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Educacao e Lingua Materna 1 PDF
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Estado do Acre
Governador
Jorge Viana
Vice-Governador
Arnóbio Marques
Reitor
Timothy Martin Mulholland
Vice-Reitor
Edgar Nobuo Mamiya
Diretora
Inês Maria M. Zanforlin Pires de Almeida
Vice-Diretora
Laura Maria Coutinho
Coordenadora Pedágogica
Sílvia Lúcia Soares
Coordenador de Informática
Tadeu Queiroz Maia
Diretor
Professor PhD. Bernardo Kipnis
Coordenadora Executiva
Jandira Wagner Costa
Coordenadora Pedagógica
Maria de Fatima Guerra de Sousa
Gestão Pedagógica
Maria Célia Cardoso Lima
Gestão de Produção
Bruno Silveira Duarte
Design Gráfico
João Baptista de Miranda
Equipe de Revisão
Bruno Rocha
Daniele Santos
Fabiano Vale
Leonardo Menezes
Roberta Gomes
Apoio Logístico
Fernanda Freire Pinheiro
Sumário
Conhecendo a autora_______________4
Seção 1
A sociedade brasileira: características sociológicas _________7
Introdução____________________________________________8
Diversidade lingüística e pluralidade cultural no Brasil ____ 13
A comunidade de fala brasileira_________________________22
Analisando o Português do Brasil_______________________ 26
Seção 2
A variação lingüística em sala de aula____________________43
Competência comunicativa____________________________ 50
Seção 3
Revendo a variação lingüística no Português do Brasil____ 59
Referências_______________________ 82
Conhecendo a autora
1
A sociedade
brasileira:
características
sociolingüísticas
Objetivos: identificar as principais características sociolingüísticas da
sociedade brasileira e suas implicações para a educação.
Introdução
Caro(a) cursista,
Entrei numa lida muito dificultosa. Martírio sem fim o não entender
nadinha do que vinha nos livros e do que o mestre Frederico falava.
Estranheza colosso me cegava e me punha tonto. Acho bem que foi
desse tempo o mal que me acompanha até hoje de ser recanteado e
meio mocorongo. Com os meus, em casa, conversava por trinta, tinha
ladineza e entendimento. Na rua e na escola - nada; era completamente
afrásico. As pessoas eram bichos do outro mundo que temperavam um
palavreado grego de tudo.
Já sabia ajuntar as sílabas e ler por cima toda coisa, mas descrencei e
perdi a influência de ir à escola, porque diante dos escritos que o mes-
tre me passava e das lições marcadas nos livros, fiquei sendo um quar-
ta-feira de marca maior. Alívio bom era quando chegava em casa.
Ah, meu Deus... Tampei a cara com o livro, e uma coceira descomedida
nas popas me pôs a retocar e a esfregar no banco, como quem tinha
panhado bicho. Um menino que gostava muito de mim foi me salvar e
embaraçou-se todo também:
estralar:
-O quê!!!
Entrei numa lida1 muito dificultosa. Martírio sem fim o não entender
nadinha do que vinha nos livros e do que o Mestre Frederico falava.
Estranheza colosso me cegava e me punha tonto. Acho bem que foi
desse tempo o mal que me acompanha até hoje de ser recanteado2 e
meio mocorongo. Com os meus, em casa, conversa por trinta, tinha la-
dineza3 e entendimento. Na rua e na escola - nada; era completamente
1 “Lida” – é um substantivo derivado afrásico4. As pessoas eram bichos do outro mundo que temperavam
do verbo ‘lidar’ que significa ‘trabalhar’ um palavreado grego de tudo.
ou ‘lutar’. Confira seu significado em
um dicionário. Os substantivos que são Já sabia ajuntar as sílabas e ler por cima toda coisa, mas descrencei5 e
formados de verbos com a junção das perdi a influência6 de ir à escola, porque diante dos escritos que o mes-
vogais – o,-a,-e ao radical do verbo são tre me passava e das lições marcadas nos livros, fiquei sendo um quar-
chamados deverbais, e o processo de ta-feira de marcar maior7. Alívio bom era quando chegava em casa.
sua formação é conhecido como deriva-
ção regressiva. Veja a pequena relação Os meninos que arrumei para meus companheiros eram todos filhos
abaixo e depois a complete para que de baiano. Conversavam muito diferente do que estava escrito nos li-
você fixe bem o processo de derivação vros e mais diferentes ainda da gente de minha parentalha8. Custei a
regressiva. Lembre-se de que ao traba- danar a aprender a linguagem deles e aqueles trancas9 não quiseram
lharmos com a formação das palavras, aprender a minha. Faziam era caçoar. Nestes casos, por exemplo: eu fa-
estamos no campo da Morfologia. lava “sungar”, os meninos da rua falavam “arribar”, e mestre Frederico di-
zia “erquer”. Em tudo o mais era um angu-de-caroço que avemaria.
lid + ar > lid + a (lidar > lida)
abal + ar > abal + o (abalar > abalo) Um dia cheguei atrasado e dei a desculpa de que o relógio lá estava
afag + ar > afag + o (afagar > afago) “azangado”. Aí o mestre entortou o canto da boca e enrugou o couro
enlaç + ar > enlac + e ( enlaçar > enla- da testa e derreou10 a cabeça e ficou muito tempo assim de esguelha11
ce) fisgado em mim, depois estralou:
chor + ar > chor + o ( _____> _______)
recu + ar > recu + o ( _____> _______) -O relógio está o quê?!!
toc + ar > toqu + e ( ______> _______)
busc + ar > busc + a ( _____> _______) Ah, meu Deus... Tampei a cara com o livro, e uma coceira descomedida
nas popas me pôs a retocar e a esfregar no banco, como quem tinha
2 “Recanteado” – é um adjetivo deri-
panhado12 bicho. Um menino que gostava muito de mim foi me salvar
vado do substantivo ‘recanto’. Confira
e embaraçou-se todo também:
no dicionário o significado de recanto,
mas lembre-se de que, entre os diver-
-Ele está dizendo que o relógio da casa dele “escanchelou”!
sos significados que o dicionário apre-
senta, você vai selecionar o significado Mestre Frederico derreou a cabeça para o outro lado e tornou a
adequado ao contexto. No nosso caso, o estralar 13:
significado é o de esconderijo. ‘Recante-
ado’ é, então, aquela pessoa que gosta -O quê!!!
de se isolar num lugar reservado. Ao se
referir ao menino como ”recanteado”, o Ajuntou a boca no maior afinco de estancar um riso quase vertente,
autor quis enfatizar seu temperamen- ínterim em que a risadagem já ia entornando na sala toda.
to introvertido. O adjetivo ‘mocorongo’
que também usou tem um significado -Silên...cio!...
semelhante. Confira-o no dicionário.
E, peculiarmente, a palmatória surrou miúdo no tampo da mesa.
