podemos dizer que, nessas
circunstâncias, a pressão comunicativa sobre ele era mínima. Já na
escola...

Você pode observar que a transição do domínio do lar


para o domínio da escola é também uma transição entre uma cul-
tura predominantemente oral e uma cultura permeada pela escrita,
que vamos chamar de cultura de letramento. O menino Carmo Ber-
nardes, ao entrar na escola, já estava alfabetizado, mas não tinha fa-
miliaridade com a cultura de letramento. Sendo um menino criado
em zona rural, restrito ao âmbito da família, não entendia ‘nadinha
do que vinha nos livros e do que o Mestre Frederico falava’. Como
um mestre à moda antiga, nosso colega Frederico caprichava mui-
to na linguagem. Por exemplo em vez de falar ‘levantar’, falava ‘er-
guer’. Sua formalidade, associada ao seu rigor, contribuiu para criar
no menino um grande temor e insegurança lingüística. Temia não
estar falando ou se comportando à altura dos padrões ditados pelo
mestre. Por isso se calava. Você, que também é professor, já perce-
beu que as condições descritas por Carmo Bernardes são as que
contribuem para criar nos educandos a insegurança lingüística. Vol-
taremos a falar disso em muitos outros pontos de nossos fascículos
de Educação e Língua Materna.

14
Reflita
Vimos que o mestre Frederico era muito formal na sua
linguagem em sala de aula. Provavelmente era também formal
nos outros domínios sociais. Hoje em dia, encontramos poucas
pessoas que mantêm grande formalidade em suas interações. Mas
cabe aqui tomarmos um pouco de nosso tempo para refletirmos
sobre a seguinte questão: Os professores devem manter sempre
um estilo cuidado e formal em sala de aula? Ao contrário do do-
mínio do lar, onde predominam a afetividade e a espontaneidade,
o domínio da escola deve ser sempre marcado pela formalidade e
rigor no uso da fala?

Na sala de aula, como em qualquer outro domínio so-


cial, encontramos grande variação no uso da língua, mesmo na lin-
guagem da professora que, por exercer um papel social de ascen-
dência sobre seus alunos, está submetida a regras mais rigorosas no
seu comportamento verbal e não-verbal. O que estamos querendo
dizer é que, em todos os domínios sociais, há regras que determi-
nam as ações que ali são realizadas. Essas regras podem estar do-
cumentadas e registradas, como nos casos de um tribunal do júri
ou de um culto religioso ou podem ser apenas parte da tradição
cultural não-documentada. Em um ou outro caso, porém, sempre
haverá variação de lingüística nos domínios sociais. O grau dessa
variação será maior em alguns domínios do que em outros. Por
exemplo, no domínio do lar ou das atividades de lazer, observamos
mais variação lingüística do que na escola ou na igreja. Mas em to-
dos esses casos há variação porque a variação é inerente à própria
comunidade lingüística. Vamos nos deter na variação que se obser-
va na escola. Para começar, há as diferenças relacionadas aos papéis
sociais: professores, diretores, coordenadores, etc., desempenham
função de autoridade que lhes confere direitos especiais e também
obrigações, entre elas a de usar uma linguagem mais cuidada – que
podemos chamar também de monitorada – que a dos alunos. Há
também as diferenças relacionadas aos eventos que têm lugar na
escola: eventos de sala de aula são mais formais que eventos que
ocorrem na cantina ou no recreio. Mas, mesmo em sala de aula, há
eventos que são conduzidos com mais formalidade e mais monito-
ração lingüística que outros.

Em pesquisas conduzidas em escolas no Estado de


Goiás e no Distrito Federal, observamos que os professores monito-
ravam muito sua linguagem quando conduziam eventos que eram
mediados pela língua escrita, mas eram muito espontâneos em
eventos de estrita oralidade. Chamamos os primeiros de eventos
de letramento e registramos entre eles a aula de leitura, o ditado, a
fala simultânea à escrita no quadro negro, entre outros. Já os even-
tos de estrita oralidade são intervenções curtas do professor para
manter a disciplina ou passar informações que têm um alto grau de
dependência contextual, do tipo: “Abram o livro na página tal”. São
também eventos de oralidade brincadeiras que o professor faz com
o objetivo de criar uma atmosfera de maior envolvimento e afetivi-
dade. Estudando rigorosamente essas interações em sala de aula,

15
pudemos constatar uma ampla gama de variação lingüística. Nos
eventos de letramento, constatamos um alto grau de monitoração
na linguagem do professor; já nos eventos de oralidade, os profes-
sores se monitoravam menos e eram mais coloquiais. Essa forma in-
tuitiva de administrar a variação em sala de aula é salutar porque dá
ao aluno a oportunidade de interagir com um grau maior ou menor
de monitoração estilística. Voltaremos a essa questão brevemente.

Reflita
Propomos a você que reflita sobre o seu discurso em
sala de aula para verificar como esse discurso varia em relação à
formalidade. Em que momentos você se percebe monitorando seu
estilo? Em que momentos Você se sente mais livre para falar com
seus alunos?

Atividade
Convide um (a) colega para assistir à sua aula. Peça a
ele/ela para observar e anotar os momentos em que você varia seu
grau de monitoração estilística. Veja um exemplo recolhido em uma
4ª série do Ensino Fundamental em uma escola no DF, pela pesqui-
sadora Vera Aparecida de Lucas Freitas: (P – indica professora ; A
– indica aluno; + – indica pausa; xxx – indica trecho incompreensível
na gravação).

P – Pera aí. Só vai falar quem levantar o dedo + quem


tivé educação + vamu lá!
A – Comer frutas + comer bem...
P –...frutas + comer bem + bem + bastante frutas + só
frutas?
– Nãão! Bastante verduras...
P – Espera aí. + Ã?
A – fruta + verdura + (xxx) e bastante água.
P – ...tomá água + e aí? Então comer fruta e água + tá
bem alimentado?
AA – Nãão!
A –. ..tem que comê arroz + feijão.
P – Pera aí. Ã?
A – Cereais + cereais.
P – Verduras + cereais _ que mais?

Observe que, quando a professora está mais envolvida


com o conteúdo que está trabalhando, sua linguagem apresenta-
se mais monitorada. Quando intervém para organizar os turnos de
fala, como no primeiro enunciado, sua fala é mais espontânea, com
menos monitoração. Variações estilísticas como essas ocorrem em
qualquer sala de aula e você vai se surpreender quando analisar,
com seu colega, o seu próprio discurso e verificar que você varia o
grau de monitoração de sua fala como um recurso espontâneo para
obter um melhor relacionamento com seus alunos..

16
Veja agora um segundo exemplo, recolhido por nós em
uma escola rural multisseriada em Nerópolis, GO.

O professor está conduzindo um exercício de interpre-


tação de texto da segunda série:

(P. vai ao quadro e começa a escrever o exercício. Os


alunos copiam em silêncio; retoma a palavra quando conclui a
escrita.)

P. Quem sabe fazê aqui agora? Pest’enção aqui, ó. De-


pois cês copia aí, tá? Tá escrito aqui. (lendo do quadro) Responda.
Com quem se parecia o ? (pára de ler) Como é o nome da leitura lá?
Pega a leitura lá que cê sabe. Pega lá no livro, tá? É o quê? O palhaci-
nho. Como é o nome da leitura lá? Diga aí.

A. O palhacinho.
20 Chamamos hipercorreção ou ultra-
P. O palhacinho, né? Vamu trabalhá exatamente. O tra- correção o fenômeno que decorre de
balho é a leitura lá. Nós vamu vê se nóis entendemos o não o que tá uma hipótese errada que o falante reali-
escrito lá. Então vamu, tá? Tá escrito aqui, ó. (Lendo) Com que se pa- za num esforço para ajustar-se à norma
culta. Ao tentar ajustar-se à norma, aca-
recia o palhacinho? (Pára de ler.) Cê vai voltá lá naquela leitura lá. Vai
ba por cometer um erro. Por exemplo:
olhá. O palhacinho se parecia com um negócio lá. Com quê? Com pronunciar ‘previlégio’, imaginando que
um boneco. Então cê vai dizê. Parecia com um boneco, né? (Lendo) ‘privilégio’ é errado; pronunciar ‘bandei-
Por que todos gostavam dele? (pára de ler) tá? Por que todos gos- ja’ achando que ‘bandeja’ é errado. Pro-
nunciar ‘telha de aranha’ achando que
tavam dele? Depois (lendo) Qual era a maior felicidade do palha-
‘teia de aranha’ é errado. No exemplo
cinho? Como costumavam chamá-lo ? (Pára de ler) Tá? As crianças de sala de aula, o professor flexionou o
chamavam ele é (...) de um nome, sei lá. Um apelido lá, né? Qual era verbo ‘haver’ que, no sentido de ‘existir’.
esse apelido dele, tá? (lendo) Um dia o palhacinho chorou. Por que é impessoal. Ao escrever ‘haviam’ em vez
ele chorou? (pára de ler) Tá? Aí cê vai dizê qu’ele chorou por isso, por de ‘havia’, ele estava se ultramonitoran-
do e o resultado foi uma hipercorreção
isso, isso, isso, isso, assim, assim, tá? Isto tá escrito lá no livro. (lendo) decorrente de uma hipótese malsucedi-
Quantas crianças haviam mais o menos no palco? (pára de ler). Ele da.
entrô lá pra fazê a brincadeira com as crianças. Quantas crianças ti-
nha mais o menos lá, tá bom? Então cê vai respondê lá, olhanu no
livro e responde, tá?

(O P. volta-se para outros alunos e inicia outra


atividade.)
Nesse evento, é flagrante a mudança de estilo que o
professor realiza quando alterna a leitura e a linguagem oral. Após
a leitura de cada pergunta, redigida no quadro de giz com sintaxe
padrão, onde aparece até mesmo uma ultracorreção (em “haviam”)
20, ele fornece uma paráfrase, isto é, uma ‘tradução’ usando, então, o

dialeto local. Observe que, ao realizar um evento de letramento, o


professor usa o pronome átono enclítico: como costumavam cha-
má-lo ? Para em seguida ‘traduzir’ o enunciado em: As crianças cha-
mavam ele é....

Nesta segunda variante temos o emprego do pronome


reto ‘ele’ como objeto direto, regra que é muito comum no nosso
português oral. Geralmente, só empregamos os pronomes oblí-
quos átonos (o,a,os,as) na linguagem escrita e em estilos muito
monitorados.
17
Atividade
Percebemos variação em sala de aula não só na lingua-
gem do professor mas também na linguagem dos alunos, à medida
que eles vão aprendendo a alternar estilo monitorado com estilo
não-monitorado. Veja o exemplo seguinte de variação estilística no
repertório de alunos de 5ª série do Ensino Fundamental. O episódio
foi gravado pela pesquisadora Ilse de Oliveira em uma escola de
Goiânia.
Os alunos estão planejando oralmente o que vão es-
crever em um texto coletivo e os enunciados escritos/lidos se in-
tercalam com os enunciados falados. (Os enunciados lidos estão
assinalados)

A1 [lendo o que escrevera] e ele deixou nós irmos rap/


e ele deixou nós irmos. Rapidamente arrumamos nossas malas e sa-
ímos, e fomos.

A2 [lendo] ih: aí cê tá (xxx) e saímos e fomos. [falando] é


claro que se nóis saiu nós fomos. Não [lendo ] e fomos, e fomos, rap/
e e ele deixou nós irmos rapidamente arrumamos nossas malas e
fomos. [falando] apaga esse ponto aí e põe ‘e fomos’.

A3[falando] e falamos tchau e fomos.
A1[falando] não, e fomos, e a história tá grande demais.
A2[lendo] e nós despedimos.
A1[falando] nóis num vai terminá hoje não.
A2[falando] tem que escrevê muito uai, pra gente ga-
nhá nota.

Nesse exemplo, há uma radical mudança estilística


na realização dos turnos que são manifestações próprias da orali-
dade em relação aos turnos que constituem evento de letramento,
nos quais os alunos estão escrevendo e lendo simultaneamente.

Atividade
Queremos propor a você que observe seus alunos em
uma atividade como essa e verifique se eles já são capazes de al-
ternar entre um estilo monitorado e um estilo mais espontâneo. Se
você conseguir gravar um episódio como o que a Ilse de Oliveira
registrou, transcreva-o e apresente aos seus alunos. Eles vão achar
muito interessante a forma como usam a língua com competência.
Deixe claro para eles que não existe forma certa ou errada de fa-
lar, mas sim formas adequadas às diversas situações. Esta questão é
muito importante e vai ser mais trabalhada ao longo dos fascículos
de Educação e Língua Materna.

Convidamos você, mais uma vez, a retornar ao texto de


Carmo Bernardes, agora para conversarmos sobre a passagem em
que ele descreve sua experiência com colegas nordestinos que ele

18
chamou de “filhos de baiano” O nome não é pejorativo. O termo
“baiano” é usado em muitas comunidades do Centro-Oeste como
um termo genérico para se referir aos brasileiros provenientes das
regiões Norte e Nordeste.

O menino Carmo Bernardes percebia que seus colegas


nordestinos “conversavam muito diferente do que estava escrito
nos livros e mais diferente ainda da gente de sua parentalha”. Até as
crianças são sensíveis a certas diferenças regionais, que podemos
chamar também de diferenças dialetais. No Brasil, a variação regio-
nal se manifesta mais na pronúncia de alguns sons, no ritmo, na me-
lodia e em algumas palavras. O lingüísta Antenor Nascentes, depois
de viajar muito pelo Brasil, propôs uma divisão dialetológica em
duas grandes áreas dialetais: a Norte e a Sul, cada uma delas subdi-
vidida em subáreas. Veja o mapa proposto por Antenor Nascentes:

Aqui em Brasília convivemos com brasileiros provenien-


tes de todos os estados e você certamente é capaz de identificar
os sotaques nordestino, gaúcho, mineiro, etc. A principal marca
dos falares nordestinos são as vogais /e/ e /o/ pronunciadas aber-
tas quando vêm na sílaba pretônica. Por exemplo: f[é]iz, R[ó]berto,
r[é]dondo, r[é]moto, v[é]rdade, pr[ó]curar. Mas há também outras
marcas nesse sotaque, como o /t/ pronunciado como uma conso-
ante dental diante de /i/. A pronúncia dental do /t/ é a que realiza-
mos nas palavras “tudo”, “todo”, “telha”, “táboa”, etc. No Centro Sul do
país o fonema /t/ diante da vogal /i/ não tem pronúncia dental e sim
uma pronúncia palatal, que podemos representar assim: [tch], como
nas palavras “Tiago”,“tijolo”,“Tijuca”e “antigo”. Também no vocabulá-

19
rio, vamos encontrar diferenças. Em muitas áreas do Nordeste, as
pessoas dizem “tomar de conta”, enquanto no Centro-Sul se usa
“tomar conta’” No léxico da culinária, há muitas diferenças. A pala-
vra “canjica”, por exemplo, denota alimentos diferentes nas diversas
regiões. A canjica que comemos no Centro-Sul, em alguns pontos
do Nordeste é conhecida como “munguzá”. Também nos cortes de
carne bovina (filé, contrafilé, patinho, picanha etc) há muita varia-
ção. Você certamente conhece muitos outros exemplos de variação
dialetal no léxico.

Pesquise
Procure informar-se sobre qual o percentual de residen-
tes no AC que nasceram aqui e qual o percentual proveniente de
cada estado brasileiro.

Atividade
1. Com os dados obtidos construa uma tabela para mos-
trar aos seus alunos. Eles também poderão fazer um pequeno censo
na escola indicando a origem geográfica de todos os alunos, pro-
fessores e técnicos administrativos. Se os seus alunos já estudaram
números percentuais, esta é uma boa oportunidade de praticar esta
competência matemática, pois eles deverão apresentar os resulta-
dos do censo em totais e em números percentuais.

2. Com base no mapa proposto por Antenor Nascentes,


convide seus alunos para realizarem juntos a atividade de entrevis-
tar pelo menos cinco pessoas provenientes de cada um dos subfa-
lares, pedindo a elas que forneçam uma pequena lista de palavras e
expressões que consideram típicas de sua região. Complemente a
pesquisa, recolhendo exemplares de literatura representativos das
diversas regiões. Com esse material, monte um painel em sala de
aula reunindo os dados dialetais, gravuras, postais, mapas, artesana-
tos típicos referentes às regiões. Para a inauguração do painel, su-
gerimos que você e seus alunos convidem pessoas da comunidade
provenientes de outras regiões do Brasil para trocarem experiências
e passarem mais informações sobre sua terra natal.

Reflita
Sempre ouvimos falar que o português falado em um
estado ou uma região é ‘melhor’ que o de outras regiões. Será que
podemos considerar o dialeto de uma região melhor, mais bonito e
mais recomendável que os dialetos de outras regiões? Será que exis-
te algum estado brasileiro que use melhor a Língua Portuguesa?

Essas crenças sobre a superioridade de um dialeto ou

20
falar sobre os demais é um dos mitos que se arraigaram na cultura
brasileira. Todo dialeto ou falar é, antes de tudo, um instrumento
identitário, isto é, um recurso que confere identidade a um grupo
social. Ser nordestino, ser mineiro, ser carioca, etc. é um motivo de
orgulho para quem o é e a forma de alimentar esse orgulho é usar o
linguajar de sua região e praticar seus hábitos culturais. No entanto,
verifica-se que alguns falares ou dialetos têm mais prestígio no Bra-
sil como um todo que outros. Por que isso ocorre?

Em toda comunidade de fala onde convivem falantes


de vários dialetos, como é o caso das grandes metrópoles brasilei-
ras, os falantes que são detentores de maior poder e que gozam de
mais prestígio transferem esse prestígio para o dialeto que falam.
Assim, os dialetos falados pelos grupos de maior poder político e
econômico passam a ser vistos como dialetos mais bonitos e até
mais corretos. Mas esses dialetos que ganham prestígio porque são
falados por grupos de maior poder nada têm de intrinsecamente
superior aos demais dialetos. O prestígio que adquirem é mera-
mente resultado de fatores políticos e econômicos. O dialeto falado
em uma região pobre pode vir a ser considerado “um dialeto ruim”,
enquanto o dialeto falado em uma região rica e poderosa passa a
ser visto como “um bom dialeto”. Isso acontece em todos os países
entre os quais podemos citar a Espanha, a Itália e a França. Nesse
último país, por exemplo, o dialeto francês que adquiriu mais pres-
tígio e que hoje tem mesmo o status de língua nacional é o falado
na região de Paris, onde se estabeleceu primeiramente a Corte fran-
cesa e, depois da Revolução Francesa de 1789, a sede da República.
Quando um falar ou dialeto é alçado à condição de língua nacional
em virtude de um processo sócio-histórico, ele adquire maior pres-
tígio em detrimento dos demais. Lembre-se, porém, de que esses
juízos de valor são ideologicamente motivados e geram preconcei-
tos que devemos combater.

