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Sesc | Serviço Social do Comércio

ISSN 1809-9815 v.11 n. 33 | janeiro - abril 2017

33
Sesc | Serviço Social do Comércio
Departamento Nacional

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ISSN 1809-9815
Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p.1-212 | jan.-abr. 2017
Sesc | Serviço Social do Comércio CONSELHO EDITORIAL
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Sinais Sociais / Sesc, Departamento Nacional - Vol. 1, n. 1 (maio/


ago. 2006)-  . – Rio de Janeiro : Sesc, Departamento
Nacional, 2006 -  .
v.; 30 cm.
As opiniões expressas nesta revista são de inteira Quadrimestral.
responsabilidade dos autores. ISSN 1809-9815
1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil.
As edições podem ser acessadas eletronicamente em I. Sesc. Departamento Nacional.
www.sesc.com.br.
SUMÁRIO

Apresentação 5

Editorial 6

O beato propagandista do paraíso também tomba


Davi Pessoa Carneiro 9

Lukács e Mészáros, críticos de Weber


Paulo Henrique Furtado de Araujo 31

Dossiê: A ciência política e a crise no Brasil 65


Organização: Marcus Ianoni

Introdução 66

Os protestos e a crise brasileira. Um inventário


inicial das direitas em movimento (2011-2016)
Luciana Tatagiba 71

Caminhos e descaminhos da
experiência democrática no Brasil
Luis Felipe Miguel 99

Para uma abordagem ampliada das coalizões


Marcus Ianoni 131
APRESENTAÇÃO

A origem do Sesc vincula-se à intenção de contribuir para o desenvolvimento do


Brasil a partir de uma profunda compreensão de seu potencial e dos obstáculos
ao seu progresso.

Uma tarefa desafia aqueles que receberam como legado a missão de realizar
no presente os ideais vislumbrados pelos líderes do passado: a revisão e a
ampliação permanente dessa compreensão.

Assim como ao Sesc cabe atuar sobre a realidade social, cabe valorizar e difundir
o entendimento acerca dessa realidade, dos conceitos e questões fundamentais
para o país e das políticas públicas e formas diversas de promover o bem-estar
coletivo.

antonio oliveira santos


Presidente do Conselho Nacional

O Serviço Social do Comércio não teria alcançado, ao longo de seus 70 anos,


um papel tão relevante e definitivo para a sociedade brasileira, não fosse pela
valorização da reflexão sobre a ação social e pela compreensão aprofundada das
contradições do mundo contemporâneo.

A preocupação com o rigor e com a coerência do pensamento e a valorização


conceitual se concretiza nos mais diferentes recortes da ação do Sesc, mas está
expressa em sua plenitude em produções como a revista Sinais Sociais.

Publicada pela primeira vez há 10 anos, Sinais Sociais encontrou seu lugar no
campo da produção reflexiva acadêmica. Progressivamente chamou a atenção
dos centros de pesquisa e dos pensadores que hoje referenciam o pensamento
social brasileiro, com edições corajosas, provocações intelectuais instigantes e,
sobretudo, com a preocupação genuína em iluminar pela produção do conheci-
mento os rumos da sociedade brasileira e do complexo mundo em que vivemos.

carlos artexes simões


Diretor-Geral do Departamento Nacional
Proporcionar um espaço de debate crítico e propositivo no qual a pluralidade
de pensamentos e a diversidade de tendências conceituais e teóricas possam
se manifestar livremente sobre questões relativas à sociedade contemporânea,
em especial a brasileira, é o propósito do Sesc ao publicar a revista Sinais Sociais.
Com esse escopo, o presente número reúne artigos cujos articulistas dialogam
com escritores, historiadores da arte, filósofos, sociólogos, cientistas políticos e
vários outros públicos interessados em se aventurar pelas trilhas inesgotáveis
da produção social do conhecimento em suas diversas vertentes.

O artigo de abertura apresenta distintos pontos de vista sobre a obra do pintor


italiano Fra Angélico, considerado por críticos de arte como um dos mais
importantes artistas do início do Renascimento. Representação, corpo, morte e
desintegração são algumas das temáticas abordadas por David Pessoa Carneiro
no artigo “O beato propagandista do paraíso também tomba”.

Ao evidenciar as críticas que os filósofos húngaros Lukács e Mészáros


formularam aos postulados conceituais e metodológicos presentes na teoria
weberiana, Paulo Henrique Furtado de Araújo oferece aos nossos leitores
uma meticulosa problematização acerca dos aspectos ideológicos existentes
no pensamento social de Max Weber. O autor apresenta ainda subsídios
importantes para aqueles que se lançam no estudo e na reflexão sobre
temas complexos como a objetividade, a neutralidade, o relativismo e o
irracionalismo no campo das ciências humanas e sociais.

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A crise brasileira hodierna tem dominado o debate público nacional,
fomentando esforços de intelectuais, pesquisadores, observadores
internacionais e dos cidadãos em geral, no sentido de entender as razões que
levaram o país ao atual cenário de instabilidade política, econômica e social.

Com o objetivo de contribuir para a compreensão do referido problema,


o dossiê “A ciência política e a crise no Brasil”, traz reflexões diferentes e
complementares em suas perspectivas de análise sobre a crise nacional, o que
pode ser conferido nos artigos dos cientistas políticos Luciana Tatagiba, Luiz
Felipe Miguel e Marcus Ianoni. Conforme destaca Marcus Ianoni, organizador
do dossiê, estes artigos evidenciam a seriedade do compromisso com o debate
qualificado no campo da pesquisa que fundamenta a discussão entre política
e economia, envolvendo as relações entre o Estado e as coalizões que se
interpõem neste processo.

A todos uma excelente leitura!

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O beato propagandista do
paraíso também tomba

Davi Pessoa Carneiro

9
Davi Pessoa Carneiro
Professor adjunto de língua e literatura italiana da UERJ.
Autor de Terceira margem: testemunha, tradução (Editora
da Casa, 2008). Traduziu A razão dos outros e Ou de um
ou de nenhum (Lumme Editor, 2009), de Luigi Pirandello,
Georges Bataille: filósofo (Ed. UFSC, 2010), de Franco Rella
e Susanna Mati, Desgostos (Ed. UFSC, 2010) e Ligação
direta (Ed. UFSC, 2011), ambos de Mario Perniola, e os
livros Nudez, O tempo que resta e Meios sem fim, do
filósofo Giorgio Agamben (Autêntica, 2014), Uma gozação
bem-sucedida (Carambaia, 2017), de Italo Svevo. Tem
vários artigos publicados sobre crítica literária italiana,
filosofia italiana, crítica de arte, teoria da tradução.

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Resumo
A tumba de Beato Angélico (1395-1455), em Roma, na Igreja
de Santa Maria sopra Minerva, traz um vestígio paradoxal: o
pintor das “semelhanças dissemelhantes” é retratado em seu
túmulo sob o regime da semelhança, seu rosto feito a partir de
sua máscara mortuária. A morada eterna do Beato é a morada
do paradoxo: o artista que passou a vida pintando figuras que
operam uma reversão do olhar, o qual não se encontra mais
centrado numa figura-aspecto, imóvel pela própria imobilidade
da representação mimética, torna-se alvo do figurativo.
Assim, para confrontar tal discussão, o percurso de leitura da
comunicação passa por textos de Elsa Morante, Roberto Longhi,
Giulio Carlo Argan, Yves Bonnefoy, Dante Alighieri, Giorgio
Vasari e Georges Bataille.

Palavras-chave: Arte. Literatura. Figura. Corpo. Metamorfoses.

Abstract
The tomb of Beato Angelico (1395-1455) in Rome, in the church of
Santa Maria sopra Minerva, brings a paradoxical vestige: the painter
of “dissemblant similitudes” is portrayed in his tomb under the
resemblance regime, his face made from his death mask. The eternal
dwelling of the Beato (Blessed) is the abode of the paradox: the artist
who spent his life painting figures which operate a reversal of the
gaze, which is no longer centered on a figure-aspect immobile by its
own immobility of the mimetic representation, becomes target of the
figurative. Thus, to confront such discussion, the course of reading the
communication goes through texts by Elsa Morante, Roberto Longhi,
Giulio Carlo Argan, Yves Bonnefoy, Dante Alighieri, Giorgio Vasari,
and Georges Bataille.

Keywords: Art. Literature. Figure. Body. Metamorphosis.

11
O beato propagandista do paraíso também tomba

Introdução

A editora Rizzoli, de Milão, inaugurou, em 1966, sua primeira coleção


de catálogos de arte, intitulada “Classici dell’ arte”. Cada volume trazia
obras de um único artista, tendo, na maior parte das vezes, um prefácio
de um escritor italiano. Paolo Volponi, por exemplo, escreveu o prefá-
cio ao volume dedicado a Masaccio; e Dino Buzzati, ao volume dedica-
do a Bosch. Elsa Morante também foi convidada, em 1970, para escrever
uma apresentação para uma das edições. As opções que lhe foram dadas
eram poucas, então a escritora decidiu escolher entre elas a obra do Beato
Angélico. Seu prefácio “Il beato propagandista del Paradiso” foi poste-
riormente incluído na seleção de ensaios de Pro o contro la bomba atomica,
organizado dois anos depois de sua morte pelo crítico Cesare Garboli,
publicado pela editora Adelphi, em 1987.

Há, no entanto, algo que chama a nossa atenção em sua decisão: por qual
motivo Elsa Morante decidiu escrever sobre a obra de Beato Angélico, se
ela mesma, em sua apresentação, afirmava: “Na realidade, na pintura,
os meus santos possuíam outros nomes: por exemplo, Masaccio,
Rembrandt, Van Gogh” (MORANTE, 1987, p. 122). Há, portanto, um rastro –
o qual é fundamental para nossa reflexão – que podemos seguir a partir
da passagem que segue a afirmação citada:

De fato, os santos da arte são reconhecidos por mim porque levam no


corpo os sinais comuns da cruz materna, a mesma que é cravada em
todos nós. Os seus corpos puderam, por terem cometido autoflagelo, até
a consumação, até a ruína comum, diferentemente dos nossos, tornar-se
iluminados de saúde (MORANTE, 1987, p. 122).1

Beato Angélico, embora tenha “nascido com seu corpo iluminado”, não
será rechaçado pelo pensamento de Elsa Morante, pois ele, desde a ju-
ventude da escritora italiana, faz parte da lista de artistas aos quais ela
pedia “a difícil caridade de responder às (suas) perguntas mais desespe-
radas e confusas” (MORANTE,1987, p. 122). Seu ensaio sobre “O beato pro-
pagandista do paraíso”, que a crítica literária italiana, no entanto, ainda
não fez questão de confrontar, remonta uma arqueologia2 (AGAMBEN,
2008, p. 90) (um ponto de insurgência do fenômeno) acerca da figura do
pintor, sendo capaz de irromper vestígios do passado em nosso presente,

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Davi Pessoa Carneiro

que não deixam de possibilitar leituras críticas imagéticas em torno do


pensamento do pintor das dissemelhanças.

Yves Bonnefoy, no ensaio “A obra de Fra Angélico”, publicado na Re-


vista Critique, n. 105, em fevereiro de 1956, posteriormente incluído em
L’improbable, em 1959, traz à tona algumas características a respeito do
Beato, que remontam ao texto “‘Fra’ Giovanni da Fiesole: pittor Fiorenti-
no”, de Giorgio Vasari, publicado em Vidas dos Artistas (1550). Vasari com-
preendia o pintor como um predicador por excelência, já que antes de
pegar os pincéis para pintar seus afrescos ele rezava, jamais retocando
uma pintura, pois o primeiro gesto manifestava a vontade de Deus. E não
existia uma única vez em que ele não chorasse, por exemplo, quando
da finalização da pintura de uma cruz, vivendo, além de tudo, segundo
Vasari, sem ter pensamentos (VASARI, 1986, p. 363-64).3 Ou seja, tais
características, como bem observou Bonnefoy, produzem uma imagem
unívoca em torno dele, e “o mais perigoso dessa imagem convencional
era certamente a ideia de um Fra Giovanni artesão, despreocupado com
os problemas da pintura e, em todo caso, das investigações de sua época”
(BONNEFOY, 1998, p. 116).

Segundo Bonnefoy (1998), o estudo de Giulio Carlo Argan, em Fra Angelico,


publicado na Suíça, em 1955, foi muito importante para ressaltar a
questão das relações entre o pintor e o pensamento humanista, a qual
foi obscurecida em detrimento de sua santidade e da compreensão de
sua pintura como uma expressão espontânea de uma crença religiosa
(ARGAN, 1955, p. 43).

Seguindo outro caminho, Bonnefoy destaca que Roberto Longhi aproxi-


ma a obra de Fra Angélico, principalmente entre os anos 1420-1440, da
pintura de Masaccio, que, por sua vez, estava muito mais “a serviço” do
humanismo renascentista, isto é, antropocêntrico. Percebe-se, assim, uma
postura que, por um lado, o quer exclusivamente como devoto e o nomeia
“Beato Angélico”, e que, por outro, deseja apreendê-lo numa visão antro-
pocêntrica, preferindo chamá-lo de Giovanni da Fiesole. Argan não aceita
a tese que estabelece uma filiação direta da obra de Angélico àquela de
Masaccio, enquanto Roberto Longhi a defende, tendo principalmente por
base a leitura de Vasari. Além disso, Longhi rejeita a leitura historiográfica
do século XIX, que reduz os afrescos do Convento de São Marcos a simples
representações devocionais. De acordo com Longhi:

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O beato propagandista do paraíso também tomba

Argan passa, de fato, a falar de um Angélico ‘tomista’; tal posição é exa-


gerada. Não é uma questão difícil, sabemos, citar mais de uma passagem
de São Tomás em que fala de luz e de cores (tanto que seria necessário
regressar até Santo Agostino e, talvez, até Plotino), mas, pela contradição
que não o permite, nunca será lícito assumir que se trate da luz e das
cores como Angélico as compreendia e via, muitos séculos depois; e que,
realmente, chegavam até ele através das novas observações físicas e (para
os novos tempos) realistas dos seus grandes amigos (LONGHI, 1985, p. 403).

Yves Bonnefoy também parece não aceitar a perspectiva de Roberto


Longhi por completo, pois não há uma posição que possa se sobrepor a
outra, ou seja, talvez Bonnefoy estivesse chamando a nossa atenção para
lermos (vermos) os afrescos do pintor dominicano a partir de uma leitura
ambivalente:

No entanto, é preciso, por isso, abolir toda memória do homem religioso


que foi Fra Angélico? O mérito do livro de Argan, a propósito de Fra Angé-
lico, em relação à crítica mais recente foi ter aprofundado a velha ques-
tão de sua personalidade religiosa, fazendo da análise do estilo, tal como
atualmente é possível, um meio de alcançar o segredo de sua pintura. Há
uma significação das suas formas. E sua indagação, aplicada àquilo que
por muito tempo foi admirado, sobretudo, como lindas imagens de pie-
dade, irá descobrir que Angélico foi, de alguma maneira, um doutrinário,
um propagandista, um homem de ação, um sujeito a serviço da Igreja. E
por outro lado, já que foi também pintor, irá mostrá-lo conscientemente
comprometido, embora sem paixão, numa crítica da revolução iniciada
por Masaccio, cuja doutrina irá recusar, sem deixar, porém, de se apro-
priar de algumas de suas virtudes. Porque sentia a necessidade de uma
renovação mensurada, que teria descartado algumas rotinas da arte reli-
giosa e renovado um vocabulário extinto em benefício das ideias antigas.
Ao mesmo tempo, arcaico e modernista, artesão (talvez, não sem osten-
tação) e teólogo, Fra Angélico aparece como o perfeito dominicano, já
que se define dialeticamente por uma discussão, e, em seu projeto, pelo
apostolado (BONNEFOY, 1998, p. 117-118).

Portanto, Bonnefoy abre uma fenda entre essas duas posições, visto que
não ignorou o fato de que Giovanni da Fiesole, tornado “Angélico” por
Vasari e beatificado pelo papa João Paulo II, em 1982, viveu a passagem do
século XIV ao século XV na Itália – ou seja, sua “forma de vida” se situa
nessa soleira – nesse interstício entre dois períodos históricos repletos de
conflitos e de contradições. Esse interstício aberto nos afrescos do pintor,
que Bonnefoy indicou, mas não aprofundou, foi retomado pelo crítico de

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Davi Pessoa Carneiro

arte Georges Didi-Huberman, embora chame a nossa atenção o fato de


ele não ter feito referência alguma ao texto de Bonnefoy.

Didi-Huberman, em maio de 1986, apresenta, no seminário de “Histoire/


Théorie de l’art”, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, a pri-
meira parte de sua pesquisa realizada em Florença, intitulada Couleurs du
Mystère: Fra Angelico, peintre du dissemblance. Em outubro do mesmo ano,
ele apresenta a segunda parte, Lieux prophétiques: l’annonciation au-delà de
son histoire, no congresso sobre a “Anunciação”, acontecido também em
Florença, na Villa I Tatti (Institut français de Florence). Os dois estudos
foram publicados posteriormente, em 1990, no volume FraAngelico.
Dissemblance et figuration. O que nos intriga durante a leitura da pesquisa
arqueo­lógica realizada por Didi-Huberman é a ausência de referências ao
livro Fra Angelico, de Giulio Carlo Argan, assim como ao ensaio “L’Angelico,
non sempre al convento”, de Roberto Longhi, ambos publicados curio-
samente em 1955. Aqui, no entanto, não se destaca essa falta como se
estivéssemos postulando uma busca pela totalidade, pois em toda apro-
ximação há também sempre um distanciamento, ou como nos pode-
ria dizer Jacques Derrida (2002, p. 130), “o arquivo começa pela seleção,
e essa seleção é uma violência”. Cabe-nos, então, ler alguns vestígios do
arquivo que se monta acerca do pensamento de Beato Angélico, em
confronto com a leitura de Elsa Morante.

Os corpos misteriosos e a conversão do olhar

Georges Didi-Huberman busca vestígios com o intuito de renunciar


a dois postulados que se impuseram na passagem da Idade Média ao
Renascimento e que ainda hoje é difícil desestabilizar (CORTÁZAR, 1984,
p. 490-491). As duas posições solicitam: 1) renunciar ao postulado de que
a pintura figurativa imita as coisas reproduzindo o seu aspecto visível; 2)
compreender a história da pintura do Renascimento como uma história
da conquista das semelhanças. Furio Jesi, em “Mito e immagine”, nos
ajuda a pensar tais posições, quando confronta o texto “Bild, Gestalt und
Archetypus”, apresentado por Kerényi no Congresso Internacional de
Filosofia, em Roma, 1946, escreve:

Sobre o palco desses itinerários do imaginário vimos o surgimento de


figuras como o Rei, como o Duque; queria fazer, agora, aparecer outra

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O beato propagandista do paraíso também tomba

figura: o Mago, ou o Vidente. A palavra “figura” já oferece os preliminares


da evocação. Como nos encontramos num teatro, e num teatro ao modo
italiano, “figura” significa a parte, o âmbito icônico reservado em um “cená-
rio” às atribuições características de um ator e, em particular, de um ator-
-máscara. Mas, além da malha que compõe o enredo, “figura” é também a
presença plástica do ator naquela parte: um módulo, portanto, uma forma
cavada, mas também o quid completamente redondo que lhe corresponde
e que vive de vida própria, tanto que é capaz de perverter, ao mesmo tem-
po, o módulo e a forma cavada. “Figura”, neste contexto, não é sinônimo de
“imagem”. Num dicionário qualquer de alemão-italiano se encontra: Bild =
figura, imagem; Gestalt = forma, figura. Um dos principais ensaios teóricos
de K. Kerényi se intitula Bild, Gestalt and Archetypus; na edição italiana esse
título foi traduzido por Immagine, figura, archetipo: aprovando ou não apro-
vando essa tradução, aquilo que nos interessa, agora, é estabelecer qual é o
campo de referência dos dois vocábulos Bild e Gestalt no contexto da assim
chamada ciência do mito, ou da mitologia, ou pelo menos daquele setor
da ciência do mito ou da mitologia que vê um dos seus protagonistas, K.
Kerényi, em diálogo, ou em polêmica com Wilamowitz, com Walter F. Otto,
com Thomas Mann, com Hermann Hesse, com C. G. Jung (JESI, 2010, p. 255).

Mas o que seriam aqueles corpos misteriosos e todas aquelas manchas


disseminadas nos afrescos do Convento de São Marcos pelo Beato propa-
gandista do Paraíso? Por que imaginá-las como semelhanças dissemelhan-
tes, tal como as marcas deixadas por um sopro sobre a superfície de uma
caverna, indicando o vestígio de que algo esteve ali? Uma presença ausente?

A biblioteca de São Marcos dá indícios ao estudioso, permitindo-lhe


recriar imageticamente espaços de desvios através de tempos heterogê-
neos por meio das cores usadas em seus afrescos, dos vazios em desta-
que em certas tumbas, das manchas nos cor pos de Cristo, que evocam
toda uma tradição teológica. Segundo Didi-Huberman:

Aos corpos misteriosos, portanto, correspondem matérias pictóricas mis-


teriosas, ou, em todo caso, matérias desconcertantes na ordem familiar
do visível. Mas essa lógica da “conversão visual” do mistério não bastava
para fundar historicamente a hipótese. O elemento decisivo surgiu da
constatação de que essa conversão visual foi efetivamente concebida,
elaborada e difundida por toda uma tradição teológica que exaltava jus-
tamente a dissemelhança, a dissimilitudo, como ideal e perfeição das figu-
ras do divino. Essa tradição foi construída pelas obras fundamentais do
Pseudo-Dionísio, o Areopagita, obras estas lidas, traduzidas e comenta-
das durante toda a Idade Média (DIDI-HUBERMAN, 1995, p. 15).

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Davi Pessoa Carneiro

Angélico, por volta dos anos 1440-1445, pintou seus afrescos nas salas do
convento em Florença, e ali ele teve acesso a toda uma tradição teológica
contida na biblioteca, transmitida através dos manuscritos gregos e latinos
redescobertos, que eram discutidos sob a permissão de Santo Antonino.
Tendo por base esses documentos, esses cruzamentos de leituras, Didi-
-Huberman chega à hipótese que será sustentada ao longo de seu livro:

A hipótese fundamental desse livro é que a dissemelhança pode constituir


o meio privilegiado de uma mise au mystère dos corpos, meio pelo qual os
puros acervos de cores do Beato Angélico, no corredor do convento de São
Marcos, representam, num certo sentido, o ápice, o exemplo-limite (DIDI-
-HUBERMAN, 1995, p. 15).

Assim, Beato Angélico pintava figurae no sentido latino e medieval, e não


no sentido renascentista, que costumava transformar as imagens em
símbolos. Isto é, aquelas figuras não se reconheciam em sua forma exte-
rior, realizando constantemente uma transferência, um desvio para fora
de toda semelhança. Portanto, onde se deseja impor uma ordem lógica,
surge um equívoco; onde se impõe uma ordem que visa ao reconheci-
mento na semelhança, no visível, surgem dissemelhanças.

Se as figuras fazem parte do âmbito da exegese textual, ou seja, se elas se


relacionam com a Sagrada Escritura, isso não significa que a representem
mimeticamente, pois tais figuras são senão invenções exegéticas, vestí-
gios de um contato. Se o Renascimento as leu como símbolos, compreen-
dendo as cenas sagradas como representações, e, além disso, ilustradas
aos olhos dos “ignorantes”, que não podiam ler os textos sagrados e que,
por consequência, não podiam visualizar tais cenas (efeito de causa-
-consequência), a pintura do Beato propagandista do Paraíso traz em seus
afrescos o irrepresentável, pois trabalham com o mistério. Há uma trans-
lação constante de uma figura a outra, e essa dança, se assim podemos
nomear esse movimento, possibilita sempre um novo passo, que, por sua
vez, requer a presença de outro que o possa não imitá-lo, mas, sim, mime-
tizá-lo. Desse modo, o campo exegético (DIDI-HUBERMAN, 1995, p. 17)4 da
pintura do Beato Angélico, mais do que um método é, antes de tudo, uma

[...] poética – desconcertante, não há dúvida, para os espíritos positivistas


– criadora de enigmas, visto que seu objeto continuava sendo, de fato, o
mistério. Uma poética em que surgiam apenas translações e condensa-
ções, uma poética próxima ao sonho e ao fantasma (DIDI-HUBERMAN,
1995, p. 17-18).

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O beato propagandista do paraíso também tomba

Essa poética figural faz vacilar o visível, e o espectador diante dessas figuras,
dessas manchas, leva um tombo, pois é rompida a lógica que impõe à vista
o que lhe agrada. Haveria algo de moderno nesse gesto do Beato Angélico?
Se as manchas não descrevem nada, já que estão sempre movi­das por
reversibilidades, poderíamos dizer que elas são o grau zero da descrição? A
outra hipótese de Didi-Huberman postula que as “zonas multicoloridas,
na pintura de Beato Angélico, funcionam mais como opera­dores de uma
conversão do olhar do que como signos icônicos: diante daquelas zonas
coloridas não é possível discernir nada” (DIDI-HUBERMAN, 1995, p. 91).5
Porém, de que mistério se trata?

Giorgio Agamben, por sua vez, quando discute a questão da paródia, no


ensaio “Paródia”, presente no livro Profanações, escreve que “na Literatura, é
um teorema óbvio, para Elsa, que a vida pode ser apresentada unicamente
como um mistério” (AGAMBEN, 2007, p. 40). Elsa Morante, em fevereiro
de 1965, ou seja, cinco anos antes da publicação do texto sobre o Beato
Angélico, para a coleção da editora Rizzoli, realizou três conferências na
Itália: uma no Teatro Carignano, de Turim, uma segunda no Teatro Manzoni,
de Milão, e outra no Teatro Eliseo, de Roma, intitulada “Pró ou contra a
bomba atômica”. Essa intervenção pública é muito singular, pois ela segue
por três cidades italianas com o intuito de compartilhar seu pensamento
crítico e político sobre a cultura de morte e de irrealidade que estava
sendo disseminada naqueles anos. O suicídio de seu amigo Bill Morrow,
em 1962, por exemplo, a marcou profundamente. Ele era um jovem pintor
nova-iorquino, que ela havia conhecido através de Alberto Moravia, e com
quem teve uma grande amizade. Elsa também estava, naquele momento,
angustiada por uma série de acontecimentos que ocorriam pelo mundo. A
escritora, portanto, acompanhava a propagação da cultura da morte com
muito temor, vendo sua expressão máxima na bomba atômica:

Poderíamos dizer que a humanidade contemporânea experimenta a


tentação oculta de desintegrar-se. Insinuar-se-á que a primeira semen-
te dessa tentação se deu fatalmente no nascimento da espécie humana,
desenvolvendo-se com ela; e por tudo isso, o que acontece hoje é nada
mais do que a crise necessária do seu desenvolvimento. No entanto, isso
faz com que a hipótese seja proposta novamente. É conhecida, e agora
vulgarizada, a presença simultânea na psicologia humana do instinto de
vida (Eros) e do instinto de morte (Tanatos). Até poderíamos, a propósito
deste último, em teoria, sem arbítrio lógico, ler as Sagradas Escrituras de

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Davi Pessoa Carneiro

todas as religiões a partir da interpretação pressuposta de que todas, e


não somente a religião indiana, ensinam o aniquilamento final como o
único ponto de beatitude possível. E, de fato, alguns psicólogos falam de
um instinto do Nirvana no homem. Porém, enquanto o Nirvana prometi-
do pelas religiões for experimentado por via da contemplação, da renún-
cia de si mesmo, da piedade universal e, em suma, através da unificação
da consciência, chegar-se-á justamente pela desintegração da consciên-
cia ao seu maligno sub-rogado pequeno-burguês, compreendido pelos
nossos contemporâneos por meio da injustiça, da alienação mental or-
ganizada, dos mitos degradantes, do tédio convulsivo e feroz, e assim por
diante. Enfim, as famosas bombas, essas baleias orcas que se encontram
dormindo nos bairros mais protegidos da América, da Ásia e da Europa:
preservadas, defendidas e mantidas no ócio, como se estivessem num
harém: dos totalitários, dos democráticos e de todos; elas, o nosso tesou-
ro atômico mundial, não são a causa potencial da desintegração, mas a
manifestação necessária desse desastre já ativo em nossa consciência
(MORANTE, 1987, p. 99-100).6

A decisão de escrever a respeito de Beato Angélico surge, portanto, no


mesmo instante em que a escritora acompanha a desintegração da vida
humana, novamente ameaçada pelo “nosso tesouro atômico mundial”
(MORANTE, 1987, p. 100). Elsa argumenta que diferentemente do Beato,
que possuía muitos pais, todos nós estamos órfãos, e não conseguimos
mais ouvir as vozes dos mortos, por causa do “fracasso atômico que nos
ensurdece” (MORANTE, 1987, p. 123). A escritora parece sentir um remorso
no que diz respeito ao pintor:

Aos artistas, assim como aos santos, nós pedimos a difícil caridade de
responder às nossas perguntas mais desesperadas e confusas; no en-
tanto, somente alguns entre eles parecem nos prometer uma resposta,
igualmente como nossos parentes que, além dos confins e das datas,
comunicam-se com todos nós na mesma língua materna. Outros nos evi-
tam, tratando-nos como estrangeiros: e um daqueles, em relação a mim
(desde as minhas primeiras perguntas imaturas), foi o pintor Angélico.
Tanto que hoje, neste momento em que me encontro, voltar aos retiros
onde o beato viveu, parece-me quase uma viagem de ficção científica
(MORANTE, 1987, p. 122).