3 “Ladineza” – é um substantivo deriva- Em tudo o mais era nesse teor. Era – não: é. Vivi até hoje empenhado
do do adjetivo ladino com o acréscimo na peleja14 mais dura, com o viso de me acostumar a falar de acordo, e
do sufixo – eza. É um caso de derivação não sou capaz. Em estando muito prevenido é que às vezes dou conta
sufixal, que ocorreu assim: ladin + eza. de puxar mais ou menos os efes e erres, assim mesmo sujeito a desas-
Escreva ao lado outros substantivos trosas silabadas... Descuidei, que seja, resvalo, e quando quero acudir é
formados com esse sufixo. Vamos agora tarde.
ao dicionário para ver o significado de
‘ladino’. Ladino é o mesmo que ‘astuto’, Sem maior esforço, dou conta de arrumar direitinho um fraseado com
‘esperto’. “Ladino” e ”ladineza” são pala- aparência de erudito, e em que pouco prazo estiro no papel uma cho-
vras que estão caindo em desuso, mas rola15 certinha, conforme preceitua a gramática. Contar um caso bem
não chegam a ser arcaísmos. contado, com cautela de não dar motivos a enjoamento em quem vai
ler, é que não sou capaz porque tolhido dentro das regras que mestre
Frederico me ensinou nunca pude armar uma estória que prestasse. A
coisa não se expressa, fica tudo pálido, enxabido16, um negócio mani-
nho17 que não há que traga.
Só desaçaimado18 de tudo quanto é fiscalização de regras e formas,
sou capaz de ajeitar uma prosa sofrível. Aí vou desalojando de dentro
10
de mim as palavras e as formas que trago na massa do sangue., olvido
o mundo que me cerca e me engolfo19 numa lembrança qualquer mal
apagada, e assim, às vezes arrumo uma escrita que não enfada muito.
(BERNARDES, Carmo. Rememórias Dois, Goiânia: Leal, 1969, pp. 18-20.)
11
11 “olhar de esguelha” quer dizer ‘olhar totais da população não-alfabetizada não têm um movimento des-
enviesado, ‘olhar de lado’. cendente e, sim, ascendente. Em segundo lugar porque, se exami-
narmos os dados com mais detalhamento, verificamos que o anal-
12 Em ‘panhado’ vemos a perda do pre-
fabetismo não atinge igualmente toda a população: concentra-se
fixo a-. Na história da Língua Portugue-
sa, temos muitas palavras que se preser- na população rural, que é, secularmente, a menos beneficiada no
varam com duas formas: com o prefixo processo de desenvolvimento do país. A tabela 3 mostra essa distri-
a- e sem esse prefixo. Exemplos desse buição. Os dados se referem aos censos de 1970 e 1980.
fenômeno são juntar/ajuntar; sentar/as-
sentar; soprar/assoprar; mostrar/amos-
trar; voar/avoar. Observe que, nesses Tabela 3: Taxas de alfabetização na população brasileira
pares de palavras, uma delas passou de 15 anos ou mais.
a ser a forma de prestígio, enquanto a
outra ficou restrita aos falares rurais. No
par ‘arreparar’/’reparar’, a primeira forma
hoje em dia só é encontrada no repertó-
rio de falantes de origem rural enquan-
to a segunda, é encontrada nos falantes
urbanos. Isso não significa que uma seja
errada e outra certa, como você já sabe.
Trata-se de duas variantes da mesma
palavra que caracterizam diferentes fa-
lares da nossa língua. Ao longo desta
unidade, vamos falar muito sobre essa
questão de variação, prestígio e precon-
ceito.
12
Atividade
Reflita
13
güísticas que ocorrem na interação no seio de sua própria família.
No segundo fascículo, você terá mais informações sobre esse tema.
Discuta
Este é um bom tema para você discutir com colegas,
amigos, com seus familiares e até com seus alunos: no ambiente
familiar, como os papéis que as pessoas exercem são determinan-
tes da linguagem que elas usam? Em outras palavras, quais as dife-
renças entre a linguagem do marido e da mulher, ou da mãe e dos
filhos?
Atividade
Com base na sua reflexão e discussão, monte com seus
alunos uma pequena peça de teatro em que fiquem bem claras as
diferenças lingüísticas observadas no interior da família e relaciona-
das aos papéis sociais.
14
Reflita
Vimos que o mestre Frederico era muito formal na sua
linguagem em sala de aula. Provavelmente era também formal
nos outros domínios sociais. Hoje em dia, encontramos poucas
pessoas que mantêm grande formalidade em suas interações. Mas
cabe aqui tomarmos um pouco de nosso tempo para refletirmos
sobre a seguinte questão: Os professores devem manter sempre
um estilo cuidado e formal em sala de aula? Ao contrário do do-
mínio do lar, onde predominam a afetividade e a espontaneidade,
o domínio da escola deve ser sempre marcado pela formalidade e
rigor no uso da fala?
15
pudemos constatar uma ampla gama de variação lingüística. Nos
eventos de letramento, constatamos um alto grau de monitoração
na linguagem do professor; já nos eventos de oralidade, os profes-
sores se monitoravam menos e eram mais coloquiais. Essa forma in-
tuitiva de administrar a variação em sala de aula é salutar porque dá
ao aluno a oportunidade de interagir com um grau maior ou menor
de monitoração estilística. Voltaremos a essa questão brevemente.
Reflita
Propomos a você que reflita sobre o seu discurso em
sala de aula para verificar como esse discurso varia em relação à
formalidade. Em que momentos você se percebe monitorando seu
estilo? Em que momentos Você se sente mais livre para falar com
seus alunos?
Atividade
Convide um (a) colega para assistir à sua aula. Peça a
ele/ela para observar e anotar os momentos em que você varia seu
grau de monitoração estilística. Veja um exemplo recolhido em uma
4ª série do Ensino Fundamental em uma escola no DF, pela pesqui-
sadora Vera Aparecida de Lucas Freitas: (P – indica professora ; A
– indica aluno; + – indica pausa; xxx – indica trecho incompreensível
na gravação).
16
Veja agora um segundo exemplo, recolhido por nós em
uma escola rural multisseriada em Nerópolis, GO.