No Brasil, os falares das cidades litorâneas, que foram


sendo criadas ao longo dos séculos XVI e XVII, como Salvador, Rio de
Janeiro, Recife e Olinda, Fortaleza, São Luís, João Pessoa, entre ou-
tras, sempre tiveram mais prestígio que os falares das comunidades
interioranas. Isso se explica porque as cidades brasileiras que estão
voltadas para a Europa receberam um contingente muito grande
de portugueses nos dois primeiros séculos de colonização e desen-
volveram falares mais próximos dos falares lusitanos. Observemos
também que, até 1960, a capital do Brasil se situava no litoral, primei-
ro Salvador e depois o Rio de Janeiro. É natural que a cidade sede
do Governo tenha mais poder político e prestígio e esse prestígio,
como vimos, acaba por se transferir ao dialeto da região. No Brasil
de hoje, os falares de maior prestígio são justamente os usados nas
regiões economicamente mais ricas. Estamos vendo, então, que são
fatores históricos, políticos e econômicos que conferem o prestígio
a certos dialetos e, conseqüentemente, alimentam rejeição e pre-
conceito em relação a outros. Mas sabemos que esse preconceito é
perverso, não tem fundamentos científicos e tem de ser seriamente
combatido, começando na escola. Conhecemos bons professores

21
provenientes da Região Nordeste e dos estados de Goiás e Mato
Grosso que tiveram problemas para trabalhar em escolas particu-
lares em Brasília com a alegação, por parte dos dirigentes das es-
colas, de que sua fala seria ‘um mau exemplo’ para os alunos. His-
tórias como essas nos deixam indignados, mas precisamos tomar
conhecimento da magnitude e dos efeitos nefastos do preconceito
lingüístico para podermos nos municiar de informações científicas
e combatê-lo. Lembre-se de que a pluralidade cultural e a rejeição
aos preconceitos lingüísticos são valores que precisam ser cultiva-
dos a partir da educação infantil e do ensino fundamental.

Leia
Para entender melhor essa relação entre o prestígio dos
falantes e a construção de preconceito lingüístico, leia Preconceito
Lingüístico, de Marcos Bagno. (São Paulo: Edições Loyola, 1999).

A comunidade de fala brasileira

Continuando nossa reflexão sobre nossa língua mater-


na e o desenvolvimento da competência comunicativa dos educan-
dos, convidamos você a ler a historinha O limoeiro de Maurício de
Sousa (Chico Bento, nº 354)

Legendas:

CB: Chico Bento.

L: Limoeiro

P: Pai do Chico Bento.

M: Mãe do Chico Bento.

> este símbolo indica o interlocutor

CB> L: Vixi! Como você cresceu!


Inté parece qui foi onte qui prantei esse limoeiro!
Agora, já ta cheio di gaio! Quase da minha artura!
Como o tempo passa, né?
Uns tempoatrais, ocê era este tamanho!
Fiz um buraquinho i ponhei ocê inda muinha drento!
Protegi os ventos, do sol, das geada...
...i nunca deixei fartá água!
Imagina si eu ia deixá ocê passá sede!
Hoje você ta desse tamanhão!
Quero vê o ia im qui ocê tive mais grande qui eu!
Imagina só! Cum uns gaio cumprido cheio i limão i umas
foia bem larga, pra da sombrapra quem tive dibaixo!
Ai, num vô percisá mais mi precupá coce, né, limoeiro?

22
Pruque ai ocê vai ta bem forte!
Vai sabê si protegê do vento, do sor i da geada, sozinho!
I suas raiz vão ta tão cunprida qui ocê vai podê buscá
água por sua conta!
Ocê vai sê dono doce mermo!
Sabe, limoeiro... Tava pensando...
Acho qui ispois, vai sê eu qui vô percisá docê!
Isso é... Quando eu ficá mais veio!
Claro! Cum uns limão tão bão qui ocê tem...
...i a sombra qui ocê dá, pode mi protegê inté dos pingo
di chuva!
Ocê vai fazê isso, limoeiro?
Cuidá de mim tamém?
Num importa!
O importante é qui eu prantei ocê!
I é ansim qui eu gosto! Do jeito qui ocê é.
P> M: Muié...tem reparado como nosso fio cresceu?

O personagem Chico Bento é uma criação muito feliz


da equipe de Maurício de Sousa, pois permite às crianças com an-
tecedentes urbanos familiarizarem-se com a cultura rural, conhe-
cendo muitas expressões dessa rica cultura que, hoje em dia, tem
pouco espaço na literatura e nos meios de comunicação. Chico
Bento pode-se transformar em nossas salas de aula em um símbo-
lo do multiculturalismo que ali deve ser cultivado. Suas historinhas
são também ótimo recurso para despertarmos em nossos alunos
a consciência da diversidade sociolingüística. Apesar disso, houve
um momento na década de 80 em que o Conselho Nacional de Cul-
tura queria proibir a publicação na revista, alegando que ela ser-
via de mau exemplo às crianças brasileiras, que passariam a falar
“errado” como Chico Bento. Felizmente, o bom senso prevaleceu e
Chico Bento continuou sua trajetória, encantando as gerações que
se seguiram.

Reflita
Essa posição do Conselho Nacional de Cultura refle-
te preconceitos arraigados contra as manifestações culturais dos
segmentos da população brasileira que são portadores de uma
cultura predominantemente oral e têm pouco acesso à cultura de
letramento escolar. Reflita sobre essa postura, juntamente com seus
colegas e alunos.

23
Atividade
Escreva um ‘editorial’ para o jornal (ou jornal mural) de
sua escola com o seguinte título: “Por que o personagem21 Chico
Bento é bem-vindo em nossa escola?” Peça aos seus alunos que
também escrevam ao Chico Bento para dizer a ele por que gostam
(ou não gostam) dele. As cartas poderão ser enviadas para a Editora
Maurício de Sousa/Editora Globo, Rua Teodoro da Silva nº 907 – Rio
de Janeiro, ou pela internet para a página http://editoraglobo.com.
br

Atividade
Nos balões da historinha do Chico Bento, você encontra
palavras e expressões que são características dos falares rurais. Faça,
junto com seus alunos, uma lista dessas palavras, colocando ao lado
a variante que você usa para escrever ou para compor seus estilos
monitorados na língua oral. Faça assim:

Em nosso trabalho de Educação e Língua Materna, te-


mos falado muito em variação lingüística, em variedades e dialetos,
em estilos e monitoração estilística, e também temos visto muitos
exemplos. Chegou a hora de sistematizarmos um pouco essas in-
formações. Já vimos que, em toda comunidade de fala, há sempre
variação lingüística. Isso quer dizer que qualquer comunidade, seja
pequena como um distrito semi-rural pertencente a um município,
ou grande, como uma capital, um estado ou um país, apresentará
sempre variação lingüística, que decorre de vários fatores como:

Grupos etários

Já vimos que, no interior da família, há diferenças so-


ciolingüísticas intergeracionais: os avós falam diferente dos filhos e
dos netos, etc. O mesmo ocorre na sociedade como um todo.

Gênero

Também sabemos que homens e mulheres falam de


maneiras distintas. As mulheres costumam usar mais diminutivos,
mais partículas como “né?”, “tá?”, “tá bom?”, que são chamadas de
marcadores conversacionais e que cumprem várias funções na con-
versa. No caso dos marcadores que são mais usados pelas mulheres,
eles têm principalmente a função de obter aquiescência e concor-
dância do interlocutor. A linguagem dos homens, por outro lado, é
mais marcada pelos chamados palavrões e gírias mais chulas. Mas

24
não se esqueça de que essas variações entre os repertórios femini-
no e masculino são relacionadas aos papéis sociais que, conforme já
aprendemos, são culturalmente condicionados.

Status socioeconômico

As diferenças de status socioeconômico representam


desigualdades na distribuição de bens materiais e de bens culturais,
o que se reflete em diferenças sociolingüísticas. Este fator é muito
relevante, considerando que, em nosso país, a distribuição de renda
é excessivamente desigual.

Grau de escolarização

Os anos de escolarização de um indivíduo e a qualidade


das escolas que freqüentou também têm influência em seu reper-
tório sociolingüístico. Observe que esses fatores, na sociedade bra-
sileira, estão intimamente ligados ao status socioeconômico.

Mercado de trabalho

As atividades profissionais que um indivíduo desempe-


nha também são um fator condicionador de seu repertório sociolin- 21 Na tradição gramatical do portu-
güístico. Certos profissionais, como os professores, os jornalistas, os guês a palavra ‘personagem’ é um
advogados, os juízes, etc., precisam ter maior flexibilidade estilística substantivo feminino (a personagem),
e ser capazes de variar sua fala numa gama de estilos, dominando mas o uso da língua a vem consagran-
do como substantivo masculino. Vá ao
com segurança os estilos mais monitorados. Em outras profissões
dicionário e verifique qual o gênero
exige-se menos o domínio de estilos monitorados. consignado nesta palavra.

Rede social

Há um provérbio popular que diz: “Dize-me com quem


andas e eu te direi quem és”. Esse adágio sintetiza um conceito so-
ciológico muito importante: cada um de nós adota comportamen-
tos muito semelhantes ao das pessoas com quem convivemos em
nossa rede social. Por isso, sabemos que a rede social de um indiví-
duo, constituída pelas pessoas com quem esse indivíduo interage
nos diversos domínios sociais, também é um fator determinante
das características de seu repertório sociolingüístico.

Todos esses fatores representam os atributos de um fa-


lante: sua idade, sexo, seu status socioeconômico, nível de escolari-
zação, etc. Podemos dizer que esses atributos são estruturais, isto é,
fazem parte da própria individualidade do falante. Há outros fatores
que não são estruturais, mas, sim, funcionais. Resultam da dinâmica
das interações sociais. Podemos, então, dizer que a variação lingüís-
tica depende de fatores socioestruturais e de fatores sociofuncio-
nais. Mas não podemos nos esquecer de que aquilo que a gente é
influencia aquilo que a gente faz. Então, na prática, os fatores estru-
turais se inter-relacionam com os fatores funcionais na conforma-

25
ção dos repertórios sociolingüísticos dos falantes. Além disso, ao es-
tudarmos a variação lingüística, levamos em conta, também, fatores
lingüístico-estruturais, tais como o ambiente fonológico em que o
segmento que está em variação ocorre, a classe da palavra, a estru-
tura sintática, etc. Em suma, os fatores lingüístico-estruturais podem
ser fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos, pragmáticos e
até discursivos. Você verá exemplos desses fatores ao longo de nos-
sos módulos de Língua Materna e Educação.

Já deu para você ver que o estudo da variação lingüís-


tica é complexo. Sua complexidade equivale à da própria ação hu-
mana, por sua vez, determinada por fatores biológicos, psicológicos,
sociológicos e culturais. Na próxima seção vamos estudar a variação
do português do Brasil, valendo-nos de uma metodologia que faci-
lita a nossa compreensão do fenômeno da variação.

Analisando o Português do Brasil


As gramáticas mais antigas, ao descrever o Português do
Brasil, propõem distinção entre língua padrão, dialetos, variedades
não-padrão, etc. Nós mesmos já empregamos essa terminologia em
seções anteriores. Mas vamos evitá-las daqui para frente por dois
22 A palavra ortografia é formada pe- motivos: primeiro porque a terminologia tradicional carrega uma
los radicais gregos orto, que significa forte dose de preconceito, haja vista o uso do advérbio ‘não’ como
correto, padrão e grafia, que significa prefixo, e segundo porque ficamos com a impressão de que existem
escrita fronteiras rígidas entre essas entidades, o que não é verdade.

Para entendermos a variação no português do Brasil,


vamos propor a você que imagine três linhas, a que vamos chamar
de contínuos, e que são:

• Contínuo de urbanização
• Contínuo de oralidade-letramento
• Contínuo de monitoração estilística

Tomemos primeiro a linha imaginária “contínuo de ur-


banização”. Em uma das pontas dessa linha nós imaginamos que
estão situados os falares rurais mais isolados; na outra ponta estão
os falares urbanos que, ao longo do processo sócio-histórico, foram
sofrendo a influência de codificação lingüística, tais como a defini-
ção do padrão correto de escrita, também chamado ortografia22,
do padrão correto de pronúncia, também chamado ortoépia e da
composição de dicionários e gramáticas. Enquanto os falares rurais
ficavam muito isolados pelas dificuldades geográficas de acesso,
como rios e montanhas, as comunidades urbanas sofriam a influ-
ência de agências padronizadoras da língua, como a imprensa, as
obras literárias e, principalmente, a escola. Nas cidades também se
desenvolvia o comércio e, depois, a indústria; ali se instalavam as
repartições públicas civis e militares, as organizações religiosas e
outras instituições sociais que são depositárias e implementadoras
da cultura de letramento. No âmbito dessas instituições são usados

26
preferencialmente estilos monitorados da língua tanto na modali-
dade escrita quanto na oral. Conforme já vimos, há domínios sociais
em que predomina uma cultura de oralidade, por exemplo, o do-
mínio do lar e há outros, como o domínio da escola, dos hospitais,
dos escritórios, das repartições públicas, etc., onde predomina uma
cultura de letramento.

O contínuo de urbanização pode ser representado de


acordo com o colocado no próximo tópico:

Variedades rurais isoladas/área rurbana/variedades urbanas


padronizadas

Em um dos pólos do contínuo, estão as variedades ru-


rais usadas pelas comunidades geograficamente mais isoladas. No
pólo oposto, estão as variedades urbanas que receberam a maior
influência dos processos de padronização da língua, como vimos.
No espaço entre eles fica uma região rurbana. São grupos rurbanos
os migrantes de origem rural que preservam muito de seus antece-
dentes culturais, principalmente no seu repertório lingüístico e as
comunidades interioranas residentes em distritos ou núcleos semi-
rurais, que estão submetidas à influência urbana, seja pela mídia,
seja pela absorção de tecnologia agropecuária.

Se tomarmos o contínuo de urbanização como uma


metodologia para análise, podemos situar qualquer falante do por-
tuguês brasileiro em um determinado ponto do contínuo, levando
em conta a região onde ele nasceu e vive. O escritor Carmo Ber-
nardes, por exemplo, que nasceu e passou a infância em zona rural,
estaria situado no pólo rural do contínuo. Porém, como ele viveu e
trabalhou a maior parte de sua vida em área urbana, tornando-se
um literato, que, por definição, é um partícipe da cultura de letra-
mento, sua melhor localização no contínuo será no pólo urbano. Já
o personagem Chico Bento é um representante legítimo das popu-
lações que vivem no pólo rural do contínuo. E você? Em que ponto
do contínuo você se localiza? E seus pais e avós? Estariam eles mais
próximos do pólo rural que você? Muitos de nós, brasileiros residen-
tes em áreas urbanas, temos antepassados de origem rural.

Atividade
Desenhe para seus alunos o contínuo de urbanização.
Peça que eles se situem no contínuo e situem também seus pais.
Discuta com eles o fenômeno da migração rural-urbana do século
XX no Brasil. Em seguida, peça a eles que escrevam sua autobio-
grafia focalizando a transição rural-urbana em sua própria família.
Para isso, será preciso que façam pesquisa junto aos parentes mais
velhos. Ao fazer a pesquisa, incentive-os a gravar histórias contadas
por seus pais, tios e avós. Os trabalhos que os alunos mais aprecia-
rem deverão ser divulgados na escola.

27
No contínuo de urbanização não existem fronteiras rígi-
das que separem os falares rurais, rurbanos ou urbanos. As frontei-
ras são fluidas e há muita sobreposição entre esses tipos de falares.
Por isso, em vez de considerá-los como entidades em nossa análise,
vamos propor a você uma análise mais funcional, que é a seguinte:
quando interagimos com brasileiros nascidos e criados na região
rural ou rurbana do contínuo de urbanização, observamos muitos
usos lingüísticos que são diferentes dos nossos. Vimos isso na nar-
rativa de Carmo Bernardes e também na historinha do Chico Bento.
Você mesmo já fez uma lista de palavras e expressões usadas pelo
Chico Bento e que não aparecem com freqüência na sua linguagem.
Dê uma olhada em sua lista. Alguns itens ali são típicos dos falares
situados no pólo rural do contínuo e que vão desaparecendo à me-
dida que nos aproximamos do pólo urbano do contínuo. Dizemos,
então, que esses traços têm uma distribuição descontínua porque
seu uso é “descontinuado” nas áreas urbanas. Há outros traços na
nossa listinha do Chico Bento que estão presentes na fala de todos
os brasileiros e, portanto, se distribuem ao longo de todo o con-
tínuo. Esses traços, ao contrário dos outros, têm uma distribuição
gradual. Vamos chamar os primeiros de traços descontínuos e os
últimos de traços graduais. Observe que os traços descontínuos são
os que recebem a maior carga de preconceito nas comunidades ur-
banas. Para que essas idéias fiquem mais claras, vamos classificar os
traços que identificamos na historinha do Chico Bento entre traços
descontínuos e traços graduais. Pode ser que você não concorde
totalmente com essa classificação. Não se preocupe com isso. Essa
classificação tem ainda um caráter muito preliminar. Para uma clas-
sificação mais definitiva entre traços descontínuos e graduais no
português falado no Brasil, precisamos conhecer mais as caracte-
rísticas do português que falamos em todo o Brasil. Vamos, então,
passar ao nosso exercício.

Comentemos, agora, a classificação que demos a cada


um dos itens de nossa lista.

• ‘inté’ – é uma forma arcaica da preposição ‘até’. Esse


arcaísmo se conservou no pólo rural do contínuo e praticamente

28
desapareceu dos falares urbanos, por isso foi considerado traço
descontínuo. Observe que muitas formas encontradas hoje no pólo
rural do contínuo são arcaísmos que se preservaram e podem ser
encontrados em obras literárias antigas, como Os Lusíadas, poema
épico escrito pelo português Luís Vaz de Camões, para celebrar as
descobertas marítimas de seus patrícios e publicado em 1572.

• ‘limoero’ – o sufixo –eiro é pronunciado quase sem-


pre –ero. Os ditongos ‘ei’ e ‘ai’ seguidos dos fonemas /r/, /n/, /j/ ten-
dem a ser reduzidos, tornando-se vogais simples /e/ e /a/. Exem-
plos: cade(i)ra, ca(i)xa, be(i)jo, ribe(i)ra, etc. Todos esses são traços
graduais.

• ‘prantei’ – a troca de /l/ pelo /r/ nos grupos conso-


nânticos, como em bloco/broco, problema/probrema/pobrema é
encontrada em falares rurais e rurbanos e, às vezes, até em falares
urbanos. Preferimos classificar ‘prantei’ como um traço descontínuo,
considerando que esse fenômeno é recebido com muita estigmati-
zação e preconceito na cultura urbana.

• ‘artura’ – a troca do /l/ pós vocálico por /r/, é fenô-


meno típico dos falares rurais igualmente recebido com muito
preconceito.

• ‘ocê’ – o pronome de tratamento ‘você’ se deriva do


tratamento antigo ‘vossa mercê’, que seguiu o seguinte percurso:
‘vossa mercê’> ‘vosmecê’> ‘você’> ‘(o)cê’. As formas ‘ocê’e ‘cê’, são
muito usadas em estilos não monitorados por todos os brasileiros
conforme podemos ver na canção de Gilberto Gil, Estrela.

“Há de surgir uma estrela no céu cada vez que ocê sorrir
Há de apagar uma estrela no céu cada vez que ocê chorar”.

Ou na música cantada por Elba Ramalho.



“Faz tempo que não te vejo,
Quero matar meu desejo
Te mando um montão de beijo
Ai que saudade de ocê”.

Pesquise
Pesquise, com seus alunos, outras músicas em que apa-
recem as variantes ‘ocê’ ‘cê’ do pronome de tratamento ‘você’. O em-
prego de ‘cê’ e ‘ocê’ é um bom indicador de estilos não-monitorados
e seus alunos poderão usá-lo para identificar o grau de formalidade
de estilos, tanto nas interações face a face quanto na televisão e no
rádio. Bom trabalho!