No entanto, ela não deixa de declarar que sente inveja do Beato pintor:
“Talvez, as minhas resistências em relação ao Beato pintor são culpa,
sobretudo, da minha inveja. Na realidade, mais do que o significado
de santo, aqui, para mim, beato soa mais como sortudo, ou felizardo”

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O beato propagandista do paraíso também tomba

(MORANTE, 1987, p. 123). Ou seja, a sorte dele, segundo a escritora, seria


não ter vivido em um mundo em desintegração, constantemente amea-
çado pela bomba atômica, onde as pessoas leem as escrituras sombrias
do progresso tecnológico (MORANTE, 1987, p. 122-123).7 Elsa Morante,
porém, não descarta que “mesmo o Beato possa ter conhecido um conflito
semelhante aos nossos” (MORANTE,1987, p. 128). O que nos diferencia
dele é que não temos em que nos atar, pois os nossos são “barcos voa-
dores, ou barcos lança-mísseis, ou barcos atômicos, ou como queiram
chamar, que nos prometem voar à velocidade da luz” (MORANTE, 1987,
p. 128-129). No caso do Beato Angélico:

Ao contrário (eis aqui ainda a sua sorte), não tinha o que fazer a não ser
dar dois passos. O seu barco de confiança estava lá ancorado, esperan-
do por ele no convento de S. Domingos de Fiesole, fundado pelo seu pai
Dominici e ordenado pelo seu pai Pierozzi. Lá em meio ao verde, que é a
cor da ressurreição e do descanso; e em meio ao turqui, que é a cor do
nascimento (MORANTE, 1987, p. 129).

Elsa Morante, porém, entendia a arte do pintor como uma espécie de ser-
viço aos mais humildes, aos idiotas, que não sabiam ler nem escrever? As
cenas dos afrescos, para ela, eram apenas “representações” da Sagrada
Escritura?

Também sobre isso o instruía o seu mestre Antonino: advertindo-o que,


nas igrejas, são feitas “as pinturas devotas... que são chamadas no De-
creto pelo título Livro dos idiotas: estes não sabiam ler, então para eles se
representou o fervor... onde o espírito acorda para acompanhá-los...”. Por-
tanto, deveríamos deduzir disso que ele, depois de ter lido o volume das
inteligências inexprimíveis, limitava-se ao Livro dos idiotas por um artifí-
cio propagandístico? Não, absolutamente (MORANTE, 1987, p. 131-132).

Beato Angélico, durante o período em que esteve no convento de São


Marcos, levou ao limite sua poética figural. Seus afrescos abrem um
abismo diante de nossos olhos, criando uma relação ambivalente entre
presença e ausência. Ou, ainda: há nos seus afrescos uma ausência po-
tencializada pela presença, isto é, suas figuras são ausências presentes.
Elsa Morante parece não desprezar toda essa relação enigmática e mis-
teriosa: “Tal paradoxo ausência-presença é vivido paradoxalmente por
Angélico: enquanto artista e religioso” (MORANTE, 1987, p. 134). O lugar
da ausência para os poetas, segundo Elsa, é a lírica, e no caso do pintor, é
o convento de São Marcos:

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Os afrescos de São Marcos são as líricas do Beato Angélico: tanto que


ele podia pintá-las (como se diz comumente) de olhos fechados, já que
agora as cores não lhe eram transmitidas pelo sentido visual, mas pela
memória, que é outro testemunho da luz. Na ausência do tempo e do
espaço, tudo é memória: o acontecimento presente, aquele que já ocorreu
e aquele que deve ainda acontecer (MORANTE, 1987, p. 134).

A escritora italiana, assim, não deixa de se referir à pintura como campo


de exegese (acontecimento que ainda deve acontecer) e como arte da
memória. Esta, no entanto, não entendida como uma espécie de imo-
bilidade do passado, pois o que está em jogo é a relação entre tempos
heterogêneos. Por outro lado, é importante destacar que a arte da memó-
ria (ars memoriae), na Idade Média, era aquela arte que forma figuras das
coisas que se deseja ter em mente, impondo, por isso, a necessidade de
que tais figuras possuam seu lugar específico. Segundo Didi-Huberman:

Compreende-se, nessas condições, como a arte figurativa religiosa nunca


se permitiu construir os seus lugares como simples espaços unitários e
as suas temporalidades como simples histórias contadas. Esses lugares
colocam vários espaços e diversas histórias em relação de associação,
mesmo quando existe uma única imagem. São lugares de memória no
sentido muito preciso que a ars memoriae – que, não por acaso, consti-
tui umas das estruturas epistêmicas mais significativas da Idade Média
– atribuía a esse termo: vastos sistemas de imagens e de lugares feitos
para lembrarmos um dos outros (DIDI-HUBERMAN, 2008, p. 156).

O pintor das semelhanças dissemelhantes, por volta dos anos 1445, foi
chamado pelo papa Eugenio IV, que havia vivido por algum tempo em
Florença, tornando-se um grande admirador dos seus afrescos, para rea­
lizar, em Roma, alguns trabalhos. Os primeiros afrescos que ele pintou
em uma das capelas da Basílica de São Pedro, com características espe-
cialmente humanistas, foram destruídos na época de Júlio II. Durante
o tempo em que esteve na cidade morou no convento de Santa Maria
sopra Minerva. Após a morte do papa Eugenio IV foi eleito o seu suces-
sor Nicolò V, que novamente solicitou os serviços do pintor dominicano
para pintar afrescos na Capela Niccolina, do Vaticano. Agora, porém, o
pintor não mais realizava sozinho a sua pintura-oração, passando a con-
tratar alguns ajudantes, entre eles Benozzo Gozzoli. Os afrescos foram
realizados entre os anos 1447-1448 e se encontram em três paredes, nas
quais se veem as Storie dei protomartiri Stefano e Lorenzo, os Evangelisti e as
oito figuras em tamanho natural com os Padri della Chiesa. Esses afrescos

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O beato propagandista do paraíso também tomba

foram os únicos que restaram em Roma e mostram não mais figuras, com
toda a sua força exegética, mas, sim – visto que, agora, eles refletiam o
poder e a suntuosidade do papado – representações de corpos sólidos que
se movem em uma arquitetura majestosa, repleta de perspectivas bem
ao gosto do Renascimento. Tal como afirma Elsa Morante: “O destino
do frade Giovanni não repousará na lírica”, pois “a Capela Nicolina, no
Vaticano, é o poema histórico do Beato” (MORANTE, 1987, p. 136). E em tal
confronto, ainda segundo a escritora:

O grande Giovanni quase remove de dentro de si a presença inevitável de


Guidolino, com seus jardins primordiais, igualmente como a nostalgia da
intimidade de São Marcos. Ele não questiona mais as luzes da natureza
e da memória, mas os espelhos monumentais do antigo classicismo e
do novo humanismo: adequando o seu canto de amor à sua eloquência
terrestre (MORANTE,1987, p. 136).

O último retrato: presença-ausência

Entre os anos 1453 e 1454, o pintor volta novamente a Roma para realizar
mais uma solicitação papal, mas sobre a qual não há documentos que a
comprovem. Em fevereiro de 1455, o Beato morre em Roma, sendo sepul-
tado na igreja de Santa Maria sopra Minerva. Elsa Morante escreve que
“o destino do pintor não foi ter morrido na sua casa florentina de São
Marcos; mas em Roma, que para ele devia ser uma terra estrangeira mui-
to distante” (MORANTE,1987, p. 137).

E, ali, em Roma, encontra-se também um vestígio paradoxal: o pintor


das semelhanças dissemelhantes é retratado em seu túmulo sob o regime
da semelhança. Elsa Morante não deixou escapar esse detalhe, relatando
que ele:

Foi sepultado na igreja romana de Santa Maria sopra Minerva; e ali,


esculpido sobre a sua pedra tumular, iluminado realmente por uma lâm-
pada elétrica, pode ser visto o seu último retrato. Sem dúvida, está muito
diferente do outro retrato que conheço, no qual Luca Signorelli o repre-
sentou com ênfase heroica. Porém, nos traços quase camponeses dessa
pobre máscara de velho adoentado, pode-se decifrar melhor, poderíamos
dizer, a escritura materna dos seus três nomes: Beato Angélico, na aten-
ção; Giovanni, na disciplina; e Guidolino, na esperança interrogativa da-
quele raio amante prometido, que não se decompõe no espectro visível
(MORANTE,1987, p. 137-138).

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Guido di Pietro (nome de nascimento), também conhecido por Giovanni


da Fiesole (nome assumido por ele quando da sua vocação religiosa),
mas muito mais admirado como Beato Angélico, nome que lhe foi atri-
buído por sua lenda popular, nunca se retratou, ou se deixou retratar.
A tumba do pintor, situada à esquerda do altar da igreja Santa Maria
sopra Minerva, é singular, neste sentido, pois a sua lastra traz o seu
primeiro retrato, esculpido possivelmente por Isaia da Pisa. Os traços
do rosto do Beato foram feitos a partir da sua máscara mortuária
(Figura 1).

FIGURA 1: Isaia da Pisa, “Beato Angélico”.

Foto de Davi Pessoa. Igreja de Santa Maria sopra Minerva, Roma.

Diante de sua tumba poderíamos não sentir nada de especial, já que


é mais uma entre tantas que retratam a imagem das personagens
religiosas, com o intuito de serem para sempre lembradas e reverencia-
das. Porém, a morada eterna do Beato é a morada do paradoxo: o artista
que passou a vida pintando figuras que operam uma reversão do olhar,
o qual não se encontra mais centrado numa figura-aspecto, imóvel pela
própria imobilidade da representação mimética, torna-se alvo do figura-
tivo. Talvez, por isso, também, o destino do Beato não repouse mais na
lírica, na sua poética figural, mas, sim, na História. O que antes era tropolo-
gia, ciência dos tropos (das figuras), isto é, dos desvios de sentidos, torna-
-se o lugar da morada da História. Ainda: o que antes era figura torna-se,

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O beato propagandista do paraíso também tomba

ali, símbolo. Esse parece, aliás, não ser apenas o duelo travado entre a
Idade Média e o Renascimento, pois ainda vivemos em um mundo que
tende a reduzir tudo a símbolos.

Encontrar-se diante de tumbas é uma experiência, do mesmo modo,


paradoxal. Elas não apenas dizem respeito a alguém que nos é muito
próximo. Elas, igualmente, nos atravessam. Encontramo-nos diante delas
implicados na presença desse acontecimento singular, pois aquele que
nos era tão próximo, tão semelhante, passa a ser, com a mesma força,
dissemelhante. Portanto, estar face a face com uma tumba nos permite
pensar o impensável, a saber, a morte. O contato com a tumba nos per-
mite também pensar a relação entre presença e ausência. Yves Bonnefoy
foi tocado profundamente com essa questão, quando da sua viagem a
Ravenna, na Itália. Ele, em 1953, escreveu “Les Tombeaux de Ravenne” –
que abre o volume L’Improbable (1959) –, no qual lemos:

Muitos filósofos quiseram dar conta da morte, porém não conheço


nenhum que tenha considerado as tumbas. O espírito que se interroga sobre
o ser, porém raramente sobre a pedra, distanciou-se dessas pedras, que
são abandonadas duas vezes ao esquecimento (BONNEFOY, 1998, p. 15).

Os monumentos da cidade de Ravenna são as tumbas: a tumba de Dante


Alighieri, a suposta tumba da imperadora romana Galla Placidia, assim
como as tumbas desertas e inominadas, espalhadas por alguns pontos
da cidade (Figura 2).

FIGURA 2: Tumbas em Ravenna

Foto de Davi Pessoa, 2012, Ravenna, Itália.

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Essas tumbas desertas, abertas ou não, nos confrontam a todo instante.


Talvez por isso, Bonnefoy tenha destacado o seu duplo esquecimento,
ou seja, o esquecimento do esquecimento. Talvez, também, por isso, nos in-
quiete a parte final do prefácio que Georges Bataille, com o pseudônimo
Aristides, o Cego, escreveu para Le Mort (1967):

Mais do que a mulher que vai ao excesso de uma desordem angustiante,


chamo a morte: nunca alguém a terá convocada a não ser em silêncio?
Chamo a morte. Escrevi O Morto. Não quis que sobre a sua tumba fossem
escritas as seguintes palavras: finalmente alcancei a FELICIDADE SUPREMA.
A tumba também, um dia, irá desaparecer (BATAILLE, 1981, p. 77).8

Yves Bonnefoy, não por acaso, sente-se feliz por poder escutar o murmú-
rio das vozes que ecoam das tumbas abandonadas, que perderam a sua
realeza:

Sem dúvida, não senti mais do que alegria. Fiquei feliz com os sarcófagos.
Eu, o primeiro que desejou encontrar rostos imóveis sob essas abóbadas
tensas, nos claustros, sobre os átrios, essa escuridão de um instante que
é a apreensão da morte, caminhava até essas tumbas vazias como se esti-
vesse me direcionando ao mais simples repouso (BONNEFOY, 1998, p. 17).

A alegria sentida por Bonnefoy se dá pelo fato de ele poder colocar-se à


escuta das ruínas. Embora muitas dessas tumbas estejam abandonadas
pela cidade, não deixa de nos surpreender que ainda possuam alguns
de seus ornamentos, que, segundo Bonnefoy, despistam o nosso olhar,
como se a tumba fosse a nossa morada sem a morte (Figura 3).

FIGURA 3: Tumba em Ravenna

Foto de Davi Pessoa, 2012, Ravenna, Itália.

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O beato propagandista do paraíso também tomba

O apaziguamento não deve ser o princípio e o fim diante das tumbas,


porém, muito mais, um confronto entre o que angustia e o que acalma,
abrindo um interstício em que se ativa um pensamento que articula vida
e morte (BONNEFOY, 1998, p. 18-19).9

Didi-Huberman também irá destacar o impensável que as tumbas nos


permitem pensar. Encontrar-se diante de uma tumba é um acontecimen-
to singular. Por quê? Ali não é simplesmente a morada de quem não se
encontra mais entre nós? A morte, ali, não é a do outro, que apenas lhe
diz respeito? O véu que foi colocado sobre as tumbas parece desnatu-
ralizar o nosso contato com a morte, como se ela não fizesse parte da
nossa vida. A morte não está situada em um além, reservada ao espa-
ço exclusivo do morto. Ela nos envolve, atravessa-nos, deixa um rastro
em nossa experiência. Didi-Huberman, em 1998, publica o livro Phasmes:
Essais sur l’apparition. Na IV parte do livro, intitulada “Disparaître”, pode-
mos ler “Dans la lueur du seuil” [No clarão da soleira], em que o crítico
retoma alguns indícios do ensaio de Yves Bonnefoy sobre as tumbas de
Ravenna (não nos deixa de surpreender também o fato de que no livro
L’Improbable encontra-se também o ensaio sobre o Fra Angélico, que Didi-
-Huberman deixa de lado em sua pesquisa acerca do pintor dominicano).
De acordo com o crítico de arte:

A tumba não é metáfora, mas a morada sensível do morto. Toca-o e nos


toca com esse mesmo contato. E Bonnefoy se aproxima dela com o auxí-
lio de palavras como “lugar”, “presença”, “ato”, “deslizamento”. Mais do
que uma ontologia, que tais palavras poderiam indicar, acredito que haja
um objetivo estético concreto, que diz respeito tanto à escritura quanto
ao olhar. Recomeçar a ver, recomeçar a escrever, interpelando, no caso
específico, as tumbas de Ravenna, significa colocar-se na direção de um
réalisme de l’obscur (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 203-204).

As tumbas entendidas não como metáforas, mas como moradas reais,


impõem uma dobra em nosso pensamento. Diante delas restituímos à
morte uma vida de contato. As tumbas esculpidas, cheias de ornamen-
tos, distraem o nosso olhar, pois a evidência da visibilidade se ergue com
tamanha força que não conseguimos operar esse desvio reflexivo: aquilo
que está fora impede a nossa relação com a parte interior, ou, ainda, po-
deríamos dizer, ausenta-nos de uma relação com a nossa própria experi-
ência interior. O nosso corpo permanece íntegro, pois nos sentimos prote-
gidos por estarmos separados da suposta ausência de corpo na tumba, ou

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seja, da morte. Em Aracoeli (1982), de Elsa Morante, lemos, neste sentido,


uma reflexão singular:

Na verdade, de todos os abismos entre os quais nos movemos às cegas,


nenhum é tão profundo, e desconhecido para nós mesmos, quanto o nos-
so próprio corpo. Podemos defini-lo como um túmulo que trazemos sobre
nós; mas a escuridão do nosso corpo é mais impenetrável para nós do
que as tumbas (MORANTE, 1982, p. 320).

Se for verdade que as tumbas podem nos propiciar uma experiência de


paragem e de passagem na e pela soleira, ou seja, se elas criam o ritual do
luto e da memória, visto que o morto não se encontra fora de nós, apar-
tado do nosso corpo, então não deveria nos surpreender que essa mesma
experiência nos possibilite novas estratégias para lidarmos com mais in-
timidade com o nosso próprio corpo. Ou seja, o corpo que se distancia –
embora ainda presente em nossa memória – pode nos aproximar daquilo
que nos é mais íntimo, isto é, o nosso corpo. Quando somos lançados no
mundo ocorre uma das experiências mais paradoxais, pois é também o
momento – e cada vez mais em nossos dias, com todas as estratégias
biopolíticas a que estamos submetidos – em que nos distanciamos dele.
Portanto, o desafio passa a ser o de operar uma dobra na própria soleira,
em que o interior toca o exterior e vice-versa, visto que até mesmo o Beato
propagandista do Paraíso também tomba.

Notas

1 Giorgio Agamben, em “La festa del tesoro nascosto” (2010), confrontando


o pensamento de Elsa Morante àquele de Spinoza, refere-se à cruz-árvore
inscrita na Canzone, em Il mondo salvato dai ragazzini. Chama a sua atenção
a didascália presente sob o nome de Spinoza – la festa del tesoro nascosto –,
que se torna um grande enigma para o filósofo: “Várias vezes me perguntei
qual seria o significado dessa fórmula especial. Do que se trata? E qual tesouro
está escondido?” E nessa fórmula, Agamben observa: “Algum indício para uma
resposta está contido no escrito sobre o Beato Angélico, em que se fala da
relação entre a luz e os corpos. [...] A “festa do tesouro escondido” é, portanto,
o tornar-se visível, nos corpos, da alquimia da luz. E esta alquimia é, na mesma

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O beato propagandista do paraíso também tomba

medida, uma espiritualização da matéria e uma materialização da luz”. Portanto,


aqui, lemos uma ambivalência. Ainda segundo Agamben: “Para Elsa, essa parte
de sombra coincide com aquela mitologia trágico-sacrifical que identifica na
vida nua da criatura a mais absoluta inocência e a culpa mais extrema, assim
como a santidade e a maldição, a luz e a obscuridade, em que os dois aspectos
se tornam indiscerníveis, segundo o significado ambíguo (que pretende ser,
sem razão, original) do adjetivo sacer” (AGAMBEN, 2010, p. 135-136). A tradução
acima e todas as demais, nas notas a seguir, são do autor deste artigo.

2 “Podemos chamar provisoriamente de ‘arqueologia’ aquela prática que, em


cada pesquisa histórica, não tem a ver com a origem, mas com o ponto de
insurgência do fenômeno e deve, por isso, confrontar-se novamente com as
fontes e com a tradição. E não pode rivalizar com a tradição, sem desconstruir
os paradigmas, as técnicas e as práticas através das quais ela regula as formas
da transmissão, condiciona o acesso às fontes e determina, em última análise, o
mesmo estatuto do sujeito conhecido. O ponto de insurgência é, portanto, aqui,
ao mesmo tempo objetivo e subjetivo e se situa, ao contrário, numa soleira de
indecidibilidade entre o objeto e o sujeito. Essa nunca é o emergir do fato sem
ser, também, a emersão do próprio sujeito conhecido: a operação sobre a origem
é, ao mesmo tempo, uma operação sobre o sujeito” (AGAMBEN, 2008, p. 90).

3 “Tinha o costume de não retocar nem conservar nenhuma pintura sua,


deixando-a sempre tal como lhe tinha chegado pela primeira vez, por acreditar
(segundo dizia) que aquela era a vontade de Deus. Dizem alguns que frei
Giovanni nunca pegava os pincéis sem antes orar. Nunca fez crucifixo sem que
suas faces se banhassem de lágrimas” (VASARI, 2011, p. 283).

4 “O que é a exegese? Etimologicamente, é o ato de conduzir para fora de algo.


A exegese de uma história bíblica se desenvolverá, assim, como uma espécie de
procedimentos e de associações capazes de nos levar para fora da história, em
direção à profundidade moral, ou doutrinal, ou mística, do seu sentido figurado”
(DIDI-HUBERMAN, 1995, p. 17).

5 Georges Didi-Huberman, em O que vemos, o que nos olha, escreve: “Sem


dúvida, a experiência familiar do que vemos parece na maioria das vezes dar
ensejo a um ter: ao ver alguma coisa, temos em geral a impressão de ganhar
alguma coisa. Mas a modalidade do visível torna-se inelutável – ou seja,
voltada a uma questão do ser – quando ver é sentir que algo inelutavelmente
nos escapa, isto é: quando ver é perder. Tudo está aí. Está claro, aliás, que essa
modalidade não é nem particularmente arcaica, nem particularmente moderna,
ou modernista, ou seja lá o que for. Essa modalidade atravessa simplesmente
a longa história das tentativas práticas e teóricas para dar forma ao paradoxo
que a constitui (ou seja, essa modalidade tem uma história, mas uma história
sempre anacrônica, sempre a ‘contrapelo’, para falar com Walter Benjamin).
Já se tratava disso na Idade Média, por exemplo, quando os teólogos sentiram
a necessidade de distinguir do conceito de imagem (imago) o de vestigium: o
vestígio, o traço, a ruína. Eles tentavam assim explicar que o que é visível diante
de nós, em torno de nós – a natureza, os corpos – só deveria ser visto como
portando o traço de uma semelhança perdida, arruinada, a semelhança a Deus
perdida no pecado” (DIDI-HUBERMAN,1998a, p. 34-35).

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6 Por volta dos anos 1970, Elsa Morante escreveu o “Piccolo Manifesto dei
Comunisti (senza classe né partito)”, que apenas foi publicado em 1988, ou
seja, três anos após a morte da escritora, na revista Linea d’Ombra. Nesse
manifesto, Elsa ataca todo tipo de poder, “o qual se configura imediatamente
na sociedade humana, universalmente e desde sempre fundada e fixada
no binômio: patrões e servos – explorados e exploradores”. No tópico 10 do
manifesto, lemos: “Numa sociedade fundada no Poder (assim como TODAS as
sociedades que existiram até então e ainda hoje existentes), um revolucionário
não pode fazer outra coisa que (mesmo que sozinho) colocar-se contra o Poder,
afirmando (com meios de dentro dos limites pessoais, naturais e históricos que
lhe foram dados) a liberdade do espírito de todos e de cada um. E é seu direito
e dever fazê-lo a qualquer custo: também, em última instância, a custo de ser
abocanhado. É o que fizeram Cristo, Sócrates, Joana D’Arc, Mozart, Tchekhov,
Giordano Bruno, Simone Weil, Marx, Che Guevara etc. etc. etc.” (MORANTE,
2004, p. 7; p. 11).

7 “A minha (nossa) pobre língua materna cresceu na fábrica deformante das


cidades degradadas, entre as lutas evasivas dos mecanismos escravistas, e
entre as repugnantes e contínuas tentações da deformidade. Recebendo por
doutrina imposta – como cânones de fé ecumênica – as escrituras sombrias
do progresso tecnológico, os mensageiros obsessivos da mercadoria e as
anunciações espectrais da Jerusalém industrial, a nossa língua retirou-se para
procurar as suas imagens de saúde, excluindo qualquer igreja. E forçada a
utilizar, desde a infância, as gírias obrigatórias da ficção coletiva, limitou-se a
reinventar um léxico próprio, retirando-o, talvez, de algum vocabulário exótico,
indecifrável para os seus contemporâneos, desejando oferecer novamente o seu
tesouro, quem sabe, de seus lixos, mais do que de suas lojas” (MORANTE, 1987,
p. 122-123).

8 Esse prefácio não se encontra na primeira edição da Pauvert Éditeur (1967). O


texto foi encontrado entre os papéis do escritor, sendo publicado pela primeira
vez no IV volume das Œuvres complètes (Paris, Gallimard, 1971, p. 363-366).

9 “O ornamento é um mundo fechado. Se fazer uma obra é colocar-se para


fora de si, também penso que não há obra do ornamento. Mas simplesmente
prossegue um jogo. Assim, atua o conceito, cujo jogo que não possui é o
sistema que o constrói. O sistema do ornamento é a harmonia de suas mil
formas, de suas folhagens... O conceito tenta fundar a verdade sem a morte.
Fazer, finalmente, que a morte já não seja verdadeira. Acreditei que o ornamento
pretendia erguer nossa morada sem a morte, e fazer com que, finalmente, já
não esteja aqui” (BONNEFOY, 1998, p. 18-19. Tradução nossa).

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 9-30 | jan.-abr. 2017 29


O beato propagandista do paraíso também tomba

Referências

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30 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 9-30 | jan.-abr. 2017 VOLTAR


Luciana Tatagiba

Lukács e Mészáros, críticos


de Weber

Paulo Henrique Furtado de Araujo

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017 31


Paulo Henrique Furtado de Araujo
Professor adjunto da Faculdade de Economia da Universidade Federal
Fluminense (UFF), professor do Programa de Pós-Graduação em
Economia da UFF (PPGE-UFF). Possui graduação em Economia
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 1988; mestrado
em Economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), 1994; e
doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade, pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/
UFRRJ), 2009. Na UFF, é membro no Núcleo Interdisciplinar de
Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (NIEP) e coordenador
do Grupo de Estudos em Ontologia Crítica (GEPOC). Foi diretor
da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) na gestão
2014-2016. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em
Economia Política, atuando principalmente nos seguintes temas:
ontologia, economia marxista, crise e ciclo, dinheiro de crédito,
economias de transição do capitalismo para o socialismo, Estado e
nova teoria do valor.

32
Resumo
O artigo sistematiza as críticas centrais que Lukács e Mészáros formularam
ao aparato teórico-conceitual de Weber e, portanto, busca demonstrar a
incapacidade teórico-prática de Weber em seguir seus próprios postulados
orientadores de sua pesquisa científica. Ao mesmo tempo, indica a influência
dos postulados weberianos sobre o jovem Lukács, que se diluem em sua
obra final – Para uma ontologia do ser social.

Palavras-chave: Lukács. Mészáros. Weber. Crítica.

Abstract
This article systematizes the central criticism that Lukács and Mészáros made to
the Weber’s theoretical/conceptual apparatus and, therefore, seeks to demonstrate
the theoretical/practical inability of Weber to follow the very postulates that guide
his scientific research. At the same time, it indicates the influence of the Weberian
postulates on the young Lukács, which are diluted in his final work: Ontology of
Social Being.

Keywords: Lukács. Mészáros. Weber. Criticism

33
Lukács e Mészáros, críticos de Weber

Introdução

Segundo Mészáros (2002, p. 416), em Lukács “referências a Weber não são


muito frequentes, apesar de serem claramente visíveis as conexões teó-
ricas”. É o próprio Mészáros, nesta obra, quem assinala o peso e influên-
cia problemática da teoria dos tipos ideais de Weber no trabalho seminal
do jovem Lukács, História e consciência de classe (2003). Neste trabalho, o
jovem Lukács não submete tal teoria a nenhum tipo de avaliação crítica,
de tal modo que “o conceito de Marx sobre consciência de classe sofre
uma distorção idealista na estrutura teórica de Lukács” (MÉSZÁROS,
2002, p. 405).

Além disto, afirma Mészáros, a aceitação da

[...] mistificadora fusão weberiana dos aspectos funcional e estrutural/


hierárquico da divisão social do trabalho – sob o uso legitimador a-his-
tórico que o próprio Weber faz da categoria da “especialização” no seu
esquema – tem um impacto negativo na estrutura conceitual de História e
consciência de classe. E a avaliação da “racionalidade” e do “cálculo” capita-
listas mostrou-se a mais danosa das influências weberianas (MÉSZÁROS,
2002, p. 405).

O autor prossegue lembrando que nas últimas obras de Lukács encontra-


mos uma abordagem mais realista para estes problemas. E, portanto, um
distanciamento crítico de Lukács em relação ao seu “antigo professor e
amigo” (MÉSZÁROS, 2002, p. 416).

Ressaltando que nosso objetivo não é realizar uma análise sistemática da


relação teórica entre Lukács e Weber, mas sim apreender o tratamento
crítico que Lukács dispensa à teoria e ideologia weberiana, passaremos
a expor as considerações de Lukács sobre Weber presentes em “Marx e o
problema da decadência ideológica” que é um ensaio de 1938, integrante
do livro Problemas do Realismo, publicado em 1952. Na sequência, analisa-
remos o tratamento que nosso autor dá ao mesmo conjunto problemá-
tico em A destruição da razão, publicado originalmente em 1954 (LUKÁCS,
1981). E por fim, abordaremos o constructo teórico de “Para uma ontolo-
gia do ser social” que é o momento de ápice da intervenção teórica de
Lukács. Lançaremos mão das contribuições de Mézsáros (1993, 2002 e
2004) para a explicitação do tratamento crítico de Lukács.