A. O palhacinho.
20 Chamamos hipercorreção ou ultra-
P. O palhacinho, né? Vamu trabalhá exatamente. O tra- correção o fenômeno que decorre de
balho é a leitura lá. Nós vamu vê se nóis entendemos o não o que tá uma hipótese errada que o falante reali-
escrito lá. Então vamu, tá? Tá escrito aqui, ó. (Lendo) Com que se pa- za num esforço para ajustar-se à norma
culta. Ao tentar ajustar-se à norma, aca-
recia o palhacinho? (Pára de ler.) Cê vai voltá lá naquela leitura lá. Vai
ba por cometer um erro. Por exemplo:
olhá. O palhacinho se parecia com um negócio lá. Com quê? Com pronunciar ‘previlégio’, imaginando que
um boneco. Então cê vai dizê. Parecia com um boneco, né? (Lendo) ‘privilégio’ é errado; pronunciar ‘bandei-
Por que todos gostavam dele? (pára de ler) tá? Por que todos gos- ja’ achando que ‘bandeja’ é errado. Pro-
nunciar ‘telha de aranha’ achando que
tavam dele? Depois (lendo) Qual era a maior felicidade do palha-
‘teia de aranha’ é errado. No exemplo
cinho? Como costumavam chamá-lo ? (Pára de ler) Tá? As crianças de sala de aula, o professor flexionou o
chamavam ele é (...) de um nome, sei lá. Um apelido lá, né? Qual era verbo ‘haver’ que, no sentido de ‘existir’.
esse apelido dele, tá? (lendo) Um dia o palhacinho chorou. Por que é impessoal. Ao escrever ‘haviam’ em vez
ele chorou? (pára de ler) Tá? Aí cê vai dizê qu’ele chorou por isso, por de ‘havia’, ele estava se ultramonitoran-
do e o resultado foi uma hipercorreção
isso, isso, isso, isso, assim, assim, tá? Isto tá escrito lá no livro. (lendo) decorrente de uma hipótese malsucedi-
Quantas crianças haviam mais o menos no palco? (pára de ler). Ele da.
entrô lá pra fazê a brincadeira com as crianças. Quantas crianças ti-
nha mais o menos lá, tá bom? Então cê vai respondê lá, olhanu no
livro e responde, tá?
Atividade
Queremos propor a você que observe seus alunos em
uma atividade como essa e verifique se eles já são capazes de al-
ternar entre um estilo monitorado e um estilo mais espontâneo. Se
você conseguir gravar um episódio como o que a Ilse de Oliveira
registrou, transcreva-o e apresente aos seus alunos. Eles vão achar
muito interessante a forma como usam a língua com competência.
Deixe claro para eles que não existe forma certa ou errada de fa-
lar, mas sim formas adequadas às diversas situações. Esta questão é
muito importante e vai ser mais trabalhada ao longo dos fascículos
de Educação e Língua Materna.
18
chamou de “filhos de baiano” O nome não é pejorativo. O termo
“baiano” é usado em muitas comunidades do Centro-Oeste como
um termo genérico para se referir aos brasileiros provenientes das
regiões Norte e Nordeste.
19
rio, vamos encontrar diferenças. Em muitas áreas do Nordeste, as
pessoas dizem “tomar de conta”, enquanto no Centro-Sul se usa
“tomar conta’” No léxico da culinária, há muitas diferenças. A pala-
vra “canjica”, por exemplo, denota alimentos diferentes nas diversas
regiões. A canjica que comemos no Centro-Sul, em alguns pontos
do Nordeste é conhecida como “munguzá”. Também nos cortes de
carne bovina (filé, contrafilé, patinho, picanha etc) há muita varia-
ção. Você certamente conhece muitos outros exemplos de variação
dialetal no léxico.
Pesquise
Procure informar-se sobre qual o percentual de residen-
tes no AC que nasceram aqui e qual o percentual proveniente de
cada estado brasileiro.
Atividade
1. Com os dados obtidos construa uma tabela para mos-
trar aos seus alunos. Eles também poderão fazer um pequeno censo
na escola indicando a origem geográfica de todos os alunos, pro-
fessores e técnicos administrativos. Se os seus alunos já estudaram
números percentuais, esta é uma boa oportunidade de praticar esta
competência matemática, pois eles deverão apresentar os resulta-
dos do censo em totais e em números percentuais.
Reflita
Sempre ouvimos falar que o português falado em um
estado ou uma região é ‘melhor’ que o de outras regiões. Será que
podemos considerar o dialeto de uma região melhor, mais bonito e
mais recomendável que os dialetos de outras regiões? Será que exis-
te algum estado brasileiro que use melhor a Língua Portuguesa?
20
falar sobre os demais é um dos mitos que se arraigaram na cultura
brasileira. Todo dialeto ou falar é, antes de tudo, um instrumento
identitário, isto é, um recurso que confere identidade a um grupo
social. Ser nordestino, ser mineiro, ser carioca, etc. é um motivo de
orgulho para quem o é e a forma de alimentar esse orgulho é usar o
linguajar de sua região e praticar seus hábitos culturais. No entanto,
verifica-se que alguns falares ou dialetos têm mais prestígio no Bra-
sil como um todo que outros. Por que isso ocorre?
21
provenientes da Região Nordeste e dos estados de Goiás e Mato
Grosso que tiveram problemas para trabalhar em escolas particu-
lares em Brasília com a alegação, por parte dos dirigentes das es-
colas, de que sua fala seria ‘um mau exemplo’ para os alunos. His-
tórias como essas nos deixam indignados, mas precisamos tomar
conhecimento da magnitude e dos efeitos nefastos do preconceito
lingüístico para podermos nos municiar de informações científicas
e combatê-lo. Lembre-se de que a pluralidade cultural e a rejeição
aos preconceitos lingüísticos são valores que precisam ser cultiva-
dos a partir da educação infantil e do ensino fundamental.
Leia
Para entender melhor essa relação entre o prestígio dos
falantes e a construção de preconceito lingüístico, leia Preconceito
Lingüístico, de Marcos Bagno. (São Paulo: Edições Loyola, 1999).
Legendas:
L: Limoeiro
22
Pruque ai ocê vai ta bem forte!
Vai sabê si protegê do vento, do sor i da geada, sozinho!
I suas raiz vão ta tão cunprida qui ocê vai podê buscá
água por sua conta!
Ocê vai sê dono doce mermo!
Sabe, limoeiro... Tava pensando...
Acho qui ispois, vai sê eu qui vô percisá docê!
Isso é... Quando eu ficá mais veio!
Claro! Cum uns limão tão bão qui ocê tem...
...i a sombra qui ocê dá, pode mi protegê inté dos pingo
di chuva!
Ocê vai fazê isso, limoeiro?
Cuidá de mim tamém?
Num importa!
O importante é qui eu prantei ocê!
I é ansim qui eu gosto! Do jeito qui ocê é.
P> M: Muié...tem reparado como nosso fio cresceu?
Reflita
Essa posição do Conselho Nacional de Cultura refle-
te preconceitos arraigados contra as manifestações culturais dos
segmentos da população brasileira que são portadores de uma
cultura predominantemente oral e têm pouco acesso à cultura de
letramento escolar. Reflita sobre essa postura, juntamente com seus
colegas e alunos.