• ‘ponhei’– o verbo ‘pôr’ é irregular e no pretérito-per-


feito é conjugado assim: pus, puseste, pôs, pusemos, pusestes, pu-
seram. Nos falares rurais, porém, o pretérito-perfeito é formado em

29
analogia com os verbos regulares (cantei/casei/falei, etc.) usando-
se, como base, a forma do pretérito imperfeito (punha, punhas, etc.)
A forma ‘ponhei’ é, pois, uma regularização que segue um processo
de analogia. Observe que formações analógicas como essa são mui-
to comuns na linguagem de crianças pequenas, que dizem coisas
como : ‘eu descei’, ‘já chegui’etc. Mas a variante ‘ponhei’ é uma forma
estigmatizada nas comunidades urbanas letradas e é, praticamen-
te, restrita ao pólo rural do contínuo. Por isso, a catalogamos como
traço descontínuo.

• ‘sor’– é variante da palavra sol em que o /l/ pós vocá-


lico é realizado como /r/. É a mesma regra fonológica que vimos em
‘artura’. A flutuação entre /l/ e /r/ pós-vocálico, é própria das comuni-
dades situadas no pólo rural do contínuo, onde também podemos
ouvir ‘galfo’/ garfo; ‘calvão’/carvão. Você certamente conhece outros
exemplos de flutuação entre esses dois fonemas. Faça uma listinha
dos exemplos de que você se lembrar.

• ‘dexei’– nesta forma verbal, o primeiro ditongo /ei/


foi reduzido a /e/, como em ‘limoero’, que já vimos. Observe que em
‘dexei’, o ditongo que está na sílaba átona pretônica foi reduzido,
mas o mesmo ditongo que está na sílaba tônica final se preservou.
De fato, os segmentos fonológicos das sílabas tônicas tendem a ser
mais resistentes a mudanças fonológicas. No entanto, ditongo /ou/
reduz-se a /o/ tanto em sílabas átonas não-finais, quanto em sílabas
tônicas não-finais e finais. Veja: ‘outro’> ‘otro’; ‘outono > ‘otono’; ‘en-
trou’ > ‘entrô’. Se compararmos então, o que está acontecendo com
o ditongo /ei/ e com o ditongo /ou/, vamos concluir que a regra de
redução do ditongo /ou/ se aplica a uma gama maior de ambientes
do que a regra de redução do ditongo /ei/. Isso é um indicador para
nós de que a primeira já está mais avançada no processo de evolu-
ção da língua que a segunda.

• ‘tivé’- essa forma verbal ocorreu no seguinte enun-


ciado: ‘quero vê o dia im qui ocê tivé mais grande qui eu’. Há mui-
tos comentários a fazer sobre esta fala do Chico Bento, começando
pelo ‘tivé’. Nesse contexto, a forma ‘tivé’ é variante de ‘estiver’, que é
futuro do subjuntivo do verbo ‘estar’, que perdeu a sílaba inicial es- e
o fonema /r/ final. A forma ‘tivé’ também pode ser variante de ‘tiver’,
que é o futuro do subjuntivo do verbo ‘ter’. Vamos ver exemplos de
‘estiver’ e ‘tiver’:

Amanhã, se eu ainda estiver doente, não irei à aula.

Amanhã se eu tiver febre não irei à aula.

Classificamos ‘tivé’ como um traço gradual porque a


perda – ou aférese – da sílaba inicial es- no verbo ‘estar’ é um tra-
ço generalizado no português do Brasil, especialmente nos estilos
não-monitorados. Igualmente a perda do /r/ final nos infinitivos ver-
bais e nas formas do futuro do subjuntivo é um traço gradual.

• ‘dibaxo’– nessa variante do advérbio ‘debaixo’ apli-

30
caram-se duas regras que já são nossas conhecidas: a redução da
vogal pretônica /e/ > /i/ e do ditongo /ai/ > /a/. Ambas as regras têm
caráter gradual.

• ‘percisá’– nessa palavra, vemos que o fonema /r/ al-


terou sua posição no interior da sílaba: /precisar/ > / percisá/. Essa
regra, que é conhecida como metátese, é muito comum nos falares
rurais. Na evolução do português arcaico para o português moder-
no, ocorreram muitos casos de metátese. Exemplos:

‘semper’ (latim) > ‘sempre’; ‘desvariar’ > ‘desvairar’.

• ‘dispois’– é uma forma arcaica de ‘depois’ que ainda


se conserva nos falares rurais.

• ‘muié’– nessa variante de ‘mulher’, típica do pólo ru-


ral do contínuo, temos a aplicação de duas regras: a vocalização da
consoante lateral palatal /lh/ e a perda do /r/ final. A primeira regra
tem caráter descontínuo e pode ser observada em /filho > fio/; /
palha > paia/; /trabalha > trabaia/. A perda do /r/ final é um traço
gradual. Observe que essa perda é mais freqüente nos infinitivos
verbais, mas também, ocorre em substantivos como ‘mulher’,‘colher’
ou em adjetivos como ‘maior’, ‘melhor’, etc.

• ‘dos vento’; ‘umas foia’ nesses dois casos temos sin-


tagmas nominais, ou frases nominais, cujo núcleo é um substantivo
( ‘folhas’ e ‘ventos’. Os sintagmas nominais são formados de um nú-
cleo nominal e de outros elementos chamados determinantes, que
podem ser artigos definidos (o, a, os, as); artigos indefinidos ( um,
uma, uns, umas) ou pronomes (demonstrativos, indefinidos, posses-
sivos, etc). Podem ocorrer também adjetivos no sintagma nominal.
No português padrão, principalmente na modalidade escrita, os
determinantes e adjetivos concordam em gênero e número com o
núcleo do sintagma.

Assim: ‘Todos aqueles cidadãos corruptos serão proces-


sados’. Veja como o plural nesse exemplo ficou marcado de maneira
redundante.

Mas no português oral, nos estilos não-monitorados, há


uma tendência a evitar a redundância, flexionando-se só o primei-
ro elemento do sintagma, como ocorreu nos balõezinhos do Chico
Bento. Esse é um traço gradual, pois aparece no pólo rural do contí-
nuo, mas também nas comunidades rurbanas e urbanas. De fato, é
uma regra muito generalizada em nossa língua, sobre a qual volta-
remos a falar. Por enquanto, vamos desenvolver uma atividade.

31
Atividade
Faça uma gravação de sua interação em sala de aula.
Peça, também, autorização para gravar um de seus colegas dando
aula. Depois grave uma interação sua em casa, com seus familiares.
Ouça com atenção as gravações e faça uma lista dos sintagmas no-
minais cujo núcleo é (semanticamente) plural. Verifique em quantos
deles houve flexão de todos os elementos flexionáveis e em quan-
tos a marca de plural foi usada apenas no primeiro elemento.

Vamos treinar esse exercício, usando a linda canção Cui-


telinho da cultura popular, que você pode ouvir na voz de Nara Leão
ou de Milton Nascimento.23

Cheguei na bera do porto


Onde [as onda] se espaia.
[As garça] dá meia volta,
senta na bera da praia.
E o cuitelinho não gosta
23 No livro A Língua de Eulália, de nos- Que o botão da rosa caia.
so colega Marcos Bagno, publicada Quando eu vim de minha terra,
pela Editora Contexto, você poderá Despedi da parentaia.
ler mais sobre a eliminação de marcas Eu entrei em Mato Grosso,
redundantes de plural e vai encontrar, Dei em [terras paraguaia].
na página 45, comentários sobre a letra Lá tinha revolução,
da canção Cuitelinho. BAGNO, Marcos A
Enfrentei [fortes bataia].
Língua de Eulália - Uma novela sociolin-
güistica. São Paulo: Contexto, 1997.
A tua saudade corta
24 O escritor Eduardo Bueno publicou Como o aço de navaia.
a coleção Terra Brasilis em três volumes O coração fica aflito,
dedicados ao descobrimento do Brasil Bate uma e outra faia.
e às primeiras décadas de colonização. E [os oio] se enche d’água
Bueno, Eduardo A Viagem do Descobri- Que até a vista se atrapaia.
mento. Rio de Janeiro: Objetiva,1998.
Colocamos entre colchetes os sintagmas nominais plu-
rais. Em todos eles, aplicou-se a regra dos estilos não-monitorados
do português brasileiro, que marca o plural nos sintagmas nominais
só uma vez.

Como essa é uma regra gradual – que se encontra no re-


pertório de praticamente todos os brasileiros, independentemente
de seus antecedentes geográficos, requer muita de nossa atenção
em sala de aula, porque é preciso que os alunos que usam a varian-
te sem redundância na sua linguagem oral, espontânea, aprendam
a se monitorar para usar a variante com plurais redundantes nos
estilos monitorados e na linguagem escrita.

32
Atividade
Peça a seus alunos que tragam letras de músicas, grava-
ções espontâneas e outros materiais e façam juntos uma pesquisa
dos sintagmas nominais.

Em seguida, peça para que selecionem trechos de


obras literárias contemporâneas e artigos de jornais e revistas. Fa-
çam ‘uma caçada’ aos sintagmas nominais plurais e observem como
em todos se aplica a regra dos plurais redundantes. Veja um peque-
no exemplo, retirado do livro A Viagem do descobrimento, de Eduar-
do Bueno24. Onde estão marcados os sintagmas nominais plurais
em que se aplicou a regra da marcação redundante, isto é, todos os
elementos flexionáveis dos sintagmas foram pluralizados para con-
cordarem com o núcleo plural. No texto ocorrem algumas palavras
que não são de uso comum no português contemporâneo. Procure
o significado delas no dicionário.

Na manhã seguinte, 22 de abril, com o vento ainda soprando de leste, o


vôo rasante [dos fura-buxos] levou [os homens] a repicarem [os sinos]
e se apinharem [nos tombadilhos]. Ao contrário de Colombo, que “não
conhecera o sono” ao longo [dos 36 dias] em que navegara pelo Atlân-
tico disposto a concretizar o sonho impossível de atingir [as Índias]
pelo rumo do poente, não há indícios de que Cabral não tenha dormi-
do [noites impávidas] durante [os 43 dias] em que estivera no mar.

Ainda assim, e talvez por isso mesmo, enquanto o alvoroço tomava


conta [dos embarcadiços], Pedr’Álvares, de 32 anos, mais um militar do
que propriamente um navegador, ajoelhou-se em frente à imagem de
Nossa Senhora da Esperança, que ele próprio escolhera como padro-
eira da viagem e mandara entronizar num altar erguido no convés da
capitânia. Era uma oração legítima: [os santos do céu] (e [os deuses do
mar] ) pareciam de fato estar do seu lado. Então, a cerca de 70 quilôme-
tros da costa, [nas horas] de véspera25, mais com alívio e prazer do que
com surpresa ou espanto, o capitão e [seus pilotos], [os marinheiros] e
[os soldados], [os sacerdotes] e [os degredados], acotovelados todos à
mureta das naus, puderam vislumbrar o cume de “um grande monte
mui alto e redondo” erguendo-se no horizonte longínquo. Ao entarde-
cer, depois de avançar cautelosamente por mais 40 quilômetros, a frota
deparou26 com [outras serras, mais baixas], esparramando-se ao sul do
grande monte. Silhuetadas contra o crepúsculo, cercadas por [terras
chãs], elas surgiram vestidas por um arvoredo denso que avançava
quase até o limite [das águas claras], [das quais] as separava apenas
uma estreita faixa de areia.

A seis léguas da costa (ou cerca de 36 quilômetros), a armada lançou


âncoras. Elas mergulharam 34 metros no mar esverdeado antes de to-
car o fundo arenoso.

Estava descoberto o Brasil. (BUENO, 1998).

Neste texto, como você viu, todos os sintagmas no-


minais plurais seguiram a regra da marcação redundante, isto é, a
marcação de plural em todos os elementos flexionáveis. Não foram
marcados sintagmas cujo núcleo é semanticamente plural, mas em
que não ocorrem outros elementos flexionáveis (ex, ‘seis léguas’),
já que o nosso objetivo aqui é verificar o processo de marcação re-
dundante do plural nos sintagmas nominais, que nossas gramáticas

33
chamam de concordância nominal de número.

Voltemos agora ao enunciado de Chico Bento:

‘quero vê o dia im qui ocê tivé mais grande qui eu’.

Observe primeiro que a preposição ‘em’ foi realizada ‘im’;


da mesma forma o pronome relativo ‘que’ foi realizado ‘qui’ Ambos
são monossílabos átonos e, nesse ambiente, a vogal /e/ é pronun-
ciada /i/ e a vogal /o/ é pronunciada /u/. Veja alguns exemplos:

‘A festa foi em [em > im] Rio Branco’.


‘Fui com [com > cum] meus amigos’.
‘Quem que [que > qui] vai comigo’?

25 ‘Horas de véspera’ era uma das sete Este mesmo fenômeno de redução das vogais /e/ e /o/
partes em que se dividiam as horas ca- em monossílabos átonos é observado em sílabas pretônicas e em
nônicas. Equivaliam ao período entre sílabas átonas finais. Vamos voltar brevemente a esse assunto. Por
15 horas e o pôr-do-sol.
enquanto, basta observarmos que a redução27 das vogais médias
26 Observe que o verbo ‘deparar’ não /e/ e /o/ em sílabas átonas é um traço característico da pronúncia
foi usado como pronominal. De fato, a do português do Brasil presente no repertório da qualquer comuni-
regência mais recomendada desse ver- dade de fala, sejam rurais, rurbanas ou urbanas.
bo é sem pronome.. Exemplo:‘Eu depa-
rei com um vulto na esquina’. Ou então:
Ainda em relação à fala do Chico Bento que estamos co-
‘Um vulto se me deparou na esquina’.
A construção ‘Eu me deparei com um mentando, você certamente observou que ele usou ‘mais grande’
vulto na esquina’ é uma hipercorreção, em vez de ‘maior’. A forma comparativa ‘mais grande’ é mais empre-
que está se generalizando no Portu- gada nas comunidades situadas no pólo rural do contínuo. No pólo
guês contemporâneo. Confira isso em urbano, em estilos monitorados usa-se mais a variante ‘maior’.
um dicionário de Verbos e Regimes..

27 Dizemos que a mudança do /e/ em Até agora discutimos o contínuo de urbanização, e vi-
/i/ e do /o/ em /u/ é uma redução por- mos como podemos situar qualquer falante do português do Brasil
que, como você já viu, as vogais /e/ e nesse contínuo. Aprendemos também que as regras fonológicas
/o/ são médias e as vogais /i/ e /u/ são que marcam o português no Brasil podem ser classificadas como
altas. As vogais altas são pronunciadas
descontínuas ou graduais. Vamos passar agora para os dois outros
com a boca mais fechada, o que resulta
em menor energia acústica. Por isso, a contínuos: o de oralidade – letramento e o de monitoração estilística
passagem de /i/ para /e/ e de /o/ para para, depois, usarmos todos os três em nossa análise e discussão.
/u/ representa uma redução. Volta-
remos a falar sobre isso porque essa Você já percebeu que, em nossa linha imaginária que
regra tem muitas conseqüências na
chamamos de contínuo de urbanização, os domínios onde predo-
alfabetização e na escrita dos alunos
em geral e é muito produtiva em nos- mina a cultura de letramento estão situados na ponta da urbaniza-
so Português. ção enquanto na outra ponta só vamos encontrar domínios onde
predomina a cultura de oralidade. Usamos o contínuo de urbaniza-
ção para situar os falantes de acordo com seus antecedentes e seus
atributos. Vamos agora usar outra linha imaginária, outro contínuo,
ao longo do qual vamos dispor os eventos de comunicação, confor-
me sejam eles eventos mediados pela língua escrita, que chama-
remos de eventos de letramento, ou eventos de oralidade, em que
não há influência direta da língua escrita. O nosso contínuo pode
ser imaginado assim:

Eventos de oralidade – Eventos de letramento

34
Como no caso do outro contínuo, não existem frontei-
ras bem marcadas entre os eventos de oralidade e letramento. As
fronteiras são fluidas e há muitas sobreposições. Um evento de le-
tramento, como uma aula, pode ser permeado de minieventos de
oralidade. Para fazermos a distinção entre eventos de letramento e
oralidade, vamos nos lembrar de que nos primeiros, os interagentes
se apóiam em um texto escrito, que funciona como uma pauta de
uma partitura musical. Esse texto pode estar presente no ambiente
da interação ou pode ter sido estudado ou lido previamente. Num
ofício religioso, por exemplo, o padre, rabino ou pastor, ao proferir
seu sermão, está realizando um evento de letramento, seja porque
ele tem diante de si o roteiro escrito de sua fala, seja porque ele
preparou previamente esse roteiro escrito, no qual introduziu pas-
sagens bíblicas. Uma conversa à mesa de bar é um evento de orali-
dade, mas, se um dos participantes começa a declamar um poema
que ele recolheu em suas leituras, o evento passa a ter influências
de letramento.

O terceiro contínuo que propomos para facilitar nossa


análise do português brasileiro é o de “monitoração e estilística”.
Nesse contínuo, vamos desde as interações totalmente espontâne-
as até aquelas que são previamente planejadas e que exigem muita
atenção do falante. Ao longo de nossas discussões de Educação e
Língua Materna, temos mostrado que os falantes alternam estilos
monitorados, que exigem muita atenção e planejamento e estilos
não-monitorados, realizados com um mínimo de atenção à forma
da língua. Nós nos engajamos em estilos monitorados quando a
situação assim o exige, seja porque nosso interlocutor é poderoso
ou tem ascendência sobre nós, seja porque precisamos causar uma
boa impressão ou seja ainda porque o assunto requer um trata-
mento muito cerimonioso. De modo geral, os fatores que nos levam
a monitorar o estilo são: o ambiente, o interlocutor e o tópico da
conversa. Observe que, com um mesmo interlocutor, o estilo poderá
tornar-se mais ou menos monitorado em função do alinhamento
que assumimos em relação ao tópico e ao próprio interlocutor. Para
passar de uma “conversa séria” e uma “brincadeira”, podemos mudar
nosso estilo. Quando vamos mudar de estilo passamos metamensa-
gens ou pistas, que podem ser verbais ou não-verbais e que trans-
mitem informações do tipo: “isto é uma brincadeira”,“estou falando
sério”, “estou ralhando com você”. A variação ao longo do contínuo
de monitoração estilística tem, portanto, uma função muito impor-
tante de situar a interação dentro de uma moldura. As molduras
servem para orientar os interagentes sobre a natureza da interação.:
Se é uma “brincadeira”, uma “declaração de amor”, uma “queixa”, uma
‘”admoestação”, um ”xingamento”, uma “explicação”, uma ‘”crítica”, um
“pedido de ajuda”, etc.

Agora que já sabemos bastante sobre os contínuos ima-


ginários de urbanização, de oralidade/letramento e de monitoração
estilística, que nos ajudam a entender melhor as características do
português usado no Brasil, vamos examinar trechos de fala obtidos
em diversos tipos de interação, isto é, interações com diversas mol-
duras, e que foram recolhidos em várias regiões do Brasil.

35
A primeira fala foi produzida por um carpinteiro, com
pouca escolarização, residente na cidade de Brazlândia, no DF, e
proveniente de área rural de Minas Gerais. Quando a entrevista foi
feita, em 1980, ele tinha 54 anos e já residia no DF há 24 anos.

Quanto ao contínuo de urbanização, esse senhor pode


ser situado na região rurbana do contínuo, uma vez que tem ante-
cedentes rurais, mas radicou-se em área urbana a partir dos trin-
ta anos. Observe na fala dele os traços descontínuos e os traços
graduais.
Quanto ao contínuo de oralidade/letramento, situamos
o evento no pólo da oralidade, porque a interação não foi mediada
pela língua escrita. Quanto ao contínuo de monitoração estilística,
observamos que o falante estava se monitorando porque falava
com uma pessoa estranha e sua fala estava sendo gravada.