34 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017


Paulo Henrique Furtado de Araujo

Decadência ideológica

Em “Marx e o problema da decadência ideológica”, Lukács parte da cons-


tatação de que ao longo de século XIX a ideologia burguesa passa a uma
nova etapa na qual abandona as posições que defendiam o progresso
social-humano frente à velha sociabilidade posta pelo modo de produção
feudal, posições efetivamente revolucionárias e que no campo econômico,
por exemplo, legaram as construções teóricas de Smith e Ricardo. De tal
modo que há uma

[...] liquidação de todas as tentativas anteriores dos importantes ideólo-


gos burgueses que visavam compreender intrepidamente e sem se pre-
ocupar com a descoberta do caráter contraditório das verdadeiras forças
impulsionadoras da sociedade, esta fuga até a pseudo-história ideolo-
gicamente arranjada, superficialmente concebida e subjetiva e mistica-
mente desfigurada, constitui a tendência geral da decadência ideológica
(LUKÁCS, 1966, p. 57).1

Sobre tal fenômeno Mészáros assinala que

[...] é um traço característico exclusivo das ideologias dominantes que,


uma vez atingida a fase declinante do desenvolvimento das forças sociais
cujos interesses expressam, elas são incapazes de oferecer nada além de
um quadro conceitual inteiramente negativo, não obstante sua identifi-
cação “positiva” com o status quo (MÉSZÁROS, 1993, p. 17).

A este respeito lembramos que em Marx e Lukács a consciência do ho-


mem, o seu pensamento, é circunscrita pela realidade na qual o homem
está inserido, em que ele constrói e reconstrói continuamente, se reali-
zando enquanto indivíduo e espécie simultaneamente. Logo, não poderia
ser diferente no que diz respeito ao complexo da ideologia.

Na continuidade do referido ensaio, Lukács aponta que a divisão social


do trabalho, que no sociometabolismo do capital atinge seu ápice, leva a
uma diferenciação do trabalho intelectual em diversos campos separa-
dos, que por sua vez possuem interesses materiais e espirituais particu-
lares e concorrentes entre si. Há uma criação ampla de subespecialistas:
técnicos, juristas, economistas, sociólogos etc.

Para Lukács, as ciências sociais burguesas não conseguem superar esta


especialização mesquinha, não pela amplitude do saber humano, mas
devido à forma e à direção tomada pelo desenvolvimento de tais ciências.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017 35


Lukács e Mészáros, críticos de Weber

“Nestas, a decadência da ideologia burguesa produziu uma mudança tal,


que já não podem engrenar uma nas outras, e o estudo de uma delas já não
favorece a compreensão mais profunda da outra” (LUKÁCS, 1966, p. 68).2

Para Lukács, nem mesmo um sábio, um cientista escrupuloso como Weber


(que era ao mesmo tempo economista, sociólogo, historiador, filósofo e
político, com profundos conhecimentos em todos estes campos) conse-
gue sequer aproximar-se de um verdadeiro pensamento universalista. E
isto ocorre porque Weber toma por base esta história, esta socio­logia, esta
economia etc., disciplinas cujos pressupostos ideológicos e metodológicos

[...] já nada têm a ver uma com a outra, nem podem prestar entre elas
auxílio ou estímulo. Assim, pois, se Max Weber realizou uma reunião do
sociólogo, do economista e do historiador, mas juntando – sem espírito
crítico – esta sociologia, com esta economia e esta historiografía, era ine-
vitável que a separação destas ciências no sentido da divisão do trabalho
subsistiria também em sua mente. Por isso, só o fato de que um mesmo
indivíduo as dominava, não podia, contudo, associar dialeticamente uma
à outra, não podia levar ao conhecimento das verdadeiras conexões do
desenvolvimento social (LUKÁCS, 1966, p. 69).3

Tal atitude pouco crítica de Weber, para Lukács, radica no fato de ser
Weber, também, um filósofo seguidor do neokantismo. E tal corrente filo-
sófica não só sancionava esta separação das ciências naturais e sociais,
mas também a separação dentre as próprias ciências histórico-sociais.
Além disso, segundo Lukács (1966, p. 69), esta corrente filosófica defende
que há uma ausência de relações entre pensamento e ação, teoria e práxis.
Tal defesa nos traz duas consequências: (1) coloca-se um completo relati-
vismo, “a igualdade formal de todos os fenômenos, a equivalência interna
de todos os poderes históricos”. Ele afirma que a doutrina weberiana da
ciência “postula, de modo consequente no sentido do neokantismo, uma
abstenção de juízo teórico absoluto frente às decisões da sociedade e da
história” (LUKÁCS, 1966, p. 69-70).4 (2) A decisão ética não estará ligada
ao conhecimento dos fatos, mas para Weber estará ligada a uma mística
decisão do “livre arbítrio”. De tal modo, argumenta Lukács que Weber

[...] expressa esta ideia, esta mistura eclética de um relativismo extremo


no conhecimento e uma mística acabada na ação, da seguinte maneira:
“Aqui [ou seja na decisão de enfrentar uma ação, G.L.] lutam também
diversos deuses uns com os outros, e assim para sempre. É o mesmo que
o mundo antigo, não desencantado todavia de seus deuses e demônios,

36 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017


Paulo Henrique Furtado de Araujo

só que em outro sentido: ainda hoje, semelhante ao que o grego oferecia


em sacrifício, ora a Afrodite, ora a Apolo, e cada grego para os deuses
de sua cidade, assim segue sendo, ainda que de forma desencantada e
despojada de misticismo, mas interiormente verdadeira naquela atitude.
E por cima desses deuses e de suas lutas impera o destino, mas não cer-
tamente alguma ciência” (LUKÁCS, 1966, p. 70).5

Lukács conclui que estas ideias de Weber claramente o impediam de re-


alizar o verdadeiro universalismo e, quando muito, permitiam a reunião
de um grupo de especialistas num único homem. Mas não mais do que
isto. O que, entretanto, apenas viabilizava a deformação produzida pela
divisão capitalista do trabalho na alma do indivíduo singular. De tal modo
a transformar “um indivíduo, muito superior à média, tanto intelectual
como moralmente, num burguês de visão limitada” (LUKÁCS, 1966, p. 70).6

Lukács crítico de Weber em A destruição da razão

Na obra A destruição da razão, Lukács realiza uma crítica um pouco mais


sistemática do constructo teórico de Weber. Ele, de início, argumenta que
a sociologia no período imperialista posterior à Primeira Guerra Mundial,
continuou lutando por seu reconhecimento científico, como já fizera nas
décadas anteriores a este evento histórico. Entretanto,

[...] as circunstâncias e características dessa luta se modificaram. Antes de


mais nada, a sociologia do período imperialista renunciou cada vez mais
– e em escala internacional – a assumir, como ciência universal, a herança
da história ou da filosofia em geral. Em relação à vitória generalizada do
agnosticismo filosófico, a sociologia se converte – com consciência cada
vez maior – numa disciplina singular e limitada, que assume seu posto ao
lado das demais disciplinas do mesmo tipo (LUKÁCS, 1981, p. 145).

Na Alemanha, continua Lukács, a sociologia neste período flui para as

[...] concepções históricas de tipo romântico-irracionalista de Ranke. Em


consequência, a epistemologia do neokantismo então dominante revela-
-se cada vez mais disposta a lhe conceder um modesto posto no sistema
de ciências. [...] Desta maneira, salva-se a legitimidade da sociologia do
ponto de vista metodológico. E os próprios sociólogos (em particular Max
Weber) declaram igualmente não ter a pretensão de descobrir o sentido
unitário do desenvolvimento histórico; afirmam ao contrário, que a so-
ciologia é apenas uma espécie de ciência auxiliar da história [...] (LUKÁCS,
1981, p. 145-146).

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017 37


Lukács e Mészáros, críticos de Weber

Para Lukács, o desenvolvimento do capitalismo na Alemanha com o


correspondente desenvolvimento das lutas de classe e o fortalecimento
do movimento revisionista capitaneado por Bernstein, colocam para a
sociologia uma nova forma de confrontação com o marxismo. Se antes
este fora ignorado em bloco, agora buscavam dividi-lo em partes e inserir
na sociologia aquilo que pudesse ser utilizado da perspectiva ideológica
burguesa. Nosso autor reforça que, apesar deste movimento, a luta con-
tra o materialismo permanecia. A sociologia continuava a lutar “contra
a prioridade do ser social e contra o papel decisivo desempenhado pelo
desenvolvimento das forças produtivas” (LUKÁCS, 1981, p. 147). Mas a
sociologia acolhia agora “formas abstratas de interação entre base e su-
perestrutura” (LUKÁCS, 1981, p. 147). E este seria exatamente o caso de
Weber ao tratar

[...] da relação de dependência recíproca entre as formas econômicas e as


religiões, recusando nitidamente a prioridade da economia:

“Uma ética econômica não é uma simples ‘função’ de formas de organi-


zação econômica; nem tampouco, em troca, pode-se dizer que essa ética
informe de modo unívoco a organização econômica [...] Por mais profun-
dos que tenham sido os influxos sociais, condicionados econômica e po-
liticamente, exercidos em casos singulares sobre uma ética religiosa, esta
recebeu suas características, em primeiro lugar, de fontes religiosas.”

Max Weber assume como ponto de partida inicial a relação de vinculação


recíproca entre motivos materiais e ideologia; e combate o materialismo
histórico porque este, de um modo que Weber supõe ser cientificamente
inadmissível, afirma a prioridade do elemento econômico. [...] As consi-
derações de Max Weber levam sempre a atribuir aos fenômenos ideoló-
gicos (religiosos) um desenvolvimento “imanente” que teria sua origem
neles mesmos; esta tendência, em seguida, converte-se no ponto de vista
segundo o qual eles têm prioridade enquanto causas do processo global
(LUKÁCS, 1981, p. 148).

A concepção de Weber sobre a relação de dependência recíproca entre as


formas econômicas e as religiões vai cumprir um importante e influente
papel na explicação sociológica da gênese e da essência do capitalismo,
possibilitando uma concepção teórica alternativa à teoria da acumulação
primitiva de capital de Marx. Assim assinala Lukács que

[...] Weber [...] parte da relação de dependência recíproca entre a ética eco-
nômica das religiões e as formações econômicas, afirmando a prioridade

38 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017


Paulo Henrique Furtado de Araujo

do fator religioso. Seu problema é o de explicar a razão pela qual somente


na Europa nasceu um capitalismo. Em contraste com a concepção prece-
dente, que via capitalismo em qualquer acumulação de dinheiro, Weber
se esforça por entender a natureza específica do capitalismo moderno e
por relacionar o seu nascimento na Europa com a diferença da evolução
ético-religiosa no Oriente e Ocidente. Além do mais, e sobretudo, a essên-
cia do capitalismo é deseconomizada e “espiritualizada”. Como essência
do capitalismo aparece a racionalização da vida econômica-social, a pos-
sibilidade de calcular racionalmente todos os fenômenos. Assim, Weber
esboça uma história universal das religiões para demonstrar que apenas
o protestantismo (e, nele, particularmente as seitas) teve uma ideologia
que promove e favorece essa racionalização, enquanto todas as outras re-
ligiões do Oriente e da Antiguidade produziram concepções de ética eco-
nômica que funcionaram como obstáculos à racionalização da vida coti-
diana. Weber recusa-se sempre a ver nas concepções de ética econômica
uma consequência das estruturas econômicas (LUKÁCS, 1981, p. 149-150).

Lukács demonstra que ao tratar da China em Economia e sociedade, Weber


identifica de forma simplista economia e técnica produtiva, de modo a
aceitar como o capitalismo genuíno aquele capitalismo das máquinas.
Deste ponto Weber é conduzido, em Gesammelte Aufsätze sur Religionsso-
ziologie (Ensaios reunidos sobre sociologia da religião), “ao ‘argumento’
histórico ‘decisivo’, pelo qual a ética econômica do protestantismo – que
apressou e favoreceu o desenvolvimento do capitalismo – ‘já existia antes’
dele. Com isso, acredita ter refutado o materialismo histórico” (LUKÁCS,
1981, p. 150).

Apreensão da essência do capitalismo sem o compromisso de enfrentar


os problemas econômicos reais (por exemplo, a explicação da origem do
lucro do capitalista que para Marx radica no mais-valor e na explora-
ção da mercadoria força de trabalho), esta é a metodologia dos sociólo-
gos alemães para Lukács (1981, p. 150). Para nosso autor, a sociologia de
Weber reconhece e atribui um papel importante para a separação entre
trabalhadores e meios de produção, entretanto, para esta sociologia, as
características essenciais do capitalismo são a racionalidade e a calcula-
bilidade. Ficando claro que esta sociologia apreende de forma simplista
a aparência e não a essência da formação sócio-metabólica do capital.
Daí Weber, e os sociólogos alemães do período, atribuírem ao direito e à
religião (que são formas particulares de ideologia) uma maior centralida-
de na explicação da forma de sociabilidade específica do capital, maior

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017 39


Lukács e Mészáros, críticos de Weber

do que a atribuída à economia. Esta perspectiva, que apreende o mundo


real de forma invertida, acaba recorrendo a analogias vazias na tentativa
de substituir metodologicamente a busca de explicações causais para o
funcionamento do ser social. Isto explica a analogia utilizada por Weber
entre o Estado moderno e a empresa capitalista.7 Lukács arremata dizen-
do que:

Mas, dado que recusa [Weber], a partir de um ponto de vista agnóstico-


-relativista, o problema da causalidade primária, permanece na simples
descrição analógica. Sobre a base de semelhantes analogias, nasce a pos-
sibilidade de empreender uma crítica da cultura, que jamais entra nas
questões fundamentais do capitalismo; que dá livre espaço à insatisfação
com a cultura capitalista, mas que concebe a racionalização capitalista
como uma “fatalidade” (Ratheneau) e, portanto, apesar de todas as críti-
cas, faz com que o capitalismo apareça como algo necessário e inevitável
(LUKÁCS, 1981, p. 150).

Por isso, esses raciocínios sempre desembocam na justificação do capi-


talismo, sendo este entendido como um sistema necessário e só passível
de modificações menores, nada que altere sua essência. E findam com
a descoberta e demonstração de supostas contradições, econômicas e
sociais, práticas e teóricas, insolúveis do socialismo.

Lukács entende que os sociólogos alemães do período anterior à Primeira


Guerra Mundial, e Weber em particular, são ideólogos burgueses do pe-
ríodo imperialista. E esta sociologia tentava demonstrar a superioridade
“da forma alemã de Estado e da estrutura social da Alemanha em com-
paração com as democracias ocidentais” (LUKÁCS, 1981, p. 152). Nesta
questão, a posição de Weber é diferenciada em relação aos demais soció-
logos alemães. Ainda que ele critique a democracia moderna,

[...] considera a democracia como a forma mais apta à expansão imperia-


lista de uma grande potência moderna. Vê a debilidade do imperialismo
moderno precisamente nessa ausência de um desenvolvimento demo-
crático na política interna: [...]

Aqui se reconhece, de modo evidente, a fonte social da tendência demo-


crática de Max Weber: ele partilha com os outros imperialistas alemães a
concepção da missão geopolítica (colonizadora) dos “povos de senhores”.
Mas se distingue deles na medida em que não só não idealiza a condição
da Alemanha, com seu parlamentarismo aparente, mas a critica de modo
áspero e apaixonado. Ele pensa que os alemães só se poderão converter

40 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017


Paulo Henrique Furtado de Araujo

num “povo de senhores” em regime democrático, como França e Inglaterra.


Por isso, a fim de que se torne possível realizar os intentos imperialistas
da Alemanha, há que ter lugar uma democratização interna que deve
ser levada até o ponto indispensável à obtenção de tais finalidades. [...]
esse democratismo de Weber, dado o seu fundamento imperialista tem
matizes muito particulares. Numa conversa com Ludendorff,8 Weber –
segundo os apontamentos de sua mulher – teria declarado:

“Na democracia, o povo escolhe o líder em quem confia. Então, quem


foi escolhido diz: ‘Agora, cale e obedeça!’. Ao povo e aos partidos, não é
permitido retrucar... Depois, o povo pode julgar: se o líder errou, que seja
enviado à forca!”

Não é de surpreender que, em tal conversa, Ludendorff tenha declarado:


“Uma democracia assim poderia me agradar!” Deste modo, a democracia
de Weber se transmuta num cesarismo bonapartista (LUKÁCS, 1981, p.
152-154).

Daqui apreendemos a concepção conservadora, bonapartista, autoritária


da democracia que Weber possuía. O que leva Mészáros a lembrar que
isto não impediu que Weber se tornasse,

[...] no decorrer dos desenvolvimentos político-ideológicos do século XX,


o pensador reverenciado por todo o mundo atlântico como o represen-
tante – com um rigor teórico que deve ser considerado exemplar até pelo
mais “objetivo” de todos os cientistas sociais – dos valores máximos da
“democracia liberal” e do “mundo livre” (MÉSZÁROS, 2004, p. 147).

Lukács (1981, p. 154) prossegue denunciando que a sociologia daquele


período apresenta uma metodologia extremamente formal e uma gno-
siologia extremamente agnóstica e relativista, que se converterá numa
mística irracionalista. Assim a sociologia assume o papel de ciência par-
ticular da história e, devido ao seu formalismo metodológico, fica im-
possibilitada de realizar uma “verdadeira interpretação histórica”. Os
problemas relativos ao conteúdo e à gênese das ciências singulares (que
se tornam, também, cada vez mais formalistas) são transferidos para o
campo da sociologia. Ela, por sua vez, e devido à sua metodologia for-
malista, passa a trabalhar com “analogias puramente formais em vez de
explicações causais” (LUKÁCS, 1981, p. 154). Ainda que Weber polemize
explicitamente contra o excessivo formalismo presente, por exemplo,
em Simmel, para Lukács a sociologia weberiana é eivada de analogias
formalistas (LUKÁCS, 1981, p. 155).

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017 41


Lukács e Mészáros, críticos de Weber

Lukács prossegue assinalando a construção de esboços de tipos e tipolo-


gias por parte da sociologia. Construção essa que em Weber será o pro-
blema central de sua metodologia:

Ele [Weber] considera como tarefa principal da sociologia estabelecer pu-


ros “tipos ideais”. Na opinião de Weber, só a partir deles é possível uma
análise sociológica. Esta análise, porém, não fornece nenhuma linha de
desenvolvimento, mas apenas uma justaposição de tipos ideais escolhi-
dos e ordenados em forma casuística. O devir da sociedade, concebido
em sua irrepetibilidade e na impossibilidade de ser subordinado a leis (ao
modo de Rickert), apresenta um ineliminável caráter irracionalista, ainda
que – para a casuística racional do tipo ideal – o irracional seja elemento
perturbador, o “desvio” (LUKÁCS, 1981, p. 155).

O conceito de lei de Weber expressa o caráter subjetivista de sua socio-


logia segundo Lukács. Ao tratar da sociologia compreensiva e das suas
categorias ele argumenta, em Gesammelte Aufsätze zur Wissenshaftslehre
[Textos escolhidos sobre ciência econômica], que: “O modo de formação
dos conceitos sociológicos é predominantemente uma questão de fins.
Não somos absolutamente obrigados a formar todas as categorias que
serão estabelecidas em seguida” (WEBER apud LUKÁCS, 1981, p. 156).
Registre-se o distanciamento da compreensão de Marx para quem as
categorias são “formas de ser”, portanto, ontologicamente dadas. Voltare-
mos a isto adiante. Prosseguindo com a argumentação de Lukács, temos
que a gnosiologia pragmática de Weber o leva a defender, em Economia e
sociedade, que:

As “leis”, como se costuma designar algumas proposições da sociologia


compreensiva, [...] são probabilidades típicas, corroboradas pela observa-
ção, de um decurso de ações sociais que devem ser esperadas na base da
presença de certos dados efetivos, ações compreensíveis na base dos mo-
tivos típicos e das intenções supostamente típicas daqueles que atuam
(WEBER apud LUKÁCS, 1981, p. 156).

A conclusão de Lukács é que tal postura de Weber resulta na dissolução


subjetiva de toda realidade social objetiva, além de as situações sociais
assumirem “uma complexidade aparentemente exata, porém na realidade,
extremamente confusa” (LUKÁCS, 1981, p. 156). Registramos, também, a
distância da compreensão do que sejam leis sociais entre Weber e Marx.
Retornaremos a isto adiante. Em seguida, Lukács exemplifica tal confusão
com outra citação de Weber de Gesammelte Aufsätze zur Wissenshaftslehre

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Paulo Henrique Furtado de Araujo

[Textos escolhidos sobre ciência econômica], em que este descreve os pro-


ventos do trabalho após ter enumerado as obrigações do trabalhador:

Em seguida, ele [o trabalhador], se realiza tudo isso, tem a probabilidade


de receber certos pedaços de metal ou de papel feitos de modo especial,
os quais, entregues a outras pessoas, fazem com que ele possa adquirir
pão, carvão, calças, etc., e isso com o resultado de que se alguém quisesse
retomar dele tais objetos, surgiriam a seu pedido, com uma certa pro-
babilidade, determinados personagens com capacete que o ajudariam a
reavê-los, etc. etc. (WEBER apud LUKÁCS, 1981, p. 156).

Lukács passa a comentar a citação acima e nos diz que:

Vê-se claramente, neste trecho, que as categorias sociológicas de


Weber – que designa como probabilidade as mais diversas objetivações
sociais, como o poder, o direito, o Estado, etc. – não expressam mais
do que a psicologia abstratamente formulada do indivíduo que age e
calcula segundo os princípios do capitalismo. Também aqui, no erudito
alemão que, em suas intenções subjetivas, era o que mais honesta e
coerentemente se esforçava no sentido de exercer sua ciência de modo
puramente objetivo, no sentido de fundar e pôr em prática uma meto-
dologia da pura objetividade, as tendências imperialistas da pseudo-
-objetividade revelam-se como as mais fortes. A concepção de Max Weber
sobre a probabilidade deriva, por um lado, do exemplo da interpretação
dada por Mach [Ernst Waldfried Josef Wenzel Mach] dos fenômenos da
natureza, e, por outro, é determinada pelo subjetivismo psicologista
da teoria da “utilidade marginal”; ela converte as formas objetivas, as
transformações, os eventos, etc., da vida social num emaranhado de
“expectativas” satisfeitas ou insatisfeitas, enquanto suas leis são con-
vertidas nas probabilidades mais ou menos prováveis com que essas
expectativas se realizam. É evidente que uma sociologia que trabalha
nessa direção pode alcançar, em suas generalizações, tão-somente ana-
logias abstratas (LUKÁCS, 1981, p. 156-157).

Em resumo, Lukács reafirma que, apesar de todo o posicionamento de


Weber em busca de racionalidade, neutralidade de valores, objetivida-
de, Weber permanece preso “aos limites ‘irremediavelmente irracionais’ das
analogias formalistas” (MÉSZÁROS, 2002, p. 417; grifos do autor).

Paradoxalmente, registra Lukács (1981, p. 157), a luta de Weber contra


o irracionalismo o leva a um estágio superior deste mesmo irracio-
nalismo. Weber acredita que seu método agnóstico-formalista seja o
único científico, pois através dele só se introduz na sociologia o que é

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017 43


Lukács e Mészáros, críticos de Weber

demonstrável. De tal forma que a sociologia forneça “apenas uma críti-


ca técnica”, e investigue

[...] “quais meios são apropriados em vista de determinado fim”, e, por ou-
tro lado, [possa] “estabelecer as consequências que a aplicação dos meios
requeridos poderia ter além... da eventual obtenção do fim desejado”.
Tudo o mais, segundo Weber, encontra-se fora do campo da ciência, é
objeto de fé e, portanto, algo irracional (LUKÁCS, 1981, p. 157-158; grifos
do autor).

O método de Weber, portanto, exige a exclusão de todos elementos


irracionalistas e dos juízos de valor da sociologia. Entretanto, tal proce-
dimento acaba por potencializar “a irracionalização do devir histórico-
-social” (LUKÁCS, 1981, p. 157-158). Lukács prossegue sinalizando que
contraditoriamente, e sem perceber que isto anula toda a pretensa racio-
nalidade de sua metodologia científica, Weber reconhece que

[...] as “avaliações” estão profundamente enraizadas na própria realidade


social. Ele [Weber] diz:

“A impossibilidade de apoiar ‘cientificamente’ tomadas de posição prá-


ticas [...] deriva de razões muito mais profundas. Essa tentativa é funda-
mentalmente absurda, já que as diversas ordens de valores estão entre si
em luta insolúvel” (LUKÁCS, 1981, p. 158).

Weber, entretanto, realiza uma enérgica polêmica contra o irracionalismo


vulgar alemão do seu período. O que, para Lukács, não afasta “o núcleo
irracional do método e da concepção do mundo de Max Weber” (LUKÁCS,
1981, p. 159). Ao mirar na cientificidade da sociologia e excluir os juízos de
valor, Weber simplesmente transfere a irracionalidade para estes juízos
de valor e para as tomadas de decisão. Neste ponto Lukács nos convida
a recordar as afirmações histórico-sociológicas de Weber sobre “a racio-
nalidade da economia e a irracionalidade da religião”. Um exemplo claro
da perspectiva subjetivista e relativista da metodologia de Weber é dado
por Lukács com uma citação do próprio Weber retirada de Gesammelte
Aufsätze zur Wissenschaftslehre [Textos escolhidos sobre ciência econômica]:
“Defender ‘cientificamente’ tomadas de posição práticas [...] é fundamen-
talmente absurdo, já que as diversas ordens de valores do mundo estão
entre si em luta insolúvel [...]” (WEBER apud LUKÁCS, 1981, p. 159).

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Paulo Henrique Furtado de Araujo

Considerações de Mészáros sobre Weber

Passaremos agora a apontar, com Mészáros, como Weber violava seus


preceitos metodológicos garantidores da neutralidade científica, e como
sua teoria é, desde sempre, uma clara ideologia defensora da lógica
do capital.

No ensaio “Objectivity” integrante do livro In the Methodology of the Social


Sciences, Weber trata da natureza e da validade de seus tipos ideais:

A tarefa elementar do autocontrole científico e a única forma de se evi-


tar asneiras graves e tolas requer uma distinção nítida e precisa entre a
análise comparativa da realidade através de tipos ideais, no sentido lógico, e o
julgamento de valor da realidade baseado em ideais. Em nosso sentido, um
tipo ideal [...] não tem absolutamente nenhuma conexão com juízos de valor,
e não tem nada a ver com nenhum tipo de perfeição, a não ser aquela
puramente lógica (WEBER apud MÉSZÁROS, 1993, p. 26).

De início, Mészáros (1993), assinala que sequer vai discutir se a proposta


de Weber de tomar o autocontrole científico como tarefa elementar é ou
não um juízo de valor. Tampouco vai avaliar a adequação de se tratar
o campo das Ciências Sociais no âmbito de uma perfeição puramente
lógica. Isto porque seu foco é descobrir se Weber conseguiu ou não se
manter nos “padrões que ele mesmo estabeleceu para a avaliação da ci-
ência social em geral” (MÉSZÁROS, 1993, p. 26). Ele de imediato já revela
que Weber não conseguiu, ainda que ele próprio e seus seguidores não
desistam das ilusões a este respeito.

Tomando inicialmente um tipo ideal “neutro” que é a definição do capi-


talismo dada por Weber, apresentada no mesmo ensaio (“Objectivity”) da
citação acima, na qual Weber diz que o capitalismo é uma “cultura” cujo
princípio norteador “é o investimento de capital privado” (MÉSZÁROS, 1993,
p. 27; grifos nossos), Mészáros defende que tal definição não é axiologi-
camente neutra, ainda que aparentemente expresse uma verdade óbvia
que diz que “o capitalismo e o investimento de capital privado estão di-
retamente ligados” (MÉSZAROS, 1993, p. 27). Mas só na aparência isto é
uma verdade, pois, de fato, trata-se de uma mera tautologia. E “na defi-
nição de Weber o que está para além da pura tautologia é, ou ostensiva-
mente ideológico e com viés valorativo, ou falso – ou até mesmo ambos,
ideologicamente tendencioso e falso” (MÉSZÁROS, 1993, p. 27).

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017 45


Lukács e Mészáros, críticos de Weber

Daí Mészáros concluir que:

A definição de Weber é formulada a partir de um ponto de vista defini-


do: não aquele da “lógica pura”, mas aquele que convenientemente blo-
queia a possibilidade de definições rivais, sem se fundamentar em nada
a não ser na pura suposição. A adoção desse tipo ideal como princípio de
seleção de todos os dados disponíveis acarreta, necessariamente, que a
pesquisa “cientificamente autocontrolada” se limite a dados que se en-
caixem com facilidade no quadro ideológico das pressuposições contidas
na definição de Weber (MÉSZAROS, 1993, p. 27).

Em seguida, Mészáros passa a analisar como a definição de capitalismo de


Weber cumpre funções ideológicas mantendo uma aparência descritiva e
não ideológica. Em primeiro lugar ele destaca o uso do termo “cultura”
no lugar de outro como “modo de produção” ou “formação social”. Esse
termo conduz a um dado tipo de interpretação “quanto ao desenvolvi-
mento da formação social capitalista” (MÉSZÁROS, 1993, p. 27), haja vista
a interpretação apresentada em A ética protestante e o espírito do capitalismo.