23
Atividade
Escreva um ‘editorial’ para o jornal (ou jornal mural) de
sua escola com o seguinte título: “Por que o personagem21 Chico
Bento é bem-vindo em nossa escola?” Peça aos seus alunos que
também escrevam ao Chico Bento para dizer a ele por que gostam
(ou não gostam) dele. As cartas poderão ser enviadas para a Editora
Maurício de Sousa/Editora Globo, Rua Teodoro da Silva nº 907 – Rio
de Janeiro, ou pela internet para a página http://editoraglobo.com.
br
Atividade
Nos balões da historinha do Chico Bento, você encontra
palavras e expressões que são características dos falares rurais. Faça,
junto com seus alunos, uma lista dessas palavras, colocando ao lado
a variante que você usa para escrever ou para compor seus estilos
monitorados na língua oral. Faça assim:
Grupos etários
Gênero
24
não se esqueça de que essas variações entre os repertórios femini-
no e masculino são relacionadas aos papéis sociais que, conforme já
aprendemos, são culturalmente condicionados.
Status socioeconômico
Grau de escolarização
Mercado de trabalho
Rede social
25
ção dos repertórios sociolingüísticos dos falantes. Além disso, ao es-
tudarmos a variação lingüística, levamos em conta, também, fatores
lingüístico-estruturais, tais como o ambiente fonológico em que o
segmento que está em variação ocorre, a classe da palavra, a estru-
tura sintática, etc. Em suma, os fatores lingüístico-estruturais podem
ser fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos, pragmáticos e
até discursivos. Você verá exemplos desses fatores ao longo de nos-
sos módulos de Língua Materna e Educação.
• Contínuo de urbanização
• Contínuo de oralidade-letramento
• Contínuo de monitoração estilística
26
preferencialmente estilos monitorados da língua tanto na modali-
dade escrita quanto na oral. Conforme já vimos, há domínios sociais
em que predomina uma cultura de oralidade, por exemplo, o do-
mínio do lar e há outros, como o domínio da escola, dos hospitais,
dos escritórios, das repartições públicas, etc., onde predomina uma
cultura de letramento.
Atividade
Desenhe para seus alunos o contínuo de urbanização.
Peça que eles se situem no contínuo e situem também seus pais.
Discuta com eles o fenômeno da migração rural-urbana do século
XX no Brasil. Em seguida, peça a eles que escrevam sua autobio-
grafia focalizando a transição rural-urbana em sua própria família.
Para isso, será preciso que façam pesquisa junto aos parentes mais
velhos. Ao fazer a pesquisa, incentive-os a gravar histórias contadas
por seus pais, tios e avós. Os trabalhos que os alunos mais aprecia-
rem deverão ser divulgados na escola.
27
No contínuo de urbanização não existem fronteiras rígi-
das que separem os falares rurais, rurbanos ou urbanos. As frontei-
ras são fluidas e há muita sobreposição entre esses tipos de falares.
Por isso, em vez de considerá-los como entidades em nossa análise,
vamos propor a você uma análise mais funcional, que é a seguinte:
quando interagimos com brasileiros nascidos e criados na região
rural ou rurbana do contínuo de urbanização, observamos muitos
usos lingüísticos que são diferentes dos nossos. Vimos isso na nar-
rativa de Carmo Bernardes e também na historinha do Chico Bento.
Você mesmo já fez uma lista de palavras e expressões usadas pelo
Chico Bento e que não aparecem com freqüência na sua linguagem.
Dê uma olhada em sua lista. Alguns itens ali são típicos dos falares
situados no pólo rural do contínuo e que vão desaparecendo à me-
dida que nos aproximamos do pólo urbano do contínuo. Dizemos,
então, que esses traços têm uma distribuição descontínua porque
seu uso é “descontinuado” nas áreas urbanas. Há outros traços na
nossa listinha do Chico Bento que estão presentes na fala de todos
os brasileiros e, portanto, se distribuem ao longo de todo o con-
tínuo. Esses traços, ao contrário dos outros, têm uma distribuição
gradual. Vamos chamar os primeiros de traços descontínuos e os
últimos de traços graduais. Observe que os traços descontínuos são
os que recebem a maior carga de preconceito nas comunidades ur-
banas. Para que essas idéias fiquem mais claras, vamos classificar os
traços que identificamos na historinha do Chico Bento entre traços
descontínuos e traços graduais. Pode ser que você não concorde
totalmente com essa classificação. Não se preocupe com isso. Essa
classificação tem ainda um caráter muito preliminar. Para uma clas-
sificação mais definitiva entre traços descontínuos e graduais no
português falado no Brasil, precisamos conhecer mais as caracte-
rísticas do português que falamos em todo o Brasil. Vamos, então,
passar ao nosso exercício.
28
desapareceu dos falares urbanos, por isso foi considerado traço
descontínuo. Observe que muitas formas encontradas hoje no pólo
rural do contínuo são arcaísmos que se preservaram e podem ser
encontrados em obras literárias antigas, como Os Lusíadas, poema
épico escrito pelo português Luís Vaz de Camões, para celebrar as
descobertas marítimas de seus patrícios e publicado em 1572.
“Há de surgir uma estrela no céu cada vez que ocê sorrir
Há de apagar uma estrela no céu cada vez que ocê chorar”.
Pesquise
Pesquise, com seus alunos, outras músicas em que apa-
recem as variantes ‘ocê’ ‘cê’ do pronome de tratamento ‘você’. O em-
prego de ‘cê’ e ‘ocê’ é um bom indicador de estilos não-monitorados
e seus alunos poderão usá-lo para identificar o grau de formalidade
de estilos, tanto nas interações face a face quanto na televisão e no
rádio. Bom trabalho!
29
analogia com os verbos regulares (cantei/casei/falei, etc.) usando-
se, como base, a forma do pretérito imperfeito (punha, punhas, etc.)
A forma ‘ponhei’ é, pois, uma regularização que segue um processo
de analogia. Observe que formações analógicas como essa são mui-
to comuns na linguagem de crianças pequenas, que dizem coisas
como : ‘eu descei’, ‘já chegui’etc. Mas a variante ‘ponhei’ é uma forma
estigmatizada nas comunidades urbanas letradas e é, praticamen-
te, restrita ao pólo rural do contínuo. Por isso, a catalogamos como
traço descontínuo.
30
caram-se duas regras que já são nossas conhecidas: a redução da
vogal pretônica /e/ > /i/ e do ditongo /ai/ > /a/. Ambas as regras têm
caráter gradual.
31
Atividade
Faça uma gravação de sua interação em sala de aula.
Peça, também, autorização para gravar um de seus colegas dando
aula. Depois grave uma interação sua em casa, com seus familiares.
Ouça com atenção as gravações e faça uma lista dos sintagmas no-
minais cujo núcleo é (semanticamente) plural. Verifique em quantos
deles houve flexão de todos os elementos flexionáveis e em quan-
tos a marca de plural foi usada apenas no primeiro elemento.
32
Atividade
Peça a seus alunos que tragam letras de músicas, grava-
ções espontâneas e outros materiais e façam juntos uma pesquisa
dos sintagmas nominais.
33
chamam de concordância nominal de número.