1 - De uns tempo pra cá, ninguém qué roça mais. Num


certo ponto eu dô razão, eu mesmo fui um desses que saí da roça
por causa disso, né? Que eu não tinha terreno de meu, morava de-
pendente de oto, de fazendero. Fazenderos não dão cuié de chá
mesmo, né? Tem que plantá, planta, tem que parti à meia, ota hora
à terça, né?”28
28 Os dois primeiros episódios foram
O segundo episódio tem as mesmas características do
coletados no livro: BORTONI-RICARDO;
Stella Maris, The urbanization of rural primeiro, em relação aos três contínuos. A falante é uma dona-de-
dialect speakers - a sociolinguistic study casa de 59 anos, mineira, de origem rural e de pouca escolarização,
in Brazil, Cambridge University Press, residente na cidade de Brazlândia desde os 37 anos de idade.
1985.
2 - O qu’eu tô comprendenu de poco tempo pra cá é
negoçu de reporti. Qu’eu cumpanho nutiça, reporti de rádio e tele-
visão, que agora qu’eu tô aprendenu, nunca tinha usado nem tele-
visão, que a gente morava na roça, e mesmo aqui né, mesmo aqui,
é de pocos tempo pra cá que os menino deu conta de comprá um
rádio.”

Examinando os dois trechos, verificamos que no re-


pertório de ambos os informantes ocorrem traços descontínuos,
próprios da variedade rural, como, por exemplo, a vocalização da
lateral palatal /lh/ (“cuié”), ou a redução do ditongo crescente átono
final /ia/ (“nutiça”). Se os comparamos, porém, fica evidente que o
informante do sexo masculino está situado no continuum rural-ur-
bano mais próximo do pólo urbano que a informante do sexo femi-
nino. Ambos têm a mesma faixa etária, são nascidos e criados em
zona rural na mesma região de Minas Gerais. O carpinteiro havia mi-
grado para a periferia de Brasília aos 30 anos de idade e, por ocasião
da pesquisa, já residia em área urbana há 24 anos. A dona de casa
veio para o Distrito Federal com 37 anos e já vivia em área urbana há
22 anos quando foi entrevistada. A história social de ambos é, pois,
muito semelhante. A diferença em suas posições no continuum ru-
ral-urbano se explica em função das características de suas redes de
relações sociais. No caso do carpinteiro, sua rede é mais heterogê-
nea e aberta. Já a dona de casa, assim como a maioria das mulheres

36
casadas daquela comunidade, mantém-se muito isolada em uma
rede fechada, restrita aos familiares e à vizinhança. A diferença na
estrutura das redes sociais explica porque o repertório da dona-de
casa se alterou pouco depois de sua migração para uma região me-
tropolitana. Como o carpinteiro está exposto a relações mais hete-
rogêneas e variadas, adquiriu novos hábitos lingüísticos depois de
sua mudança para o Distrito Federal. Você pôde constatar nesses
dois exemplos que o gênero (sexo do falante) e, conseqüentemen-
te, os papéis sociais que os falantes assumem em função do gênero
e de suas redes sociais têm influência em seus hábitos lingüísticos.

Os três episódios seguintes foram gravados em um


bairro proletário de Teresina, capital do Piauí, estado do Nordeste
brasileiro que apresenta a menor renda per capita do país29 Nos
dois primeiros episódios, temos trechos de uma reunião da asso-
ciação de moradores do bairro. Os antecedentes dos interagentes
são ‘rurbanos’. Como você já sabe, estamos denominando rurbanas’,
valendo-nos de terminologia da antropologia social, as comunida-
des urbanas de periferia, onde há forte influência rural na cultura e
na língua.

Os eventos são de oralidade, porque não sofrem influ-


ência de um texto escrito. O estilo é monitorado nos momentos em
que o/a falante primário/a, ou seja, aquele que é detentor da pala- 29 Os dados foram coletados pela Pro-
fessora Maria da Glória Soares Barbosa
vra, se dirige a todo o grupo ou quando um membro do grupo se Lima, para sua dissertação de mestra-
dirige, em voz alta, ao coordenador da reunião. O estilo é não-moni- do, defendida na UFPI e posteriormen-
torado quando os membros do grupo fazem comentários paralelos, te publicada (LIMA, Maria da Glória S.
em voz baixa e entre si. B., Os usos cotidianos de escrita e as im-
plicações educacionais: uma etnografia,
Teresina: EDUFPI, 1996.
3 – Presidente: Bem gente, tratano da distribuição das
fossa, primeiro que quero avisar que nóis recebemos só cinqüenta
fossa, mais vamo recebê mais. Antão, nóis tamo propono dois crite-
ro pa distribuição: o primero é que só vai recebê aquelas pessoa que
tá mermo precisando de u’a fossa e segundo é a orde de inscrição
nessa lista que nóis fizemo. O que que vocês acha?

Associado (dirigindo-se ao Presidente): Eu só num acho


justo porque eu só sube da lista há poquin’ os dia.

Associada (dirigindo-se a uma amiga): Eu num disse


muié qu’eu ia sobrá?”

Presidente: Pra vocês tê toda informação é preciso par-


ticipá das reunião... É muito bom a gente só recramá.

4 – Vice-Presidente: Mi’a gente, sabe porque isso acon-


tece, é porque vocês do Parque Alvorada num sabe se mexê. Só vem
aqui na reunião condo ouve falá que tem argu’a coisa pa ser doada.
Assim num dá. Vocês só sabe criticá nóis, mais na hora de ir atrás dos
binifiçu, ninguém apareceu.... Eu nunca vi gente tão incomodada
cuma o povo daqui... só qué vem a nóis.

Associado 1 (dirigindo-se ao Vice-Presidente): No meu

37
entendimento a diretoria é pa fazê isso mesmo... O negoçu é qu ‘es-
ses home nem lembra de nóis, só na inleição....

Associado 2 (dirigindo-se ao Vice-Presidente ): É, Só lem-


bum de nóis na hora do voto.

Presidente: As coisa num se arranja façu assim não. Ou a


gente se une, trabaia e luta junto.... “

Tanto na linguagem dos líderes da comunidade — pre-


sidente e vice-presidente — como na dos demais membros da as-
sociação, observam-se traços descontínuos (‘critero; ‘negoçu’; ‘bi-
nifiçu’ ‘façu’, etc.), próprios dos falares que se posicionam no pólo
rural do contínuo de urbanização. Observam-se também traços
regionais, como a vocalização da nasal palatal /ñ/ [ ‘minha’> mi’a’]
[‘poquinhos’> ‘poqui’os’].

Ambos os líderes estão monitorando o seu estilo, uma


vez que estão desempenhando um papel social que pressupõe um
uso mais cerimonioso da língua. Seu estilo monitorado é marcado
por diversas pistas: voz alta, postura corporal, léxico próprio de dis-
cursos, etc.

É preciso observarmos, a esta altura, que os falantes que


se posicionam no continuum rural-urbano próximos ao pólo rural,
não dispõem de recursos comunicativos usados na viabilização de
estilos monitorados na variedade urbana letrada. No entanto, tam-
bém variam seus estilos. Quando a situação requer, usam estilos
monitorados. Observe que os estilos monitorados de um falante de
antecedentes rurbanos ou rurais são diferentes de estilos monito-
rados de falantes de antecedentes urbanos. A questão dos recursos
comunicativos que viabilizam a mudança de estilo é muito impor-
tante, principalmente para nós, educadores. Ainda neste fascículo,
voltaremos a refletir sobre isso.

No episódio seguinte, um falante da mesma comunida-


de de Teresina emprega um estilo monitorado adequado ao even-
to, um leilão. Leilões constituem eventos de fala muito especiais
que exigem dos leiloeiros habilidades lingüísticas específicas. No
exemplo a seguir, o leiloeiro situa-se no pólo urbano do contínuo
de urbanização. Quanto ao contínuo de oralidade/letramento, clas-
sificamos o evento como de oralidade. Em relação ao contínuo de
monitoração estilística, já observamos que o estilo empregado pelo
leiloeiro é monitorado.

5. Leiloeiro: Atenção, atenção, meus amigos! Iniciamos


agora o grande leilão de São Francisco, da noitada dos casais e es-
peramos contar com a participação de todos. /.../ Meus amigos, ve-
jam que beleza! Um pudim! Tá uma maravilha! Quem dá mais? Cin-
co reais? Sete? Sete!? Opa, sete e meio. /.../ Agora um frango assado!
Parece mais um peru, olhem o tamanho !! Que maravilha! Começan-
do com dez mil cruzeiros reais... onze ! Doze mil!... Treze /.../ catorze
mil... Quem dá mais? Haja quem dê mais? Tô batendo e vou bater!!

38
Eu grito uma! Duas! Duas e meia! E... três! E o nome do freguês. “

Não ocorre neste texto qualquer traço descontínuo. So-


mente um traço gradual, que é a aférese (queda) da sílaba inicial do
verbo “estar”.

No episódio 6, temos a mudança de estilo monitora-


do, para o estilo não-monitorado no repertório de um falante de
antecedente urbano e de alto nível de escolarização. A mudança
de estilo dá-se em função da mudança de moldura, que, conforme
vimos, enquadra o evento, de acordo com uma tipologia cultural-
mente definida (brincadeira, conversa séria, reza, discurso, ‘cantada’,
piada, etc).

O presidente de um colegiado acadêmico universitário


está conduzindo uma reunião com seus pares. No decorrer de uma
exposição, para obter melhor eficácia discursiva, vale-se da narrati-
va de uma fábula. Ao fazê-lo, altera seu estilo. Observam-se em seu
estilo não-monitorado algumas regras variáveis de caráter gradual,
que não estão presentes em seu estilo monitorado.30

6. Professor: /.../ o risco muito grave é de se ferir frontal- 30 Os dados foram coletados pela
mente o princípio de Arquimedes (+++) dois corpos (=) ou dois titu- Professora Cibele Brandão de Oliveira,
lares ou duas pessoas não podem ocupar ah:: (+) ao mesmo tempo da Universidade de Brasília, para sua
(=) o mesmo lugar no espaço (+) ou o mesmo cargo na administra- dissertação de Mestrado Do discurso
formal para o informal: um estudo da
ção pública (=) ENTÃO (=) na verdade (+) lógico (+) ninguém tem o variação estilística no meio acadêmi-
dom da da da ubiqüidade (+) não é? e conseqüentemente (+) em co, Universidade de Brasílial, 1997. Os
termos de aposentados isto não se aplica de FORMA NENHUMA (+) símbolos usados nesta transcrição e
mas é como a história do macaco/ (+) até (+) o macaco tava corren- nas seguintes foram copiados dos ori-
do porque até provar-se que ele não era elefante (+) ele tava liqui- ginais e têm as seguintes significações
: /../ = trecho não transcrito; (+) = pausa;
dado (+) tavam degolando tudo quanto era elefante na selva (+++) :: = alongamento do som; maiúsculas =
ele começou a correr (+) então agarraram o macaco (+) Macaco (+) ênfase (pronúncia mais alta e mais for-
por que que cê tá correnu? (+) rapaz (+) é que tão degolando tudo te).
quanto é elefante (+) (narrativa enunciada em ritmo acelerado) (
risos sobrepostos à fala) não (+) é verdade (+) mas (+) mas (+) (+)
você não é elefante! Você é macaco (+) ah:: (+) então prove isso (+)
(risos) cê tá louco! /.../ “

Nos dois episódios finais, vamos comparar a linguagem


de dois pré-adolescentes. O primeiro é um menino de rua. Embora
viva fisicamente na cidade, não está inserido na cultura urbana. Sua
rede de relações sociais é constituída de outros meninos de rua, de
marginais e policiais. Eventualmente tem contato com assistentes
sociais. No continuum rural-urbano, localiza-se próximo do pólo ru-
ral e sua linguagem apresenta variáveis descontínuas e graduais. É
analfabeto.

O evento é de oralidade. Seu estilo é monitorado, por-


que ele está conversando com uma pesquisadora e está sendo fil-
mado, condições que o levam a prestar atenção à sua fala31.

7. Pesquisadora: Você quer contar como os policiais


mataram o Adauto?

39
Menino: Nóis tava dormino lá na casa, às treis hora da
manhã, aí os PM chegaro, deu um tiro na porta, pegô na perna do
XX aí em seguida ez arrebentô a porta, aí deu oto tiro, pegô na ca-
beça do Adauto, ez viro que tinha acertado o Adauto. Falaro : “vamo
saí fora que certô o menino aqui”... saiu tudo correno os policiais, aí
desci de cima do armário, corri na porta pa vê se eu via o número
da viatura déze ma num consegui, voltei lá o Adauto já tava quaise
parano o coração dele, fiz massage nele, consegui dexá ele viveno
mais um poco, foi eu... foi eu e o XX buscá socorro pra ele.

Pesquisadora: E onde vocês foram?


Menino: Nóis fomo nu’a casa, lá em frente, aí o home
deu sistença pra nóis.
Pesquisadora: É? Levou o menino pro hospital?
Menino; Levou os dois.
Pesquisadora: Ah, e aí?
Menino: Aí eu fui dormi lá no horto, aí no oto dia que eu
vim aqui na Catedral e contei pos povo aqui, aí fui no hospital c’a tia,
aí vi o Adauto lá no CTI.”
31 Os dados foram coletados pela
O último episódio foi selecionado de dados recolhidos
pesquisadora Maria Avelina de Carva-
lho para sua dissertação de mestrado em uma entrevista sociolingüística em uma escola, com uma aluna
defendida na Universidade Federal de de 11 anos, que chamaremos de Elaine (E)32.
Goiás (CARVALHO, M.A. Tô vivu: histó-
rias dos meninos de rua, Goiânia: CE- A entrevista está discutida detalhadamente na disser-
GRAF/Universidade Federal de Goiás,
tação de Vera Freitas (1996). A entrevistadora participa do evento
1991.
como representante da instituição escola e a aluna como usuária
32 O episódio foi retirado da disserta- da instituição. Ela pertence a uma família de classe social desfavore-
ção de mestrado da professora Vera cida, filha de mãe iletrada. Freqüenta uma escola pública, localizada
Aparecida Freitas, defendida na UnB, em uma área nobre do Distrito Federal, que atende a uma clientela
em 1996, com o título A variação esti-
de classe social mista. O pai é pedreiro e zelador do lote no qual mo-
lística de alunos de 4ª série em ambiente
de contato dialetal. ram. Sua mãe é dona de casa. A aluna tem dois irmãos, um menino
de oito anos e uma menina de seis, que estudam na mesma escola
de Elaine. Moram em um barraco muito pobre, nos fundos de um
lote onde está sendo construída uma casa. Sua mãe não trabalha
fora, embora de vez em quando preste algum tipo de serviço na
vizinhança, para ganhar um dinheiro extra e ajudar no sustento da
família. (E) é muito inteligente e bastante desinibida. Gosta muito
de cantar, dançar e assistir televisão. Pretende ser cantora quando
crescer. Na vizinhança ela não tem amigos. Seus relacionamentos
de amizade são todos na escola com o grupo de colegas. Divide seu
tempo entre as atividades escolares, um pouco de lazer em casa com
a família e desempenhando pequenos afazeres domésticos. Seus
pais são extremamente conservadores e sua educação é muito rígi-
da. Ela não tem permissão para sair de casa, senão em companhia
dos pais ou de um parente mais velho, como por exemplo uma tia. A
família não está ligada a nenhuma religião, portanto não freqüenta
nenhuma igreja e não faz parte de nenhuma comunidade religiosa.
Entretanto, a menina acredita em Deus e o vê “como alguém que
possui muitas qualidades”.

Quanto ao primeiro contínuo, (E) e seus irmãos situam-

40
se no pólo urbano; seus pais têm antecedentes rurbanos. Quanto
ao segundo contínuo, identificamos o evento como de letramento,
pois a menina, à medida que falava, folheava livros e cadernos. Fi-
nalmente, quanto ao contínuo de monitoração estilística, seu estilo
é monitorado, pois estava conversando com uma professora razoa-
velmente desconhecida para ela, e a moldura que definiu o evento
era a de uma entrevista que, segundo a própria entrevistadora, em
alguns momentos quase se caracterizava como uma sabatina.

8. (E) - É a cadeia alimentar + né? O ciclo da vida puque


cada uma vai comendo um animal ou um vegetal pra se alimentá
/.../
(E) -A - Isso aqui é a vida na água + fala assim + da fotos-
síntese + né como é que eles respira + como é que as plantas fabri-
ca seu próprio alimento + fabricam [corrigindo] o oxigênio para os
peixes respirarem. Aqui a cadeia alimentar/.../

(E) - (passando a folha do livro) Isso aqui nós vamu


aprendê. Isso aqui também. Sim + esse aqui foi como a + o homem
e a água + né? Como o homem + começou + né + a utilizá a água
e como ele tá precisando + como ele precisa da água. Esse aqui é
água vezes progresso. (continua passando as folhas). Agora esse +
as plantas + o sol + né + que já é capítulo onze. Aqui é as camadas
de um terreno + que o solo com a argila + a areia + húmus + ca-
mada de argila. Esse aqui fala sobre o surgimento e a evolução do
solo. No capítulo treze tem o home que + que ele modifica o solo +
que ele coloca + assim + coisas + que ele modifica o solo. Que ele
provoca erosões às vezes. Os minerais e o homem + né + que fa +
fala sobre rochas...

41
2
A variação lingüística

em sala de aula

Objetivos: refletir sobre a variação lingüística no repertório


dos professores e dos alunos de ensino fundamental.
Nessa seção, vamos conversar um pouco mais sobre o
episódio do ‘relógio azangado’ que Carmo Bernardes nos contou.
O Mestre Frederico teve uma reação típica dos professores antigos
que acreditavam ser sua obrigação coibir severamente os usos da
língua que se desviassem da norma considerada culta. Até hoje, os
professores não sabem muito bem como agir diante dos chamados
‘erros de português’. Estamos colocando a expressão erros de por-
tuguês entre aspas porque a consideramos inadequada e precon-
ceituosa. Erros de português são tão-somente diferenças entre va-
riedades da língua. Com freqüência essas diferenças se apresentam
entre a variedade usada no domínio do lar, onde predomina uma
cultura de oralidade, em relações permeadas pelo afeto e informa-
lidade, como vimos, e a cultura de letramento, que é cultivada na
escola.

É no momento em que o aluno usa flagrantemente


uma regra não-padrão e o professor intervém, fornecendo a varian-
te padrão, que os dois dialetos se justapõem em sala de aula. Como
proceder nesses momentos é uma dúvida sempre presente entre
os professores. Nas últimas duas décadas, os educadores brasileiros,
com destaque especial para os lingüistas, seguindo uma corrente
que nasceu da polêmica entre a postura que considera o ‘erro’ uma
deficiência do aluno e a postura que vê os chamados ‘erros’ como
uma simples diferença entre dois dialetos ou variáveis, fizeram um
trabalho importante, mostrando que é pedagogicamente incorreto
usar a incidência do erro do educando como uma oportunidade
para humilhá-lo. Ao contrário, uma pedagogia que é culturalmente
sensível aos saberes dos educandos está atenta às diferenças entre
a cultura que eles representam e a da escola e mostra ao profes-
sor como encontrar formas efetivas de conscientizar os educandos
sobre essas diferenças. Na prática, contudo, esse comportamento é
ainda problemático para os professores, que ficam inseguros sem
saber se devem corrigir ou não, que erros devem corrigir ou até
mesmo se podem falar em erros.