Em segundo lugar, ele sublinha que o capitalismo, para Weber, tem um


“princípio norteador” que o caracteriza. E Weber, de fato, não explica os fun-
damentos “dessa estranha entidade metafísica” (WEBER apud MÉSZÁROS,
1993, p. 27). Ao adotar tal pressuposto de um “princípio nortea­dor”, me-
todologicamente, Weber

[...] anula a possibilidade de uma pesquisa histórica abrangente sobre as


bases reais do desenvolvimento do capitalismo. Em seu lugar, encontra-
mos uma projeção a-histórica da forma desenvolvida que retrocede ao
passado, já que o “princípio norteador” deve ser mostrado em todos os
estágios. (Esta é a razão pela qual, em última análise, ele deve ser identi-
ficado com o ‘espírito do capitalismo’, um tanto misterioso) (MÉSZÁROS,
1993, p. 27).

A conclusão de Mészáros é que Weber usa suas demonstrações das rela-


ções entre o “tipo ideal” e o mundo real, empírico, como um mecanismo
ideológico pelo qual ele se resguarda de “possíveis objeções a seu modelo
geral” (WEBER apud MÉSZÁROS, 1993, p. 28).

Em terceiro lugar, para Mészáros, a definição de que o princípio norteador


do capitalismo é o “investimento de capital privado” nubla a questão fun-
damental na lógica do capital, que é a relação estrutural entre o capital e o
trabalho. Mészáros ressalta que “o termo conspicuamente ausente do tipo
de discurso weberiano é, sem dúvida, ‘trabalho’” (MÉSZÁROS, 1993, p. 28).

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Paulo Henrique Furtado de Araujo

Diante da impossibilidade de explicar o mecanismo da “real constitui-


ção do capital” através da utilização do assim intitulado “espírito do
capitalismo”, as questões associadas a esse mecanismo são “descartadas
ou relegadas ao plano, intelectualmente secundário, de descrição de um
determinado estágio de empiria” (WEBER apud MÉSZÁROS, 1993, p. 28).
Assim, ideologicamente, trabalho, valor, exploração, mais-valia, etc., são
excluídos do modelo geral de Weber.

Em quarto lugar, Mészáros argumenta que “a definição do princípio


norteador do capitalismo como o ‘investimento de capital privado’ pro-
porciona, convenientemente, a justificativa necessária e a legitimação
da persistência do modo de produção capitalista, contra as alegações
opostas do trabalho apropriado” (MÉSZÁROS, 1993, p. 28). O que tal afir-
mação encobre é que o lucro é o que move a lógica do investimento,
logo o capital privado é investido quando o lucro esperado é suficiente-
mente atrativo para o capitalista.

Em quinto lugar, Mészáros (1993, p. 28) destaca que restringir-se à ideia


de que o capitalismo se caracteriza pelo “investimento de capital priva-
do” é encobrir a presença cíclica das crises de superprodução do capita-
lismo e das consequências sociais a ela associadas. Ao longo das crises e
na fase subsequente a ela, a lógica do capitalista é não investir o capital
excedente. O que por si desmente a afirmativa weberiana. Entretanto, tal
ideia bloqueia o estudo dessa importante questão constitutiva da dinâ-
mica do sociometabolismo do capital.

Em sexto lugar, Mészáros lembra que somente para uma determinada


época histórica do desenvolvimento da formação societária do capital há
validade (e certamente não associada ao “tipo ideal” de Weber) em carac-
terizar o capitalismo em geral a partir do “investimento de capital pri-
vado”. Tal caracterização é a sublimação do “ponto de vista subjetivo do
capitalista individual”. E oblitera uma tendência fundamental do desen-
volvimento do modo de produção capitalista ao longo do século XX, que é:

[…] o envolvimento sempre crescente do capital estatal na reprodução


ampliada do sistema capitalista. Em princípio, o limite extremo desse
desenvolvimento é nada menos que a transformação da forma preva-
lecente do capitalismo em um sistema abrangente de capitalismo estatal,
que teoricamente acarreta a abolição completa da fase específica do ca-
pitalismo idealizado por Weber (MÉSZÁROS, 1993, p. 29).

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017 47


Lukács e Mészáros, críticos de Weber

E Mészáros (1993, p. 29) arremata dizendo que é justamente por isso que
tal tendência fundamental é “excluída do quadro ideológico do ‘tipo ideal’
de Weber”.

Em último lugar, Mészáros denuncia o caráter estático do modelo webe-


riano. Pois a eliminação da relação estrutural entre capital e trabalho e a
“sua substituição pela entidade metafísica congelada, o ‘princípio norte-
ador’, exclui todo dinamismo do cenário” (MÉSZÁROS, 1993, p. 29). Com
isso, oblitera-se uma avaliação que capture a dinâmica da gênese e do
desenvolvimento da formação sócio-metabólica do capital. E, ao mesmo
tempo, inviabiliza-se a perspectiva da possibilidade de superação des-
ta formação por outra articulada em torno dos valores onto-societários
do trabalho. Portanto, desnuda-se, aqui, a função ideológica, no sentido
dado ao termo por Lukács em sua Para uma ontologia do ser social (2013)
do modelo weberiano. Mészáros reforça esta argumentação dizendo que:

Não há vestígios de contradições dinâmicas no modelo; portanto, ele


pode apenas abarcar as características estáveis da continuidade –
desprezando completamente a dialética da descontinuidade – de um
status quo prevalecente. Tal continuidade é simplesmente admitida sob
a forma de um “princípio” já prevalecente e, uma vez que ela existe, não
pode ser alterada, consoante o modelo estático weberiano (MÉSZÁROS,
1993, p. 29).

Com Mészáros podemos apresentar uma definição do capitalismo que se


contraponha à de Weber. Nesta, o modo de produção capitalista é carac-
terizado pela contínua extração de mais-valia enquanto condição para
produção e reprodução ampliada do capital, sendo o capital em si uma
relação social que necessariamente envolve trabalho assalariado e im-
plica na produção de mercadorias. Com alguma ironia, Mészáros diz que
“fica para o leitor decidir qual das duas definições é mais ‘ideológica’”. E
arremata dizendo:

[...] deve ficar claro que elas não são complementares, mas diametralmente
opostas uma à outra: o que absolutamente não seria o caso, se fosse
válida a afirmação de Weber quanto ao caráter “puramente lógico” e
“axiologicamente neutro” de seus “tipos ideais” (MÉSZÁROS, 1993, p. 30;
grifos do autor).

Nosso objetivo com a exposição das críticas de Mészáros a Weber é sim-


plesmente explicitar as dificuldades de Weber em realizar o autocontrole
científico, e o viés ideológico presente em seu constructo teórico. Mészáros

48 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017


Paulo Henrique Furtado de Araujo

em outros trabalhos (2002, 2004) volta a tratar destas limitações presen-


tes em Weber. Apresentando mais exemplos e re-expondo o perfil ideo-
lógico e os limites de Weber na aplicação de sua metodologia à sua pró-
pria pesquisa. Uma apreciação de Mészáros, em particular, é instigante e
sintetiza o movimento intelectual realizado por Weber. Ele sinaliza que
Weber realiza duas estratégias intelectuais complementares. Uma

[...] consistia em uma extrema relativização dos valores, acompanhada da


glorificação da subjetividade arbitrária e de suas acomodações dúbias à
“exigência da época”, tal como definida pela ordem estabelecida. Nesse
sentido, depois de escarnecer – com um ceticismo que tendia para o ci-
nismo – das “muitas pessoas que hoje em dia esperam novos profetas e
salvadores”, Weber explicou seu credo em termos inequivocamente rela-
tivistas e subjetivistas: “Vamos agir de modo diferente, vamos ao nosso
trabalho e satisfaçamos à ‘exigência da época’ – tanto no plano humano
como no profissional. Essa exigência, no entanto, é clara e simples se
cada um de nós encontrar e obedecer ao demônio que segura os fios de sua
vida” (MÉSZÁROS, 2004, p. 211-212).

Ainda que os fundamentos da tomada de decisão do indivíduo tenham


sido interditados por Weber, Mészáros lembra que esta era uma questão
que precisava de resposta. Mesmo defendendo que “as escolhas orienta-
das por valores não pudessem ser objetivamente justificadas, visto que
‘as várias esferas de valor do mundo permanecem em irreconciliável conflito
umas com as outras’” (MÉSZÁROS, 2004, p. 212), Weber precisava justifi-
car a própria atividade científica. Segundo Mészáros:

Esta [a atividade científica] tinha de ser resgatada das desastrosas impli-


cações do relativismo e subjetivismo extremos, estabelecidos como prin-
cípios orientadores para a constituição das ‘visões de mundo’ sob as cir-
cunstâncias ‘desencantadas’ da época moderna (MÉSZÁROS, 2004, p. 212).

Weber, numa época histórica em que a ciência e a tecnologia já estavam


completamente submissas à lógica do capital, não podia utilizar para a
ciência “os mesmos critérios de orientação que produziam, em relação
às ‘várias esferas de valor’, o relativismo e o subjetivismo” (MÉSZÁROS,
2004, p. 212). Weber, então, procurou demonstrar que os indivíduos

[...] que escolhessem a ciência como sua “vocação” poderiam – embora


sendo incorrigivelmente subjetivos em relação a sua “posição fundamental”
– ser rigorosamente objetivos em sua busca científica, e, ao mesmo tempo,
que as condições objetivas da atividade científica como tal os capacita-
vam para agir desse modo (MÉSZÁROS, 2004, p. 212).

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017 49


Lukács e Mészáros, críticos de Weber

É neste ponto que Mészáros (2004, p. 213) apresenta a segunda estratégia


intelectual de Weber. Tal estratégia “[...] se articulava como uma metodo-
logia para opor radicalmente a constituição de ‘visões de mundo’ ao reino
do ‘conhecimento factual’”. Mészáros prossegue e exemplifica esta po­
sição com a seguinte citação de Gesammelte Aufsätze zur Wissenshaftslehre
[Textos escolhidos sobre ciência econômica] de Weber:

É o destino de uma época cultural que provou da árvore do conhecimento


saber que nós não podemos decifrar o significado dos acontecimentos do
mundo, por mais que os estudemos. Devemos, antes de tudo, estar pre-
parados para criá-los nós mesmos e saber que as visões de mundo nunca
podem ser produto do conhecimento factual (MÉSZÁROS, 2004, p. 213).

Mészáros prossegue comentando a citação acima:

Desse modo, a mensagem de Weber [...] era que, no que diz respeito ao
desdobramento histórico dos acontecimentos do mundo, “nós só sabe-
mos que não sabemos e que não podemos saber”. Tínhamos de conceitu-
ar estes acontecimentos em termos de “visões de mundo” baseadas em
escolhas subjetivas, em “posições weltanschauliche`, em “atitudes inconci-
liáveis” e em “juízos de valor sobre os quais nada pode ser dito na sala de
aula”. Todavia, o mundo da ciência poderia ser resgatado do sofrimento
deste ceticismo e relativismo universal, desde que adotássemos a atuali-
zada dicotomia weberiano-kantiana entre “esferas de valor” e “conheci-
mento factual”. E, uma vez que a exclusão radical dos juízos de valor fora
declarada, o princípio orientador necessário e suficiente da objetividade
científica, até a história e o mundo social poderiam se tornar acessíveis
à investigação rigorosa, sob a condição de que tal empreendimento fosse
dirigido para a construção de “tipos ideais”, conforme as exigências da
“neutralidade axiológica” (MÉSZÁROS, 2004, p. 213).

Ou seja, Weber oferece uma solução para uma dupla necessidade posta
por sua própria teoria. Por um lado atende às “exigências de ‘exatidão
científica’ no domínio dos insuperáveis ‘cálculo’ e ‘racionalidade’ capita-
listas”. E ao mesmo tempo não interfere “[...] com o anseio do indivíduo
isolado pela autodeterminação subjetiva e soberania na esfera dos valo-
res” (MÉSZÁROS, 2004, p. 213).

Para Mészáros, a teoria de Weber traz em si uma “forma acabada de aco-


modação”. Pois ao defender que as “visões de mundo” “estão necessa-
riamente ligadas a conjuntos de valores inconciliáveis” e “nunca podem
ser produtos de conhecimento factual”, Weber apresenta enquanto única

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Paulo Henrique Furtado de Araujo

justificativa possível para elas (as visões de mundo) aquela calcada na


subjetividade e na arbitrariedade.

De todo modo, vimos mais acima que Weber sistematicamente viola seus
preceitos metodológicos. Mas não destacamos, da forma devida, que ele
tem no socialismo seu principal adversário, sendo, para Mészáros (2004,
p. 216), este o momento de fundamental importância na sua construção
teórica. Acompanhando Mészáros (2004, p. 217), entendemos que Weber
estabeleceu um constructo teórico radicalmente antípoda ao constructo
teórico marxiano e marxista. Os “tipos ideais” de Weber são frutos de
uma postura gnoseológica-epistemológica e se chocam com a apreen-
são de Marx a respeito das categorias – que são “formas de ser, determi-
nações da existência”. As categorias para Marx têm uma determinação
ontológica, são postas pelo próprio ser social na sua dinâmica, no seu
vir-a-ser perpétuo. Com a metodologia dos “tipos ideais” de Weber “tudo
podia ser relativizado e a própria ideia de leis e tendências objetivas do
desenvolvimento histórico ser desacreditada” (MÉSZÁROS, 2004, p. 218).
Dessa forma, privando o ser social de suas tendencialidades e legalida-
des, Weber podia entender o capitalismo “com seus necessários ‘cálculo’,
‘racionalidade’, ‘burocracia’, etc.” como algo perene, cujo destino “era não
ser superado” (MÉSZÁROS, 2004, p. 218). Assim, saía de cena a questão da
revolução social e do socialismo.

O último Lukács e sua crítica a Weber

Voltando a Lukács, é preciso assinalar que no interior da estrutura de


sua obra final (Para uma ontologia do ser social) verificamos a mesma ati-
tude crítica em relação às construções teóricas weberianas, observadas
em “Marx e o problema da decadência ideológica” e em “A Destruição da
Razão”. Ao contrário do que se verifica em História e consciência de classe
(2003), Mészáros (2002) sinaliza que Lukács rejeita em sua ontologia “a teo­
ria weberiana da racionalidade e sua aplicação à esfera de moralidade”,
posto que dela apenas pode resultar uma “‘concepção’ completamente
‘relativista de valores’” (MÉSZÁROS, 2002, p. 417). Para Mészáros, a rejeição
da teoria weberiana ocorre porque ela é a expressão, a corporificação, de
um tratamento para as questões de juízo moral que apenas pode apontar
para “um beco sem saída, pois para Lukács, ela representa a combinação

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017 51


Lukács e Mészáros, críticos de Weber

de dois falsos extremos típicos que [...] permanecem presos ao fetichismo


da aparência e nada trazem com eles a não ser a capitulação da razão
moral à ordem estabelecida” (MÉSZÁROS, 2002, p. 417-418). Os dois ex-
tremos a que Mészáros faz referência, para Lukács são: a imediaticidade
da manifestação dos fenômenos na aparência e um sistema de valores
super-racionalizado, logicizado e hierarquizado. Lukács entende que es-
ses dois extremos são igualmente falsos e se vierem a funcionar cada
um por sua conta hão de produzir um empirismo relativístico ou uma
construção racionalística não aplicável de forma adequada à realidade. O
comentário final de Mészáros sobre a rejeição por Lukács deste aspecto
da teoria weberiana é de que um empirismo relativista

[...] não pode ser contrabalançado até mesmo pelo esquema mais genial
de tipologia super-racionalizante, na qual em termos substantivos e em
relação às suas correspondentes orientações ideológicas, toda iniciativa
permanece presa na prosaica, mas por Weber romantizada “jaula de fer-
ro” da imediaticidade capitalista (MÉSZÁROS, 2002, p. 418).9

Retomando o desenvolvimento teórico de Lukács em sua ontologia, po-


demos reforçar a distância que separa Lukács e a compreensão ontoló-
gica do ser social, dos constructos teóricos weberianos. Em Lukács e em
Marx, todas as categorias são formas de ser, determinações da existên-
cia. Não são resultado de um hiper-racionalismo que tenta explicar o
real aprioristicamente. As categorias brotam do próprio ser social, da sua
própria ontologia. Assim sendo, são capazes de capturar a própria dinâ-
mica da sociabilidade humana sob a égide do capital, o vir-a-ser desta
sociabilidade. Tal proceder evidencia as legalidades e tendencialidades
desta dinâmica social, e coloca no horizonte a possibilidade de supe­
ração desta formação humano-societária do capital.

Lukács explicita em sua ontologia que o trabalho é a protoforma do agir


humano, é a categoria primária, originária mais simples, ainda que não
seja a primeira pois não poderia haver trabalho antes do ser social. Assim
o trabalho é o fundamento ontológico das outras práxis sociais. O trabalho
envolve a prévia-ideação e coloca a exteriorização enquanto momento
pelo qual a subjetividade é transformada ao mesmo tempo em que ocorre
a objetivação. Com o trabalho humano temos o salto ontológico que põe
o mundo dos homens, o ser social.

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Paulo Henrique Furtado de Araujo

No ser social, temos uma segunda natureza, na qual uma vez ocorrida
a objetificação, a coisa resultante adquire independência em relação à
consciência que a pôs. De tal forma que as coisas passam a ter uma tra-
jetória não teleológica, somente causal, sendo este o motivo pelo qual
no cotidiano essas coisas objetivadas se confrontam com os criadores
como uma segunda natureza. Em Lukács, a legalidade do ser social tem
na consciência dos indivíduos o seu medium, sendo tal legalidade social-
mente posta. Ou seja, a reprodução social só pode ocorrer através da me-
diação da consciência dos indivíduos concretos. Ele frisa que a essência
da categoria trabalho é a relação entre teleologia e causalidade, sendo o
ser social uma síntese de teleologia e causalidade. As coisas objetificadas
têm uma ação de retorno não prevista sobre os indivíduos criadores, isto
é próprio da segunda natureza da qual nos fala Lukács.

Lessa (2002) entende que a categoria de reflexo, em Lukács, é fundamental


para a constituição desta esfera ontológica específica que é o ser social.
Apenas com o reflexo (que é a apropriação ativa do real pela consciência,
transformando o real dado em real explicado) o pôr teleológico pode se
concretizar, pois é o reflexo que permite a captura das causalidades exis-
tentes no concreto dado. Sem esquecermos que tal categoria – reflexo – é
historicamente determinada, ou seja, é influenciada por outros comple-
xos como a ideologia, a política, o estranhamento, etc.

Neste momento, Lukács introduz a categoria alternativa, que tem o seu


órgão na consciência do indivíduo criador e é a mediação entre o “não
ser” do reflexo e a causalidade posta. Alternativa não é um momento,
para Lukács é sempre um processo. No processo de trabalho, mesmo
o mais primitivo, não ocorre uma simples execução mecânica de uma
finalidade. Há uma cadeia de decisões alternativas envolvidas no ato de
objetificação, na conversão da causalidade dada em causalidade posta.
No ato de trabalho, o indivíduo transforma em concreto uma mera
potencialidade. E o faz a partir da escolha dentre várias alternativas. A alter-
nativa faz esta articulação entre o reflexo presente na prévia-ideação,
com o produto resultante do processo de trabalho. Quando o produto do
trabalho está pronto e o processo do trabalho se encerra, novas decisões
alternativas surgem. Seja quanto às formas de utilização do produto, seja
quanto à sua conservação. Isto leva, ao desenvolvimento da sociabili-
dade humana, ao recuo das barreiras naturais. Por isso Lukács entende

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017 53


Lukács e Mészáros, críticos de Weber

que o desenvolvimento da sociabilidade na esfera do ser social tem


por base tanto decisões alternativas, que se apoiam em outras decisões
alternativas, quanto a causalidade posta. Lessa (2002) nos lembra que
Lukács apresenta duas consequências importantes para sua ontologia do
ser social após tratar da categoria de reflexo. Primeiro: o vir-a-ser da coisa
objetivada (que é o resultado das decisões alternativas do sujeito criador,
a partir do reflexo do real dado na consciência desse sujeito, que captu-
rou a causalidade dada e a transformou em causalidade posta) não é de-
terminado a priori. O acaso não é excluído da interpretação luckacsiana;
pelo contrário, ele é articulado com necessidade e teleologia “no ir-sendo
de cada ato e de cada produto final do trabalho” (LESSA, 2002, p. 109).
Segundo: toda decisão alternativa é sempre concreta.

A prévia-ideação é composta por dois momentos distintos: uma “bus-


ca de meios”, que tem por categoria central o reflexo; e uma “posição
de fim”, que tem no processo valorativo o seu núcleo. Como toda es-
colha é necessariamente concreta, a categoria alternativa inevitavel-
mente articula-se com os processos valorativos. Estes processos têm
um papel central na concretização do desenvolvimento das cadeias de
alternativas que serão objetivadas, assim como na direção deste desen­
volvimento. Os valores, portanto, ganham cada vez mais destaque com
o próprio desenvolvimento da sociabilidade. Para Lukács, os valores
têm sua gênese no “ser-precisamente-assim existente” e sempre em
articulação com a causalidade. Neste ponto eles se assemelham ao re-
flexo, mas diferentemente deste, os valores podem se transformar em
relações sociais objetivas com o próprio vir-a-ser da sociabilidade. Os
valores são categorias sociais e não surgem, portanto, das qualidades
materiais da relação social.

Ressaltamos que antes, ao tratar do pôr teleológico em sua totalidade,


Lukács dizia que o “momento determinante imediato” era o desenvol-
vimento social objetivo. Mas, ao tratar do momento específico, particu-
lar do ato teleológico no âmbito do trabalho, nosso autor entende que o
“dever-ser” é este “momento determinante imediato”. Na causalidade
posta, é o passado que determina o presente; já no agir teleológico do
indivíduo singular, o princípio determinante da práxis é o futuro teleo-
logicamente posto. Mas isto é válido somente para a esfera do trabalho.
Somente nesta esfera o futuro, o dever-ser, atua enquanto categoria

54 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017


Paulo Henrique Furtado de Araujo

determinante da objetificação. Para o pôr teleológico em sua totalidade, a


relação passado-presente permanece inalterada.

Para Lukács, assim como o trabalho é a protoforma do agir humano, o


trabalho mais primitivo, que só produz valores de uso, serve de modelo
para a práxis social mais desenvolvida. O dever-ser, em sua forma mais
primitiva, serve de modelo para as relações sociais mais desenvolvidas.
Mas, para Lukács, entre o modelo e suas variantes mais desenvolvidas,
há uma relação de identidade e não identidade. Portanto, é incorreto re-
duzir os valores e os processos valorativos (fundados no dever-ser) ao
dever-ser simples que atua na troca orgânica entre homem e natureza.

A base genética do dever-ser é a intermediação que ele faz entre a ma-


terialidade e o valor, entre o homem e a natureza. Ele é o momento
predominante da escolha entre alternativas que se manifestam no pôr
teleológico do trabalho. A alternativa liga a práxis social aos valores e
exige uma distinção entre o que é útil e o que é inútil para uma dada
objetivação. Essa distinção é a base genética e do desenvolvimento dos
valores.

Lukács argumenta que o dever-ser, enquanto categoria do ser social, é


indissoluvelmente ligado à categoria valor. Mas tal conexão não é uma
identidade. O valor influi na posição de fim e é o princípio segundo o
qual se valoriza o produto realizado. O dever-ser age como regulador do
processo enquanto tal. Daí concluir Lessa (2002) que não é o conteúdo
gnoseológico que determina se uma ideação é valor ou dever-ser, mas a
função social que essa ideação ocupa.

A objetividade dos valores se apresenta no cotidiano na relação de


“se ... então”, ou seja, uma coisa tem valor se cumpre a função esperada
dela. Apenas na relação com a causalidade objetiva (com o ser-precisa-
mente-assim) o processo valorativo pode determinar se a coisa objeti-
vada em dado contexto é ou não útil. A valoração não é algo meramente
subjetivo, só é possível valorar o existente tendo por base o pôr teleoló­
gico do trabalho. A valoração só pode ocorrer no interior da complexa arti­
culação teleologia-causalidade, que é própria e fundante do ser social. Ou
seja, Lukács defende um terceiro caminho entre os que defendem que a
valoração é determinada somente pela subjetividade humana e os que
entendem a valoração como resultado direto das qualidades materiais

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017 55


Lukács e Mészáros, críticos de Weber

dos objetos. Para ele os valores são puramente sociais, estão presentes
em potência no ser social realmente existente e tal potência apenas pode
se realizar no interior da relação entre teleologia e causalidade.

Os processos valorativos atuam sobre as individualidades e sobre a to-


talidade da formação social. Para tratar desta questão, é preciso retomar
as categorias de exteriorização e de individuação. Preliminarmente lem-
bramos que exteriorização e estranhamento têm pontos em comum e
pontos que as distinguem. Lessa (2002) sinaliza que exteriorização é a
ação de retorno de todo ente objetivado sobre seu criador, e assim, sobre
a totalidade social. Corresponde aos momentos nos quais a ação de re-
torno da objetivação sobre o sujeito criador estimula a individuação. Por
outro lado, estranhamento ou alienação são os “obstáculos socialmente
postos à plena explicitação da generalidade humana”. Então, o que há
em comum entre exteriorização e alienação é que ambas as categorias
são “ações de retorno das objetivações sobre a individuação (e sobre a
totalidade social, com todas as mediações cabíveis)”. A diferença entre
eles é que o estranhamento é uma ação que reproduz a desumanida-
de socialmente posta, e a exteriorização é a “autoconstrução do gênero
humano” (LESSA, 2002, p. 145).

Para Lukács, a exteriorização é uma consequência natural e necessária


do processo de trabalho. A objetivação da prévia-ideação pelo processo
de trabalho seleciona os comportamentos dos indivíduos que sejam
os mais adequados à concretização da ideia. Por essa seleção ocorre
o desenvolvimento genético de um complexo valorativo centrado no
comportamento do indivíduo. Inicialmente, trata-se do comportamen-
to do indivíduo para com a natureza que o cerca e, imediatamente,
trata-se da

[…] mediação daquele impulso de Aufhebung dos processos valorativos


para além do trabalho, também de complexos valorativos que têm como
nódulo o comportamento do indivíduo diante dos dilemas, alternativas,
possibilidades, etc. que a sociabilidade em que vive coloca a cada mo-
mento histórico. Portanto, a exteriorização, [...] é um momento inelimi-
nável e decisivo para o devir-humano dos homens (LESSA, 2002, p. 145).

Como já dissemos, no trabalho simples já encontramos o dever-ser e os


valores em suas formas originárias, pouco desenvolvidas. Eles servem
de padrão inicial para a análise das formas mais desenvolvidas da socia-

56 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017


Paulo Henrique Furtado de Araujo

bilidade humana, mas a análise das formas mais complexas de valores


encontrados no todo mais complexo, como é o caso da moral, da ética, do
direito, etc., exige mediações que só podem ser tratadas na categoria da
reprodução social. Lembramos que a individuação, ao lado da totalidade
social, constituem os polos centrais da reprodução social. A individuação
articula a “exteriorização mediada pelos valores e processos valora­
tivos com o desenvolvimento humano genérico” (LESSA, 2002, p. 129).
Conforme defende Lessa (2002, p. 130), “o ser social é a síntese dos atos
dos indivíduos singulares em tendências, forças, etc., genéricas”. São as
decisões alternativas tomadas pelos indivíduos que particularizam sua
individualidade em relação às demais e em relação à totalidade social. A
substancialidade de cada indivíduo singular é dada pela qualidade das
relações que ele estabelece com o mundo; sua substancialidade é ma-
terializada, portanto, como construção social. O indivíduo constrói sua
substancialidade a partir das escolhas dentre alternativas concretas que
ele realiza ao longo de sua vida. É por isso que a substancialidade do indi-
víduo humano é social, histórica e não meramente genética como ocorre
com o indivíduo singular orgânico. A evolução dinâmica da substancia-
lidade é determinada historicamente, socialmente. A personalidade de
cada indivíduo é construída a partir dessa integração e correlação com (e
na) formação social na qual está inserido.

O caminho acima descrito é o que permite a explicitação da categoria in-


dividuação. Segundo Lessa (2002, p. 150) este caminho tem três momen-
tos-chave, dos quais destacamos aqui o terceiro e último nexo ontológico
que é associado aos complexos valorativos. O desenvolvimento da indi-
vidualidade exige complexas mediações genéricas que permitam que o
indivíduo coloque para si próprio “as exigências postas pela evolução do
gênero humano”, sendo essa a base genética de complexos valorativos
tais como os costumes, o direito, a ética, etc. Estes complexos valorativos
influenciam as escolhas dos indivíduos dentre as alternativas postas pelo
desenvolvimento da sociabilidade, logo influenciam o desenvolvimento
interno e específico de cada individualidade. Assim, tais complexos aca-
bam por compor um complexo de determinações que orientam o vir-a-
-ser humano dos homens para realizações mais (ou menos) genéricas.