25 ‘Horas de véspera’ era uma das sete Este mesmo fenômeno de redução das vogais /e/ e /o/
partes em que se dividiam as horas ca- em monossílabos átonos é observado em sílabas pretônicas e em
nônicas. Equivaliam ao período entre sílabas átonas finais. Vamos voltar brevemente a esse assunto. Por
15 horas e o pôr-do-sol.
enquanto, basta observarmos que a redução27 das vogais médias
26 Observe que o verbo ‘deparar’ não /e/ e /o/ em sílabas átonas é um traço característico da pronúncia
foi usado como pronominal. De fato, a do português do Brasil presente no repertório da qualquer comuni-
regência mais recomendada desse ver- dade de fala, sejam rurais, rurbanas ou urbanas.
bo é sem pronome.. Exemplo:‘Eu depa-
rei com um vulto na esquina’. Ou então:
Ainda em relação à fala do Chico Bento que estamos co-
‘Um vulto se me deparou na esquina’.
A construção ‘Eu me deparei com um mentando, você certamente observou que ele usou ‘mais grande’
vulto na esquina’ é uma hipercorreção, em vez de ‘maior’. A forma comparativa ‘mais grande’ é mais empre-
que está se generalizando no Portu- gada nas comunidades situadas no pólo rural do contínuo. No pólo
guês contemporâneo. Confira isso em urbano, em estilos monitorados usa-se mais a variante ‘maior’.
um dicionário de Verbos e Regimes..
27 Dizemos que a mudança do /e/ em Até agora discutimos o contínuo de urbanização, e vi-
/i/ e do /o/ em /u/ é uma redução por- mos como podemos situar qualquer falante do português do Brasil
que, como você já viu, as vogais /e/ e nesse contínuo. Aprendemos também que as regras fonológicas
/o/ são médias e as vogais /i/ e /u/ são que marcam o português no Brasil podem ser classificadas como
altas. As vogais altas são pronunciadas
descontínuas ou graduais. Vamos passar agora para os dois outros
com a boca mais fechada, o que resulta
em menor energia acústica. Por isso, a contínuos: o de oralidade – letramento e o de monitoração estilística
passagem de /i/ para /e/ e de /o/ para para, depois, usarmos todos os três em nossa análise e discussão.
/u/ representa uma redução. Volta-
remos a falar sobre isso porque essa Você já percebeu que, em nossa linha imaginária que
regra tem muitas conseqüências na
chamamos de contínuo de urbanização, os domínios onde predo-
alfabetização e na escrita dos alunos
em geral e é muito produtiva em nos- mina a cultura de letramento estão situados na ponta da urbaniza-
so Português. ção enquanto na outra ponta só vamos encontrar domínios onde
predomina a cultura de oralidade. Usamos o contínuo de urbaniza-
ção para situar os falantes de acordo com seus antecedentes e seus
atributos. Vamos agora usar outra linha imaginária, outro contínuo,
ao longo do qual vamos dispor os eventos de comunicação, confor-
me sejam eles eventos mediados pela língua escrita, que chama-
remos de eventos de letramento, ou eventos de oralidade, em que
não há influência direta da língua escrita. O nosso contínuo pode
ser imaginado assim:
34
Como no caso do outro contínuo, não existem frontei-
ras bem marcadas entre os eventos de oralidade e letramento. As
fronteiras são fluidas e há muitas sobreposições. Um evento de le-
tramento, como uma aula, pode ser permeado de minieventos de
oralidade. Para fazermos a distinção entre eventos de letramento e
oralidade, vamos nos lembrar de que nos primeiros, os interagentes
se apóiam em um texto escrito, que funciona como uma pauta de
uma partitura musical. Esse texto pode estar presente no ambiente
da interação ou pode ter sido estudado ou lido previamente. Num
ofício religioso, por exemplo, o padre, rabino ou pastor, ao proferir
seu sermão, está realizando um evento de letramento, seja porque
ele tem diante de si o roteiro escrito de sua fala, seja porque ele
preparou previamente esse roteiro escrito, no qual introduziu pas-
sagens bíblicas. Uma conversa à mesa de bar é um evento de orali-
dade, mas, se um dos participantes começa a declamar um poema
que ele recolheu em suas leituras, o evento passa a ter influências
de letramento.
35
A primeira fala foi produzida por um carpinteiro, com
pouca escolarização, residente na cidade de Brazlândia, no DF, e
proveniente de área rural de Minas Gerais. Quando a entrevista foi
feita, em 1980, ele tinha 54 anos e já residia no DF há 24 anos.
36
casadas daquela comunidade, mantém-se muito isolada em uma
rede fechada, restrita aos familiares e à vizinhança. A diferença na
estrutura das redes sociais explica porque o repertório da dona-de
casa se alterou pouco depois de sua migração para uma região me-
tropolitana. Como o carpinteiro está exposto a relações mais hete-
rogêneas e variadas, adquiriu novos hábitos lingüísticos depois de
sua mudança para o Distrito Federal. Você pôde constatar nesses
dois exemplos que o gênero (sexo do falante) e, conseqüentemen-
te, os papéis sociais que os falantes assumem em função do gênero
e de suas redes sociais têm influência em seus hábitos lingüísticos.
37
entendimento a diretoria é pa fazê isso mesmo... O negoçu é qu ‘es-
ses home nem lembra de nóis, só na inleição....
38
Eu grito uma! Duas! Duas e meia! E... três! E o nome do freguês. “
6. Professor: /.../ o risco muito grave é de se ferir frontal- 30 Os dados foram coletados pela
mente o princípio de Arquimedes (+++) dois corpos (=) ou dois titu- Professora Cibele Brandão de Oliveira,
lares ou duas pessoas não podem ocupar ah:: (+) ao mesmo tempo da Universidade de Brasília, para sua
(=) o mesmo lugar no espaço (+) ou o mesmo cargo na administra- dissertação de Mestrado Do discurso
formal para o informal: um estudo da
ção pública (=) ENTÃO (=) na verdade (+) lógico (+) ninguém tem o variação estilística no meio acadêmi-
dom da da da ubiqüidade (+) não é? e conseqüentemente (+) em co, Universidade de Brasílial, 1997. Os
termos de aposentados isto não se aplica de FORMA NENHUMA (+) símbolos usados nesta transcrição e
mas é como a história do macaco/ (+) até (+) o macaco tava corren- nas seguintes foram copiados dos ori-
do porque até provar-se que ele não era elefante (+) ele tava liqui- ginais e têm as seguintes significações
: /../ = trecho não transcrito; (+) = pausa;
dado (+) tavam degolando tudo quanto era elefante na selva (+++) :: = alongamento do som; maiúsculas =
ele começou a correr (+) então agarraram o macaco (+) Macaco (+) ênfase (pronúncia mais alta e mais for-
por que que cê tá correnu? (+) rapaz (+) é que tão degolando tudo te).
quanto é elefante (+) (narrativa enunciada em ritmo acelerado) (
risos sobrepostos à fala) não (+) é verdade (+) mas (+) mas (+) (+)
você não é elefante! Você é macaco (+) ah:: (+) então prove isso (+)
(risos) cê tá louco! /.../ “
39
Menino: Nóis tava dormino lá na casa, às treis hora da
manhã, aí os PM chegaro, deu um tiro na porta, pegô na perna do
XX aí em seguida ez arrebentô a porta, aí deu oto tiro, pegô na ca-
beça do Adauto, ez viro que tinha acertado o Adauto. Falaro : “vamo
saí fora que certô o menino aqui”... saiu tudo correno os policiais, aí
desci de cima do armário, corri na porta pa vê se eu via o número
da viatura déze ma num consegui, voltei lá o Adauto já tava quaise
parano o coração dele, fiz massage nele, consegui dexá ele viveno
mais um poco, foi eu... foi eu e o XX buscá socorro pra ele.