Em pesquisas de sala de aula que conduzimos ou orien-


tamos, identificamos alguns padrões principais na conduta do pro-
fessor perante a realização de uma regra lingüística não-padrão pe-
los alunos:
• O professor identifica “erros de leitura”, isto é, erros na
decodificação do material que está sendo lido, mas não faz distin-
ção entre diferenças dialetais e erros de decodificação na leitura,
tratando-os todos da mesma forma.

• O professor não percebe uso de regras não-padrão.


Isto se dá por duas razões: ou o professor não está atento ou o pro-
fessor não identifica naquela regra uma transgressão porque ele
próprio a tem em seu repertório. A regra é, pois, “invisível” para ele.

• A professora percebe o uso de regras não-padrão e


prefere não intervir para não constranger o aluno.

44
• O professor percebe o uso de regras não-padrão,
não intervém, e apresenta, logo em seguida, o modelo da variante
padrão.
O padrão de comportamento da professora em relação
ao uso de regras não-padrão pelos alunos depende basicamente
do tipo de evento em que estas são utilizadas. Como regra geral,
observamos que quase nunca os professores intervêm para corrigir
os alunos durante a realização de eventos de oralidade, que, como
já vimos, são realizados sem exigência de muita monitoração.

Vejamos alguns exemplos de intervenção dos professo-


res, identificando eventos de oralidade e de letramento.

1. A (aluno/a) Hoje é vinte e quatro?


P. (professor/a) São vinte e cinco

Este é excepcionalmente um caso de intervenção regis-


trada em evento de oralidade.

2. A. (lendo) A onça resolveu atraí-la a sua furna fazen-


do corrê notícia de que tinha morrido e deitando-se no chão da ca-
verna fingiu-se de cadáver. Todos ós bichos vinheru olhá a defunta
contentíssamos.
P. Contentíssimos. ó, psi, depois de contentíssi-
mos tem ponto, tá? Todos os animais, né, vinheru olhá a defunta
contentíssimos.

Neste evento de letramento em que o aluno está lendo


um texto onde ocorrem palavras pouco empregadas em eventos
de oralidade, como ‘atrair’ e ‘furna’, o professor corrige a pronúncia
de “contentíssimos” e a entonação, mas escapa-lhe a realização da
forma verbal “vinheru”, que ele próprio reproduz.

3. A (lendo) Mas qual, se o pai sempre sempre com che-


ro forte de suó, cachaça e cigarro. em casa sempre os mesmo medo,
briga e as tristeza.

O professor não intervém para corrigir a concordância


nos três sintagmas nominais (‘os mesmo medo’, ‘(as) brigas’, ‘as tris-
teza’) mas logo em seguida corrige a acentuação tônica de uma for-
ma verbal (‘sófre’, exemplo 4) e a má decodificação de uma palavra,
como vemos no exemplo seguinte. Observe-se que a concordância
de número é uma das regras não-padrão mais freqüentemente cor-
rigidas durante eventos de leitura.

4. A (lendo) Conhecia aquele choro. Aquele aquele


modo novo da mãe sófre.
P. Da mãe o quê?
A. Da mãe sófre.
P. sofrê, rapaiz.
A (lendo) O pai também não entendeu e virou para o
filho cres crescendo sabê
P. querendo

45
A. querendo sabê.

5. P.... fazê um esforçozinho e continuar lendo em casa,


tâ bom?
A. Zé, é pra mim lê em casa tamém?
P. É, muitas veze, num é só uma veiz não.

Esse é um evento de oralidade, e o professor parece não


ter percebido o uso da regra não-padrão usada pelo aluno (‘é pra
mim lê em casa tamém?’)

Em 6, observamos um padrão muito freqüente nos da-


dos. O professor repete a frase enunciada pelo aluno, fornecendo a
variante da língua padrão. Observe que o evento é de letramento:

6. A. (lendo) Sônia ganhô três quinto de sessenta balas


e Marlene ganhô treis meios de cinqüenta balas.
P. Espera aí. Vai devagar. (Escreve no quadro e fala si-
multaneamente) Treis quintos de sessenta, e o outro?
A. Treis, treis meio de cinqüenta.
P. Isso. Treis meios?
A. De cinqüenta.
P. Tem certeza que é treis meios?
A. É.
P. (escreve no quadro e fala simultaneamente) treis
meios de cinqüenta.

7. P. Cadê a música do senhor Mabel?


A’s (ininteligível)
P. Não, mas é vereador. Ceis tão confundindo.
A. Professora, professora, nois sabe a música.
A. O’ nóis sabe a música, vem cá, vem cá.
P. Como que é a música?

Nesse episódio, as crianças ficam agitadas e querem


contribuir com uma informação sobre a propaganda das eleições. O
evento é de oralidade e a concordância verbo-nominal não-padrão
(“nóis sabe”) passa despercebida para a professora.

O evento seguinte também de oralidade.. A professora


fornece a variante padrão no caso da vocalização do fonema lateral
palatal /lh/, realizado /y/, mas não intervém diante a realização tam-
bém não-padrão em “deusde”.

8 P. Espera um pouquinho Agnaldo. Deixa seus colegas


sentarem por favor. Gente, num escolhe a mesma leitura que o cole-
ga lê não, tá?
A. Eu escuí, mai ei escueiu [xxx]
P. Aí cê escolhe otro, tá?
A. Não, essa aqui eu tô lenu deusde ontem
P. Agnaldo, sem encostá na parede, tá? Bem bonito.

9 P. Que que você entendeu?

46
A. É que que [xxx] na floresta [xxx] o amigo dele o ami-
go dele foi na ar... subiu, subiu na arvri e o oto ficô, lá, é que o amigo,
se fô amigo mesmo num pode [xxx] fazê essas covardia.

Nesse evento, de letramento, em que o aluno está fa-


zendo a interpretação da leitura, a professora prefere valorizar o
conteúdo e não intervém na correção da forma. O mesmo ocorre no
exemplo que temos a seguir. Observe que o aluno realiza a variante
padrão da lateral palatal /lh/ quando está lendo e as variantes pa-
drão e a não-padrão /lh/ e /y/ quando está comentando a leitura.

10 A. (lendo) Chove só quando a água cai no telhado


do meu galinhero escareceu a galinha. Ora que bobagem, disse o
sapo de dento da lagoa. Chove quando a água da lagoa começa a
borbulhar suas gotinhas. Como assim? disse a lebre. Está visto que
chove quando as folhas das árvores começam a deixar cair as gotas
que tem dentu. Nesse momento começou a chover. Viram [xxx] a
galinha. O telhado do meu galinheiro está pingando e isso é chuva
[xxx] não. Não vê que é chu- a chuva é água da da lagoa borbulha-
nu? disse o sapo. Mas como assim assim? tornou a lebre. Não vê que
a água cai das folhas das árvores?

P. Explica pra nós agora o que você leu. Gente, o


pessoal num está prestan’atenção na leitura dos colegas, tá conver-
sanu muito. Prestá mais atenção, tá?

A. Eu li sobre u’a galinha, o sapo e a lebre que eles tava


contanu que muitos muitos meses num tava choveno e eles come-
çaro a discuti. Só chovia quando a água da telha da galinha come-
çasse a pingá. E aí o sapo dizia que só chovia quando começasse a
borbulhá, e a lebre dizia que só chovia quando caísse é água das
folhas da [xxx].

P. Isso, qual deles que tava co’a razão. Qual deles que
tava co’a razão?

P. É todos.
P. Todos?
/.xxx../
P. O que é a chuva pra você?

A. Pra mim é quando cai a chuva das arvi, quando cai


assim da teia da casa lá de cima.

Da perspectiva de uma pedagogia culturalmente sen-


sível aos saberes dos alunos, podemos dizer que, diante da realiza-
ção de uma regra não-padrão pelo aluno, a estratégia da professora
deve incluir dois componentes: a identificação e a conscientização
da diferença. A identificação fica prejudicada pela falta de atenção
ou pelo desconhecimento que os professores tenham a respeito
daquela regra. Para muitos professores, principalmente aqueles que
têm antecedentes regionais e rurais, regras do português próprio

47
de uma cultura predominantemente oral são “invisíveis”; o profes-
sor as tem no seu repertório e não as percebe na linguagem do alu-
no, especialmente em eventos de fala mais informais.

O segundo componente — a conscientização — susci-


ta mais dificuldades. É preciso conscientizar o aluno quanto às dife-
renças para que ele possa começar a monitorar seu próprio estilo,
mas essa conscientização tem de dar-se sem prejuízo do processo
de ensino/aprendizagem, isto é, sem causar interrupções inoportu-
nas. Às vezes será preferível adiar uma intervenção para que uma
idéia não se fragmente, ou um raciocínio não se interrompa. Mais
importante ainda é observar o devido respeito às características
culturais e psicológicas do aluno. A escolher entre a não-interven-
ção sistemática e a intervenção desrespeitosa, ficamos, é claro, com
a primeira alternativa. O trato inadequado ou até desrespeitoso das
diferenças vai provocar a insegurança, como vimos no texto de Car-
mo Bernardes, ou até mesmo, o desinteresse ou a revolta do aluno.

Pesquisas realizadas nos Estados Unidos, onde a tensão


interétnica é muito aguda, têm mostrado que, quando os modos
de falar da criança não são um campo de conflito, ela se torna mais
aberta à aquisição de estilos mais monitorados.

Vejamos mais um exemplo de evento de oralidade em


que a regra não-padrão usada pelo aluno passa despercebida ao
professor. Essa seria uma ocasião que o professor poderia aproveitar
para conscientizar os alunos quanto às diferenças sociolingüísticas
e fornecer a eles a variante adequada aos estilos monitorados orais
e à língua escrita. Vejamos primeiro como o episódio ocorreu e, em
seguida, imaginemos o professor valendo-se da oportunidade para
ensinar de forma explícita o estilo monitorado da língua:

P: Reinaldo + por que você num vei ontem?


A: num deu tempo.
P: num deu tempo por quê?
A: tava trabaianu.

P: Reinaldo + por que você num vei ontem?
A: num deu tempo.
P: num deu tempo por quê?
A: tava trabaianu.
P: O Reinaldo estava trabalhando ontem e por isso não
veio à.aula. Vejam esta palavrinha ‘trabalhando’. Ela é uma daque-
las palavrinhas que podemos usar de dois jeitos. Quando falamos
com nossos amigos podemos dizer ‘trabaianu’; quando falamos
com pessoas que não conhecemos bem, empregamos a palavrinha
como a escrevemos, assim: ‘trabalhando’. Peguem o seu caderno e
vamos escrever uma frase que começa assim:

‘Ontem eu estava trabalhando...’

48
Atividade
Depois de ter lido todos esses exemplos em que se jus-
tapõem na interação de sala de aula regras fonológicas e morfossin-
táticas de variedades não-padrão da língua e da variedade padrão,
verificando a ação do (a) professor (a) em cada episódio, convida-
mos você a dar outro desfecho ao episódio do “relógio azangado”
do texto de Carmo Bernardes. Imagine que você é o professor ou
professora que vai perguntar ao aluno por que ele chegou atrasa-
do. Ele lhe responderá que se atrasou porque o relógio de sua casa
está “azangado”. Crie, então, todo esse diálogo, finalizando-o com a
reação/explicação do professor. Vai aqui uma dica para você. “Azan-
gado” é uma forma verbal (particípio passado) que tem a função
de adjetivo e é própria dos falares rurais. Distingue-se da varian-
te usada no português urbano em duas dimensões: fonológica e
semântica. Quanto ao aspecto fonológico, temos a variante com
a prótese de um ‘a’ (azangado) versus a variante sem essa prótese
(zangado).Quanto à dimensão semântica, observe que nos falares
urbanos o verbo ‘zangar’ vem acompanhado de sujeito com o tra-
ço semântico [ + animado], por exemplo, ‘o cachorro está zangado’,
‘meu pai zangou-se comigo’, etc. Nos falares rurais o verbo pode vir
acompanhado de sujeito com o traço [ - animado], por exemplo,
‘o relógio zangou (azangou)’; ‘a ferida na perna dele zangou (azan-
gou)’. No primeiro exemplo, o verbo equivale a ‘estragou’; no segun-
do, a ‘piorou’; ‘inflamou’, etc. Lembre-se de que, diante de uma situ-
ação como essa, o (a) professor (a) que é sensível aos antecedentes
sociolingüísticos e culturais dos alunos, empenha-se em duas tare-
fas: explicar o fenômeno que se apresenta em variação na língua e
demonstrar a situação adequada ao uso de cada uma das variantes
da regra. Agora você já está pronto (a) para compor o seu diálogo
com o final feliz. Boa sorte!

49
Competência comunicativa
Ao longo de nossas reflexões sobre Educação e Língua
Materna, você encontrou muitas referências ao conceito de com-
petência. Vamos nos deter um pouco nesse conceito. Primeiro, fa-
remos a distinção entre competência lingüística e competência
comunicativa.

No fascículo II, de Língua Materna, você lerá sobre o


trabalho do lingüista suíço Ferdinand de Saussure. Você se lembra
de que Saussure, no início do século XX, propôs uma distinção en-
tre língua e fala. Para ele, língua é um sistema abstrato, partilhado
por uma comunidade de falantes, que ganha realidade concreta na
fala.

Muitos anos depois, em 1964, outro lingüista de grande


renome, Noam Chomsky, que é professor do Massachussets Insti-
tute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, retomou a distinção
entre língua e fala, com pequenas alterações, propondo uma dico-
tomia entre competência e desempenho (ou performance). Assim
como a língua, a competência tem caráter abstrato, enquanto o de-
sempenho, como a fala, tem caráter concreto.

De acordo com a teoria desenvolvida por Chomsky, co-


nhecida como ‘Gramática Gerativa’, a competência consiste no co-
nhecimento que o falante tem de um conjunto de regras que lhe
permite produzir e compreender um número infinito de sentenças,
reconhecendo aquelas que são bem formadas, de acordo com o
sistema de regras da língua. Cabe aqui uma observação quanto à
expressão ‘bem formadas’. Todas as sentenças produzidas pelos fa-
lantes de uma língua são bem formadas, independentemente de
serem próprias da chamada língua padrão ou de outras variedades.
A sentença produzida por Chico Bento, na historinha que lemos: ‘Aí
num vô percisá mais mi percupá cocê, né, limoero?’, que, como vi-
mos, é característica dos falares situados no pólo rural, é uma sen-
tença bem formada, de acordo com o conceito de competência
chomskyana, porque foi produzida por um falante nativo da língua,
que tem conhecimento das regras básicas da (s) variedade (s) e dos
estilos da língua que compõem o seu repertório. As únicas senten-
ças mal formadas seriam as produzidas por estrangeiros, ou por
crianças que estão no processo de internalizar as regras do sistema,
ou seja, no processo de desenvolver sua competência lingüística.
Uma sentença como ‘Os homens cheguei eles com amanhã’ não é
bem formada porque em sua formação não se respeitaram as re-
gras morfossintáticas e semânticas que fazem parte da competên-
cia dos falantes da língua.

Vamos ver se entendemos bem isso, antes de irmos em


frente. Todo falante nativo de português, independentemente de
sua posição no contínuo de urbanização e independentemente
também do grau de monitoração estilística na produção de uma
tarefa comunicativa, produz sentenças bem formadas, que estão de
acordo com as regras do sistema da língua que esse falante inter-

50
nalizou. Essas sentenças podem seguir as regras da chamada língua
padrão ou as regras das variedades rurais ou rurbanas. Em um ou
em outro caso, serão bem formadas. Não se pode confundir, pois,
o conceito de sentenças bem formadas, que provém da noção de
competência, com a noção de erro que as nossas gramáticas nor-
mativas defendem. Na ótica prescritiva dos gramáticos normativos,
toda sentença que não siga as regras da chamada língua padrão
são ‘erradas’. Mas você já sabe que a linguagem usada no pólo ru-
ral/rurbano do contínuo é diferente da linguagem usada no pólo
urbano em estilos monitorados. Contudo, tanto uma quanto outra
se constituem de sentenças bem formadas. A fala de Chico Ben-
to, por exemplo, é tão bem formada quanto um texto de Macha-
do de Assis, considerando-se que ambos os falantes – Chico Bento
ou Machado de Assis – internalizaram as regras constitutivas das
sentenças em português e ambos têm português como língua ma-
terna. As diferenças entre o texto de Chico Bento e o de Machado
de Assis decorrem, basicamente, de localizar-se o primeiro no pólo
rural e o segundo, no pólo urbano do contínuo. Além disso, a fala de
Chico Bento caracteriza em evento de oralidade não-monitorado,
enquanto o texto de Machado de Assis é um exemplar de even-
to de letramento que, por definição, requer muito planejamento e
monitoração. Nenhum falante usa mal a sua língua materna. Mas
a forma como a usa vai depender de todos os fatores que você já
conhece, especialmente, a variação ao longo dos três contínuos: de
urbanização, de oralidade/letramento e de monitoração estilística.
Na próxima seção, vamos continuar essa reflexão, para que não res-
tem dúvidas.

Acabamos de ver o conceito de competência lingüística


que Chomsky opôs ao conceito de desempenho. A primeira é abs-
trata e consiste no conhecimento internalizado que o falante tem
das regras para a formação de sentenças na língua; o desempenho,
por outro lado, consiste no uso efetivo da língua pelo falante.

Logo que Chomsky propôs essa dicotomia, muitos pes-


quisadores começaram a levá-la em conta em seus estudos e al-
guns deles ofereceram críticas e reformulações a ela. A principal re-
formulação foi proposta pelo sociolingüista norte-americano, Dell
Hymes, em 1966. Para Hymes, o maior problema com o conceito de
competência lingüística reside no fato de que esse conceito não dá
conta das questões da variação da língua, seja essa variação inte-
rindividual - entre pessoas - ou intraindividual - no repertório de
uma mesma pessoa. Hymes então propôs um novo conceito – o de
competência comunicativa, que é bastante amplo para incluir não
só as regras que presidem a formação das sentenças mas também
as normas sociais e culturais que definem a adequação da fala. Em
outras palavras, a competência comunicativa de um falante lhe per-
mite saber o que falar e como falar com quaisquer interlocutores
em quaisquer circunstâncias. A principal novidade na proposta de
Dell Hymes foi ter incluído a noção de adequação no âmbito da
competência. Quando faz uso da língua, o falante não só aplica as
regras para obter sentenças bem formadas mas, também, faz uso
de normas de adequação, que são definidas na sua cultura. São es-

51
sas normas que lhe dizem quando e como monitorar seu estilo. Em
situações que exijam mais formalidade, seja porque está diante de
um interlocutor desconhecido ou que mereça grande consideração,
o falante vai selecionar um estilo mais monitorado; em situações de
descontração, em que seus interlocutores sejam pessoas que ama
e em que confia, o falante vai sentir-se desobrigado de proceder a
uma monitoração vigilante e pode usar estilos mais coloquiais. Em
todos esses processos, tem sempre que se levar em conta o papel
social desempenhado.

Veja, por exemplo, a conversa telefônica entre a gerente


de um banco de investimentos e um cliente. Observe o momento
em que ela identifica o cliente como um velho amigo e muda de
papel social e, conseqüentemente, de estilo.

Gerente: Gerência do Banco XXX. Em que eu posso ajudá-lo?


Cliente: Estou interessado em financiamento para compra de
veículo. Gostaria de saber quais as modalidades de crédito
que o banco oferece.

Gerente: Nós dispomos de várias modalidades. O Senhor é


nosso cliente? Com quem eu estou falando, por favor.?

Cliente: Eu sou o Júlio César Fontoura, também sou funcioná-


rio do banco.