Constatamos, portanto, que “os valores têm um papel ontológico decisi-


vo no desenvolvimento das individualidades” (LESSA, 2002, p. 132). Ainda

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017 57


Lukács e Mészáros, críticos de Weber

que seja universal, a ação dos valores só é totalmente explicitada com


o surgimento da sociabilidade burguesa. Aqui, com o indivíduo cindido
entre homem econômico e homem político (cidadão), os valores têm
uma mudança qualitativa na determinação do processo de individuação.
Agora, ou os valores direcionam, estimulam as individualidades para po-
sições genéricas, voltando-as para o atendimento de exigências postas
pelo desenvolvimento do gênero humano, ou as estimulam para o aten-
dimento das exigências particulares, associadas à acumulação privada
de capital e à própria lógica do capital.

Sobre a categoria de reprodução social total, lembramos que é um pro-


cesso que exige a inter-relação entre complexos sociais parciais relati-
vamente autônomos, mas tem a influência soberana sobre estas inter-
-relações. E o processo de reprodução social total tem, necessariamente,
uma natureza bipolar. Tem dois polos que delimitam seus movimentos
reprodutivos, que o determinam em sentido positivo e negativo. Estes
dois polos são, de um lado, o processo reprodutivo em sua totalidade
extensiva e intensiva, e de outro, o indivíduo singular cuja reprodução
constitui a base do ser da reprodução social.

Lukács, em Para uma ontologia do ser social, explicita que são os atos indi-
viduais que põem as legalidades, as causalidades, pois os homens fazem
mesmo sem sabê-lo. A decisão individual, singular, que é tomada dentre
várias alternativas, implicará em consequências sociais, implicará em mo-
dificações da totalidade do ser social ou de uma totalidade parcial. As ten-
dências, objetividades, etc., do ser social, nascem da práxis humana, mas
seu caráter é, no todo ou em grande parte, incompreensível para quem pro-
duz. Pois, como vimos, essência e aparência não coincidem diretamente.

Lukács (2012, p. 345) aponta que todas as alternativas são concretas e


estão ligadas ao seu “aqui e agora”. E tal concreticidade “nasce de uma
ineliminável concomitância operativa entre o homem singular e as cir-
cunstâncias sociais em que atua” e que

[...] todo ato singular alternativo contém em si uma série de determina-


ções sociais gerais que, depois da ação que delas decorre, tem efeitos ul-
teriores (independentes das intenções conscientes), ou seja, produzem
outras alternativas de estrutura análoga e fazem surgir séries causais cuja
legalidade termina por ir além das intenções contidas nas alternativas.
Portanto, as legalidades objetivas do ser social são indissoluvelmente

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Paulo Henrique Furtado de Araujo

ligadas a atos individuais de caráter alternativo, mas possuem ao mes-


mo tempo uma coercitividade social que é independente de tais atos
(LUKÁCS, 2012, p. 345).

Com isso Lukács responde a questão (formulada pelos críticos de Marx)


de que as legalidades objetivas do ser social, as leis de tendência, elimi-
nariam a possibilidade de intervenção do indivíduo na história. De que,
portanto, Marx teria formulado um sistema mecanicista e determinista
de explicação do real, e não haveria em tal sistema lugar para incertezas,
para o acaso. Fica claro que Lukács torna inteligível a articulação entre as
legalidades do ser social, os atos individuais de caráter alternativo, que
geram tais legalidades, mas depois da ação que delas decorre aparecem
efeitos ulteriores independentes das intenções conscientes. Com isso fa-
zem surgir novas séries causais cuja legalidade vai além das intenções
contidas na alternativa. Ou seja, as legalidades objetivas do ser social
possuem uma coercitividade social que é independente dos atos indivi-
duais alternativos, ao mesmo tempo em que estão ligadas a ele.

Para Lukács, a ideologia é determinada ontologicamente, é o momento


ideal da práxis humana, apresenta-se no momento inicial, na finalidade
e na dinâmica de tal práxis (VAISMAN, 1989, p. 418). A ideologia só pode
ser fruto da realidade concreta, realidade sobre a qual ela pensa e atua.
Ela surge no “aqui e agora” social, que coloca problemas a serem resol-
vidos pelos homens, pois é produto do pensamento, da consciência do
homem. Quaisquer soluções apresentadas pelos homens aos problemas
socialmente postos, que orientem, operacionalizem, e tornem conscien-
te a prática social, tornam-se ideologias. Daí Vaisman dizer que qualquer
expressão humana pode se tornar ideologia. Em Lukács, ideologia não
se restringe a ser instrumento da luta de classes. Para a ontologia de
Lukács, portanto, ideologia e existência social são realidades necessa-
riamente entrelaçadas. Numa concepção ampla de ideologia, podemos
dizer que “onde quer [que] se manifeste o ser social há problemas a resol-
ver e respostas que visam à solução destes; é precisamente nesse proces-
so que o fenômeno ideológico é gerado e tem seu campo de operações”
(VAISMAN, 1989, p. 419).

O marxismo, para Lukács, desde sempre postulou de forma explícita ser


ideologia e ciência, pois não há contraposição ou exclusão recíproca en-
tre estes complexos. De tal forma que o engajamento político-ideológico

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017 59


Lukács e Mészáros, críticos de Weber

não traz, a princípio, limites para a cientificidade do pensamento. Mas


a compreensão correta da especificidade do autêntico marxismo, e da
ligação entre ideologia e ciência, para nosso autor, exige a compreensão
de que o marxismo institui uma nova ligação entre ciência e filosofia.

Comentários finais

Voltando a Weber, lembramos que ele constrói epistemologicamente toda


uma tipologia (seus “tipos ideais”). Ele tenta introduzir a estrutura social
na análise econômica a partir da ação individual. Logo, a ação individual
passa a ocupar um lugar chave na sua teoria, e ele passa a construir os
“tipos ideais” da ação social, destacando os diferentes tipos da ação social
econômica. Para melhor caracterizar a estrutura econômica, Weber recor-
re a alguns outros conceitos tais como “regularidades determinadas pelo
interesse”, relações “comunais” e “associativas”, “poder e domi­nação”,
racionalidade, etc. A complexificação das ações social e econômica leva
Weber para o âmbito do conceito de “instituições”, ainda que de fato
ele não use este termo. Em resumo: a estrutura hiper-racionalizante de
Weber parte do indivíduo, de sua ação social, passa pela relação entre dois
ou mais indivíduos que se transformam em relações sociais fechadas (por
exemplo: firmas), organizações economicamente ativas (por exemplo:
igrejas), organizações regulamentadoras (por exemplo: sindicatos) e orga-
nizações que impõem uma ordem formal (Estado liberal).

Weber defende que a Ciência Social deve ser livre dos juízos de valor.
Pois os valores, para ele, só podem ser explicados subjetivamente, e não
a partir da objetividade posta pela sociabilidade. Lembramos que, nes-
te aspecto, Weber se aproxima dos (por ele) criticados positivistas de
Comte, que procediam de forma semelhante. Mas quando formula o
objeto da sua pesquisa, Weber aceita a presença das prenoções. Vimos,
que a construção teórica de Weber, ao contrário do que ele imaginava,
está impregnada de uma ideologia (no sentido marxiano e luckacsiano)
muito específica, que se põe na defesa da lógica humano-societária do
capital. Vimos como, sistematicamente, ele próprio burla sua proposta
de autocontrole que visa impedir contaminação da pesquisa pelos va-
lores, preconceitos e prenoções do pesquisador – o que nos parece ser
a demonstração cabal da inviabilidade do assim chamado autocontrole.

60 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017


Paulo Henrique Furtado de Araujo

Por fim, seus tipos ideais, a teoria da ação econômica deles decorrentes,
seu entendimento das leis histórico-sociais enquanto probabilidades,
sua aceitação da teoria econômica marginalista, tudo isto o leva a um
tratamento estático da realidade social. De tal forma que a formação so-
cial do capital é vista como perene, para além da qual nada se coloca de
fato. O que conclui sua construção teórico-ideológica.

Notas

1 Tradução do autor do presente artigo. No original: “[...] liquidación de todos


los intentos anteriores de los importantes ideólogos burgueses enderezados
a comprender intrépidamente y sin preocuparse por el carácter contradictorio
descubierto las verdaderas fuerzas impulsoras de la sociedad, esta huida hacia
la seudohistoria ideologicamente arreglada, superficialmente concebida y
subjetiva y místicamente desfigurada, constituye la tendencia general de la
decadencia ideológica”.

2 Tradução do autor do presente artigo. No original: “En éstas há producido la


decadencia de la ideología burguesa un cambio tal, que ya no pueden engranar
unas con otras, y que el estúdio de una de ellas ya no favorece la comprensión
más profunda de la otra”.

3 Tradução do autor do presente artigo. No original: “[...] ya nada tienen que


ver una con otra, ni pueden prestarse una a otra auxilio o estímulo alguno.
Así, pues, si Max Weber realizó una reunión del sociólogo, el economista
y el historiador, pero juntando – sin espíritu crítico – esta sociología, con
esta economía y esta historiografía, era inevitable que la separación de
estas ciencias en el sentido de la división del trabajo subsistiera también en
su mente. Por el solo hecho de que un mismo individuo las dominaba, no
podían, con todo, engranar dialécticamente una en otra, no podían llevar al
conocimiento de las verdaderas conexiones del desarrollo social”.

4 Tradução do autor do presente artigo. No original: “[...] la igualdad formal de


todos los fenómenos, la equivalencia interna de todos los poderes históricos.
La doctrina weberiana de la ciencia postula, de modo consecuente en el
sentido del neokantismo, una abstención de juicio teórica absoluta frente a las
decisiones de la sociedad y la historia”.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017 61


Lukács e Mészáros, críticos de Weber

5 Tradução do autor do presente artigo. No original: “[...] expresa esta idea, esta
mezcla ecléctica de un relativismo extremo en el conocimiento y una mística
acabada en la acción, de la siguiente manera: ‘Aquí [o sea en la decisión de
cara a la acción, G.L.] luchan también diversos dioses unos con otros, y aun
para siempre. Es lo mismo que el mundo antiguo no desencantado todavía de
sus dioses y demonios, sólo que en otro sentido: lo mismo que el griego ofrecía
un sacrificio ora a Afrodita y luego a Apolo y cada uno ante todo a los dioses
de su ciudad, así sigue siendo, aunque en forma desencantada y despojada de
la plástica mítica pero interiormente verdadera de aquella actitud, hoy todavía.
Y por sobre estos dioses y su lucha campea el destino, pero no ciertamente
‘ciencia’ alguna’”.

6 Tradução do autor do presente artigo. No original: “[...] un individuo, muy


superior por lo demás tanto intelectual como moralmente al promedio, un
burgués de visión limitada”.

7 Registre-se que, tanto no que diz respeito à posição de Weber quanto


à semelhança entre Estado moderno e empresa capitalista, quanto com
a característica distintiva do capitalismo assentada na racionalidade e
calculabilidade, Lukács realiza uma autocrítica, pois em História e consciência
de classe (2003, p. 214-216) ele cita com aprovação e sem crítica duas passagens
de Weber que tratam destes casos. E no ensaio “A destruição da razão”, que no
momento estamos analisando, ele realiza uma crítica acurada. A este respeito,
vide a argumentação apresentada por Mészáros (2002, p. 416-417).

8 Mészáros (2004, p. 148) nos lembra que esta conversa relatada por Marianne
Weber ocorreu após a Primeira Guerra Mundial e que “o general Ludendorff era
um personagem de extrema direita, chefe do estado-maior de Hindenburg e um
dos primeiros defensores de Hitler”.

9 Mészáros (2002, p. 418) defende que a influência weberiana jamais foi de


todo superada por Lukács. Neste sentido, o uso que Lukács faz da categoria
manipulação, não só na sua ontologia, mas também ao longo dos vinte últimos
anos de sua vida, envolve a persistência dessa influência.

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Paulo Henrique Furtado de Araujo

Referências

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LUKÁCS, György. A destruição da razão. In: PAULO NETTO, José (Org.). Lukács. São
Paulo: Ática, 1981. p. 132-172.

LUKÁCS, György. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista.


São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Coleção Tópicos).

LUKÁCS, György. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de


Marx. São Paulo: LECH, 1979.

LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012.

LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.

LUKÁCS, György. Problemas del Realismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1966.

MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social: ensaios de negação e afirmação.


São Paulo: Ensaio, 1993.

MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.

PAULO NETTO, José (Org.). Lukács. São Paulo: Ática, 1981.

VAISMAN, Ester. A ideologia e sua determinação ontológica. Ensaio: Filosofia,


Política e Ciência da História. Ensaio, São Paulo, n. 17-18 (n.esp.), p. 399-444, 1989.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da Sociologia Compreensiva. 4. ed.


v. 1. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 1999.

VOLTAR Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 31-63 | jan.-abr. 2017 63


DOSSIÊ

A ciência política e a crise


no Brasil

Organização:
Marcus Ianoni
A ciência política e a crise no Brasil

Introdução

A atual crise brasileira tem sido um tema central de discussão na esfera


pública, inclusive na academia, nesse caso, especialmente nas ciências
sociais. Ela engendrou fatos e processos inéditos, começando pelas
manifestações de junho de 2013, passando pela impactante Operação Lava
Jato, pela disputadíssima eleição presidencial de 2014, pela forte recessão,
pelo protagonismo da grande mídia e, sobretudo, pelo segundo impedimento
presidencial sob a vigência da Constituição de 1988. A onipresença da crise
ocupa a atenção dos cientistas políticos e do pensamento político acadêmico
em geral, desafiando-os a decifrar essa nova e complexa realidade e a se
autoanalisar, avaliando o quanto seus argumentos e hipóteses de pesquisa
iluminam a compreensão das mudanças e dos impasses em curso no país.

Esta edição da Sinais Sociais traz três contribuições da ciência política sobre
a crise nacional, tratando dos seguintes objetos: participação, democracia
e coalizões. Uma pista de sua conexão cognitiva é o vínculo a abordagens
alternativas ao institucionalismo predominante na disciplina no Brasil; os
artigos consideram as instituições, mas de um modo distinto.

Luciana Tatagiba esclarece o ponto ao se referir à ciência política do instituinte,


que não se limita ao instituído. A ênfase heterodoxa no clássico diálogo
entre instituído e instituinte pode auxiliar a pesquisa acadêmica da política,
especialmente para examinar uma crise que parece explicitar os limites das
teorias, argumentos e métodos que a orientam. Esse primeiro artigo analisa
os protestos que eclodiram no processo da crise, visando, especialmente,
compreender a participação política da direita, que a autora prefere estudar
no plural e em ação, por ser um objeto de difícil definição e de manifestação

66 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 65-69 | jan.-abr. 2017


Marcus Ianoni

empírica variada: “direitas em movimento”. Ela questiona abordagens da


ciência política que se mostram incapazes “de compreender e antecipar a
mudança social”, limitação talvez decorrente da dificuldade da disciplina para
“explicar processos”. A realização de protestos por uma direita mobilizada
nas ruas, espaço participativo até então praticamente monopolizado pela
esquerda, foi uma das principais novidades ocorridas durante o primeiro
mandato da presidenta Dilma, principalmente a partir de 2013, embora os
dados da autora abarquem o período 2011-2016. Tatagiba relaciona a nova
direita ao contexto e estimula a avaliar seu impacto político-institucional.

Enfim, a autora defende que a ciência política incorpore as perspectivas


bottom-up, que observam processos instituintes importantes para a
compreensão dos resultados do jogo político e que podem operar tanto
para democratizar quanto para desdemocratizar. Protestos são formas de
participação típicas nas democracias, para apoiar ou se opor às mudanças.

Luis Felipe Miguel trata das fragilidades da construção da democracia no Brasil,


desde a crise da ditadura militar, que ajudam a explicar a ocorrência de um
impeachment sem claro crime de responsabilidade. Embora os desencontros
entre representantes e representados não sejam exclusividade da democracia
brasileira, o autor destaca que uma debilidade do regime vigente no país
está nos partidos, dada sua importância no governo representativo. O
sistema partidário é extremamente fragmentado e são fracas nos partidos
tanto a sua conexão com o eleitorado – que os mecanismos de barganha do
presidencialismo de coalizão reforçam – quanto a sua coesão interna.

A separação entre a inclusão política democrática e a imensa desigualdade


social é outro fator estrutural limitador da ordem democrática de 1988.
A superexploração da mão de obra tem sido uma tendência funcional

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 65-69 | jan.-abr. 2017 67


A ciência política e a crise no Brasil

para a afirmação do capitalismo no Brasil, operando como uma vantagem


comparativa diante da economia internacional.

Em relação à mídia de massa, Miguel frisa o seu papel atual central de


filtragem do debate público nos regimes políticos, especialmente ao cumprir
funções tipicamente observáveis na relação de representação política.
A concentração da propriedade nesse setor estratégico para o processo
democrático implica em poderosa tendência de dominação do discurso e da
agenda públicas pela “lei do mais forte”.

Além da organização deste dossiê, tenho a honra de participar como autor de


um artigo sobre as coalizões. O texto propõe uma abordagem ampliada, que
busca o conjunto de interseção entre as coalizões institucionais ou partidárias
e as coalizões sociais, para entender a articulação, costurada na ação e no
processo políticos, entre as decisões e as instituições públicas fundamentais
em determinados períodos e, por outro lado, os grandes interesses.

A partir de uma revisão bibliográfica do tema das coalizões nas ciências sociais
em geral e aplicadas ao Brasil, o terceiro artigo deste dossiê pergunta se o
suporte dado pelas coalizões à tomada de decisões do Estado provém apenas
do presidencialismo de coalizão, ou se a coalização também remete a uma
estrutura mais ampla, reunindo atores político-partidários e sociais e elites
da burocracia pública nos três poderes. Estes são arranjos que não costumam
operar tão formalmente quanto os da coalizão vista exclusivamente como
vinculação entre o chefe do Executivo e os partidos legislativos. O suporte
político e o conteúdo das decisões legislativas ou administrativas começam
e acabam nas preferências e nas coalizões, mediadas por partidos, entre
os representantes eleitos? Ou também são explicáveis por alianças que
unem e opõem, de um modo complexo e sempre contextualizado, atores

68 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 65-69 | jan.-abr. 2017


Marcus Ianoni

político-institucionais e sociais no processo decisório público? Tal coalizão


ampliada é impossível de ser apreendida apenas pelos instrumentos teóricos
e metodológicos que evidenciam o presidencialismo de coalizão, embora
eles sejam valiosos para explicar o processo decisório legislativo do sistema
político brasileiro.

Em relação à crise brasileira, Miguel destaca que, se a adesão das elites


às regras da democracia não fosse baixa, o Legislativo, diante da robusta
divergência em torno do impedimento, não teria se sobreposto à legitimidade
conferida pelas urnas. Nesse contexto, meu artigo sugere conceber o
impeachment como um processo não apenas alicerçado na endogenia político-
-institucional, mas também nas ações pertinentes à disputa de coalizões no
sentido ampliado. Dilma foi impedida por uma decisão formal do sistema
político, mas induzida, em termos sistêmicos, pela coalizão social e política
neoliberal, a “ponte para o futuro” das direitas em movimento.

Os três artigos abordam a crise nacional fazendo um diálogo entre a sociedade


(seus atores, processos e estruturas) e a esfera político-institucional. Diante de
uma conjuntura histórica que envolve o país em um enigma esfíngico, tanto
teórico quanto prático, os leitores podem encontrar nesse breve dossiê olhares
alternativos para a indispensável reflexão política.

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Luciana Tatagiba

Os protestos e a crise brasileira.


Um inventário inicial das direitas
em movimento (2011-2016)1

Luciana Tatagiba

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017 71


Luciana Tatagiba
Professora Livre-Docente do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), membro do Departamento de Ciência Política
e professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência
Política da mesma Universidade. Desenvolve pesquisas
e publica sobre: democracia e participação; relação entre
movimentos sociais e Estado; movimentos sociais e
ciclos de mobilização. Ao longo dos últimos três anos,
tem se dedicado à compreensão dos movimentos sociais
e protestos à direita. Integra a coordenação colegiada do
Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais
e Ação Coletiva (Nepac-Unicamp).

72
Resumo
O artigo apresenta um inventário inicial das direitas em movimento no
Brasil entre 2011 e 2016, com base na Análise de Eventos de Protesto
(AEP), uma ferramenta para o estudo das mobilizações. Nossa fonte
é o jornal Folha de S.Paulo e o catálogo de eventos foi construído em
uma base diária de eventos de protestos por todo o país. Através de
uma análise interpretativa dos dados, o artigo reflete sobre esse ator
emergente, as novas direitas, buscando inventariar suas manifestações
empíricas e sua relação com o nosso conturbado contexto político.

Palavras-chave: Participação. Protestos. Análise de eventos de protesto


(AEP). Mobilização à direita.

Abstract
This article presents a partial inventory of the right-wing movement in Brazil
between 2011 and 2016, based on protest event analysis (PEA), a tool for
studying mobilizations. Our source is the Folha de São Paulo newspaper,
and the event catalogue was built on a daily analysis of events throughout
the country. Through an interpretative analysis of data, the article reflects on
this emergent actor – the new right-wing groups – to inventory its empirical
manifestations and relationship with our troubled political context.

Keywords: Participation. Protests. Protest event analysis (PEA). Right-wing


mobilization.

73
Os protestos e a crise brasileira. Um inventário inicial das direitas em movimento (2011-2016)

Introdução

As ciências da sociedade estão sendo profundamente interpeladas em


sua capacidade explicativa pelas múltiplas e complexas facetas que
conformam o cenário da crise da democracia brasileira nessa quadra
histórica. Na palestra que proferiu no 40º Encontro Anual da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), al-
guns meses após o golpe jurídico-parlamentar que destituiu a presiden-
ta Dilma Rousseff, o sociólogo Gabriel Cohn refletia sobre o quão relevante
podem ser as ciências da sociedade diante da gravidade do momento que
vivemos e que tipo de conhecimento podemos produzir nessas circuns-
tâncias. Com sua particular eloquência sintetizou o desafio:

Quanto mais brutais os problemas que você enfrenta na realidade social


mais fina, mais matizada, mais percuciente deve ser a sua análise [...].
Não é que nós [cientistas sociais] sejamos inúteis, é que o desafio aumen-
ta. E esse conhecimento que nós podemos ter do mundo em que vivemos
nunca vai ser linear e direto; sempre vai percorrer vias indiretas. A cons-
trução do conhecimento em tempos brutais como o nosso vai exigir mais
sutileza do que precisão (COHN, 2016).

Acredito que esta seja uma valiosa pista para (re)orientarmos nossos
projetos e agendas de pesquisa na área de ciência política, tomando a
crise como uma oportunidade para uma solidária e efetiva autorreflexão
acerca dos nossos objetos de estudos, métodos e padrões de explicação.
Ao evidenciar os limites das abordagens tradicionais para apreender os
processos em curso, a crise da democracia brasileira nos convida a um
reexame da própria lógica da explicação na ciência política. Nossa inca-
pacidade de compreender e antecipar a mudança social parece estar de
certa forma relacionada à dificuldade que temos tido de explicar proces-
sos. Precisamos discutir o que temos explicado na ciência política brasi-
leira, como temos explicado, e o que temos deixado ao largo. Essa é uma
tarefa, como disse, para ser enfrentada pelo conjunto da ciência política
em nosso país, nas suas mais diversas áreas de concentração.

Nos limites deste texto, busco chamar a atenção para a importância de


irmos além da abordagem institucional para apreendermos os processos
que ocorrem na base da sociedade e que têm se mostrado decisivos na
configuração da crise política brasileira, pelo menos desde os protestos
de junho de 2013. Temos assistido a uma mobilização social inédita –

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Luciana Tatagiba

de um espectro que vai da extrema esquerda à extrema direita – que é


expressão visível de um processo mais longo e profundo de reconfiguração
das subjetividades políticas e das redes de relações, as quais orientam
o engajamento na vida pública e as escolhas políticas. Muitos desses
processos não ganharam ainda forma institucional, são fragmentados,
caóticos, sem direção política clara, sem organizações que os represen-
tem. São, nesse sentido, respostas em construção às profundas transfor-
mações do contexto socioeconômico, político e cultural vivenciado pelo
país, principalmente na última década. Sua natureza fluida e contradi-
tória torna esses processos difíceis de serem apreendidos pelos métodos
tradicionais de investigação da ciência política.

Quem são os atores coletivos que plasmaram esse turbulento ciclo de


mudanças? Quais as teias relacionais a partir das quais engendram suas
identidades coletivas? Quais são seus projetos políticos? Quais as re-
lações que estabelecem com o campo político institucional? Quais as
suas narrativas sobre a democracia? O que esperam do Estado? Que ten-
dências esses processos emergentes apontam para a reconfiguração das
relações entre sociedade civil e sociedade política no Brasil no médio e
longo prazo?

Estas são algumas das fascinantes questões que têm estado fora do radar
do mainstream da ciência política e que uma perspectiva bottom-up, sen-
sível às conexões entre cultura e política, pode nos ajudar a enfrentar.2
Acredito, ademais, que a área de estudos dos movimentos sociais e da
participação política pode encontrar aqui uma agenda de pesquisa pro-
missora, teórica e politicamente relevante.

Minha contribuição neste texto será refletir sobre esses movimentos


emergentes a partir da metodologia da Análise de Eventos de Protestos
(AEP), aplicada ao estudo dos protestos à direita no Brasil, entre 2011
e 2016. Uma das grandes novidades desse período de mobilização foi o
protagonismo das direitas nas ruas. Desde o ciclo de protestos contra o
regime autoritário, e que culminou na grande campanha pelas Diretas
Já, a esquerda brasileira tem dominado as ruas, com suas cores, músicas,
palavras de ordem e performances. Mas, em 2015, essa hegemonia da
esquerda foi quebrada na vigorosa campanha pelo impeachment. Os pro-
testos evidenciaram a existência de uma nova força política no Brasil, ao
mesmo tempo em que ofereceram o cenário para sua expressão pública.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017 75


Os protestos e a crise brasileira. Um inventário inicial das direitas em movimento (2011-2016)

Nas páginas a seguir, busco refletir sobre essa força social emergente,
buscando inventariar suas manifestações empíricas e sua relação com o
nosso conturbado contexto político. Começo discutindo algumas ques-
tões teóricas e metodológicas no estudo dos protestos à direita.

O estudo dos protestos e os protestos à direita

Protestos, movimentos sociais e protestos à direita

Os protestos são uma das formas de participação nas democracias con-


temporâneas, constituindo-se em um dos mais importantes meios de
que dispõem as pessoas comuns para agir em torno de causas, visando
provocar ou se opor a mudanças. Os protestos são modulares, ou seja,
podem se adaptar a diferentes atores, para defender diferentes causas,
em diferentes lugares e contextos políticos (TILLY; TARROW, 2015). O
que os distingue das demais formas, como votar, por exemplo, é que
nesse tipo de participação usam-se meios não convencionais ou não
institucionais para promover ou obstruir mudanças, a partir de um mo-
dus operandi no qual se combinam três lógicas: a lógica do número, a
lógica do dano e a lógica do compromisso (DELLA PORTA; DIANI, 2006,
p. 170-178). Ocupações, passeatas, marchas, boicotes, bloqueio de es-
tradas, escrachos e panelaços são canais de expressão e mobilização
que apontam para essa ampliação do repertório de participação polí-
tica. O protesto pode ser definido como uma ocasião na qual pessoas
se juntam para fazer demandas – por bens materiais ou valores – que,
se atendidas,afetariam o interesse de outras pessoas fora do seu grupo
(TILLY, 2008, p. 35).

Embora seja comum tomar protestos e movimentos sociais como sinôni-


mos, é importante distinguir as duas coisas. Para conceituar movimen-
tos sociais, podemos partir da definição de Mario Diani:

Eu defino movimentos sociais como redes de interação informal entre


uma pluralidade de indivíduos, grupos ou associações, engajados em um
conflito político ou cultural, sobre a base de uma identidade comparti-
lhada (DIANI, 2003, p. 301).

O que torna uma ação coletiva contenciosa um movimento social não é


a natureza da demanda ou o repertório de ação, mas um processo social

76 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017


Luciana Tatagiba

específico, no qual vemos atores engajados em conflitos, compartilhan-


do uma identidade coletiva e trocando recursos práticos e simbólicos
através de redes informais e voluntárias, em uma ligação que se estende
para além de eventos e campanhas específicas (DIANI, 2003, p. 299-319).
Para manter essa ação no tempo e conseguir os recursos necessários
à mobilização, não raro esses coletivos criam organizações. Portanto,
pode­mos ter um evento de protesto sem que ele seja parte do repertório
de um movimento social. E, da mesma forma, o movimento pode avan-
çar em várias das suas pautas sem promover mobilizações de protestos,
como nas estratégias de atuação por dentro do Estado (como o lobby e o
ativismo institucional) ou nas atividades de formação junto à sua base.

Essa distinção é relevante para nossa pesquisa porque permite esclare-


cer o uso que faço da expressão “protestos à direita”. Em primeiro lugar,
com essa expressão não estou pressupondo previamente a existência de
um movimento social de direita. Para fazer essa afirmação seria neces-
sário avançar muito mais na compreensão das conexões entre os vários
grupos e indivíduos que assumiram protagonismo nessa conjuntura
e as bases sociopolíticas e culturais que lhe deram sustentação. Seria
preciso identificar o quanto essas organizações e suas redes compar­
tilham recursos materiais e simbólicos e (se) forjam compromissos sob
a base de projetos e identidades compartilhados, para além da campa-
nha pelo impeachment da presidenta Dilma Roussef. Também seria im-
portante analisar se a campanha pelo impeachment produziu mudanças
no associativismo à direita e em qual direção, ou seja, se gerou novas
organizações, lideranças, conexões entre atores, inovação no repertório
etc. A hipótese aventada por Tilly é que uma campanha potencialmente
provoca mudanças no contexto político, nas campanhas seguintes e nos
próprios movimentos, ao alterar a estrutura de oportunidades políticas,
as conexões entre os atores e as performances confrontacionais
(TILLY, 2008, p. 88-115). Essa é uma hipótese de pesquisa que poderia
orientar novas investigações a respeito do tema. Mas, por hora não te-
mos ainda evidências empíricas para avançar nesse ponto.