40
se no pólo urbano; seus pais têm antecedentes rurbanos. Quanto
ao segundo contínuo, identificamos o evento como de letramento,
pois a menina, à medida que falava, folheava livros e cadernos. Fi-
nalmente, quanto ao contínuo de monitoração estilística, seu estilo
é monitorado, pois estava conversando com uma professora razoa-
velmente desconhecida para ela, e a moldura que definiu o evento
era a de uma entrevista que, segundo a própria entrevistadora, em
alguns momentos quase se caracterizava como uma sabatina.
41
2
A variação lingüística
em sala de aula
44
• O professor percebe o uso de regras não-padrão,
não intervém, e apresenta, logo em seguida, o modelo da variante
padrão.
O padrão de comportamento da professora em relação
ao uso de regras não-padrão pelos alunos depende basicamente
do tipo de evento em que estas são utilizadas. Como regra geral,
observamos que quase nunca os professores intervêm para corrigir
os alunos durante a realização de eventos de oralidade, que, como
já vimos, são realizados sem exigência de muita monitoração.
45
A. querendo sabê.
46
A. É que que [xxx] na floresta [xxx] o amigo dele o ami-
go dele foi na ar... subiu, subiu na arvri e o oto ficô, lá, é que o amigo,
se fô amigo mesmo num pode [xxx] fazê essas covardia.
P. Isso, qual deles que tava co’a razão. Qual deles que
tava co’a razão?
P. É todos.
P. Todos?
/.xxx../
P. O que é a chuva pra você?
47
de uma cultura predominantemente oral são “invisíveis”; o profes-
sor as tem no seu repertório e não as percebe na linguagem do alu-
no, especialmente em eventos de fala mais informais.
48
Atividade
Depois de ter lido todos esses exemplos em que se jus-
tapõem na interação de sala de aula regras fonológicas e morfossin-
táticas de variedades não-padrão da língua e da variedade padrão,
verificando a ação do (a) professor (a) em cada episódio, convida-
mos você a dar outro desfecho ao episódio do “relógio azangado”
do texto de Carmo Bernardes. Imagine que você é o professor ou
professora que vai perguntar ao aluno por que ele chegou atrasa-
do. Ele lhe responderá que se atrasou porque o relógio de sua casa
está “azangado”. Crie, então, todo esse diálogo, finalizando-o com a
reação/explicação do professor. Vai aqui uma dica para você. “Azan-
gado” é uma forma verbal (particípio passado) que tem a função
de adjetivo e é própria dos falares rurais. Distingue-se da varian-
te usada no português urbano em duas dimensões: fonológica e
semântica. Quanto ao aspecto fonológico, temos a variante com
a prótese de um ‘a’ (azangado) versus a variante sem essa prótese
(zangado).Quanto à dimensão semântica, observe que nos falares
urbanos o verbo ‘zangar’ vem acompanhado de sujeito com o tra-
ço semântico [ + animado], por exemplo, ‘o cachorro está zangado’,
‘meu pai zangou-se comigo’, etc. Nos falares rurais o verbo pode vir
acompanhado de sujeito com o traço [ - animado], por exemplo,
‘o relógio zangou (azangou)’; ‘a ferida na perna dele zangou (azan-
gou)’. No primeiro exemplo, o verbo equivale a ‘estragou’; no segun-
do, a ‘piorou’; ‘inflamou’, etc. Lembre-se de que, diante de uma situ-
ação como essa, o (a) professor (a) que é sensível aos antecedentes
sociolingüísticos e culturais dos alunos, empenha-se em duas tare-
fas: explicar o fenômeno que se apresenta em variação na língua e
demonstrar a situação adequada ao uso de cada uma das variantes
da regra. Agora você já está pronto (a) para compor o seu diálogo
com o final feliz. Boa sorte!
49
Competência comunicativa
Ao longo de nossas reflexões sobre Educação e Língua
Materna, você encontrou muitas referências ao conceito de com-
petência. Vamos nos deter um pouco nesse conceito. Primeiro, fa-
remos a distinção entre competência lingüística e competência
comunicativa.
50
nalizou. Essas sentenças podem seguir as regras da chamada língua
padrão ou as regras das variedades rurais ou rurbanas. Em um ou
em outro caso, serão bem formadas. Não se pode confundir, pois,
o conceito de sentenças bem formadas, que provém da noção de
competência, com a noção de erro que as nossas gramáticas nor-
mativas defendem. Na ótica prescritiva dos gramáticos normativos,
toda sentença que não siga as regras da chamada língua padrão
são ‘erradas’. Mas você já sabe que a linguagem usada no pólo ru-
ral/rurbano do contínuo é diferente da linguagem usada no pólo
urbano em estilos monitorados. Contudo, tanto uma quanto outra
se constituem de sentenças bem formadas. A fala de Chico Ben-
to, por exemplo, é tão bem formada quanto um texto de Macha-
do de Assis, considerando-se que ambos os falantes – Chico Bento
ou Machado de Assis – internalizaram as regras constitutivas das
sentenças em português e ambos têm português como língua ma-
terna. As diferenças entre o texto de Chico Bento e o de Machado
de Assis decorrem, basicamente, de localizar-se o primeiro no pólo
rural e o segundo, no pólo urbano do contínuo. Além disso, a fala de
Chico Bento caracteriza em evento de oralidade não-monitorado,
enquanto o texto de Machado de Assis é um exemplar de even-
to de letramento que, por definição, requer muito planejamento e
monitoração. Nenhum falante usa mal a sua língua materna. Mas
a forma como a usa vai depender de todos os fatores que você já
conhece, especialmente, a variação ao longo dos três contínuos: de
urbanização, de oralidade/letramento e de monitoração estilística.
Na próxima seção, vamos continuar essa reflexão, para que não res-
tem dúvidas.
51
sas normas que lhe dizem quando e como monitorar seu estilo. Em
situações que exijam mais formalidade, seja porque está diante de
um interlocutor desconhecido ou que mereça grande consideração,
o falante vai selecionar um estilo mais monitorado; em situações de
descontração, em que seus interlocutores sejam pessoas que ama
e em que confia, o falante vai sentir-se desobrigado de proceder a
uma monitoração vigilante e pode usar estilos mais coloquiais. Em
todos esses processos, tem sempre que se levar em conta o papel
social desempenhado.