Gerente: Julinho, é você, cara? Aqui é Helena! Cê tá em Brasí-


lia? Pensei que você ainda estivesse na agência de Uberlân-
dia! Passa aqui pra gente conversá com calma. E vamu vê seu
financiamento

Trata-se de uma jovem universitária, que freqüenta à


noite o curso de Pedagogia e trabalha, durante o dia, em um ban-
co. No seu repertório lingüístico, dispõe de recursos comunicativos
para desempenhar os diversos papéis sociais que lhe cabem: de
bancária, de aluna universitária, de amiga, de mãe, de esposa, etc.
Podemos dizer que desenvolveu bastante sua competência comu-
nicativa e é capaz de adequar sua fala às mais distintas situações.

Além da adequação, outra dimensão importante que


Dell Hymes incluiu no conceito de competência comunicativa é o
de viabilidade. O autor associou a noção de viabilidade a fenôme-
nos sensoriais e cognitivos, como a audição, a memória, etc. Nós
preferimos, porém, associar o requisito de viabilidade à noção de re-
cursos comunicativos. Para viabilizar um ato de fala, o falante preci-
sa dispor de recursos comunicativos de diversas naturezas: recursos
gramaticais, de vocabulário, de estratégias retórico-discursivas, etc.
Nos exemplos que você leu, na seção anterior, havia, por exemplo, o
leiloeiro, que dominava estratégias retórico-discursivas para imple-
mentar o seu leilão. Já os líderes comunitários de Teresina, dispu-
nham de estratégias retóricas para falar em público. As pessoas vão
adquirindo recursos comunicativos à medida que vão ampliando
suas experiências na comunidade onde vivem e passam a assumir
diferentes papéis sociais. Mas a escola tem uma função muito im-
portante no processo de aquisição de recursos comunicativos. As
52
crianças, quando chegam à escola, já sabem falar bem sua língua
materna, isto é, sabem compor sentenças bem formadas e comuni-
car-se nas diversas situações. Mas ainda não têm uma gama muito
ampla de recursos comunicativos que lhes permita realizar tarefas
comunicativas complexas ou que exijam muita monitoração. É pa-
pel da escola, portanto, facilitar a ampliação da competência co-
municativa dos alunos, permitindo que se apropriem dos recursos
comunicativos necessários para desempenharem bem, e com segu-
rança, suas competências nas mais distintas tarefas lingüísticas. Eles
vão precisar especialmente de recursos comunicativos bem especí-
ficos para fazer uso da escrita, em gêneros textuais mais complexos
e para fazer uso da língua oral em estilos monitorados.

Vamos ver se entendemos isso bem! Todo falante dispõe


de suficiente competência lingüística em sua língua materna para
produzir sentenças bem formadas e comunicar-se com eficiência.
Ao chegar à escola, portanto, todos os alunos já são competentes
em Língua Portuguesa. Temos de levar em conta, porém, que o uso
da língua, assim como quaisquer outras ações do homem como ser
social, é dependente das normas que determinam o que é um com-
portamento socialmente aceitável. À medida que os indivíduos vão
desempenhando ações sociais mais diversificadas e complexas, para
além do domínio da família e da vizinhança mais próxima, têm de
atender a normas vigentes nos novos domínios de interação social
que passam a freqüentar. Em muitos domínios sociais, comunicam-
se mais usando a escrita do que a fala e também estão submetidos
a exigências de monitoração estilística. Essas exigências decorrem
de normas culturais convencionadas naquele domínio. As chama-
das normas de correção gramatical nada mais são que normas con-
vencionais que presidem a certos tipos de interação por meio da
língua escrita ou da língua oral.

Ao chegar à escola, a criança, o jovem ou o adulto já são


usuários competentes de sua língua materna, mas têm de ampliar
a gama de seus recursos comunicativos para poder atender às con-
venções sociais, que definem o uso lingüístico adequado a cada gê-
nero textual, a cada tarefa comunicativa, a cada tipo de interação.
Os usos da língua são práticas sociais e muitas delas são extrema-
mente especializadas, isto é, exigem vocabulário e formações sintá-
ticas especializadas.

Há usos especializados da língua que constituem práti-


cas sociais de letramento, mas há usos especializados que são prá-
ticas da cultura de oralidade. Um exemplo dessas últimas é de um
carpinteiro (não-alfabetizado) explicando a um aprendiz a técnica
de construção de uma cancela de madeira ou de um mata-burro.
Um exemplo de uso especializado da língua que constitui uma prá-
tica social de letramento é de um comandante de um avião expli-
cando o plano de vôo aos passageiros.

A escola é, por excelência, o locus – ou espaço – em que


os educandos vão adquirir, de forma sistemática, recursos comuni-
cativos que lhes permitam desempenhar-se competentemente em

53
práticas sociais especializadas.

Quando falamos em recursos comunicativos, é bom re-


cordarmos três parâmetros que estão associados à questão da am-
pliação desses recursos, que são:

• grau de dependência contextual;

• grau de complexidade no tema abordado;

• familiaridade com a tarefa comunicativa;

Toda produção lingüística é dependente do contexto


em que se encontra o falante e, no caso, de interação face a face dos
interlocutores, mas o grau de dependência do contexto varia muito.
Quando os interagentes partilham de experiências em comum, a
comunicação entre eles é mais fácil e eles se valem de muitas in-
formações implícitas. Dizemos que esse discurso tem um alto grau
de contextualização. Veja esse diálogo hipotético entre dois irmãos
que estão brincando com bloquinhos de encaixe do tipo “Lego”, ten-
tando formar peças como casinha, barquinho, castelo, etc.

– Essa é minha! Você pegou a minha!

– A sua é essa outra! Essa que tá aí.

– Não é não! A minha é essa. Eu quero a minha!

– Essa eu não te dou, só te dou essa.

Para que esse evento de fala seja compreensível, é pre-


ciso que cada elemento dêitico (“a minha”,“essa outra”,“essa”, etc.) re-
meta claramente ao objeto a que se refere. Dêitico é um adjetivo de-
rivado de “dêixis”, que é, segundo Mattoso Câmara, a faculdade que
tem a linguagem de designar mostrando, ao invés de conceituar.

No diálogo entre os dois irmãozinhos, há um alto grau


de dependência contextual ou contextualização do discurso. Quan-
do a dependência contextual é menor, os enunciados têm de ser
mais explícitos e os falantes têm de se valer de recursos comuni-
cativos, como vocabulário específico, seqüenciadores e operadores
lógicos, entre outros, que dão ao discurso clareza e objetividade.

O mesmo diálogo entre as duas crianças sem o recur-


so à dêixis poderia ficar assim: (É claro que nesta forma o diálogo
é altamente improvável, porque as crianças não adquiriram ainda
recursos para construir um discurso com mínima dependência con-
textual. Mas à guisa de comparação, vamos ao texto) :

– Esse triângulo azul é meu! Você o pegou do meu


castelo.
– A peça que estava em seu castelo não é o triângulo. É
esse paralelograma que está ao lado da sua mão direita.

54
– Não é não! Eu quero o triângulo azul que você usou
para fazer a proa de seu navio...

Atividade
Grave o diálogo entre dois ou mais alunos envolvidos em
uma atividade manual. Transcreva, depois, o diálogo e discuta com
um colega ou com sua monitora a dependência contextual desse
discurso. Faça o mesmo com um diálogo gravado entre dois profes-
sores igualmente envolvidos em uma tarefa manual comum. Leve a
questão da dependência contextual – ou implicitude – das intera-
ções face a face para discussão em seu grupo. Esta é uma questão
teórica muito relevante porque a implicitude – ou indexicalidade
– ou, se você preferir, o grau de contextualização é uma das princi-
pais características que distinguem a linguagem oral da linguagem
escrita e, também, a linguagem monitorada da não-monitorada.

O segundo parâmetro relacionado a recursos comuni-


cativos é a complexidade do tema abordado. Contar uma narrativa
de experiência pessoal é cognitivamente menos complexo que fa-
zer o reconto de um filme assistido, por exemplo. Na sala de aula,
há tarefas comunicativas com diferentes graus de complexidade
cognitiva. E isso nos leva ao terceiro parâmetro mencionado acima:
familiaridade com a tarefa comunicativa.

Vamos parar um pouco para pensar nisso!

Reflita
Entre as atividades de linguagem que seus alunos de-
senvolvem em sala de aula, identifique aquelas que são mais praze-
rosas para eles e nas quais eles são mais fluentes. Compare-as com
atividades que os alunos acham difíceis. Mostre sua relação ao seu
monitor e aos seus colegas e juntos procurem analisar essas tarefas
com relação aos três parâmetros estudados:

• grau de dependência contextual;

• grau de complexidade no tema abordado;

• familiaridade com a tarefa comunicativa;

Quando um falante tem de desempenhar uma tarefa


comunicativa para a qual não dispõe de recursos, a atividade se tor-
na muito estressante e ele vai buscar formas de desincumbir-se da
obrigação que lhe foi atribuída. Com freqüência, vale-se de palavras
que não conhece bem mas que julga apropriadas para a ocasião.
Veja o seguinte exemplo:

55
Em uma entrevista feita com populares na rua, o repór-
ter de TV pergunta a uma moça que vantagens um treinamento
profissional lhe havia trazido. No afã de monitorar o seu estilo e
como lhe faltassem recursos de morfologia verbal, a entrevistada
respondeu:
–“O curso foi muito bom para que nós aprimorizásse-
mos nossos conhecimentos”.

Observe que o imperfeito do subjuntivo é uma forma


verbal pouca usada na fala coloquial e mais presente em certos
usos especializados da língua. A entrevistada quis usar essa forma
para atender às expectativas da situação – uma entrevista televisi-
va. Porém, não foi capaz de produz a forma prevista na gramática
normativa: “aprimorássemos”.

Vamos, então, sintetizar o que acabamos de ver sobre


competência lingüística, competência comunicativa, recursos co-
municativos e papel da escola.

1) Todo falante nativo de uma língua, por volta de sete,
oito anos, já internalizou as regras do sistema da língua que lhe per-
mitem produzir sentenças bem formadas naquela língua, o que não
acontece com um falante estrangeiro, que produz sentenças agra-
maticais, isto é, que não estão de acordo com o sistema da língua
estrangeira.

2) Como a língua é um fenômeno social, cujo uso é regi-


do por normas culturais, além de ter domínio das regras da língua,
os falantes têm de usá-la de forma adequada à situação de fala.

3) No desempenho dos papéis sociais, os indivíduos


transitam por espaços sociolingüísticos em que têm de dominar
certos usos especializados da língua.

4) O falante tem de dispor em seu repertório de recursos


comunicativos que lhe permitam desempenhar-se com adequação
e segurança nas mais diversas situações.

5) Grande parte dos recursos comunicativos que com-


põem o seu repertório é adquirido espontaneamente no convívio
social; mas para o desempenho de certas tarefas especializadas,
especialmente as relacionadas às práticas sociais de letramento, o
falante necessita desenvolver recursos comunicativos, de forma sis-
temática, por meio do aprendizagem escolar.

6) A tarefa educativa da escola, em relação à língua
materna, é justamente a de criar condições para que o educando
desenvolva sua competência comunicativa e possa usar, com segu-
rança, os recursos comunicativos que forem necessários para de-
sempenhar-se bem nos contextos sociais em que interage.

56
57
3
Revendo a variação
lingüística no

Português do Brasil
Objetivos: sistematizar as informações sobre variáveis no
Português Brasileiro e as principais regras de variação na
fonologia e morfossintaxe
Nesta seção, vamos procurar resumir e sistematizar o
que temos visto sobre as características lingüísticas – inclusive os
traços descontínuos e graduais que distinguem as variedades ao
longo do contínuo de urbanização. Em outras palavras, queremos
responder às seguintes perguntas :

1) quais a principais características da fala de um bra-


sileiro com antecedentes rurais e rurbanos se comparada à fala de
um brasileiro com antecedentes urbanos?

2) Quais as principais características da linguagem de


um falante usando estilo monitorado se comparado aos seus estilos
não-monitorados?

Vamos discutir primeiro tais características no âmbito


da fonologia – pronúncia – e depois cuidaremos das características
no âmbito da morfologia e da sintaxe, ou seja, morfossintaxe.

As principais regras fonológicas de variação no portu-


guês do Brasil ocorrem na posição pós-vocálica na sílaba. Vamos
entender bem isso. A sílaba é uma emissão de voz marcada por um
ápice de abrimento articulatório e tensão muscular que, na língua
portuguesa, é sempre representado por uma vogal. Dizemos então
que a vogal é núcleo silábico. A vogal silábica pode ser precedida e
seguida de consoantes. É justamente a consoante que segue o nú-
cleo silábico, posição chamada pós-vocálica na sílaba, que está su-
jeita a grande incidência de variação. Para você entender bem isto,
vamos conversar um pouco mais sobre a estrutura da sílaba.

As sílabas em português podem ter a seguintes confi-


gurações: (“C” significa consoante e “V” significa vogal).

• CV, exemplo: ma, lá, li, vê, na, de, vi, lu-xo, fa-la, etc. A
sílaba CV é considerada canônica, porque se constitui de uma con-
soante e de uma vogal. Na articulação da consoante, a corrente de
ar tem de forçar sua passagem na boca, pois algum movimento ar-
ticulatório lhe criam embaraço em algum ponto da cavidade. Na ar-
ticulação da vogal, a corrente de ar passa livremente pela cavidade
bucal, variando apenas o grau de abertura da cavidade.

•V : a, é, a - vião, ô - nibus, ú - nico, etc.

•CVC: por, mar, ver, pos - te, cas - telo, ra - paz, fá - cil, etc.

•CCV: bra - ço, pla - queta, bro - che, etc.

•CCVC: plas - ma, pres - tígio, fras - co, etc.

•CCVCC: trans - porte, etc.

•CVCC: pers - pectiva.

Nem todas as consoantes podem ocupar as posições

60
de C nessas configurações. Existem restrições que você vai apren-
der agora, observando os seguintes quadros: em cada quadro está
marcada a posição da consoante na sílaba e abaixo dela os fonemas
que podem ocorrer naquela posição.

Observe que na posição da segunda consoante só po-


dem ocorrer as chamadas consoantes líquidas: /r/ e /l/. Na primeira
posição consonântica, podem ocorrer todos os fonemas oclusivos e
o fonemas fricativos pronunciados com a língua plana: /f/ e /v/.

Atividade
Para fixar bem essas restrições de ocorrência dos fo-
nemas nas sílabas, faça uma relação de palavras que contenham
sílabas na configuração CCV, como nos exemplos que você já viu.
Antes de passarmos para outra configuração silábica, precisamos
observar que na configuração CCV, que acabamos de discutir, uma
regra variável muito produtiva nos falares rurais e rurbanos, mas
que também pode ocorrer nos estilos não-monitorados de falantes
de antecedentes urbanos é a troca do /l/ por /r/. Isso se explica por-
que esses dois fonemas são do ponto de vista articulatório muito
semelhantes. Você, certamente, já ouviu palavras como bloco >’bro-
co’, problema> ‘pobrema’, claro> ‘craro’.

Na realização do /r/ e do /l/ como a segunda consoante
no padrão CCV pode ocorrer também outro fenômeno, que é a tro-
ca do /r/ pelo /l/. É o que acontece na fala do Cebolinha, persona-
gem de Maurício de Sousa.

Atividade

Seus alunos vão gostar de pesquisar a realização das
consoantes liquidas /r/ e /l/ no padrão silábico CCV. Vocês vão des-
cobrir que alguns tipos de neutralização (troca) desses dois fone-
mas configuram traços descontínuos, só encontrados no pólo rural
do nosso contínuo; verão também que, em certas regiões do Brasil,
como no sul de Minas e em certas áreas de Goiás, essa neutralização
é mais freqüente que em outras regiões. Finalmente, poderão cons-
tatar que a neutralização do /r/ e /l/ nessa posição pode caracterizar

61
um problema articulatório, que tem de ser tratado com fonoaudió-
logos. O caso do Cebolinha se enquadra nessa última categoria. Em
resumo, a naturalização do /r/ e /l/ no padrão silábico CCV pode ser
indicador de dialetos rurais e rurbanos, pode ser marcar regional e
pode ainda ser um problema fono-articulatório. Discuta essa ques-
tão com seus alunos e colegas.

Passemos agora para outro padrão silábico, o CVC:

Qualquer consoante pode iniciar este tipo de sílaba,


exemplos: par, lar, mãe, com, sem, viu, vil, cós, ser-viu, for-mar, etc.
Nossa atenção nesses casos se volta para a segunda consoante, a
que fecha a sílaba, ou seja, a consoante de travamento da sílaba.
Como já lhe adiantamos no início desta seção, são as consoantes
que travam sílabas as que estão sujeitas a maior variação no por-
tuguês do Brasil, pois tendem a ser suprimidas principalmente em
estilos não-monitorados. Vamos discuti-las uma a uma.

• O /R/, nessa posição, pode ser foneticamente realiza-


do de várias maneiras, como uma consoante posterior articulada na
garganta ou como uma consoante anterior articulada com vibra-
ções na ponta da língua; pode também ser articulada com língua
dobrada para trás (retroflexa), o que produz o /r/ mais comum em
zonas rurais de Minas Gerais, São Paulo e Goiás, que é chamado de
/r/ caipira. Pode ainda se reduzir a uma simples aspiração realizada
na glote ou na faringe, que se situa na parte posterior da garganta.
Confira o desenho do aparelho fonador em uma enciclopédia ou na
internet. No fascículo II, quando estudarmos o sistema fonológico
da língua portuguesa, Você vai receber o desenho do aparelho fo-
nador e mais informações sobre o que estamos discutindo agora. A
forma de realizar o /r/ pós-vocálico varia de uma região para outra.

Atividade
Observe junto com seus alunos realizações diferentes
de /r/ pós-vocálico comparando-as na linguagem de mineiros, pau-
listas do interior, paulistanos, goianos, paranaenses e gaúchos. Vo-
cês vão encontrar uma interessante variação de natureza regional.

62
Além da variação no modo e no ponto de articula-
ção do /r/ pós-vocálico, que é de natureza regional, esse fonema
apresenta uma peculiaridade para qual nós, professores, devemos
ficar muito atentos. Em todas as regiões do Brasil, o /r/ pós-vocá-
lico, independentemente da forma como é pronunciado, tende a
ser suprimido, especialmente nos infinitivos verbais (correr>corrê;
almoçar>almoçá; desenvolver>desenvolvê; sorrir>sorri). Quando o
suprimimos, alongamos e damos mais intensidade à vogal final. A
regra de supressão do /r/ nos infinitivos dá origem a uma hiper-
correção (fenômeno que você já conhece) que resulta em constru-
ções assim: “João estar muito quieto hoje”. Esta, como qualquer ou-
tra hipercorreção, decorre de uma hipótese heurística malsucedida.
O usuário da língua, quando suprime um /r/ em infinitivo verbal,
ao escrever, o faz porque na língua oral ele já não usa mais esse
/r/. Então, ao produzir uma forma como “está”, da terceira pessoa do
singular do indicativo presente, imagina que nela também haveria
um /r/ que foi igualmente suprimido, e acrescenta esse suposto /r/,
incorrendo numa hipercorreção.

Além dos infinitivos verbais, o /r/ pós-vocálico tam-


bém tende a ser suprimido nas formas do futuro do subjuntivo:
(se eu estiver>estivé; se ele quiser>quisé; se ela fizer>fizé) e nos
substantivos adjetivos e advérbios polissilábicos (que têm mais de
duas sílabas: melhor > melhó; maior>maió; Deusimar>Deusimá;
regular>regulá, amor> amó, etc).