Em segundo lugar, com essa expressão não estou afirmando que os parti-
cipantes dos protestos sejam de direita ou conservadores, ou seja, que se
reconheçam mutuamente como pertencentes a esse campo. Partir desse
pressuposto seria ignorar as várias pesquisas de opinião realizadas com

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017 77


Os protestos e a crise brasileira. Um inventário inicial das direitas em movimento (2011-2016)

os participantes durante os protestos, as quais mostram uma grande


heterogeneidade e ambiguidade no que se refere ao seu alinhamento
no espectro político ou sua adesão a valores.3 O que podemos captar
nas pesquisas de opinião, na análise documental e na observação dos
protestos é uma indignação com a corrupção das instituições da demo-
cracia, seletivamente dirigida ao PT, conformando um antipetismo com
forte apelo nas ruas. Mas, pouco ainda sabemos sobre os componentes
cognitivos, emocionais e morais que motivaram o engajamento dos par-
ticipantes nas mobilizações. Para avançar nesse ponto, as entrevistas em
profundidade e a etnografia política serão de grande importância, assim
como o diálogo interdisciplinar, em particular no campo da sociologia
das emoções.

Portanto, quando me refiro aqui aos protestos à direita, o faço em um


sentido estrito. Uso o termo para fazer referência a eventos coletivos e
públicos que foram convocados por organizações que se afirmam de di-
reita e/ou conservadoras, e que encontram nessas redes as bases infra-
estruturais para o protesto. Sua localização à direita resulta, portanto,
de uma posição relacional contra a esquerda, no âmbito estrito dessa
metáfora espacial.

As direitas (no plural) e a Análise dos Eventos de Protesto (AEP)

Os estudiosos de movimentos sociais temos nos dedicado a compreender


os movimentos sociais de esquerda que são escolhidos, no geral, a partir
de nossa empatia com a causa que defendem. Quando nos debruçamos
na análise das direitas em movimento, tendemos a nos mostrar menos
comprometidos a explicar e muito mais interessados em denunciar,
“procurando financiamentos secretos de empresas e/ou partidos”, no
geral negligenciando os fundamentos morais que os participantes apre-
sentam para explicar suas ações (JASPER, 2016, p. 94-95; HOCHSCHIELD,
2016). Essa é uma postura que bloqueia o acesso ao nosso objeto em sua
complexidade e deveria ser evitada. Como exorta Jasper (2016), preci­
samos aplicar nossas melhores ferramentas conceituais e a sofisticação
dos nossos métodos para nos aproximarmos desse objeto fugidio.

São grandes os desafios metodológicos e éticos envolvidos no estudo das


direitas em movimento, o que talvez explique a quase completa ausência

78 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017


Luciana Tatagiba

de estudos sobre o tema.4 Um desafio adicional na pesquisa tem a ver


com a dificuldade em definir o próprio objeto. Em um texto escrito em
1987 sobre as novas direitas em São Paulo, Flávio Pierucci alertava que,
para compreender as direitas, era preciso seguir suas constelações de
sentido e se deter às suas cambiantes combinações práticas. Partindo
da metáfora espacial, ele lembra que as variações não se reduzem à sua
distribuição ao longo do continuum, da extremidade até o centro do eixo,
com a extrema direita, a direita e o centro-direita. Há heterogeneidade
no interior de cada uma das vertentes. A árvore da direta é “uma árvore
composta por diferentes raízes”. Nossa tarefa, define Pierucci, é com-
preender sua genealogia e as diferentes concepções que abrigam, por
exemplo, a direita neoliberal, a direita conservadora, a direita das clas-
ses populares, a direita da elite empresarial paulista, etc. Elas atuam em
camadas sobrepostas, que vão se desenrolando em ritmos diferentes ao
longo do tempo e a partir de trincheiras variadas, e que operam com
relativa autonomia programática e organizativa (PIERUCCI, 1987). Com-
preender em que ponto se distanciam e por que motivos decidem coor-
denar sua ação é um dos temas centrais dessa agenda. É justamente o
reconhecimento dessa heterogeneidade que me leva a usar o termo no
plural, direitas.

Enquanto ainda não somos capazes de explicar o fenômeno que temos


diante dos nossos olhos, o caminho é inventariar as expressões empíri-
cas do nosso objeto, sugere Pierucci (1987). Avançar no registro e no re-
conhecimento dessas camadas, atores e discursos, desses fragmentos de
narrativa e de projetos que hoje disputam a direção das mudanças. Ele
fez isso a partir de 150 entrevistas com ativistas de campanhas malufis-
tas e janistas para um mergulho no universo cultural da extrema direita.
No meu caso, tenho tomado como unidade de observação os eventos de
protesto convocados pelas direitas, a partir da metodologia de Análise
de Eventos de Protestos (AEP).

Essa metodologia de pesquisa, criada no interior do próprio campo de


estudos de movimentos sociais, permite identificar as relações entre as
dinâmicas de mobilizações e o contexto político, captando a variação na
ocorrência e características do protesto ao longo do tempo, da área ge-
ográfica e dos temas/movimentos.5 Por isso, tem sido usada principal-
mente para testar hipóteses e refinar argumentos relacionados à teoria

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017 79


Os protestos e a crise brasileira. Um inventário inicial das direitas em movimento (2011-2016)

do processo político (HUTTER, 2014, p. 336), embora se adapte bem a


diferentes contextos de pesquisa e às perguntas do pesquisador.

A AEP consiste na produção de um catálogo de eventos de protestos,


a partir da definição de um conjunto de variáveis vinculadas às per-
guntas da pesquisa. A base de dados mais comuns são os jornais, em-
bora mais recentemente outras fontes estejam sendo utilizadas, como
os registros policiais e as informações dos meios de comunicação em
rede (HUTTER, 2014). Uma das desvantagens do método é o problema da
seletividade das fontes. No caso dos jornais impressos, os estudos mos-
tram que a cobertura varia em função do padrão editorial do jornal, do
ator que convoca o protesto, do tamanho do protesto e sua capilaridade
territorial, da natureza da reivindicação e do nível de dano envolvido
(HUTTER, 2014). Mas, apesar dos problemas, é um método que apresenta
vantagens em relação a outros, como por exemplo, o estudo de caso.
Parafraseando Koopmans (1995, p. 235), Hutter sugere que “é a pobreza
de alternativas que torna os jornais tão atrativos” quando se trata de
identificar padrões de protesto em nível nacional, em um longo período
de tempo e englobando todo tipo de tema (HUTTER, 2014), como é o caso de
nossa pesquisa.

Neste artigo, utilizo a AEP para inventariar as novidades à direita, para


captar as emergências, o que ainda não ganhou forma institucional, ou
que ainda não se afirmou como projeto coeso, mas que já está orien­
tando em sua forma difusa as disputas em torno da conformação da
vontade coletiva. Para usar os termos de Alberto Melucci, trata-se de ou-
vir as vozes e ler os sinais daquilo que a ação coletiva anuncia não como
projeto coeso e de direção clara, mas como campo de possibilidades da
ação (MELUCCI, 1996, p. 21). Nesse sentido, me associo a uma longa tradi-
ção de estudos sobre movimentos sociais no Brasil, que buscou iluminar
o momento em que novos personagens entravam em cena (SADER, 1988)
e apreender as pequenas transformações da experiência, assim como as
inovações institucionais que decorriam dessa aparição pública de novos
sujeitos na ação e no discurso políticos.

Por meio da análise de eventos de protestos busco identificar: i) conflitos


que estão mobilizando a cidadania; ii) fragmentos de discursos e narrati-
vas sobre a vida em sociedade que ainda não se tornaram projetos polí­
ticos propriamente ditos; iii) redes de solidariedade social até então em

80 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017


Luciana Tatagiba

latência e que, por não terem ainda forma organizacional definida, ten-
dem a escapar dos nossos radares usuais; iv) estratégias de ação ainda
não incorporadas em repertórios conhecidos e legitimados pelos grupos;
v) atores políticos em formação ou em luta por reconhecimento. Muitas
vezes pensamos os protestos como expressão de atores já consolidados
que fazem a ação política para buscar realizar os seus interesses, tam-
bém já claramente definidos. No meu olhar sobre os protestos, busco
compreender os eventos de ação direta nas ruas como um lugar no qual
também indivíduos se reconhecem como coletividades, ou seja, os pro-
testos como momentos de socialização política.

A base empírica que subsidia minha discussão é o banco de dados


sobre protestos que desenvolvo junto com a Profª Drª Andrea Galvão
(Departamento de Ciência Política/Unicamp) no âmbito do projeto de
pes­quisa, em curso, “Confronto político no Brasil (1998-2016)”.6 Coleta-
mos informações diárias sobre eventos de protestos em todo o terri-
tório nacional, cobrindo todos os temas incluindo greves, de 1998 em
diante, tendo como fonte de informação o jornal Folha de S. Paulo (iden-
tificado aqui como FSP), a partir da plataforma Access.7 Para a discus-
são das direitas em movimento, faço um recorte no banco em termos
temáticos e temporais. Vou analisar apenas os protestos à direita, entre
2011 e 2016.8 O recorte temporal que utilizo tem a ver com uma das
hipóteses que sustentamos em nosso projeto coletivo, qual seja, de que
com o fim do governo Lula, em 2010, entramos em novo ciclo nas rela-
ções entre Estado e sociedade no Brasil, com profundos impactos sobre
as práticas políticas contestatórias. O ápice do ciclo de mobilização no
governo Dilma, junho de 2013, e seus desdobramentos em 2015/2016 têm
a ver com essas mudanças anteriores que alteraram a configuração dos
atores e dos seus repertórios de luta.

As direitas em movimento (2011-2016)

Nosso banco possui um total de 2318 registros, entre 2011-2016. Isso não
significa dizer que houve 2318 protestos no período, uma vez que um
mesmo evento de protesto pode ter sido noticiado mais de uma vez no
jornal, o que ocorre por exemplo, no caso de greve (quando pode haver
notícias de seu início, de seu desenrolar e de seu término) ou quando se

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017 81


Os protestos e a crise brasileira. Um inventário inicial das direitas em movimento (2011-2016)

narram resultados de eventos ocorridos no passado recente. Quando fil-


tramos o banco por total de eventos ocorridos em todo o território nacio-
nal − ou seja, excluindo a repetição da notícia de um mesmo evento em
dias diferentes − chegamos a um total de 1861 eventos de protestos desa-
gregados por cidade. Em alguns casos, os protestos acontecem de forma
simultânea em várias cidades. Por exemplo, na megamanifestação pelo
impeachment em 15/03/2015 foram registrados eventos em 29 cidades.
Nosso banco permite trabalhar as informações desagregadas nas 29 ci-
dades ou como um evento único que se capilarizou em 29 cidades. No
geral, temos preferido trabalhar com os dados agregados por evento para
evitar superdimensionamento no número de protestos. Ou seja, no geral
contamos não como 29 eventos, mas como 1 evento. Quando agregamos
por evento convocado (ou seja, não contabilizando as cidades onde fo-
ram realizados) chegamos a um total de 1086 eventos de protestos, ao
longo de todo o período.

A distribuição temporal dos protestos destaca o ano de 2013 como um


pico de mobilização apenas comparável à Campanha das Diretas Já, em
1984, e ao impeachment de Collor, em 1992.

GRÁFICO 1: Eventos de protestos (2011-2016) – Agregado por evento

450
423
400

350

300

250
221
200
148
150
104 103
100 86

50

0
2011 2012 2013 2014 2015 2016

Fonte: Projeto de Pesquisa “Confronto político no Brasil (1998-2016)”, Nepac/Cemarx.

82 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017


Luciana Tatagiba

Como vemos nos dados relativos a 2016, a quantidade de ocorrências


(221), é bem menor do que em 2013, quando a crise política foi inaugurada,
mas apresenta um aumento de mais de cem por cento em relação a 2011,
o que mostra que a crise segue com vigor. O ano de 2014 é interessante: foi
um ano eleitoral, com um nível de polarização política só comparável às
eleições presidenciais de 1989. O que os estudos do confronto político en-
sinam é que em anos eleitorais tende a ocorrer uma diminuição das ações
diretas, o que nossos dados confirmam. Mas, essa literatura também nos
ensina que as eleições trazem oportunidades/ameaças para a ação coleti-
va (McADAM; TARROW, 2011). No nosso caso, vemos que a eleição ofereceu
uma extraordinária oportunidade para canalizar as insatisfações difusas
em direção à candidatura de Aécio Neves, dando importante aporte à
construção do antipetismo como projeto de mudança.

Combinando uma análise das reivindicações com as organizações que


convocaram os protestos, classificamos os eventos de protestos, em
relação à sua orientação política, como: direitas, esquerdas e neutro. Na
categoria neutro, estão os eventos classificados como “nada consta” (ou
seja, quando o jornal não informa a reivindicação) e aqueles que tive-
ram como reivindicações as questões salariais e melhores condições de
trabalho, por considerarmos que elas expressam demandas corporativas
que não se encaixam facilmente nessa metáfora espacial.

TABELA 1: Orientação política dos protestos por ano (2011-2016) –


Agregado por evento

Orientação 2011 2012 2013 2014 2015 2016 Total

126
Direitas 6 5 14 9 48 44

492
Esquerdas 46 31 107 69 81 158

349
Neutro 53 67 70 56 46 57

Fonte: Projeto de Pesquisa “Confronto político no Brasil (1998-2016)”, Nepac/Cemarx.

Como vemos na tabela acima, 13% dos eventos de protestos no período


(126 ocorrências) tiveram orientação política à direita.

Os protestos se concentraram nos anos de 2015 e 2016, com um aumen-


to não apenas no número de eventos, mas também na sua capilarida-
de territorial e número de participantes, ultrapassando a marca de um

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Os protestos e a crise brasileira. Um inventário inicial das direitas em movimento (2011-2016)

milhão de manifestantes nas 26 capitais e no Distrito Federal. Os maiores


protestos foram em 15/03/2015, 12/04/2015, 16/08/2015 e 13/03/2016,
quando mais de três milhões de pessoas, segundo a Polícia Militar,
foram às ruas defender o impeachment de Dilma Roussef. As cinco cidades
que mais abrigaram protestos à direita foram, por ordem: São Paulo,
Brasília, Rio de Janeiro, Curitiba e Belo Horizonte. Destaque para a cidade
de Curitiba, que não tem tradição em protestos de rua, mas se destaca
por ser a sede da operação Lava Jato. Os dados acerca da capilaridade do
protesto mostram que os protestos à direita se espalharam por todos
os estados brasileiros, em cidades de diferentes portes populacionais.

As performances confrontacionais das direitas incluem o repertório bá-


sico do movimento social moderno, com predominância de marchas ou
manifestações, paralisação/bloqueio de vias e ocupação de espaço pú-
blico. Mas a principal inovação das direitas foi o “panelaço” – ato de ba-
ter panelas em janelas ou sacadas dos edifícios, no geral acompanhado
de xingamentos. O primeiro panelaço registrado em nosso banco é do
dia 08/03/2015 durante pronunciamento da presidenta Dilma Rousseff
em cadeia nacional pelo Dia Internacional da Mulher. O panelaço ocor-
reu em 12 capitais, sobretudo nos bairros de classe média e alta, e foi
convocado por redes sociais e por aplicativos de conversas via celular
(FSP, 09/03/2015, p. A4). No dia 05/05/2015 houve novo panelaço em 10
estados e no Distrito Federal durante a veiculação do programa do PT
em rede nacional com a presença do ex-presidente Lula. Os panelaços
voltaram em 03/02/2016 durante pronunciamento da presidenta Dilma
Rousseff sobre o zika vírus na TV, embora em menor intensidade (FSP,
04/02/2016, p. A8). Em dezembro de 2016, já na presidência de Michael
Temer, um novo panelaço é registrado em seis cidades contra um pacote
aprovado na Câmara dos Deputados que diminuiria o poder dos juízes
na Lava Jato.

Uma mensagem não assinada, difundida pelas redes e aplicativos afir-


mava: “Vamos todos arrebentar as panelas de tanta indignação contra a
aprovação absurda que criminaliza os juízes e o MP, aprovada na surdina
na última madrugada. #panelaçohoje20h30! Mandem para todos os seus
contatos, grupos e redes sociais! #vetaTemer #STF.” Manifestantes grita-
vam também “Fora Temer”. (FSP, 01/12/2016, p. A6).

84 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017


Luciana Tatagiba

As demandas: regime político e autoridade

A partir desse ponto, vamos nos debruçar sobre as reivindicações que as


direitas apresentaram nas ruas. No nosso banco, a variável “objetivo do
protesto” visa recuperar essa informação a partir de duas colunas onde
registramos até dois objetivos, tal como relatados no jornal. Então, codi-
ficamos os objetivos em 39 itens, os quais depois são recodificados em
11 entradas. Fazemos esse procedimento para todos os registros do banco.
Essa forma de codificação nos permite trabalhar com a informação em
vários níveis de agregação. Podemos inclusive reagrupar os registros a
depender das perguntas específicas que orientam a manipulação dos
dados. Para esse artigo, uma primeira análise do conteúdo dos protestos
à direita mostrou que poderíamos reagrupar os registros em duas ca-
tegorias amplas como núcleos discursivos e simbólicos das direitas em
movimento: regime político e autoridade.

TABELA 2: Demandas dos protestos à direita (2011-2016) – Agregado por evento

Ano Regime político Autoridade Outros

2011 04 02 -

2012 01 03 01

2013 05 06 03

2014 04 04 01

2015 42 05 01

2016 38 05 01

Total 94 26 06

Fonte: Projeto de Pesquisa “Confronto político no Brasil (1998-2016)”, Nepac/Cemarx.

Vemos que dois temas concentram a agenda das direitas nas ruas: as
questões relacionadas ao funcionamento da democracia (regime político)
e a defesa da autoridade. Até 2014, há equilíbrio na distribuição dos
temas, o que se altera a partir de 2015 em função da campanha pelo
impeachment, na qual a questão da luta contra a corrupção do PT assume
centralidade. Mais do que a expressão numérica, o que importa nesses
dados é compreender o que está em jogo na conjuntura e quais as
demandas que as direitas se sentem encorajadas para levar à luz do dia.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017 85


Os protestos e a crise brasileira. Um inventário inicial das direitas em movimento (2011-2016)

Vejamos mais de perto o conteúdo das demandas, começando por abrir


o eixo regime político.

Regime político: CorruPTos

O que chama a atenção na tabela a seguir é que a corrupção como tema, per
si, não constitui o cerne dos protestos, não chegando a 1% das ocorrências:
o foco é o PT, seu governo e suas principais lideranças (com 82% do total).

TABELA 3: Regime político (2011-2016) – Agregado por evento

Demandas – Eixo Regime 2011 2012 2013 2014 2015 2016 Total

Contra a corrupção 4 - 1 - 2 2 06

Contra Lula, Dilma e/ou o PT - 1 2 2 22 14 44

Em favor do impeachment de Dilma - - - 2 14 17 33

Apoio a políticos e instituições - - 2 - 3 5 10

Fonte: Projeto de Pesquisa “Confronto político no Brasil (1998-2016)”, Nepac/Cemarx.

Quando analisamos as reportagens dos protestos contra a corrupção em


2011, é possível perceber um cansaço geral em relação à corrupção das
instituições democráticas, associada a uma percepção de piora das con-
dições de vida. Essa é uma pista que precisa ser mais bem trabalhada,
mas a impressão é que em 2011 havia um germe difuso de insatisfação
no estilo “que se vayan todos”, como vivido pela Argentina no começo
dos anos 2000, que no caso brasileiro foi sendo direcionado para uma
saída à direita.

Em 07/09/2011, Dia da Pátria, a FSP registra o primeiro protesto contra a


corrupção, informando que ele foi convocado pela internet e que, apesar
da alta adesão nas redes, levou poucas pessoas às ruas em Brasília, São
Paulo e Rio de Janeiro. Em Brasília, os manifestantes se declararam apar-
tidários, usaram vassouras para limpar a rampa do Congresso Nacional
e militantes com bandeiras do PSOL foram rechaçados. Em São Paulo,
houve dois atos na Paulista, um pela manhã, chamado pelo Movimento
Caras Pintadas, e outro à tarde, sem organização definida, no qual um
aposentado de 77 anos, com a ajuda de skinheads, queimou uma bandeira

86 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017


Luciana Tatagiba

do PT. Ex-funcionário da Varig, ele protestava pela demora do governo


em achar uma saída para os aposentados da companhia, que faliu (FSP,
08/07/2011, p. A6). As disputas pelo sentido político dos eventos já apare-
cem nas mídias sociais, como nessa troca de mensagens entre o senador
Álvaro Dias e o ator José de Abreu no Twitter: “Ligado ao PT, Abreu disse
que a ‘marcha está carimbada como de direita’. O senador respondeu
que o movimento não era nem de esquerda, nem de direita, ‘só contra a
roubalheira’” (FSP, 08/07/2011, p. A6). Houve ainda três protestos contra
a corrupção em 2011 e, nesses protestos, demandas contra a corrupção
da classe política apareciam misturadas com reivindicações de aumento
salarial, melhores condições de trabalho, saúde e educação. O alvo não
era apenas o governo federal, mas deputados e governadores envolvidos
em escândalos de corrupção.

No feriado religioso de 12 de outubro de 2011, protesto com cerca de


20 mil participantes em Brasília mereceu a capa da FSP, trazendo uma
foto na qual se pode ler uma faixa com os dizeres “País rico é país sem
corrupção”, uma paráfrase do slogan do governo Lula “País rico é país
sem miséria”, que ornou várias peças na campanha pelo impeachment
em 2015 e 2016. Houve também protestos em São Paulo e em mais
dez capitais. Segundo o jornal, apesar de pautas específicas, como mais
investimentos em saúde e educação, as bandeiras comuns foram o
apoio à Lei da Ficha Limpa e o fim do voto secreto no Congresso Nacional
(FSP, 13/10/2011, p. A6).

Uma das reportagens destaca ainda o apoio da Igreja Católica aos pro-
testos: “Igreja católica estimula fiéis a protestar contra a corrupção.
Arcebispos de São Paulo e Aparecida criticam políticos e defendem mani­
festações”. Os alvos seriam as denúncias de venda de emendas parla-
mentares na Assembleia Legislativa de São Paulo, envolvendo a base do
governador Geraldo Alckmin e os quatro ministros do governo de Dilma
Rousseff afastados por suspeitas de corrupção (FSP, 13/10/2011, p. A4).9

Nos protestos dos anos seguintes, o desejo por uma “faxina ética” am-
pla e irrestrita vai se deslocando para uma associação direta entre a
luta contra a corrupção e o combate ao PT. Essa associação aparece no
protesto realizado em 03/08/2012, durante o julgamento do Mensalão.
Eram apenas dez pessoas e elas seguravam uma cela no interior da qual
apareciam, vestidos com roupas de presidiários, cinco dos 38 réus do

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017 87


Os protestos e a crise brasileira. Um inventário inicial das direitas em movimento (2011-2016)

Mensalão, todos do PT, entre eles José Dirceu. O porta-voz do grupo era
um metalúrgico que dizia protestar não só por causa da corrupção, mas
porque o PT “não votava as questões importantes para os sindicalistas”.
Outro participante dizia protestar porque não conseguia se aposentar
como lavrador (FSP, 04/08/2012, p. A8).

Nos protestos de 2013, as reivindicações foram diversas, mas após a


repressão policial em 13 de junho, momento a partir do qual o protesto
se massifica, o tema da corrupção vai assumindo centralidade10 e a hosti­
lidade em relação às esquerdas se destaca na cobertura da imprensa. No
dia 15 de junho, começou a Copa das Confederações e Dilma foi vaiada
no estádio,11 apontando para uma nova fase dos protestos, na qual ex-
pressões misóginas e o ódio ao PT viralizavam nas redes e nas ruas. A
partir daquele ponto, a figura da presidenta Dilma Rousseff – seu corpo e
seus discursos – assume, ao lado da bandeira do PT e da pessoa de Lula,
a função de portador figurativo de significado (JASPER, 2016, p. 72), mo-
bilizando as energias para o protesto.12 Mas, foi a polarização gerada na
campanha de 2014 que ofereceu os caminhos para que os sentimentos de
ódio e ressentimento pudessem encontrar uma via de expressão política
performada numa luta do bem contra o mal. No feriado da Proclamação
da República, 15/11/2014, cerca de duas semanas depois da vitória de
Dilma Rousseff no segundo turno, 10 mil pessoas foram para a Avenida
Paulista pedir o impeachment da presidenta.

A associação entre antipetismo e luta contra a corrupção ofereceu uma pode­


rosa chave de leitura para os problemas brasileiros e, ao mesmo tem-
po, a solução para esses problemas. O frame “Fora CorruPTos” sintetiza
essa interpretação segundo a qual o problema do Brasil é a corrupção, a
causa da corrupção são os governos do PT e a superação do problema é o
“Fora PT”, “Fora Lula”e “Fora Dilma”.

O antipetismo não se dirige apenas ao PT, mas às esquerdas de uma


forma ampla. Ao atacar o principal partido de esquerda no Brasil, ele
visa desacreditar a esquerda como detentora de um projeto legítimo e
moderno de nação. Se o mal foi personificado no PT, seu governo e suas
principais lideranças (como se pode ver na linha 2 da Tabela 3, “Contra
Lula, Dilma e/ou o PT”), a linha 4 (“Apoio a políticos e instituições”) se
refere aos que travam o bom combate, e os nomes mais mencionados

88 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017


Luciana Tatagiba

são Rodrigo Janot, Polícia Federal, Ministério Público e Sérgio Moro, este
último elevado à condição de herói nacional na megamanifestação do
dia 13/03/2016.

As três principais organizações que concentraram a convocação dos pro-


testos foram o Movimento Brasil Livre (MBL), Movimento Vem pra Rua e
Revoltados Online. São organizações sem lastro social, criadas naquela
conjuntura para atuar na mobilização pelo impeachment.13 Nos bastido-
res, contudo, estavam redes com recursos e capilaridade social, como a
Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a Força Sindical,
o Comando Nacional dos Transportes e o financiamento de partidos
como o PMDB e PSDB.

A participação da Fiesp no impeachment se destacou nas ruas a partir de


setembro de 2015, com a campanha “Eu não vou pagar o pato”, que levou
para a frente de sua sede na Avenida Paulista um pato de 12 metros de al-
tura que representava a luta contra o aumento da carga tributária e pelo
impeachment. No dia 29 de março de 2016, um pato de 20 metros foi in-
flado em frente ao Congresso Nacional ao lado de outros 5 mil patinhos.
Sobre o uso do pato como símbolo da campanha, explica Paulo Skaf, di-
rigente da entidade: “O pato é aquele símbolo do bem para acabar com
o mal. É uma figura alegre, simpática e que, de uma forma respeitosa,
mostra uma indignação” (FSP, 30/06/2017, p. A06). Além de tomar as ruas
com bandeiras, adesivos e patos, a campanha foi também veiculada nos
principais veículos de imprensa. A campanha sugeria que não caberia
aos cidadãos arcar com os custos decorrentes da corrupção. Ao lado das
panelas e do Pixuleco, o “pato da Fiesp” virou um dos principais símbolos
do impeachment.14

Outra rede importante para veiculação das mensagens antipetistas foi o


movimento neopentecostal, que utilizou uma de suas principais estra­
tégias de mobilização, a Marcha para Jesus, para atacar a corrupção
e “defender o Brasil”. No dia 07/06/2014, acontecia em São Paulo a 22ª
Marcha para Jesus, com público total estimado pela PM em 250 mil mani-
festantes. O tema da Marcha foi “Conquistando para Cristo” e o objetivo
era afirmar “o valor do patriotismo”. Os manifestantes usavam camisa
verde-amarela, com o número 33, em referência à idade de Cristo. A es-
tética do ato guarda grande semelhança visual com os protestos pelo
impeachment, nos anos seguintes.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017 89


Os protestos e a crise brasileira. Um inventário inicial das direitas em movimento (2011-2016)

Já na 23ª Marcha para Jesus, ocorrida em 04/06/2015 em São Paulo, no


auge da campanha pelo impeachment, 340 mil participantes, segundo a
PM, pediam “faxina ética” e “fim da corrupção” (FSP, 05/06/2015, p. A5).
A narrativa neopentecostal da guerra contra o mal se encaixava perfei­
tamente com o espírito geral do antipetismo, conduzido na chave do
choque moral (JASPER, 2016, p. 124-127).

A defesa da autoridade: Quero meu país de volta

O segundo eixo temático em torno do qual ganham vida os protestos


à direita é a defesa da autoridade. Foram 26 protestos ao longo do perío­
do, uma ocorrência de apenas 25% do total, mas que contam uma histó­
ria sem a qual não compreendemos o quadro completo. Os protestos
em defesa da autoridade se dividem em dois temas: a defesa da família
(10 ocorrências) e a defesa da ordem (16 ocorrências).