53
práticas sociais especializadas.
54
– Não é não! Eu quero o triângulo azul que você usou
para fazer a proa de seu navio...
Atividade
Grave o diálogo entre dois ou mais alunos envolvidos em
uma atividade manual. Transcreva, depois, o diálogo e discuta com
um colega ou com sua monitora a dependência contextual desse
discurso. Faça o mesmo com um diálogo gravado entre dois profes-
sores igualmente envolvidos em uma tarefa manual comum. Leve a
questão da dependência contextual – ou implicitude – das intera-
ções face a face para discussão em seu grupo. Esta é uma questão
teórica muito relevante porque a implicitude – ou indexicalidade
– ou, se você preferir, o grau de contextualização é uma das princi-
pais características que distinguem a linguagem oral da linguagem
escrita e, também, a linguagem monitorada da não-monitorada.
Reflita
Entre as atividades de linguagem que seus alunos de-
senvolvem em sala de aula, identifique aquelas que são mais praze-
rosas para eles e nas quais eles são mais fluentes. Compare-as com
atividades que os alunos acham difíceis. Mostre sua relação ao seu
monitor e aos seus colegas e juntos procurem analisar essas tarefas
com relação aos três parâmetros estudados:
55
Em uma entrevista feita com populares na rua, o repór-
ter de TV pergunta a uma moça que vantagens um treinamento
profissional lhe havia trazido. No afã de monitorar o seu estilo e
como lhe faltassem recursos de morfologia verbal, a entrevistada
respondeu:
–“O curso foi muito bom para que nós aprimorizásse-
mos nossos conhecimentos”.
56
57
3
Revendo a variação
lingüística no
Português do Brasil
Objetivos: sistematizar as informações sobre variáveis no
Português Brasileiro e as principais regras de variação na
fonologia e morfossintaxe
Nesta seção, vamos procurar resumir e sistematizar o
que temos visto sobre as características lingüísticas – inclusive os
traços descontínuos e graduais que distinguem as variedades ao
longo do contínuo de urbanização. Em outras palavras, queremos
responder às seguintes perguntas :
• CV, exemplo: ma, lá, li, vê, na, de, vi, lu-xo, fa-la, etc. A
sílaba CV é considerada canônica, porque se constitui de uma con-
soante e de uma vogal. Na articulação da consoante, a corrente de
ar tem de forçar sua passagem na boca, pois algum movimento ar-
ticulatório lhe criam embaraço em algum ponto da cavidade. Na ar-
ticulação da vogal, a corrente de ar passa livremente pela cavidade
bucal, variando apenas o grau de abertura da cavidade.
•CVC: por, mar, ver, pos - te, cas - telo, ra - paz, fá - cil, etc.
60
de C nessas configurações. Existem restrições que você vai apren-
der agora, observando os seguintes quadros: em cada quadro está
marcada a posição da consoante na sílaba e abaixo dela os fonemas
que podem ocorrer naquela posição.
Atividade
Para fixar bem essas restrições de ocorrência dos fo-
nemas nas sílabas, faça uma relação de palavras que contenham
sílabas na configuração CCV, como nos exemplos que você já viu.
Antes de passarmos para outra configuração silábica, precisamos
observar que na configuração CCV, que acabamos de discutir, uma
regra variável muito produtiva nos falares rurais e rurbanos, mas
que também pode ocorrer nos estilos não-monitorados de falantes
de antecedentes urbanos é a troca do /l/ por /r/. Isso se explica por-
que esses dois fonemas são do ponto de vista articulatório muito
semelhantes. Você, certamente, já ouviu palavras como bloco >’bro-
co’, problema> ‘pobrema’, claro> ‘craro’.
Na realização do /r/ e do /l/ como a segunda consoante
no padrão CCV pode ocorrer também outro fenômeno, que é a tro-
ca do /r/ pelo /l/. É o que acontece na fala do Cebolinha, persona-
gem de Maurício de Sousa.
Atividade
Seus alunos vão gostar de pesquisar a realização das
consoantes liquidas /r/ e /l/ no padrão silábico CCV. Vocês vão des-
cobrir que alguns tipos de neutralização (troca) desses dois fone-
mas configuram traços descontínuos, só encontrados no pólo rural
do nosso contínuo; verão também que, em certas regiões do Brasil,
como no sul de Minas e em certas áreas de Goiás, essa neutralização
é mais freqüente que em outras regiões. Finalmente, poderão cons-
tatar que a neutralização do /r/ e /l/ nessa posição pode caracterizar
61
um problema articulatório, que tem de ser tratado com fonoaudió-
logos. O caso do Cebolinha se enquadra nessa última categoria. Em
resumo, a naturalização do /r/ e /l/ no padrão silábico CCV pode ser
indicador de dialetos rurais e rurbanos, pode ser marcar regional e
pode ainda ser um problema fono-articulatório. Discuta essa ques-
tão com seus alunos e colegas.
Atividade
Observe junto com seus alunos realizações diferentes
de /r/ pós-vocálico comparando-as na linguagem de mineiros, pau-
listas do interior, paulistanos, goianos, paranaenses e gaúchos. Vo-
cês vão encontrar uma interessante variação de natureza regional.
62
Além da variação no modo e no ponto de articula-
ção do /r/ pós-vocálico, que é de natureza regional, esse fonema
apresenta uma peculiaridade para qual nós, professores, devemos
ficar muito atentos. Em todas as regiões do Brasil, o /r/ pós-vocá-
lico, independentemente da forma como é pronunciado, tende a
ser suprimido, especialmente nos infinitivos verbais (correr>corrê;
almoçar>almoçá; desenvolver>desenvolvê; sorrir>sorri). Quando o
suprimimos, alongamos e damos mais intensidade à vogal final. A
regra de supressão do /r/ nos infinitivos dá origem a uma hiper-
correção (fenômeno que você já conhece) que resulta em constru-
ções assim: “João estar muito quieto hoje”. Esta, como qualquer ou-
tra hipercorreção, decorre de uma hipótese heurística malsucedida.
O usuário da língua, quando suprime um /r/ em infinitivo verbal,
ao escrever, o faz porque na língua oral ele já não usa mais esse
/r/. Então, ao produzir uma forma como “está”, da terceira pessoa do
singular do indicativo presente, imagina que nela também haveria
um /r/ que foi igualmente suprimido, e acrescenta esse suposto /r/,
incorrendo numa hipercorreção.
Atividade
Observe junto com seus alunos em uma gravação es-
pontânea, em músicas ou poemas gravados ou em outros textos, a
supressão do /r/ pós-vocálico em final de palavra. Faça quatro listas
de palavras terminadas em /r/ colocando-as na coluna específica,
observando se o /r/ foi ou não pronunciado. Ao final, você terá um
quadro com este abaixo, com esses cabeçalhos.