Nos nomes monossilábicos (de uma sílaba só) o /r/ pós-


vocálico tende a preservar-se: mar, dor, par, cor, etc.


Atividade
Observe junto com seus alunos em uma gravação es-
pontânea, em músicas ou poemas gravados ou em outros textos, a
supressão do /r/ pós-vocálico em final de palavra. Faça quatro listas
de palavras terminadas em /r/ colocando-as na coluna específica,
observando se o /r/ foi ou não pronunciado. Ao final, você terá um
quadro com este abaixo, com esses cabeçalhos.

Depois que você preencher o quadro, vai fazer alguns cálcu-


los simples:

• some todas as ocorrências de infinitivos verbais;

• some todas as ocorrências de infinitivos verbais sem /-r/;

63
• some todas as ocorrências de infinitivos verbais com
/-r/;
• divida o total de ocorrências de infinitivos verbais
sem /-r/ pelo total de infinitivos verbais. Assim você encontrará a
freqüência de infinitivos verbais sem /-r/;

• divida o total de ocorrências de infinitivos verbais


com /-r/ pelo total de infinitivos verbais. Assim você encontrará a
freqüência de infinitivos verbais com /-r/;

• compare a freqüência de infinitivos verbais realiza-


dos com /-r/ com a freqüência de infinitivos verbais realizados sem
/-r/. Você verá que houve mais ocorrências sem /-r/ do que com
/-r/;

Repita os mesmos procedimentos com as outras cate-


gorias e você poderá constatar que a supressão do /r/ pós-vocálico
varia em função de categorias morfológicas. Se tiver dúvidas na for-
ma de fazer os cálculos, procure seus tutores da área de Educação
e Língua Materna. Vamos apresentar dados fictícios e fazer juntos
uma simulação para que você aprenda, com segurança, a fazer os
cálculos das freqüências de uma regra variável, como a que esta-
mos estudando.

Freqüência de infinitivos verbais pronunciados sem /-r/:


48/83 = 57%

Freqüência de infinitivos verbais pronunciados com /-r/:


35/83 = 42%

Faça você agora os cálculos com as demais categorias


para treinar essa habilidade.

No padrão CVC, que estamos estudando, além do /r/,


outro fonema que pode ocorrer na posição pós-vocálica é o /s/, esse
fonema pode ser representado graficamente como s, x ou como z,
exemplos: lápis, cós, extra, rapaz, capaz, feliz, mês, vez, etc. Quanto à
pronúncia, o /s/ pós-vocálico soa como uma consoante surda (sem
vibração das cordas vocais) diante de outra consoante surda: soa
como uma consoante sonora diante de outra consoante sonora ou
diante de uma vogal. Além disso, pode ser realizada como uma sibi-
lante ou como uma chiante, dependendo da região.

Em Brasília e em Belo Horizonte, por exemplo, o /s/ pós-


64
vocálico é mais freqüentemente realizado como uma sibilante, com
a ponta língua tocando a parte superior interna dos dentes. No Rio
de Janeiro, em Salvador, em Fortaleza e em outras cidades, o /s/ pós-
vocálico é realizado como chiante com o dorso da língua tocando o
palato ( céu da boca).

Atividades

Para que você e seus alunos se lembrem bem das va-
riações regionais na pronúncia do /s/ pós-vocálico, leve para sala
de aula músicas interpretadas por cantores de diversas regiões do
Brasil. Ouçam as canções e façam uma relação de todas as palavras
onde aparece o /s/ pós-vocálico, identificando a sua realização fo-
nética. Procure ouvir a música “Festa do Interior” de Moraes Moreira,
cantada por Gal Costa e observe como a cantora baiana realiza os
/s/ pós-vocálicos. Em “xotes e...”, o /s/ soa como /z/, porque é seguido
de uma vogal. Em “estrelas de...” o /s/ tem som chiante e sonoro por-
que sofre a influência do fonema seguinte /d/, que é sonoro. Em “ex-
plodia...” o /s/ pós-vocálico, representado pelo x soa como /s/ sibi-
lante surda, pela influência da consoante /p/ seguinte, que é surda.
No final de palavras seguidas de pausa, como “fagulhas”,“xaxados”, a
cantora Gal Costa realiza os /s/ pós-vocálicos como chiantes.

Fagulhas, pontas de agulhas
Brilham estrelas de São João
Babados, xotes e xaxados
Segura as pontas, meu coração
Bombas na guerra magia
Ninguém matava
Ninguém morria
Nas trincheiras da alegria
O que explodia era o amor

Ardia aquela fogueira


Que me esquentava a vida inteira
Eterna noite
Sempre a primeira festa do interior

Você já percebeu que a realização do /s/ pós-vocálico


varia muito, tanto em função da região geográfica quanto do con-
texto fonológico em que ocorre. Contexto fonológico são os sons
que antecedem ou que seguem um determinado fonema. No caso
do /s/ pós-vocálico, o contexto que tem influência é o segmento
seguinte. Isto é, se é vogal, consoante ou pausa e, no caso de ser
consoante, se surda ou sonora.

Com todas essas informações que você já recolheu,


continue a fazer a atividade com seus alunos. Escolha, por exemplo,
uma música cantada por Milton Nascimento (nascido no Rio de Ja-
neiro, mas criado em Três Pontas - MG) e pelo carioca Zeca Pagodi-
nho. Vai ser divertido identificar as pronúncias do /s/ pós-vocálico
em suas músicas. Lembre-se finalmente que esse fonema tem três
representações gráficas: s, z e x.

65
Para nós, que somos professores em início de escolari-
zação, um fenômeno muito importante relacionado ao /s/ pós-vo-
cálico é a tendência à sua supressão. Assim como /r/ pós-vocálico,
que já vimos, também o /s/ nas sílabas do tipo CVC tende a ser su-
primido, principalmente nos estilos não-monitorados.

Ao tratarmos desse assunto, convém fazer a distinção


entre o /s/ pós-vocálico que é morfema de plural (ou seja, é o ele-
mento que contém a marca de plural) e o /s/ que não é morfema de
plural. Vejamos exemplos do /s/ como marca de plural:

aluno + s, lâmpada + s, coelho + s.

Vejamos agora palavras monomorfêmicas (formadas


por um único morfema em que o /s/ é parte do morfema lexical:

lápis, pires, Paris, atrás, etc.

Com base na sua experiência, como falante competen-


te da Língua Portuguesa na modalidade brasileira, responda à se-
guinte questão: que /s/ pós-vocálico, em final de palavra, tem maior
tendência para ser suprimido: o /s/ que é morfema de plural ou o /s/
em palavras monomorfêmicas?

Se você escolheu o /s/ morfema de plural, acertou!

Em muitos pontos deste fascículo, comentamos que nos


sintagmas nominais há uma tendência, no PB (Português Brasileiro),
de não se fazer a concordância nominal, isto é, a concordância dos
determinantes com o núcleo do sintagma representado por um
nome ou pronome, no plural.

Muitos lingüistas têm pesquisado esta regra variável


do PB, especialmente a professora Maria Marta Pereira Scherre (da
UnB e da UFRJ) e mostram que a regra de concordância nominal,
conforme prevista nas gramáticas normativas, hoje em dia se aplica
somente em estilos muito monitorados e na língua escrita, muito
formal.

Em estilos não-monitorados tendemos a usar uma regra


de concordância não-redundante, isto é, em vez de flexionarmos to-
dos os elementos flexionáveis do sintagma, flexionamos apenas o
primeiro. Você viu exemplos disso em vários textos neste fascículo.
Lembra-se da música “O Cuitelinho”? Ali vimos os seguintes sintag-
mas nominais flexionados de acordo com a regra de concordância
não-redundante: “terras paraguaia”,“fortes bataia”.

Revendo esses exemplos, podemos ficar com a impres-


são errônea de que a regra de concordância nominal não-redun-
dante só ocorre no pólo rural/rurbano do contínuo de urbanização.
Mas não é bem assim. Essa regra de concordância não-redundante
ocorre ao longo de todo o contínuo, nos estilos não-monitorados,

66
chegando, às vezes, até mesmo, aos estilos monitorados.
Por estar tão generalizada na língua, é certo que nossos
alunos vão empregá-la em seus textos escritos que, por sua natu-
reza, exigem a regra da concordância redundante prevista na gra-
mática normativa. Por isso, nós, professores, temos que ficar muito
atentos ao uso da regra de concordância nominal na produção de
nossos alunos e na nossa própria produção.

Há duas coisas de que você não pode se esquecer quan-


do lidar com esse fenômeno:

1) no PB tendemos a flexionar o primeiro elemento do


sintagma nominal plural e a não marcar os demais. Esta é uma ten-
dência que se explica porque geralmente dispensamos elementos
redundantes na comunicação e as diversas marcas de plural no
sintagma nominal plural são redundantes. Ao escrever sintagmas
nominais plurais, seu aluno vai tender a flexionar somente o primei-
ro elemento, que pode ser um artigo, um pronome possessivo, de-
monstrativo, etc. Exemplos:

“os amigo”; “Meus brinquedo”; “aqueles homi”; “os meus


tio”.
2) Quanto mais diferente for a forma do plural de um
nome ou pronome da sua forma singular, mais tendemos a usar a
marca de plural naquele nome ou pronome. Quando a forma de plu-
ral é apenas um acréscimo de um /s/, tendemos a não empregá-la.

Baseados nessa constatação, os pesquisadores da área


de sociolingüística quantitativa construíram uma escala que vai dos
nomes em que a diferença entre singular plural é mínima até os
nomes que formam o plural com duas marcas: o acréscimo do /s/ e
a mudança da vogal. A escala ficou assim:

aluno ~ alunos; casa ~ casas; minha ~ minhas; (o plu-


ral é apenas o acréscimo do /s/).

menor ~ menores; ator ~ atores (o plural é feito com


acréscimo de uma sílaba).

rapaz ~ rapazes; vez ~ vezes (o plural também é feito


com acréscimo de uma sílaba, mas a forma singular se confunde
com a forma de plural porque termina em fonema sibilante).

hotel ~ hotéis; cão ~ cães; caminhão ~ caminhões


(esses são os chamados plurais irregulares porque acarretam uma
mudança maior na sílaba final).

ovo ~ ovos; novo ~ novos (o plural é marcado pelo /s/


e pela mudança na vogal, que é conhecida como metafonia).

67
Atividade
Você poderá aumentar a lista de exemplos em cada ca-
tegoria, sempre observando a diferença entre a forma de singular e
a de plural.

É bom também que você verifique se esta escala se con-


firma na produção de seus alunos. Isto é, se eles estão flexionando
com mais freqüência palavras como hotéis, carretéis, anões, sóis, etc,
do que palavras como amigos, irmãos, casinhas, etc.

Há um aspecto muito interessante que convém men-


cionarmos. Sempre aprendemos que devíamos dar ênfase na es-
cola aos plurais irregulares, mas estamos vendo que são os plurais
regulares que exigem nossa maior atenção porque são esses que
têm maior probabilidade de não serem flexionados. Vejamos o que
diz a este propósito a professora Maria Cecília Mollica, no livro que
você já conhece: Influência da fala na alfabetização (Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1998/2000).

“Proponho que /…/ uma metodologia pedagógica que


dê conta de todos os fenômenos variáveis (ou aparentemente va-
riáveis), que até então foram objeto de descrições sociolingüísticas
eminentemente acadêmicas e que já exibem resultados consolida-
dos, terá que nortear-se em princípios mais gerais /…/, a saber:

(1) Ir do discurso para a sentença (ou para o vocábulo,


ou para segmentos menores como sílabas e fonemas): essa máxi-
ma serve como guia para muitos fenômenos variáveis que são con-
textualizados por fatores discursivos, como status informacional do
referente, cadeia tópica, paralelismo formal, figura/fundo, ou até
mesmo para a presença de pausa em intervalos sintagmáticos com
reflexos na pontuação.

(2) Ir do mais freqüente para o menos freqüente: em se


tratando de trabalho em sala de aula, há que se ter bom senso de se
“atacar” problemas priorizando inicialmente os que mais ocorrem:
assim, recomenda-se que o trabalho com desvio da variante stan-
dard de menor incidência deva ser postergado, em geral.

(3) Ir do mais provável para o menos provável: quase


sempre os problemas mais freqüentes coincidem com os que, por
meio de estudos dos fatores que favorecem o seu uso, sabemos que
têm maiores probabilidades de ocorrerem.

Insisto que devem ser selecionadas prioritariamente as


variáveis que mais atuam para a emergência do erro, na escrita. Por
exemplo, sintagmas nominais com dupla marca de número plural
na fala, como em ovo ~ ovos não costumam oferecer problemas
para o usuário do ponto de vista da concordância. No entanto, os
sintagmas verbais e nominais cujo plural é regular e menos saliente

68
fonicamente, como ele fala ~ eles falam ou casa ~ casas constituem
o subgrupo mais problemático para o falante, que costuma marcar
geralmente o plural nas formas mais marcadas fonicamente apenas
no primeiro elemento, nos casos de sintagma nominal “ (MOLLICA,
2000, pág. 35-60).

Este texto foi transcrito com algumas adaptações. Reco-


mendamos que você vá ao original e leia todo a capítulo de onde
ele foi tirado. A autora faz referência à concordância nominal e à
verbal. Você já sabe bastante sobre a regra variável de concordân-
cia nominal. Quanto à regra variável de concordância verbal, vamos
discuti-la nos próximos parágrafos. Mas, antes, registre bem a ativi-
dade que estamos sugerindo que você faça:

Atividade
Reúna um conjunto de trabalhos escritos de seus alu-
nos. Identifique nesse corpus todos os sintagmas nominais que são
semanticamente plurais, mesmo que não apresentem todas as mar-
cas de plural. Verifique se seus alunos tendem a flexionar com mais
freqüência os plurais irregulares do que os regulares. Faça um pe-
queno cálculo das freqüências, do seguinte modo:

Some o total de sintagmas nominais plurais (T).

Some o total de sintagmas nominais cujo núcleo é um


substantivo de plural regular que tenha sido flexionado (TR).

Some o total de sintagmas nominais cujo núcleo é um


substantivo de plural irregular que tenha sido flexionado (TI).

Dividindo TR por T, você encontrará a freqüência de fle-


xão nos nomes regulares.

Dividindo TI por T, você encontrará a freqüência de fle-


xão nos nomes irregulares.

Fácil, não? Ao final, basta comparar as duas freqüências.


Se você ajuntar o seu corpus, com os de seus colegas de grupo, vai
obter resultados ainda mais confiáveis, porque estará trabalhando
com uma base de dados maior. É interessante verificar se os resulta-
dos que vocês vão obter confirmam as hipóteses trabalhadas pelos
pesquisadores da área de Sociolingüística Quantitativa ou Variacio-
nista, nas quais a pesquisadora Maria Cecília Mollica se baseou para
postular os três princípios que você leu.

Estamos trabalhando com o padrão silábico CVC. Já vi-


mos que no PB há uma forte tendência à queda da segunda con-
soante quando a sílaba CVC ocorre no final de palavra. São seis as
consoantes que podem ocorrer nessa posição. São elas /R/, /S/, /N/,
/L/, / U/ /I/. Vamos refletir sobre cada uma delas.

69
• /R/ - pode ser pronunciado na parte anterior da
boca, como uma vibrante alveolar, ou com a língua retroflexa, mas,
na maior parte das variedades regionais brasileiras, é pronunciado
como uma consoante posterior. Já sabemos que o /R/ final que tem
mais probabilidade de ser suprimido na pronúncia é o dos infini-
tivos verbais e das formas do futuro do subjuntivo. Os nomes mo-
nossilábicos, como ‘dois’, ‘cor, ‘mar’, etc, tendem à conservação do /R/,
enquanto os polissilábicos tendem à supressão dessa consoante
final. É preciso observar também que em sílabas átonas finais, como
em “revólver”, o /R/ tende mais a ser suprimido que em sílabas finais
tônicas, como em “malmequer”.

• /S/ é representado graficamente pelas letras (ou gra-


femas) “s”, “z” e “x”. Já sabemos que o /s/ que é morfema de plural
tende mais a ser suprimido que o /s/ que ocorre ao final de palavras
monomorfêmicas. É preciso observar, ainda, que o /s/ que ocorre no
morfema {-mos} (pronunciado /-mus/) da primeira pessoa do plural
dos verbos também apresenta alta incidência de supressão. Este é,
de fato, um traço gradual:

nós fazemos > nós fazemu


nós viemos > nós viemu

Atividade
Pegue as gravações que você já fez e peça aos seus alu-
nos que tragam outras: de novelas, programas de rádio, entrevis-
tas, etc, e observem a freqüência da regra de supressão do /s/ no
morfema {-mos}. Para calcular a freqüência da regra no seu corpus
gravado, conte o número (T) de ocorrências do morfema {-mos},
realizado como /-mus/ ou como /-mu/. Conte depois o número de
ocorrências da variante com supressão do /s/ (TU). Depois divida
TU por T (TU/T) e você encontrará a freqüência da supressão do /s/
final no morfema {-mos} em seus dados.

Vamos a uma simulação.

Supondo que em seus dados haja 38 ocorrências do


morfema, que incluem tanto a variante {-mus} quanto a variante {-
mu}. Há no corpus 22 ocorrências da variante {-mu}. Dividindo 22
por 38, temos:

22/38 = 0.57

Dizemos, então, que a freqüência da variante {-mu} (com


supressão do /s/ final) é de 57% no corpus estudado.

Voltemos, agora, às outras consoantes que ocorrem em


posição pós-vocálica:
• L
• I
• U

70
• N

O /L/ na posição pós-vocálica final em PB pode ser


realizado como uma consoante lateral /l/ ou como a vogal /u/. No
Sul do Brasil, ainda encontramos a variante /l/, mas a variante /u/
está generalizada no Português Brasileiro contemporâneo.

Atividade
Observe a pronúncia de palavras como ‘Brasil’, ‘anel’, ‘ca-
nal’ e confira se o /l/ está sendo pronunciado como consoante late-
ral ou como vogal posterior.

Ainda com relação ao /L/ na sílaba CVC, temos que fazer


duas observações. A primeira é que o segmento /l/ tende a ser mais
suprimido em sílabas átonas que em tônicas. Compare os dois con-

juntos de palavras:

No primeiro, a sílaba final CVC final é tônica; no segundo,


é átona. No primeiro conjunto, observamos a realização do segmen-
to final, seja como /l/ ou como /u/. Somente no pólo rural/rurbano
do contínuo de urbanização, dá-se a supressão do /l/ final em pala-
vras oxítonas. Por exemplo:

carnaval > carnavá

Pode ocorrer também a troca do /l/ pelo /r/ nos falares


rurais:
carnaval > carnavar

Esses dois casos constituem traços descontínuos, carac-


terísticos dos falares rurais. Você certamente vai encontrá-los na fala
de Chico Bento.

Nas palavras paroxítonas terminadas em /l/, como as do


segundo conjunto, a perda do segmento final não está restrita ao
pólo rural do contínuo. Pode ocorrer nos estilos não-monitorados,
mesmo no repertório de falantes com antecedentes urbanos, prin-
cipalmente quando estão falando depressa.

Para nós, professores, o principal problema a atentar no


caso do /l/ pós-vocálico é a neutralização entre o /l/ e o /u/ nes-
ta posição, pois nossos alunos, ao aprenderem a escrever, têm de
71
aprender a usar a letra ‘u’ em palavras como ‘berimbau’, ‘pau’, ‘cha-
péu’, etc, a letra ‘o’, em palavras como ‘arrepio’, ‘macio’, ‘vazio’ e ‘tio’ etc,
e, finalmente, a letra ‘l’ em palavras como ‘avental’, ‘lençol’ ‘ automó-
vel’, ‘anzol’ etc. O segmento final, pós-vocálico, em todas elas, é pro-
nunciado /u/.