As principais questões no tema defesa da família são a luta contra o abor-


to, a união civil entre pessoas do mesmo sexo e a descriminalização das
drogas. Enquanto, no eixo do regime, o MBL, o Vem pra Rua e o Revoltados
Online respondem pela convocação, contando com os recursos infraes-
truturais advindos de suas ligações com setores da burguesia paulista,
a centralidade no tema da defesa da família está com as organizações
religiosas, principalmente de origem neopentecostal, que constituem a
principal base social dos protestos. Como vimos, a Marcha para Jesus,
principal evento desse campo, que acontece na cidade de São Paulo des-
de 1993, assume como bandeira em 2014 e 2015 a luta contra a corrupção,
mas ao longo do período seu foco prioritário foi a defesa da família.

Em 23/06/2011, a 19ª Marcha para Jesus havia atraído um milhão de par-


ticipantes, segundo a PM, em protesto contra a decisão do STF que reco-
nheceu a união estável entre casais homossexuais e permitiu manifes­
tações em defesa da liberalização da maconha. Para o jornal, o ato foi
uma expressão evidente da força política da agremiação religiosa. Em
2013, a 21ª Marcha atraiu 500 mil manifestantes, segundo a PM, e voltou a
atacar os direitos dos homossexuais, com um ato de desagravo ao pastor
e deputado federal Marcos Feliciano (PSC-SP), presidente da Comissão
de Direitos Humanos da Câmara Federal.15 O ato contou com a presença
de figuras políticas de expressão nacional, como o governador de São

90 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017


Luciana Tatagiba

Paulo, Geraldo Alckmin e o ministro da Secretaria Geral da Presidência,


Gilberto de Carvalho, que em nome da presidenta saudava a liberdade
religiosa no Brasil. Ambos participavam do ato pela primeira vez, mas
apenas Alckmin recebeu orações dos líderes da Renascer em Cristo. A
matéria informa ainda que havia cartazes com as mensagens “Queremos
os mensaleiros na cadeia” e “Procurando Lula” (FSP, 30/06/2013, p. A18).

Também em junho de 2013, católicos e evangélicos tomaram as ruas em


defesa do Estatuto do Nascituro, que estava em discussão na Câmara dos
Deputados. O projeto dificultava a realização de abortos legais e criava
uma bolsa para as mulheres que decidissem seguir com a gravidez em
caso de estupro. No dia 04/06/2013, a Igreja Católica levou seis mil partici-
pantes (segundo a PM) à Marcha Nacional pela Vida, em Brasília, na qual
se lia a faixa “Brasil sem aborto”. Um dia depois, foi a vez de os evangé-
licos liderarem um público estimado em 40 mil pessoais, segundo a PM,
contra o aborto e o casamento gay. Horas antes do protesto, o Estatuto do
Nascituro era aprovado em comissão na Câmara dos Deputados.

O segundo tema no eixo autoridade é a defesa da ordem, com catorze


ocorrências ao longo do período. As questões principais aqui foram a
defesa da ditadura e seus agentes (com nove ocorrências), pela redução
da maioridade penal, contra a descriminalização das drogas e contra
greves e ocupações de escola.

As ações em defesa da ditadura causaram grande controvérsia, até


mesmo entre os organizadores dos protestos à direita. O contexto que
os trouxe à tona foi a instalação da Comissão Nacional da Verdade, em
16/05/2012. Esses protestos não tiveram número grande de participantes
e foram concentrados em São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro, que abri-
gou o maior número de atos. Um evento repleto de simbolismo foi a II
Marcha da Família com Deus pela Liberdade, realizada em 22/03/2014, que
celebrou 50 anos do golpe militar, levando 700 pessoas às ruas (segundo
a PM) em São Paulo e 150 no Rio Janeiro. Em 16/11/2016, já no contexto
pós-impeachment, 50 manifestantes quebraram vidros e invadiram a Câ-
mara dos Deputados em ato pró-intervenção militar no país e em defesa
de Sergio Moro e da Lava Jato. Uma das entrevistadas pelo jornal, que se
identificou como militante do Movimento Patriótico, disse estar ali para
defender os policiais mortos em São Paulo e no Rio de Janeiro: “Pelo direito
dos ‘manos’ ficam soltando os bandidos” (FSP, 17/11/2016, p. A1 e A4).

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017 91


Os protestos e a crise brasileira. Um inventário inicial das direitas em movimento (2011-2016)

Como dito, a defesa da ditadura foi um tema muito controverso, levan-


do ao rompimento entre as organizações que convocaram os protestos
e também junto aos militantes. Em todas as pesquisas de opinião rea-
lizadas junto aos participantes dos protestos à direita, era majoritária
a opinião de que a democracia era sempre a melhor forma de governo
(TATAGIBA; TEIXEIRA; TRINDADE, 2015). Portanto, a defesa da ditadura
deve ser lida no interior de um caldo de cultura mais amplo que tem a
ver com a defesa da autoridade repressiva do Estado. Ao lado do valor
do igualitarismo, a defesa de um Estado forte, capaz de manter a ordem
e a segurança, é uma das principais clivagens que permitem distinguir
direita e esquerda.

A ação de militantes do MBL contra a ocupação estudantil em escolas e


universidades e as campanhas pela redução da maioridade penal e pela
criminalização das drogas são importantes evidências nessa direção.
Mais do que o retorno à ditadura, o que parece mover os participantes
é a defesa de uma democracia controlada, a partir da ampliação da ca-
pacidade repressiva do Estado. Nas campanhas pelo impeachment, essa
adesão se traduziu em um fascínio pela demonstração do poderio mili-
tar, que resultou em selfies com policiais militares, fotos de famílias ao
lado tanques blindados e aplausos à presença da polícia na proteção aos
manifestantes pró-impeachment. A nomeação de Alexandre Moraes como
ministro da Justiça no Governo Temer e, posteriormente, como ministro
do STF expressam essa valorização da autoridade do Estado que tem
se refletido concretamente em um aumento da repressão policial aos
protestos, desde 2013.

A defesa da família e a defesa da ordem caminham de mãos dadas e


requerem um Estado repressivo para manter ou reconduzir as pessoas
e as coisas aos seus lugares. O frame “Quero meu país de volta”, lançado
no interior da campanha “Fome de mudança” da rede de restaurantes
Habib’s em apoio aos protestos pró-impeachment em março de 2015, sinte-
tiza com perfeição essa expectativa do retorno a um Brasil que teria sido
perdido durante os governos do PT. Para avançar na compreensão dessa
agenda regressiva que se expressa nas ruas, não apenas no Brasil, mas
em vários outros países de democracia consolidada que assistem ao mes-
mo avanço da hegemonia das direitas no plano político e cultural, preci-
samos investir muito mais na compreensão das razões da participação.

92 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017


Luciana Tatagiba

É preciso levar a sério o que as pessoas dizem quando se trata de justi-


ficar seu engajamento. Como afirma Hochschield, precisamos compre-
ender as emoções que subjazem à política. Para tanto, será um desafio
incontornável apreender a natureza cultural dos protestos, em suas di-
mensões cognitivas, emocionais e morais (JASPER, 2016). Para além da
adesão cognitiva aos projetos políticos, precisamos compreender o papel
que emoções como a raiva, o ressentimento, o orgulho, a indignação, o
sentimento de injustiça e a frustração desempenham na disposição para
o engajamento coletivo e nas formas que esse engajamento assume. O
diálogo com a sociologia das emoções pode ser um bom ponto de partida.
Da mesma forma, podemos nos valer do conhecimento acumulado pela
antropologia nos estudos sobre a relação entre religião e política. Temos
vários estudos sobre a importância das comunidades eclesiais de base
na construção de uma cultura e de um ativismo de esquerda no Brasil;
mas ainda quase nada sabemos sobre a relação entre o movimento neo-
pentecostal e a reconfiguração do ativismo à direita.

Considerações finais

Essa é uma pesquisa que dá seus primeiros passos e ainda há muito


trabalho pela frente para que possamos de fato compreender a partici-
pação política das direitas em movimento e seus impactos na trajetória
da democracia brasileira. Precisamos seguir na direção de uma descrição
densa dos processos de mobilização das direitas a partir de suas múl-
tiplas trincheiras e a forma como coordenam suas ações no esforço de
provocar ou resistir às mudanças.

Hoje há uma grande pressão pela explicação dos fatores que levaram à
emergência e ao protagonismo das direitas nessa conjuntura, assim como
para a compreensão de suas implicações para o sistema político de uma
forma mais ampla. No geral, essa pressão tem resultado em simplificações
que se voltam muito mais a atacar o fenômeno do que a buscar compreen-
dê-lo. Para entender as direitas e sua influência nessa conjuntura, precisa-
mos nesse momento nos aproximar pelas vias indiretas às quais se referia
Gabriel Cohn em sua conferência na Anpocs de 2016, combinando intui-
ção, sutileza e um metódico trabalho de descrição, a partir de uma criativa
combinação de métodos de pesquisa e novos diálogos interdisciplinares.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017 93


Os protestos e a crise brasileira. Um inventário inicial das direitas em movimento (2011-2016)

O campo disciplinar da ciência política pode oferecer preciosas ferra-


mentas nessa direção ao associar o estudo das instituições políticas com
a compreensão dos processos instituintes que ocorrem na base da socie-
dade e a forma como a interação entre ambos afeta tanto os processos
de democratização quanto os de desdemocratização (TILLY, 2013). Pre-
cisamos ampliar o escopo da ciência política integrando de forma mais
sistemática ao mainstream de nossa área as perspectivas bottom-up, que
lançam luz sobre as diversas formas pelas quais as pessoas comuns par-
ticipam das dinâmicas contenciosas compreendendo as causas e os im-
pactos dessas ações sobre a dinâmica e o resultado do jogo político. Em
tempos de crise e profunda incerteza, uma ciência política dos processos
instituintes se apresenta como um projeto vital para ampliarmos nossa
capacidade de compreensão e intervenção no real.

Notas
1 Uma primeira versão deste texto foi apresentada no 10º Encontro da
Associação Brasileira de Ciência Política, na mesa “As direitas no Brasil e na
América Latina: reemergência e significados”, no fórum “Conservadorismos,
fascismos e fundamentalismos” promovido pelo Penses-Unicamp, e no
seminário “Novas direitas: diálogos de pesquisa”, organizado pelo Núcleo de
Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (Nepac)/Centro
de Estudos Marxistas (Cemarx), no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH), todos em 2016. Agradeço os comentários e sugestões recebidos
dos colegas de mesa e da audiência. Também agradeço aos alunos da Pós-
Graduação em Ciência Política da Unicamp o entusiasmo com que debateram
as pistas que orientavam minha pesquisa, no exato momento em que as direitas
mostravam seu vigor nas ruas. O projeto tem apoio financeiro da Unicamp/
CNPq, através da concessão de bolsas de iniciação científica.

2 Por perspectiva bottom-up de análise, me refiro aqui ao esforço de


compreensão da política, seus participantes, instituições e processos que têm
como ponto de referência as relações entre sociedade civil e Estado. A adoção
dessa perspectiva nos convida ao exame das formas pelas quais as pessoas
comuns se envolvem com a política, vivenciam a democracia e disputam seus
termos nas interações que estabelecem com a esfera político-institucional.

94 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017


Luciana Tatagiba

3 Apresentamos essa discussão no texto Tatagiba, Teixeira e Trindade (2015).

4 No ciclo recente, destacam-se a análise das novas direitas presente no


livro Direitas volver!, organizado por Sebastião Velasco e Cruz, André Keysel
e Gustavo Codas (2015); as pesquisas realizadas pelo Grupo de Pesquisa
Associativismo, Contestação e Engajamento, da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, em Marcelo Kunrath Silva, Matheus Mazzilli Pereira
e Camila Farias da Silva (2016); e os estudos sobre as direitas e as redes
sociais, desenvolvido no âmbito do Ressocie, Grupo de Pesquisa repensando
as relações entre Estado e sociedade, do Instituto de Ciência Política (IPol)/
Universidade de Brasília, sob coordenação da Profª Drª Marisa von Bulow, em
Danniel Gobbi Fraga da Silva (2016) e em Tayrine dos Santos Dias (2017).

5 Para um balanço mais recente da AEP, ver Hutter (2014).

6 A principal contribuição teórica do projeto é promover a aproximação entre


a teoria do confronto político e a teoria marxista para a análise da ação coletiva
contenciosa, um diálogo que já começa a apresentar frutos na literatura
internacional (BARKER et al., 2013; DELLA PORTA, 2015) mas que ainda é
incipiente no Brasil.

7 Para montagem do banco de dados e treinamento da equipe de pesquisa


contamos com a consultoria de nossa colega de departamento, Profª Drª
Andrea Freitas, a quem agradecemos a generosidade. A inserção dos dados
ficou a cargo dos bolsistas de Iniciação Científica, Ana Clara Rocha, Gleisson
Beloti, Jeniffer Tavares, Larissa Melo e Leonardo da Silva, alunos de Graduação
em Ciências Sociais, aos quais agradeço o compromisso com o projeto.

8 Para uma análise da emergência de protestos à direita antes desse período,


remeto a Tatagiba, Teixeira e Trindade (2015).

9 No feriado do ano anterior, 2010, uma corrente da Conferência Nacional dos


Bispos do Brasil (CNBB) entregou panfletos aos fiéis em que defendia que não
se votasse no PT por causa das polêmicas em torno da descriminalização do
aborto.

10 No dia 20 de junho de 2013, o Datafolha apurou que mais de 50% dos


manifestantes presentes aos protestos estavam lá contra a corrupção e apenas
32% pela redução da tarifa (FSP, 21/06/2013).

11 Vale lembrar que a vaia também esteve presente abertura dos jogos Pan-
Americanos de 2007, quando Lula foi vaiado seis vezes e não fez a declaração
habitual de abertura dos jogos. A diferença é que naquela ocasião não se
ouviram palavras de baixo calão dirigidas à pessoa do presidente.

12 Como explica Jasper, por meio de portador figurativo de significado: “o


significado cultural passa da mera intelegibilidade (eu entendo as palavras
‘spray de pimenta’) à ressonância (fico nervoso quando percebo o efeito do
spray de pimenta e vejo um policial equipado com ele caminhando em minha

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017 95


Os protestos e a crise brasileira. Um inventário inicial das direitas em movimento (2011-2016)

direção). Para que um significado ressoe, ele deve envolver nossos sentimentos
e não apenas produzir uma definição de dicionário em nossa cabeça” (JASPER,
2016, p. 72).

13 Para uma discussão dessas organizações, remeto a Tatagiba, Trindade e


Teixeira (2015) e Silva (2016a).

14 A gíria “Pixuleco” foi adotada na mídia como sinônimo de “propina”,


“dinheiro sujo”, após ser utilizado pelo ex-tesoureiro do PT, João Vaccari Neto,
quando se referiu às propinas pagas por empresas contratadas pela Petrobras.
A própria Polícia Federal batizou de “Operação Pixuleco” a 17ª fase da Operação
Lava Jato. Em manifestações e protestos contra o PT, “Pixuleco” foi adotado
como nome de um boneco inflável que representava o ex-presidente Lula com
uma roupa de presidiário.

15 Marcos Feliciano virou alvo de protestos pelo país após ter seu projeto da
“Cura Gay” aprovado pelo colegiado da Câmara dos Deputados.

96 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 71-98 | jan.-abr. 2017


Luciana Tatagiba

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Caminhos e descaminhos
da experiência democrática
no Brasil

Luis Felipe Miguel

99
Luis Felipe Miguel
Professor titular do Instituto de Ciência Política da
Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de
Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).
Pesquisador do CNPq. Publicou, entre outros, os livros
Democracia e representação: territórios em disputa
(Editora Unesp, 2014); Feminismo e política: uma
introdução (com Flávia Biroli; Boitempo, 2014); e
Consenso e conflito na democracia contemporânea
(Editora Unesp, 2017).

100
Resumo
O artigo propõe uma reflexão sobre o experimento democrático
iniciado no Brasil a partir do fim do regime militar, observando
como diferentes desafios à construção da democracia foram
enfrentados e superados (ou não). Os desafios a serem conside-
rados são: (a) a implantação de uma institucionalidade política
democrática; (b) a inclusão social; (c) a democratização do debate
público; (d) a produção do consenso, entre os partícipes do jogo
político, quanto à adesão às regras democráticas. Embora díspa-
res, os quatro desafios são ligados entre si. A crise política que
levou à ruptura da democracia em 2016 revela a fragilidade na
resposta a todos os desafios.

Palavras-chave: Democracia. Instituições políticas. Mídia.


Desigualdades sociais. Golpe de Estado.

Abstract
This article proposes a reflection on the democratic experiment initiated
in Brazil since the end of military rule, observing how different challenges
to the construction of democracy were faced and overcome (or not). The
challenges to be considered are: (a) the implementation of democratic
political institutions; (b) social inclusion; (c) the democratization of public
debate; (d) and the production of consensus, among the participants in
the political game, regarding adherence to democratic rules. Although
disparate, the four challenges are interrelated. The political crisis that led
to the rupture of democracy in 2016 reveals the fragility in the responses
to all these challenges.

Keywords: Democracy. Political institutions. Mass media. Social


inequalities. Coup d’État.

101
Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil

Introdução

Ao longo de sua história, o Brasil viveu dois momentos sob uma


ordem política razoavelmente democrática. O primeiro vai do fim do
Estado Novo, em 1945, até o golpe civil-militar de 1964, o que a litera-
tura por vezes chama de “República Populista”. A despeito de proble-
mas relevantes, como a fraca inclusão eleitoral (dada a proibição ao
alistamento de analfabetos) e o estreitamento da competição política
(com a cassação do registro do Partido Comunista, em 1947), o figurino
da democracia liberal esteve, em linhas gerais, estabelecido ao longo
do período. Mas suas instituições nunca funcionaram sem sobressal-
tos. O país viveu seguidas tentativas de golpe, contragolpes e “golpes
preventivos”, com os militares intervindo constantemente, quer a
favor, quer contra a Constituição. Dois presidentes eleitos correram
o sério risco de não serem empossados (Getúlio Vargas, em 1950, e
Juscelino Kubitschek, em 1955); um se suicidou como única maneira de
debelar uma crise política devastadora (Getúlio Vargas, em 1954). Após
a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, a oposição da maior parte da
cúpula das forças armadas à posse do seu sucessor constitucional, o
vice-presidente João Goulart, levou a um verdadeiro golpe branco, que
foi a adoção do parlamentarismo. Em suma: o golpe de 1964 era uma
tragédia anunciada.

O segundo momento é a “Nova República”, que se iniciou com o fim da


ditadura de 1964. Uma longa transição, que durou mais de dez anos,
devolveu o poder aos civis, em 1985. Uma Assembleia Nacional Cons-
tituinte foi eleita em 1986 e uma constituição democrática foi promul-
gada em 1988. Em 1989, o voto popular voltou a eleger o presidente
da República. A nova Carta estabeleceu de maneira bastante completa
as instituições democráticas liberais, com um extenso rol de direitos,
soberania popular e separação de poderes. Ocorreram tensões milita-
res significativas apenas durante o governo José Sarney (1985-1990). As
reclamações constantes quanto à incompetência e corrupção da lide­
rança pública não estavam fora da curva, quando comparadas com
outras democracias eleitorais, mesmo as consideradas sólidas. Em sín-
tese, o experimento democrático iniciado em 1985 apresentava expec-
tativas mais alvissareiras do que o anterior.

102 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 99-129 | jan.-abr. 2017


Luis Felipe Miguel

Tudo isso ruiu rapidamente, a partir das eleições presidenciais de 2014.


O que parecia ser uma democracia em processo de “consolidação” (con-
ceito traiçoeiro que mantenho entre aspas para reduzir a contaminação
que gera)1 mostrou-se um regime vulnerável, cujos pilares – obtenção do
poder por meio do voto popular, separação de poderes, Estado de direito
– cederam no momento em que as pressões se avolumaram. A destitui-
ção da presidente Dilma Rousseff, provisória em maio e definitiva em
setembro de 2016, sem que houvesse crime de responsabilidade clara-
mente estabelecido, no bojo de um inequívoco golpe de Estado, marca
uma fratura crucial no ensaio democrático iniciado pouco mais de três
décadas antes.2

Este artigo busca apontar elementos que expliquem por que a democra-
cia brasileira se mostrou tão incapaz de defender a si mesma, rastreando
fragilidades na construção de nossa ordem política a partir do final do
regime militar. Seus eixos são quatro “desafios” à edificação da demo-
cracia – que correspondem a quatro seções do texto: (1) a implantação
de uma institucionalidade política democrática, capaz de conjugar tanto
a soberania popular quanto o respeito às minorias; (2) a inclusão social,
com a universalização dos recursos mínimos para o exercício da autono-
mia política; (3) a pluralização do debate público, permitindo o exercício
esclarecido dos direitos de cidadania, o que, evidentemente, passa pela
democratização dos meios de comunicação; e (4) a produção do consen-
so, entre os diversos atores sociais, quanto à adesão às regras do jogo
político democrático.

Não se trata de uma lista exaustiva, mas de quatro aspectos relevantes


para a produção de uma democracia que seja ao mesmo tempo estável
e digna do seu nome. Os dois qualificativos são necessários: o grande
desafio não é construir um regime que seja democrático apenas de
fachada ou uma democracia autêntica que não resista às intempéries.
Na breve conclusão, busco mostrar que as respostas que o regime da
Constituição de 1988 deu a estas questões foram insuficientes, a despeito
dos avanços consignados na Carta Magna, e que o aparente equaciona-
mento da questão militar não significou a efetiva superação dos dilemas
que já haviam posto abaixo a democracia brasileira nos anos 1960.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 99-129 | jan.-abr. 2017 103


Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil

A institucionalidade

A construção institucional costuma ser apontada como o aspecto mais


exitoso da nossa transição política. Caso ela seja analisada do ponto
de vista das duas dimensões da democratização apontadas por Robert
Dahl (1971), o Brasil estaria desenvolvendo uma das poliarquias mais
avançadas do planeta. A competição política é ampla, com praticamente
todos os interesses sociais sendo capazes de ingressar na disputa. A
inclusão também. Com a suspensão do veto ao voto dos analfabetos
(graças à Emenda Constitucional nº 25, de 15/5/1985) e a abertura do
alistamento, de forma facultativa, aos jovens de 16 e 17 anos de idade
(na Consti­tuição de 1988), a franquia eleitoral ficou próxima do limite
historicamente possível.3

A combinação entre separação de poderes e federalismo consignada no


texto constitucional é decalcada do presidencialismo estadunidense,
com algumas modificações pontuais, como a eleição direta do presidente
da República. Na letra da lei, há um sistema bastante elaborado de checks
and balances. Ao mesmo tempo, a Constituição abrigou a possibilidade de
ampliação da participação social no Estado – e, em especial, nos artigos
198, 204 e 206, abriu caminho para a formação de conselhos de políti-
cas públicas pelo país afora. Somados a experiências que nasciam em
paralelo, na efervescência de inovação institucional gerada pelo fim da
ditadura, como os orçamentos participativos, eles fizeram do Brasil um
exemplo de possível oxigenação das práticas democráticas, sempre cita-
do nos estudos internacionais.

As liberdades cidadãs foram garantidas na lei, com a abolição plena da


censura estatal (o último episódio rumoroso foi o da proibição do filme
Je vous salue, Marie, do cineasta francês Jean-Luc Godard, por pressão da
Igreja Católica, ainda em 1985) e amplo reconhecimento dos direitos de
associação e manifestação. Numa das inovações mais aplaudidas, am-
pliaram-se os poderes do Ministério Público, consagrado à defesa de
direitos coletivos e difusos.

O equacionamento da questão militar, que assombrara a experiência


democrática anterior, parecia mais complexo. A ditadura militar brasileira
não entrou em colapso (como, por exemplo, a Argentina). Ao contrário,
foi capaz de negociar a transição com enormes recursos. Com a morte

104 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 99-129 | jan.-abr. 2017


Luis Felipe Miguel

inesperada do civil escolhido para conduzir a redemocratização, Tancredo


Neves, e a posse de um sucessor sem legitimidade ou força política, a
posição dos militares se fortaleceu ainda mais. O ministro do Exército,
general Leônidas Pires Gonçalves, foi o homem forte da gestão José Sarney.
As forças armadas mantiveram muitas de suas prerrogativas; havia nada
menos do que seis pastas militares no primeiro escalão do governo.

Na Assembleia Nacional Constituinte, os militares defenderam sua


agenda, tanto por meios comuns a outros grupos de interesse, como a
realização de lobby junto aos parlamentares, quanto por meio de decla-
rações ameaçadoras e demonstrações de força (MIGUEL, 1999). Central
nesta agenda era a manutenção da capacidade de intervenção política, a
tal ponto que mesmo observadores com credenciais democráticas inata­
cáveis julgavam que seria necessário definir, na própria Constituição, os
limites da tutela militar, em vez do “mero voluntarismo de proibi-los
[os militares] de agir politicamente que deriva da velha ficção legal em
que aparecem como guardiães neutros e profissionais da legalidade e da
soberania nacional” (REIS, 1988, p. 35).

A redação do artigo 142, que trata das forças armadas, gerou tensões.
Os militares não abriam mão de dar a elas o dever de garantir “a lei e a
ordem” – mas “ordem”, no momento em que é colocada como entida-
de à parte da lei e, portanto, não remete simplesmente à ordem legal, é
um conceito abstrato que abre a porta para interpretações variadas. Isso
amplia o arbítrio dos militares. Uma autoridade legalmente constituí-
da, agindo dentro da lei, pode se opor a uma determinada concepção da
“ordem”; aliás, foi exatamente esse o discurso justificador das inúmeras
intervenções ao longo da República Populista.

Como solução de compromisso, o texto constitucional determinou


que as forças armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos
poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da
ordem”. Com isso, ao menos na letra da lei, os militares perdiam iniciati-
va política. Porém, como podiam ser acionados por qualquer dos poderes
constitucionais, estariam na condição de juízes de conflitos entre eles.
A ausência de uma especificação clara de como esse chamamento às
forças armadas ocorreria fez com que se temesse também que qualquer
autoridade de escalão inferior tivesse este poder.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 99-129 | jan.-abr. 2017 105


Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil

Os cinco anos de governo Sarney, portanto, indicavam o sério risco de


que o Brasil se encaminhasse para um regime democrático concorrencial
na forma, mas sob forte tutela militar, com a Constituição permitindo
uma leitura algo ambígua sobre seu papel. O nó se desfez de maneira
aparentemente fortuita, revelando que os militares tinham menos força
do que demonstravam. Sarney foi sucedido por Fernando Collor de Melo,
um político conservador, mas com um histórico de desavenças com a hie-
rarquia militar – em episódio significativo, havia chamado o general Ivan
de Souza Mendes, ministro-chefe do Serviço Nacional de Informações
(SNI), de “generaleco”, atitude temerária para qualquer político naquele
momento. Sua presidência foi marcada pelo desprestígio das pastas mili­
tares; o próprio SNI foi transformado numa secretaria sob comando de
um civil. Em 1999, o presidente Fernando Henrique Cardoso completou o
serviço, fundindo as pastas ministeriais destinadas a cada uma das três
armas em um único Ministério da Defesa, sob chefia civil, o que era uma
das principais medidas apontadas como necessárias para fortalecer o
controle do poder civil sobre os militares.

Mais importante ainda foi o fato de que, no mesmo momento histórico,


ocorriam a queda da União Soviética e o fim da Guerra Fria. Com isso, per-
deu-se a pedra angular do discurso de legitimação da intervenção política
das forças armadas. A “ameaça comunista” e o “inimigo interno” ainda
podiam ser invocados, mas com credibilidade cada vez mais pífia. Assim,
contra todas as expectativas, após a Assembleia Nacional Constituinte as
tensões do poder civil com os militares foram localizadas (sobretudo na
questão da memória da ditadura e da eventual punição dos responsáveis
por seus crimes) e não representaram ameaça à estabilidade política.

Inclusão política ampla, competição política quase irrestrita, checks and


balances entre os poderes, liberdades civis consignadas em lei, inovações
democráticas participativas e a ameaça de intervenção militar debelada
– o que mais o Brasil poderia querer? No entanto, o sistema político bra-
sileiro viveu de crise em crise, levando a dois impeachments presidenciais
(é verdade que muito dessemelhantes entre si) em pouco mais de duas
décadas, o que pode ser explicado por uma peculiar fragilidade das ins-
tituições representativas.

Parte do problema é comum às outras democracias concorrenciais. Os


regimes representativos são uma aproximação muito deficiente em

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Luis Felipe Miguel

relação aos ideais democráticos, com uma enorme quantidade de fato-


res gerando ruídos na relação entre representantes e representados, a
ponto de descaracterizá-la quase por completo – o peso do dinheiro,
a distinção social, o controle da informação, a especialização funcional, a
forma da separação entre esfera pública e privada (MIGUEL, 2014).
A partir do final do século XX, a crescente consciência desse problema
levou a uma crise de confiança nas democracias representativas, que
permanece sem resolução, quadro que é reconhecido por intelectuais
dos mais diversos mati­zes (NORRIS, 1999; DAHL, 2000; PHARR; PUTNAM,
2000; ROSANVALLON, 2006).