63
• some todas as ocorrências de infinitivos verbais com
/-r/;
• divida o total de ocorrências de infinitivos verbais
sem /-r/ pelo total de infinitivos verbais. Assim você encontrará a
freqüência de infinitivos verbais sem /-r/;
65
Para nós, que somos professores em início de escolari-
zação, um fenômeno muito importante relacionado ao /s/ pós-vo-
cálico é a tendência à sua supressão. Assim como /r/ pós-vocálico,
que já vimos, também o /s/ nas sílabas do tipo CVC tende a ser su-
primido, principalmente nos estilos não-monitorados.
66
chegando, às vezes, até mesmo, aos estilos monitorados.
Por estar tão generalizada na língua, é certo que nossos
alunos vão empregá-la em seus textos escritos que, por sua natu-
reza, exigem a regra da concordância redundante prevista na gra-
mática normativa. Por isso, nós, professores, temos que ficar muito
atentos ao uso da regra de concordância nominal na produção de
nossos alunos e na nossa própria produção.
67
Atividade
Você poderá aumentar a lista de exemplos em cada ca-
tegoria, sempre observando a diferença entre a forma de singular e
a de plural.
68
fonicamente, como ele fala ~ eles falam ou casa ~ casas constituem
o subgrupo mais problemático para o falante, que costuma marcar
geralmente o plural nas formas mais marcadas fonicamente apenas
no primeiro elemento, nos casos de sintagma nominal “ (MOLLICA,
2000, pág. 35-60).
Atividade
Reúna um conjunto de trabalhos escritos de seus alu-
nos. Identifique nesse corpus todos os sintagmas nominais que são
semanticamente plurais, mesmo que não apresentem todas as mar-
cas de plural. Verifique se seus alunos tendem a flexionar com mais
freqüência os plurais irregulares do que os regulares. Faça um pe-
queno cálculo das freqüências, do seguinte modo:
69
• /R/ - pode ser pronunciado na parte anterior da
boca, como uma vibrante alveolar, ou com a língua retroflexa, mas,
na maior parte das variedades regionais brasileiras, é pronunciado
como uma consoante posterior. Já sabemos que o /R/ final que tem
mais probabilidade de ser suprimido na pronúncia é o dos infini-
tivos verbais e das formas do futuro do subjuntivo. Os nomes mo-
nossilábicos, como ‘dois’, ‘cor, ‘mar’, etc, tendem à conservação do /R/,
enquanto os polissilábicos tendem à supressão dessa consoante
final. É preciso observar também que em sílabas átonas finais, como
em “revólver”, o /R/ tende mais a ser suprimido que em sílabas finais
tônicas, como em “malmequer”.
Atividade
Pegue as gravações que você já fez e peça aos seus alu-
nos que tragam outras: de novelas, programas de rádio, entrevis-
tas, etc, e observem a freqüência da regra de supressão do /s/ no
morfema {-mos}. Para calcular a freqüência da regra no seu corpus
gravado, conte o número (T) de ocorrências do morfema {-mos},
realizado como /-mus/ ou como /-mu/. Conte depois o número de
ocorrências da variante com supressão do /s/ (TU). Depois divida
TU por T (TU/T) e você encontrará a freqüência da supressão do /s/
final no morfema {-mos} em seus dados.
22/38 = 0.57
70
• N
Atividade
Observe a pronúncia de palavras como ‘Brasil’, ‘anel’, ‘ca-
nal’ e confira se o /l/ está sendo pronunciado como consoante late-
ral ou como vogal posterior.
juntos de palavras:
Atividade
Discuta essa questão com seus colegas de grupo. Verifi-
que que estratégias são usadas por eles, em sala de aula, para lidar
com a neutralização entre o /l/ e o /u/ na consoante pós-vocálica,
nas sílabas finais CVC.
72
doutor > dotô
roupa > ropa
zindo o ditongo.
73
estados brasileiros.
74
caminhão, armazém, estarão, reunião, irmã
75
do que em formas como:
Atividade
Nos corpura de textos escritos de seus alunos (corpora
é o plural da palavra latina corpus) que você já reuniu, verifique se
eles tendem a flexionar, com menos freqüência as formas do tipo
‘come/comem’; ‘fala/falam’ e ‘faz/fazem’ do que as demais. Discuta
sua constatação com seus colegas de grupo para ver se os resulta-
dos a que chegaram confirmam os seus.
76
Vimos, com bastantes detalhes, a tendência de supres-
são da consoante de travamento nas sílabas de padrão silábico CVC.
Veremos agora outras tendências do PB: a da redução das proparo-
xítonas e da assimilação das consoantes homorgânicas.
Por quê?
No Português de Portugal, as sílabas pretônicas são
reduzidas.
Assim:
Veja os exemplos:
( i)
chácara > chacra
árvore > arvri ~ arvi
xícara > xicra
Neste conjunto, foi suprimida a vogal da primeira sílaba
pós-tônica.
( ii)
depósito > deposu
fósforo > fosfu
válvula > valva
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quilômetro > quilomu
(iii)
número > numru
bêbado > bebdu
lâmpada > lãpda
(iv)
numeru > numuru > numru > nuru
bêbado > bebdu > bebo
lâmpada > lampda > lampa
Atividade
Verifique como os seus alunos lidam com as palavras
proparoxítonas na fala e na escrita. Se você só tem alunos de ante-
cedentes urbanos, é provável que só encontre os casos do conjunto
(i); se seus alunos têm antecedentes rurbanos ou rurais, é provável
que encontre as demais ocorrências.
78
estando > estanu
Atividade
Ambos os casos configuram regras graduais muito pro-
dutivas no PB. Por isso, nós, professores de ensino fundamental, nos
confrontamos muito freqüentemente com “erros” que são a trans-
posição dessas regras fonológicas para a escrita. Você certamente
terá muitos exemplos desses casos retirados do texto escrito de
seus alunos. Faça uma listinha deles para mostrar ao seu monitor.
Leia
Para que todas essas informações fiquem bem assimi-
ladas, recomendamos a você que leia os seguintes livros (você po-
derá fazer uma leitura de reconhecimento e selecionar os capítulos
que considerar mais úteis à sua formação):
79
As perguntas ou comandos foram copiados do quadro e as respos-
tas produzidas por ele.
1- Responda
– Água.
2 - Complete:
– Os mares?
– Os mares são massas de água de menor profundidade
menos salgada.
– Gelatina.
80
Em “carangeijo” vemos que o aluno ainda não apren-
deu a usar o dígrafo “gu” e também incorreu em uma hipercorreção
muito freqüente: cria um ditongo na palavra, que não existe na sua
forma dicionarizada.
Até breve.
81
Referências
83
OLSON, D. O mundo no papel: as implicações conceituais e cogniti-
vas da leitura e da escrita. São Paulo: Ática, 1997.
ROJO, R. Alfabetização e letramento. Campinas: Mercado das Letras,
1998.
84
85