Atividade
Discuta essa questão com seus colegas de grupo. Verifi-
que que estratégias são usadas por eles, em sala de aula, para lidar
com a neutralização entre o /l/ e o /u/ na consoante pós-vocálica,
nas sílabas finais CVC.

Passemos, agora, às sílabas CVC travadas com as semi-


vogais /i/ e /u/. Esses são os casos dos ditongos decrescentes.

A semivogal que ocupa o lugar da segunda consoante


nas sílabas CVC, travando-a, também está sujeita à supressão, como
as consoantes que já vimos. A perda da semivogal nos ditongos
resulta em um processo denominado monotongação. No ditongo
/ou/, a monotongação é um processo muito antigo na língua, desde
a evolução do latim para o português. Veja os exemplos:

alterum >outro > outro
aurum > ouro > oro

Na transição do latim para o português, a vogal /a/


transformou-se em /o/ por um processo de assimilação, isto é, por
influência do segmento seguinte /l/ e /u/, que são posteriores, a vo-
gal /a/ foi-se posteriorizando, tornando-se /o/, que é uma vogal pos-
terior (produzida na cavidade posterior da boca). A passagem de
/ou/ para /o/ - que é a própria monotongação – deve ter se iniciado
ainda em Portugal, no século XVIII. No Brasil, a regra continuou sua
deriva – seu desenvolvimento. O fator que mais a favorece é tam-
bém a assimilação, ou seja, a influência articulatória do segmento
seguinte.

A regra está tão avançada que, praticamente, não pro-


nunciamos o ditongo /ou/. Até em sílabas tônicas finais, que são
mais resistentes à mudança, reduzimos este ditongo.

Veja:
estou > estô
sou > sô
jogou > jogô

Em sílabas internas, tônicas ou átonas, ele também é


reduzido:

besouro > besoro


tesouro > tesoro
louco > loco

72
doutor > dotô
roupa > ropa

Quando há monotongação desse ditongo no radical


dos verbos, há a tendência a abrir a vogal, que passa a /Ó/ (vogal
aberta) na língua oral. Exemplo:

rouba > roba > róba
poupa > popa > pópa

Dado que a regra de monotongação do /ou/ está gene-
ralizada na língua oral, inclusive nos estilos monitorados, é preciso
dedicarmos muita atenção em sala de aula à produção escrita desse
ditongo, desde o início do processo de alfabetização.

Já os ditongos /ei/ e /ai/ também se reduzem, mas a


regra de monotongação desses casos está menos avançada, apli-
cando-se somente em alguns contextos fonológicos. Observe as
palavras seguintes e marque com (X) as que você pronunciou redu-

zindo o ditongo.

Você, com certeza, observou que nas palavras ‘Almeida’,


‘peito’, ‘Paiva’, ‘seiva’, ‘raiva’, e ‘beiço’, não houve monotongação. A re-
dução do /ei/ e do /ai/ é condicionada pelo segmento consonântico
seguinte. Os segmentos /j/, como em ‘beijo’ e o segmento //, como
em caixa, são fonemas pronunciados na região alta da boca, o pala-
to, assim como a vogal /i/. Dizemos, então, que essas consoantes e a
vogal /i/ são sons homorgânicos (quanto ao ponto de articulação).
As consoantes homorgânicas ao /i/ são as que mais favorecem a
monotongação. Mas a regra já se expandiu para outros ambientes:
antes de /r/ e /n/. As oclusivas /t/ (‘peito’) e /d/ (‘Almeida’), as fricati-
vas /v/ (‘raiva’) e /s/ (‘beiço’) desfavorecem a aplicação da regra. Te-
mos de observar, porém que em ‘manteiga’ o ditongo é seguido da
oclusiva velar /g/ e já se reduz. Observamos, também, que a redu-
ção do ditongo /ei/ diante das oclusivas /t/ e /d/ varia regionalmen-
te. No estado da Paraíba, por exemplo, ocorre a redução no nome
próprio “Almeida’. Está aí uma boa questão para você e seus alunos
pesquisarem juntos a pessoas provenientes de diferentes regiões e

73
estados brasileiros.

Ainda que a regra de monotongação dos ditongos com


a semivogal /i/ esteja menos avançada na língua que a regra de
monotongação do ditongo /ou/, ela requer também muita atenção
em sala de aula, principalmente em palavras muito usadas como
‘dinheiro’, ‘cozinheiro’, ‘inteiro’, ‘cabeleireiro’, ‘beijo’, etc.

Temos de atentar também para os casos de hipercor-


reção (realização de ditongo /ei/ em palavras com /e/, como por
exemplo:

bandeja > bandeija


caranguejo > carangueijo

Para concluir nossa reflexão sobre a supressão da con-


soante (ou semivogal) de travamento nas sílabas de padrão CVC,
vejamos o caso do travamento da sílaba por segmento nasal, que
estamos representando por /N/. Chamamos de travamento nasal a
ocorrência do traço [+ nasal] nas vogais. No português há sete vo-
gais orais e cinco vogais nasais. Você vai voltar a ver isso, com calma,
no próximo fascículo. No caso das vogais nasais /ã/, /e/, / i /, / õ/ e
/u / e dos ditongos nasais /ãi/, / ei /, /õi /, / ui / e /ãw/ considera-
mos que a sílaba com vogal ou ditongo nasal tem a estrutura CVC,
sendo a segunda consoante o travamento nasal.

Na escrita, esse travamento nasal é representado pelo til


/~/ ou pelas consoantes nasais. Confira:

ontem, cantarão, irmã, puseram, montanha, ruim, etc.

Como há várias formas convencionadas de se represen-


tar o travamento nasal, este é um dos componentes mais difíceis
para o alfabetizando. Não vamos nos ocupar aqui do uso das con-
soantes nasais em posição pré-silábica, mas somente do travamen-
to nasal, porque, como as demais consoantes (e semivogais) que
travam sílaba, o travamento nasal também tende a ser suprimido.
Observe as palavras:

virgem, homem, fizeram

Em todas elas a sílaba final é átona e o travamento nasal


tende a ser suprimido:

/virj/ > /vij/


/ó > / ó/
/fizé > /fizé/

Chamamos essa regra de desnasalização. Ela só incide


em sílabas finais átonas. Em sílabas tônicas, com travamento nasal,
não há desnasalização.

Veja:

74
caminhão, armazém, estarão, reunião, irmã

A regra de desnasalização aplica-se, principalmente, nos


ditongos nasais e átonos finais, como vimos em ‘virgem’ e ‘estavam’.
Nas formas verbais de terceira pessoa do plural, a desnasalização
resulta em formas como ‘ (eles) fizeru’, ‘(eles) andaru’, etc.

Assim como no caso da concordância nominal, a regra


de concordância verbal tem sido muito estudada pelos pesquisa-
dores da área de Sociolingüística Variacionista.

O professor Anthony Naro, da UFRJ, e seus colabora-


dores, desde o final dos anos 70 já haviam constatado que quanto
mais fonologicamente saliente for a marca de plural nas formas ver-
bais, mais os falantes tenderão a empregá-los. Em outras palavras,
quando a forma de terceira pessoa do plural for muito distinta da
forma de terceira pessoa do singular, há mais probabilidade de os
falantes fazerem a flexão.

Levando em conta este princípio da saliência fônica, os


pesquisadores postularam uma escala semelhante à que você já co-
nhece para a regra de concordância nominal.

A escala ficou assim:

1. come/comem: marca de plural é apenas a nasaliza-


ção com a conseqüente ditongação;

2. fala/falam: marca de plural é a ditongação nasal;

3. fazem/fazem: a marca de plural é uma sílaba extra;

4. dá/dão/vai/vão: são formas monossilábicas marca-


das no plural pelo ditongo nasal;

5. comeu/comeram: no plural há o acréscimo do mor-


fema { - ram} ao radical do verbo;

6. falou/falaram/foi/foram: no plural, a vogal do tema


verbal se altera de /o/ para /a/ e há o acréscimo do morfema
{ - ram}.

Segundo os estudos de sociolingüística, nas três primei-


ras classes de verbos, há menos probabilidade de ocorrer a flexão
do que nas três últimas, cuja forma plural é fonologicamente mais
saliente,

Isso tem explicação para nós, professores de séries ini-


ciais. Nossos alunos tenderão a usar menos a flexão de terceira pes-
soa de plural em formas como:

estavam, querem, sabem, fazem,

75
do que em formas como:

foram, fizeram, jogaram.

Também temos que ficar alertas para a possibilidade de


transportarem para a escrita a regra de desnasalização, realizando
essas formas como:

foru, fizeru, jogaru.

Atividade
Nos corpura de textos escritos de seus alunos (corpora
é o plural da palavra latina corpus) que você já reuniu, verifique se
eles tendem a flexionar, com menos freqüência as formas do tipo
‘come/comem’; ‘fala/falam’ e ‘faz/fazem’ do que as demais. Discuta
sua constatação com seus colegas de grupo para ver se os resulta-
dos a que chegaram confirmam os seus.

Levando em conta o que as pesquisas têm mostrado


com relação à influência da saliência fônica na flexão das formas
verbais de terceira pessoa do plural, conforme nos explicou a pro-
fessora Maria Cecília Mollica, você deverá dedicar mais atenção às
formas em que a saliência é mínima (como ‘fala/falam’, ‘escreve/es-
crevem’) do que às formas em que a saliência é maior (como ‘jogou/
jogaram’; ‘vai/vão’; ‘esteve/estiveram’).

Para completarmos este assunto, você precisa de mais


esta informação: existe maior probabilidade de ocorrer a flexão na
forma verbal quando o sujeito é anteposto, isto é, vem antes do ver-
bo. Quando é posposto (vem depois do verbo) tendemos a não fle-
xionar o verbo. Veja os exemplos seguintes e comece a reparar na
influência desse condicionante de natureza sintática na sua própria
produção lingüística oral e escrita.

Os jornais chegaram./ Já chegou os jornais?

Os deputados de oposição rejeitaram a medida provisó-


ria./ Votou contra a medida provisória os deputados da oposição.

Os recursos para educação foram cortados./ Foi cortado


muitas verbas destinadas à educação.

Concluindo, podemos dizer que há dois tipos de con-
dicionamento na regra variável de concordância verbal no PB: o
primeiro é de natureza fonológica e está relacionado ao grau de
saliência fônica nas formas de plural; o segundo é de natureza sintá-
tica e depende da posição do sujeito em relação ao verbo. Quanto a
este último, é preciso observar ainda que, em casos de sujeito ocul-
to (ou implícito), tendemos a flexionar o verbo, pois a informação
quanto à pessoa verbal só é transmitida pela flexão, já que o sujeito
não está explícito na oração.

76
Vimos, com bastantes detalhes, a tendência de supres-
são da consoante de travamento nas sílabas de padrão silábico CVC.
Veremos agora outras tendências do PB: a da redução das proparo-
xítonas e da assimilação das consoantes homorgânicas.

Estamos dando tanta ênfase ao estudo das tendências


da própria deriva da língua para criarmos com firmeza a convicção
de que:

- os chamados “erros” que nossos alunos cometem têm


explicação no próprio sistema e processo evolutivo da língua. Por-
tanto, podem ser previstos e trabalhados com uma abordagem
sistêmica.

- A pronúncia do PB favorece as paroxítonas e desfavo-


rece as proparoxítonas.

Por quê?

No Português de Portugal, as sílabas pretônicas são
reduzidas.

Assim:

fevereiro > fev’reiro


televisão > t’levisão
paradeiro > p’radeiro
embelezar > emb’lezar

Ao reduzir as sílabas pretônicas, o falante tem mais ener-


gia articulatória para chegar ao final da palavra.

No Brasil, as sílabas pretônicas têm quase a mesma du-


ração da tônica. Resulta daí que há menos energia para a articulação
dos finais das palavras. No caso das proparoxítonas, especialmente,
temos uma tendência a reduzi-las, na fala rápida, reduzindo assim o
esforço articulatório.

Veja os exemplos:

( i)
chácara > chacra
árvore > arvri ~ arvi
xícara > xicra

Neste conjunto, foi suprimida a vogal da primeira sílaba
pós-tônica.

( ii)
depósito > deposu
fósforo > fosfu
válvula > valva
77
quilômetro > quilomu

No conjunto (ii) há supressão de uma sílaba pós-tônica


completa

(iii)
número > numru
bêbado > bebdu
lâmpada > lãpda

No conjunto (iii), a supressão da vogal da primeira síla-


ba pós-tônica resultou em seqüência fonológica estranha à língua,
como /mr/, /bd/ e /pd/.

Para resolver este outro impasse, os falantes reduzem


mais as palavras. Assim:

(iv)
numeru > numuru > numru > nuru
bêbado > bebdu > bebo
lâmpada > lampda > lampa

A redução das proparoxítonas no grupo (i) é um traço


gradual no PB. Nos demais, a redução configura um traço descontí-
nuo, próprio do pólo rural/rurbano.

Atividade
Verifique como os seus alunos lidam com as palavras
proparoxítonas na fala e na escrita. Se você só tem alunos de ante-
cedentes urbanos, é provável que só encontre os casos do conjunto
(i); se seus alunos têm antecedentes rurbanos ou rurais, é provável
que encontre as demais ocorrências.

Faça este diagnóstico cuidadosamente porque isso vai


ajudar você a prever os “erros” de seus alunos e a definir as priorida-
des no ensino da língua escrita e da língua oral monitorada.

Seus colegas de grupo vão gostar de saber o resultado


de seu diagnóstico.

Ainda falando das tendências naturais da língua e suas


conseqüências no ensino da língua escrita, temos de nos lembrar
de dois casos de assimilação. Dizemos que há assimilação quando
numa seqüência de sons homorgânicos ou parecidos, um deles as-
simila o outro, que então desaparece.

É o que acontece nas seqüências /nd / e /mb/. A primei-


ra /nd/ é formada por duas consoantes alveolares e ocorre princi-
palmente nos gerúndios:

falando > falanu
vindo > vinu

78
estando > estanu

Mas pode ocorrer assimilação em outras classes de pa-


lavras, como em

quando > quanu

A seqüência /mb/ é formada por suas consoantes bila-


biais e ocorre em

também > tamém

Atividade
Ambos os casos configuram regras graduais muito pro-
dutivas no PB. Por isso, nós, professores de ensino fundamental, nos
confrontamos muito freqüentemente com “erros” que são a trans-
posição dessas regras fonológicas para a escrita. Você certamente
terá muitos exemplos desses casos retirados do texto escrito de
seus alunos. Faça uma listinha deles para mostrar ao seu monitor.

Leia
Para que todas essas informações fiquem bem assimi-
ladas, recomendamos a você que leia os seguintes livros (você po-
derá fazer uma leitura de reconhecimento e selecionar os capítulos
que considerar mais úteis à sua formação):

1 - BAGNO, Marcos. A língua de Eulália - novela sociolin-


güística. São Paulo: Contexto, 1997.

2 - MOLLICA, Maria Cecília. A influência da fala na alfabe-


tização. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.

Para concluir este primeiro fascículo de língua Materna


e Educação, vamos fazer um exercício. Escolha um texto produzido
por um aluno seu, assinale os “erros” de linguagem e, em seguida,
examine cada um deles, levando em conta as tendências da Lín-
gua Portuguesa no Brasil que discutimos aqui. Começamos juntos e
você continuará depois.

Observe, para começar este texto corrigido e comenta-


do e depois faça o mesmo com os textos que você selecionou. Leve
os textos corrigidos e comentados para a reunião de seu grupo.

O texto seguinte foi produzido por um menino de doze


anos. Há dois anos chegou do Piauí onde vivia em área rural. Não
estava alfabetizado. Vem freqüentando escola no Distrito Federal
desde que chegou a Brasília. No ano de 2000 concluiu a terceira sé-
rie com aprovação. O texto que você vai ler foi escrito por esse aluno
no dia 9 de fevereiro de 2000 e é parte de um exercício de Ciências.

79
As perguntas ou comandos foram copiados do quadro e as respos-
tas produzidas por ele.

1- Responda

Na superfície terrestre existe mais terra ou água?

– Água.

2 - Complete:

– A água ocupa 3/4 da superfície da terrestre, já a parte


não submersa ocupa (incompreensível) da superfície terrestre.

3 - Como são formados os oceano?

– Os oceanos são formado por grandes massas de água


salgada e se localizam entre os continentes.

– Os mares?

– Os mares são massas de água de menor profundidade
menos salgada.

4 - Que tipos de recursos podemos obter dos oceanos?

– Goufim tubarão carangeijo camarão tubarão martelo.

5. Que plantas marinhas são utilizada na nossa


alimentação?

– Gelatina.

No sintagma nominal “os oceano”, o aluno flexionou o


primeiro elemento: o determinante “os”; o núcleo “oceano” forma o
plural com o simples acréscimo de “s” ; na escala de saliência fônica
está no primeiro nível, de saliência mínima. Mesmo sendo uma có-
pia, esse núcleo não foi flexionado pelo aluno.

Em “formado”, o aluno igualmente não usou flexão de


plural. Esta palavra também está no grupo de saliência mínima.

O adjetivo “salgado” deveria ser flexionado para con-


cordar com “massas” de água. A palavra também está na classe de
saliência mínima. Trata-se de adjunto adnominal que está longe do
nome que qualifica.

O aluno provavelmente não conhecia a palavra “golfi-


nho” e a escreveu como a ouviu. O /l/ que trava a primeira sílaba (
CVC) neutraliza-se com o /U/. No morfema {- inho} o aluno usou a
variante {-im}, que faz parte de seu dialeto regional (Veja-se padri-
nho > padim).

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Em “carangeijo” vemos que o aluno ainda não apren-
deu a usar o dígrafo “gu” e também incorreu em uma hipercorreção
muito freqüente: cria um ditongo na palavra, que não existe na sua
forma dicionarizada.

Em “utilizada” novamente temos uma forma nominal de


verbo na função de predicativo. O aluno não a flexiona para fazer a
concordância com “plantas marinhas”. Na escala de saliência fônica,
“utilizada” está no grupo de saliência mínima e, ademais, não ocorre
contígua ao sintagma a que se refere.

Considerando este texto, o professor poderá fazer o se-


guinte diagnóstico sobre a competência lingüística e comunicativa
do aluno na modalidade escrita da língua.

1 - Na classe de nomes cujo plural é minimamente sa-


liente, o aluno tenderá a não usar o morfema { - s} de plural.

2 - Nos sintagmas nominais plurais que não ocorrem


contíguos ao antecedente a que se referem no discurso, o aluno
tenderá a não usar a flexão de plural.

3 - O aluno ainda não domina o emprego do dígrafo


“gu” e provavelmente também não o do dígrafo “qu”.

4 - O aluno tem em seu repertório a variante {-im} do


sufixo diminutivo {-inho}, que é muito produtiva na região em que
nasceu e viveu até os dez anos.

5 - O aluno ainda não conhece a convenção do uso de


vírgula em enumeração.

Bem, agora é sua vez.

Escolha os textos e os analise. Mostre seu trabalho ao


mediador e leve-o para discussão no grupo.

Você está terminando este primeiro fascículo. Parabéns.


Faça uma avaliação dele para apresentar à(s) tutora(s) de Língua
Materna e Educação de seu Curso.

Até breve.

Foi muito bom trabalharmos juntos!

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