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O estudo não tem outra razão de ser que não a de propiciar a expansão de nosso ser: ele

não deve acabar nos reduzindo. Se a arte é o homem acrescentado à natureza, a ciência é
a natureza acrescentada ao homem: nos dois casos é preciso salvar o homem.

Os senhores, pois, que tencionam dedicar-se à vocação do estudo, não deem as costas,
para favorecêlo, a todo o restante da vida. Não renunciem a nada do que faz parte do
homem. Mantenham um equilíbrio em que o peso dominante não tente arrastar tudo
consigo. Saibam elaborar uma tese e contemplar um raiar do dia, enfurnar-se nas
abstrações profundas e brincar, como o Mestre divino, com as crianças. Hoje em dia as
becas dos pedantes e seus barretes pontudos, de que zombava Pascal, caíram em desuso;
entretanto eles subsistem, só que do lado de dentro, eles estão nas almas: não se
pavoneiem com eles. Recusem ser um cérebro que se destacou de seu corpo e um
humano que se diminuiu subtraindo-se sua alma. Não façam do trabalho uma
monomania.

No teatro, quando baixa o pano, um batalhão de operadores se lança ao palco, limpa,


conserta, modifica, e assim se apronta o ato seguinte. O diretor de cena que interromperia
ou atrapalharia essa correria não seria um inimigo da peça, do autor, dos intérpretes, do
público, de si próprio? O estafado se contrapõe assim à própria vocação, Àquele que a
atribui a ele, a seus parceiros na construção intelectual, a seus irmãos que dela tirariam
proveito, a seu próprio bem.

Se estiverem em grupo, façam boa acolhida às distrações uns dos outros. O homem que
não graceja nunca, diz Santo Tomás, que não aceita brincadeiras e não incentiva o lado
lúdico ou relaxante de outrem é um bronco, e tem um alto custo para o próximo.[42] Não
se consegue viver um dia sequer, dizia Aristóteles, com um homem inteiramente sombrio.

Esse equilíbrio do trabalho e da alegria repousante é tanto mais necessário que as


provações do trabalhador são inúmeras. Demos uma ideia disso reiteradas vezes. Em
matéria de ciência como em tudo o mais, não se chega à salvação senão pela cruz. O
descontentamento consigo mesmo, a demora da inspiração, a indiferença do entorno, a
inveja, as incompreensões, os sarcasmos, as injustiças, o abandono por parte dos chefes, a
deserção dos amigos, tudo pode concorrer, e tudo tem sua hora.

“A superioridade tem de se haver com tantos obstáculos e sofrimentos”, escrevia George


Sand a respeito de Balzac, “que o homem que persiste, com paciência e brandura, em
cumprir a missão do talento é um grande homem”. Os senhores não hão de querer atribuir
a si próprios esta última expressão. Contudo, se em algum grau vierem a ser alguém,
fiquem no aguardo de provações seletas e preparem-se para experimentá-las em seus
vários sabores: a provação do ideal, que lhes parece estar cada vez mais distante à medida
que apertam o passo; a provação dos estúpidos que não entendem nada das palavras que
os senhores lhes dizem e ficam escandalizados com elas; a provação dos invejosos que os
julgam impertinentes por terem atravessado a linha de combate deles; a provação dos
bons que se deixam abalar, passam a suspeitá-los e os largam; provação dos medíocres
que são a grande massa e que os senhores incomodam com sua tácita afirmação de um
mundo superior. “Se vós fôsseis do mundo, declara o Salvador, o mundo amaria o que era
seu; mas porque não sois do mundo... por isso é que o mundo vos odeia” (João 15:19)

O trabalho equilibra a alma; ele confere unidade interior. Com o amor de Deus, que funda
a hierarquia dos valores, ele realiza a subordinação das forças e a alma se estabiliza. Fora
isso, a necessidade de unidade não se satisfará senão mediante alguma mania inferior ou
alguma paixão, e nossas fraquezas de todos os tipos voltarão a dominar.

“As grandes almas sofrem silenciosamente”, diz Schiller.

Dissemos que a vida intelectual é um heroísmo: então gostariam que o heroísmo nada
custasse? As coisas só valem na exata proporção do que elas custam. O sucesso fica para
mais tarde; o louvor fica para mais tarde, talvez não o dos homens, mas o de Deus e de
sua corte que farão da consciência dos senhores seu profeta. Os trabalhadores, seus
irmãos, também os reconhecerão, apesar de sua defecção aparente. Entre intelectuais,
muitas pequenas vilezas e às vezes grandes iniquidades se cometem; entretanto uma
classificação implícita nem por isso deixa de consagrar os valores autênticos, mesmo que
a publicidade os relegue ao esquecimento.

Ao intelectual: O intelectual cristão escolheu a renúncia, mas a renúncia o enriquece


mais que uma opulência altiva. Quando se está nas condições requeridas e a alma está
inteiramente entregue à obra a executar, quando se estuda bem, quando se lê bem, quando
se anota bem, quando se faz com que a inconsciência e a noite cumpram sua tarefa, os
trabalhos que se preparam são como semente sob o sol, como a criança a quem a mãe dá
à luz na dor, mas tão feliz por ter nascido um homem que ela nem se lembra mais de sua
dor (João 16:21). A recompensa de uma obra é tê-la feito; a recompensa do esforço é ter
crescido. Essa perenidade excepcional é igualmente a dos santos; ela talvez desse a
pensar que santidade e intelectualidade têm a mesma essência. Com efeito, a verdade é a
santidade do espírito; ela o conserva, como a santidade é a verdade da vida e tende a
fortalecê-la para este mundo tanto quanto para o outro. Não há virtude sem crescimento,
sem fertilidade, sem alegria; não há luz intelectual tampouco sem que tais efeitos dela
derivem. Sábio, conforme a etimologia, é o que possui erudição e experiência de vida, e a
sabedoria é una, abrangendo a dupla regra do pensamento e da ação.

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