No Brasil, a situação é agravada pelo fato de que grande parte da lógica


do sistema político é apoiada em um agente – o partido político – que
sempre foi débil no país e, após a última redemocratização, mostrou-
-se debilíssimo. O sistema partidário do período 1945-1964 revelava uma
tendência à consolidação em torno do trio PSD-UDN-PTB. No período,
nas eleições para a Câmara dos Deputados, os três partidos reunidos
obtiveram entre 80% e 89% das cadeiras; a principal tendência do perí-
odo é o crescimento do PTB (NICOLAU, 2004). Já nas eleições ocorridas
durante a Nova República, excluída a de 1986 (em que o efeito do Plano
Cruzado provocou uma ampliação extraordinária da votação do PMDB),
as bancadas dos três maiores partidos, fossem quais fossem no momen-
to, somaram apenas entre 42% e 56% das cadeiras, descendo para meros
37% na mais recente, em 2014. Os índices de fragmentação partidária são
gigantescos e crescentes (MIGUEL; ASSIS, 2016). Os partidos são fracos
tanto porque despertam pouca lealdade do eleitorado quanto porque
possuem baixa coesão interna.

A “solução” que o sistema político brasileiro encontrou para resolver o


problema, de acordo com a visão predominante na ciência política, foi o
chamado “presidencialismo de coalizão”, conceito formulado pioneira-
mente por Sérgio Abranches (1988). Diante da fragmentação das banca-
das no Congresso, o presidente da República monta uma base de apoio
majoritária distribuindo nacos do aparelho de Estado aos parlamentares.
Em troca, comanda a agenda legislativa e é capaz de garantia a aprovação
das matérias de seu interesse. O efeito colateral, porém, é a redução ainda
maior do vínculo representativo, com as ações de governo dependendo
de uma permanente barganha autointeressada entre os detentores

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 99-129 | jan.-abr. 2017 107


Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil

de mandato, com pouca ou nenhuma referência aos compromissos que


teriam sido assumidos com os eleitores.

Durante parte do período, havia um ponto fora da curva – o Partido dos


Trabalhadores. O PT apresentava um claro compromisso com os movi-
mentos sociais e os trabalhadores e uma postura de intransigência quanto
a seus princípios que separavam com nitidez um “nós” e um “eles”
dentro do campo político. À medida que se tornou central às disputas
políticas, contribuiu para demarcar espaços diferenciados nos quais os
outros partidos se alojavam. Ele ocupou, assim, a posição de “espinha
dorsal” do sistema partidário brasileiro. Não se trata, convém frisar, de
algum arranjo próximo à clivagem classista entre partidos, de acordo
com o modelo vigente em muitos países europeus ao longo do século
XX. O discurso do PT logo privilegiou um elemento ético, vinculado à
moralidade na gestão pública, que se sobrepunha às questões de classe
e apresentava uma “lógica da diferença” (KECK, 1991) capaz de aglutinar
um conjunto socialmente heterogêneo de simpatias.

Com o progressivo triunfo do “pragmatismo” do PT, que o levou a se


adaptar às práticas políticas correntes no Brasil, a distinção que contri-
buía para balizar o sistema de partidos se esvaneceu. É possível abordar
este processo a partir das mudanças na plataforma partidária e nos pro-
gramas de governo (AMARAL, 2003), nas formas de organização interna
(RIBEIRO, 2010), nos padrões de recrutamento parlamentar (BOLOGNESI;
COSTA; CODATO, 2016), na geografia do voto (TERRON; SOARES, 2010),
no discurso de campanha (MIGUEL, 2006) e nas coligações partidárias
(MIGUEL; MACHADO, 2010). Com a vitória nas eleições presidenciais de
2002, o partido assumiu o comando do “presidencialismo de coalizão”,
entendendo plenamente que o preço a pagar para o exercício do poder
era a aceitação da forma de fazer política que os agentes tradicionais
conheciam e esperavam.

Neste processo, porém, corroeu-se o que restava de esperança de que o


sistema partidário brasileiro fosse capaz de expressar minimamente os
interesses sociais em conflito. A sabedoria convencional diz que a trans-
formação do PT de partido antissistêmico em partido da ordem favorece-
ria a estabilidade política. Talvez não tenha sido esse o efeito líquido – até
mesmo porque talvez o PT original não fosse, de fato, um partido antis-
sistêmico. O cientista político italiano Marco Damiani (2016) diferencia a

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Luis Felipe Miguel

extrema-esquerda antissistêmica, a esquerda radical “anti-establishment”


e a esquerda moderada reformista. Neste modelo, a maioria do PT original
talvez se enquadrasse na categoria “anti-establishment” e o partido repre-
sentaria a demonstração de que o sentimento contrário ao establishment
podia ser expresso dentro do sistema político em vigor. Sua conversão em
partido da ordem, sem um substituto para a posição que ocupava, redu-
ziu a estabilidade do sistema, ao revelá-lo como mais impermeável a
interesses populares.

A democracia e as desigualdades

Se o arcabouço institucional produzido pela Constituição de 1988 é em


geral considerado o grande triunfo da transição democrática brasileira,
a dívida social é o principal problema não resolvido. De fato, a principal
crítica ao modelo bidimensional da democratização de Robert Dahl é a
ausência de uma dimensão social, sem a qual os direitos de participação
e competição não têm como ser mobilizados de forma efetiva (ver, por
exemplo, WEFFORT, 1992). A luta pelo fim da ditadura, convém lembrar,
combinava pautas vinculadas ao retorno das liberdades políticas (anistia,
liberdades civis, eleições) com outras, de caráter econômico e social (con-
tra o arrocho salarial e a carestia). Os primeiros anos de governo civil
foram decepcionantes em relação ao segundo eixo de demandas. A nova
experiência democrática brasileira reproduzia o dilema central da ante-
rior: a convivência entre uma democracia formalmente inclusiva e uma
sociedade que permanece hierárquica, desigual e excludente ao extremo.

A natureza do problema que afeta o Brasil não é diferente daquela dos


outros países que combinam democracia política e economia capitalista.
Há uma tensão imanente entre o substrato igualitário da ordem demo-
crática, na qual a vontade de cada cidadão deveria pesar tanto quanto a
vontade de qualquer outro, e o funcionamento do mercado capitalista,
em que a capacidade de influência é determinada pela posse desigual de
determinados recursos: “Só por mágica os dois mecanismos podem levar
ao mesmo resultado” (PRZEWORSKI, 1995 [1990], p. 7). Por isso, nos países
centrais o avanço da democracia – em particular com a expansão paula-
tina do acesso ao sufrágio, do final do século XIX até meados do século
XX – correspondeu à elaboração de uma solução de compromisso entre

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 99-129 | jan.-abr. 2017 109


Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil

o poder econômico da burguesia e o poder político potencial da clas-


se trabalhadora, cuja melhor expressão foi o pacto social-democrata.
Embora permaneça um grau elevado de desigualdade material, entende-se
que há um patamar mínimo do qual não se deve descer e a provisão de
serviços públicos minora a incerteza existencial da classe trabalhadora.

Na periferia do mundo capitalista, as condições para a realização de


compromisso similar nunca estiveram dadas. A inserção na economia
internacional é, em grande medida, dependente da superexploração da
mão de obra. Com isso, fica agudizada a tensão entre inclusão política e
exclusão econômica e social. Os grupos dominantes brasileiros sempre
se mostraram avessos a quaisquer políticas que reduzissem as distân-
cias sociais – e, exatamente por isso, temeram a ascensão de forças polí-
ticas de base popular. As “distâncias” aqui mencionadas incluem, é claro,
o controle da riqueza, mas também outras hierarquias sociais, como a
racial e a de gênero, e o acesso a espaços sociais privilegiados, como
o ensino superior, as carreiras profissionais prestigiosas ou os próprios
cargos de poder político no Estado.

A fortuna do PT no governo federal é ilustrativa. Como visto, ao longo dos


anos o partido transitou para uma acomodação significativa com a polí­
tica tradicional, o que significou, em primeiro lugar, o reconhecimento
dos limites impostos à transformação política no Brasil pela capacidade
de veto exercida pelas elites políticas e econômicas. Tanto Luís Inácio
Lula da Silva, nos seus dois mandatos, quanto Dilma Rousseff, em sua
presidência interrompida, foram muito ciosos destes limites.4 Eles enten­
deram que era necessário muita prudência ao mexer com os privilégios
dos grupos mais poderosos: eles não deveriam ser afrontados e sim
acomo­dados. A acomodação entre a permanência dos ganhos dos podero-
sos de sempre com a atribuição de algumas vantagens aos mais carentes
foi a marca das gestões petistas, possibilitada por cenários econômicos
vantajosos que permitiam driblar, até certo ponto, o conflito distributivo.

Toda a elite política tradicional foi incorporada ao projeto petista. O


Estado brasileiro foi loteado generosamente entre os parceiros dos parti­
dos aliados, numa versão particularmente rústica da distribuição de
benefícios própria do “presidencialismo de coalizão” – o que se deve,
em grande medida, ao custo suplementar causado pela desconfiança
que os grupos conservadores continuavam a nutrir pelo PT. Os lucros do

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Luis Felipe Miguel

capital financeiro não foram reduzidos, antes pelo contrário. As grandes


corporações receberam generoso auxílio do Estado, tanto pelo enorme
investimento em obras públicas quanto pelo aporte dado pelos bancos
governamentais. Um elemento crucial foi a desmobilização do movi-
mento popular, instado a operar menos por pressão e mais pelo diálogo
com agente estatais. Ao desmobilizar aqueles que poderiam pressionar
por transformações mais profundas, o PT referendava a seriedade de
seu compromisso com a acomodação de interesses.

Mas sempre se tratou de uma acomodação: isto é, novos grupos e novos


interesses ganhavam um lugar ao sol, ingressando nos espaços privile-
giados dos quais, antes, estavam excluídos. A elite política tradicional
recebeu um opulento quinhão do aparelho estatal, mas o núcleo do
poder passou a ser ocupado por pessoas estranhas a ela – ex-sindica­
listas, ex-guerrilheiros. A redução da miséria foi feita sem comprometer
os ganhos imediatos do grande capital, mas é certo que alguns de seus
interesses eram prejudicados com a diminuição da vulnerabilidade so-
cial de amplos setores da população. É essa vulnerabilidade que permite
a superexploração da força de trabalho. O pleno emprego e as políticas
compensatórias de transferência de renda não são do interesse do capi-
tal, sobretudo em condições como as do Brasil.

As classes médias foram as primeiras a serem atingidas – e, não por acaso,


tornaram-se a ponta de lança da campanha pela derrubada da presidente
Dilma Rousseff. Uma parte significativa de suas vantagens advém da
presença de um largo contingente de pessoas dispostas a trabalhar por
preço vil, alimentando o mercado do emprego doméstico e dos serviços
pessoais (cabeleireiros, manicures, jardineiros, lavadeiras etc.). Os anos
petistas viram uma retração da oferta de trabalho doméstico, a extensão
dos direitos trabalhistas a esta categoria e a subida do preço relativo dos
serviços pessoais, refletindo a redução da vulnerabilidade social.

Ao mesmo tempo, havia a sensação de redução das distâncias sociais,


tanto pela simples diminuição da miséria quanto pelo desenvolvimento
de políticas públicas específicas – em particular, de democratização do
acesso ao ensino superior. As classes médias sentiam ameaçada sua dis-
tinção social e também a capacidade de legar aos filhos as vantagens
comparativas de que desfrutavam. De maneira geral, por uma confluên-
cia de fatores que não foram todos gerados pelo governo, os anos petistas

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Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil

foram percorridos pela sensação de que hierarquias seculares estavam


sob ameaça. As mulheres, os gays, lésbicas e travestis, a população negra,
as periferias, em suma, múltiplos grupos em posição subalterna passaram
a reivindicar cada vez mais o direito de se expressar na esfera pública,
questionando sua exclusão de tanto espaços, e a reagir à violência estru-
tural à qual estão submetidos.

O golpe de 2016 mostrou que o experimento democrático aberto em 1985


permaneceu, tanto quanto o anterior, refém da relação entre democracia
e desigualdades. No momento em que se considerou que o respeito às
regras democráticas estava ameaçando a reprodução das desigualdades
sociais, tal respeito foi retirado. Isto apesar da cautela, para não dizer
timidez ou mesmo pusilanimidade, com que os governos petistas puse-
ram em marcha um programa transformador.

A armadilha da situação consiste no fato de que as políticas que permi-


tem esse avanço cauteloso são as mesmas que reduzem a possibilidade
de resistir a um eventual golpe. É razoável pensar que o ponto de infle-
xão da política brasileira recente foi a mobilização popular em 2013, que
passou à história como “as jornadas de junho”. Se, no processo, com o
concurso determinante da mídia empresarial, elas vieram a ser ressig-
nificadas em chave conservadora, não há dúvida de que seu impulso
original se vinculava às frustrações causadas pelas insuficiências das
gestões petistas (cf. MARICATO et al., 2013; BRAGA, 2016). A percepção da
fissura entre o governo e sua base popular potencial animou os grupos
políticos mais à direita.

O resultado das eleições de 2014 foi um balde de água fria. A quarta vitó­ria
presidencial consecutiva da coalizão reformista liderada pelo PT, mesmo
nas condições mais adversas, fez com que seus adversários mudassem
de tática – na verdade, retornando à forma de proceder própria do perío­
do 1945-1964. Até então, o método era promover o maior desgaste possí-
vel do governo petista, com amplo apoio dos meios de comunicação de
massa, esperando o reflexo nas urnas. De fato, desde o início da crise do
mensalão (deflagrada com a publicação da entrevista do então deputado
Roberto Jefferson ao jornal Folha de S. Paulo, no dia 6 de junho de 2005),
foi um massacre midiático ininterrupto. Ainda assim, o eleito­rado reno-
vou o mandato de Lula e concedeu dois outros a Dilma Rouseff. A quarta
vitória do PT fez com que os derrotados buscassem outras formas de

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Luis Felipe Miguel

retirá-lo do poder, com pedidos de anulação das eleições, de cassação da


chapa vencedora e, enfim, de impeachment da presidente. Foi um retorno
ao padrão pré-1964.

Dilma Rousseff reagiu com mais recuos (capitulação diante do sistema


financeiro, ajuste fiscal conservador, concessão de mais espaço no gover-
no para os parceiros conservadores), alienando ainda mais sua potencial
base de apoio, mas sem apaziguar os adversários. Mais do que afastar
a presidente, o golpe de 2016 serviu para demonstrar que estão vivos
e atuantes os limites ao exercício da democracia, no que se refere ao
enfrentamento das desigualdades sociais no Brasil.

A mídia e o debate público

Em todo o processo da derrubada de Dilma Rousseff, os meios de comu-


nicação de massa desempenharam um papel fundamental. As grandes
redes de televisão, os principais jornais diários e as maiores revistas se-
manais de informação se engajaram de forma indisfarçada na produção
do desgaste da presidente e na legitimação de sua deposição, que ganhou
contornos de uma cruzada moral. Na ausência de estudos de maior fôlego,
ficamos na dependência do anedotário do processo (tal ou qual capa da
Veja ou da IstoÉ, os tuítes de determinado editor, o contraste na cobertura
das manifestações pró ou contra o impeachment, as falas dos comentaris-
tas da GloboNews) ou de interpretações feitas no calor da hora, lúcidas
mas ainda insuficientes (BENTES, 2016; LOPES, 2016; MORETZSOHN,
2016). Embora ainda não tenha sido analisado de maneira sistemática,
o viés da mídia foi claro para qualquer pessoa que tenha acompanhado,
mesmo que de forma despreocupada, a cobertura jornalística no período
que vai da proclamação do resultado das eleições, em outubro de 2014,
ao afastamento definitivo da presidente, em agosto de 2016.

Não se trata de uma intervenção isolada; o processo de derrubada da


presidente da República apenas iluminou com mais força uma presença
permanente no jogo político brasileiro (e não só brasileiro). Os meios de
comunicação de massa ocupam uma posição central nos regimes polí-
ticos contemporâneos, na medida em que são os principais filtros pelos
quais passa o debate público. É possível dizer que eles incorporam uma
dimensão da representação política, uma vez que os cidadãos comuns,

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Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil

impossibilitados de participar diretamente, são representados não ape-


nas na tomada de decisões, mas também nas trocas argumentativas e
na produção da agenda pública. Parte deste segundo aspecto da repre-
sentação é realizada pelos próprios parlamentares eleitos, uma vez que
trocas argumentativas e produção da agenda ocorrem também nos es-
paços formalizados do Poder Legislativo, mas outra parte se vincula ao
ambiente social mais amplo – e aí a mídia é crucial (MIGUEL, 2014). Por
isso, a qualidade da democracia é dependente do grau de abertura que os
meios de comunicação dão às diferentes visões de mundo e interesses
presentes na sociedade.

A literatura sobre mídia e política costuma distinguir “pluralismo interno”,


quando cada veículo de comunicação dá espaço a diferentes grupos, e
“pluralismo externo”, quando, ainda que os veículos estejam alinha-
dos a posições específicas, o sistema de mídia, em seu conjunto, reflete
uma diversidade de perspectivas (HALLIN; MANCINI, 2004). O ponto é a
pluralidade, uma vez que se reconhece que os ideais convencionais de
neutralidade ou imparcialidade não são exequíveis, pois toda narrativa
é socialmente situada (MIGUEL; BIROLI, 2011, cap. 1). A ética profissional
certamente impede o falseamento daquilo que se entende como sendo
a realidade objetiva, mas ainda assim há um vasto espaço para disputa
quanto aos valores que presidem a seleção, hierarquização e interpre­
tação dos fatos.

No caso do golpe de 2016, em muitos episódios, mesmo a ética jornalís-


tica mais elementar foi transgredida. O caso mais marcante talvez tenha
sido a reportagem de capa da revista IstoÉ do dia 6 de abril de 2016,
assinada por Débora Bergamasco e Sérgio Pardellas e intitulada “As ex-
plosões nervosas da presidente”. Com base em pretensas fontes anônimas,
afirmava que Dilma Rousseff estava descontrolada emocionalmente,
destruindo móveis em acessos de fúria e dependendo de remédios con-
tra esquizofrenia. Mesmo a foto que ilustrava a capa era manipulada:
uma imagem tratada por computador, tirada no momento em que a pre-
sidente comemorava um gol do Brasil na Copa do Mundo, era apresenta-
da como sendo o flagrante de um ataque contra algum subordinado (VE-
LOSO; VASCONCELOS, 2016).5 Porém, ao que tudo indica, esse tipo de fal-
seamento grosseiro, até pelas reações imediatas que provoca, tende a ser
menos significativo do que o trabalho cotidiano de dar mais relevância

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Luis Felipe Miguel

a algumas informações do que a outras, de priorizar determinadas per-


sonagens e determinados enquadramentos, de tratar de forma diferen-
ciada os fatos de acordo com a expectativa das consequências geradas
pelo noticiário. Resumindo, tende a ser menos significativo do que o plura­
lismo insuficiente da mídia brasileira, seja ele interno ou externo.

No Brasil, os meios impressos têm uma penetração muito inferior à dos


meios eletrônicos, o que se deve à alfabetização incipiente da popula-
ção e à penetração gigantesca e relativamente precoce da televisão.6 No
entanto, continuam sendo importantes para a elite política e para os
chamados “formadores de opinião”. O dado central é que tanto jornais e
revistas impressas quanto emissoras de rádio e de televisão são contro-
lados por uma pequena quantidade de grupos empresariais – que, com
raríssimas exceções, alinham-se aos mesmos interesses políticos.

Durante o processo de derrubada da presidente Dilma Rouseff, tal alinha-


mento foi patente. É importante observar aqui que os meios de comuni-
cação produzem o ambiente público de discussão política na medida em
que funcionam como um sistema integrado, dentro do qual a agenda
(os temas colocados para debate), as personagens (os atores sociais dig-
nos de atenção) e o enquadramento (o balizamento da compreensão de
um determinado problema) de cada veículo são confirmados por todos
os outros. Dito de outra forma: o pequeno pluralismo proporcionado, no
caso brasileiro, pela presença de certas publicações alinhadas às polí­
ticas do Partido dos Trabalhadores e de outras, ainda menores e menos
numerosas, posicionadas à esquerda do PT é anulado por sua exclusão
do sistema. Veja, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Rede Globo re-
percutem uns aos outros, gerando uma pauta comum, mas as reporta-
gens publicadas em CartaCapital ou Brasil de Fato são sistematicamente
ignoradas por eles.

Há um descompasso entre a importância da mídia na história do Brasil


das últimas (muitas) décadas – que se reflete na preocupação quase
obsessiva que as lideranças políticas têm com a gestão das narrativas
públicas – e o espaço que é dado a ela pela historiografia e pela ciência
política. Também o subcampo da pesquisa sobre mídia e política pre-
cisa se renovar para entender o momento atual. Ele surgiu a partir das
eleições presidenciais de 1989, sendo marcado pelas circunstâncias da
vitória de Fernando Collor de Mello. A mídia em geral e a televisão em

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 99-129 | jan.-abr. 2017 115


Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil

particular apareciam como imbatíveis; os resultados eleitorais eram qua-


se como reflexos automáticos de suas escolhas. Se a primeira vitória do
PT, em 2002, ainda podia integrar este modelo (pois naquele momento os
grandes veículos fizeram seu experimento de “imparcialidade” ostensiva
e optaram por obter compromissos de Lula com determinadas políticas,
em vez de bombardear sua candidatura), os pleitos seguintes o contra-
riaram sem margem de dúvidas. A reeleição de Lula e as duas vitórias de
Dilma se deram contra campanhas avassaladoras da mídia empresarial.
Assim, torna-se necessário entender tanto os limites da capacidade de
intervenção da mídia quanto as formas pelas quais ela ocorre fora do
momento eleitoral, como se viu em 2013 e em 2015-2016.

O fato é que o controle da informação permanece como um obstáculo


central para o funcionamento da democracia no Brasil, mas o problema
é praticamente ignorado, até porque os políticos que tentam colocá-lo
na agenda podem contar com uma reação feroz dos conglomerados de
mídia, com efeitos muito negativos sobre suas carreiras futuras. Nos
governos Lula e Dilma, propostas tímidas para democratizar o setor fo-
ram atacadas sem trégua, como sendo projetos para o retorno da censura
e a geração de um monopólio estatal da informação, e em geral não con-
seguiram ser levadas adiante.

Contra a democratização da mídia, as empresas brandem o valor da


liberdade de expressão, que é enquadrada como um direito individual.7
A liberdade de expressão permite que cada um fale o que quer e como
quer – lançando mão dos meios que estiverem ao seu alcance. Ou seja,
quem dispõe de televisão, jornal, rádio ou revista vai usá-los; quem não
dispõe, não chegará a eles, mas a liberdade de expressão estará vigoran-
do plenamente em ambos os casos. Assim, a liberdade de expressão, tal
como apresentada no discurso das empresas de comunicação e de seus
aliados, é a lei do mais forte.

Trata-se de uma visão limitada e incorreta do significado da liberdade


de expressão. Ela também é, de maneira central, um direito coletivo. Ela
é necessária para que o público ganhe acesso a ideias, valores, perspec-
tivas sociais e propostas divergentes, isto é, ao debate público em toda
a sua pluralidade. Quando se lê a defesa liberal clássica da liberdade de
expressão, nas obras de John Milton (1999 [1644]) ou de John Stuart Mill
(1991 [1859]), é esta compreensão que transparece. Sua preocupação

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principal era impedir a censura estatal e eclesiástica, o que reflete o con-


texto em que escreviam. Mas, como bem sabemos hoje, o controle dos
recursos de comunicação nas mãos de alguns poucos agentes privados
leva ao mesmo resultado: o empobrecimento da discussão, a invisibi­
lidade da dissidência, o silenciamento de múltiplas vozes. O que os donos
da mídia estão protegendo, quando invocam os valores da liberdade de
expressão e da liberdade de imprensa, é sua própria capacidade de domi­
nar o discurso público.

Às vezes, diz-se que o problema foi resolvido pelas novas tecnologias.


Os jornais e as emissoras de televisão ou de rádio são controlados por
poucos, mas todos podem criar blogs na internet ou contas em redes
sociais. Os que lutam pela democratização da comunicação estariam
“uma guerra atrasados”, como escreveu um colunista do jornal Folha de
S. Paulo (SCHWARTSMAN, 2015). No entanto, a capacidade de orientar a
atenção pública, definindo a agenda e os enquadramentos dominantes,
continua concentrada nos meios convencionais. A despeito da relevância
das novas tecnologias de informação e comunicação na formação de
redes, na mobilização de ativismos e na disseminação de percepções
alternativas da realidade, nelas predomina a reação à agenda e à leitura
do mundo social presentes na mídia tradicional.

Os meses do golpe ilustram com clareza a situação. Houve uma intensa


movimentação de contranarrativas nos espaços virtuais, em sites infor-
mativos independentes ou alinhados ao governo, nos blogs, nas redes
sociais. Por mais importante que ela tenha sido, não foi suficiente, nem
de longe, para equilibrar a disputa. Grande parte do esforço era destinado
apenas a denunciar o viés da cobertura da grande mídia. Além disso, as
contranarrativas tendem a atingir apenas um público específico, já pre-
disposto a elas, ao contrário do que ocorre com a televisão, o rádio, os
grandes portais de notícias ou os grandes veículos da mídia impressa.
Quando chegam a pessoas fora deste círculo, precisam enfrentar um
muro de desconfiança prévia, gerado exatamente pelo fato de que des-
toam do conhecimento comum do mundo, divulgado pelos meios que
contam com a legitimidade social para tanto – ou seja, o sistema de
mídia predominante.

Na internet, muitos debatem e tentam reinterpretar um repertório que


continua vindo maciçamente do jornalismo tradicional – e “maciçamente”

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 99-129 | jan.-abr. 2017 117


Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil

aqui pode significar algo como 90% de toda a informação presente nos
espaços de notícias online (McCHESNEY, 2013, cap. 6). Isso tem implica-
ções graves, tanto do ponto de vista da análise das conjunturas quanto
da ação política. Enfrentar o gargalo representado pelo controle da in-
formação por um punhado de grupos privados é condição indispensável
para a construção da democracia no Brasil.

São medidas complexas, em múltiplas dimensões, que vão desde a am-


pliação da concorrência, com o combate à concentração da propriedade,
até o estímulo à comunicação de grupos sociais e políticos minoritários,
inclusive com financiamento público para sua produção, como ocorre
em países do norte da Europa. Passa pela construção de um setor inde-
pendente de mídia pública, livre de pressões tanto do governo quanto
do mercado, que sirva para o balizamento dos valores profissionais do
jornalismo.8 Sem que haja uma receita a ser seguida, o horizonte é a
verdadeira liberdade de expressão, emancipada do poder econômico e
realmente capaz de servir ao aprimoramento da democracia.

As elites e as regras do jogo

Entre os quatro eixos aqui elencados para discutir o experimento de-


mocrático iniciado no Brasil em 1985, dois deles recebem em geral a
apreciação de que não foram equacionados: as questões da desigual-
dade social e o controle da informação. Pelo menos até o golpe de 2016,
os vereditos costumavam ser mais otimistas no que diz respeito à ins-
titucionalidade vigente – e, também, à adesão dos principais agentes às
regras da democracia política.

A ciência política estabelece que uma das condições da estabilidade demo-


crática é o reconhecimento, por todos os atores políticos relevantes, de que
a democracia é the only game in town (“o único jogo da cidade”, expressão
idiomática inglesa que poderia ser traduzida como “a única saída”) – não
há alternativa, a não ser jogar o jogo democrático. Ainda que os resultados
sejam frustrantes, todos envidam esforços para melhorar a própria po-
sição na próxima rodada, não para encontrar alguma maneira de virar a
mesa. Justamente por isso, como escreveu Adam Przeworski (1984 [1983]),
a democracia exige tolerância à incerteza: os resultados do jogo não são
sabidos de antemão, mas nos comprometemos a aceitá-los mesmo assim.

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Luis Felipe Miguel

Apresentado de outra maneira, trata-se do quesito de “intercambialidade”


de Robert Dahl (2006 [1956]), que ordena que os resultados do jogo po-
lítico sejam sempre respeitados, mesmo que o grupo dos vencedores e
o grupo dos perdedores troquem de posição. Daí deriva o que seria a
“comprovação” de que uma ordem democrática está consolidada: dois
processos de alternância no poder (HUNTINGTON, 1994 [1991], p. 261). Da
regra abstrata à operacionalização, o caminho é conturbado. Não há, nos
sistemas políticos reais, uma homologia plena entre os diferentes níveis
de conflito de interesses. Pensemos, por exemplo, nos Estados Unidos. A
disputa política corrente se dá entre republicanos e democratas, que há
décadas se alternam no exercício da presidência. Sob este ponto de vista,
a exigência de Huntington é cumprida e estamos diante de um regime
democrático perfeitamente consolidado. Mas é possível observar demo-
cratas e republicanos como sendo duas expressões ligeiramente dife-
renciadas dos mesmos interesses – do grande empresariado ou, melhor,
usando a expressão famosa do discurso de despedida do presidente
Dwight Eisenhower, do “complexo industrial-militar”. Nesse caso, a con-
centração da disputa em dois partidos tão próximos passa a ser um indício
do fechamento do sistema político e o teste da intercambialidade exigiria
que o poder de Estado fosse entregue a um agrupamento que afrontasse
os interesses da burguesia estadunidense e das altas patentes militares.

Ainda com todas essas precauções, não é possível negar que houve uma
mudança nítida entre o período 1945-1964 e aquele aberto a partir do fim
da ditadura militar. A República Populista foi uma “democracia sem de-
mocratas” (MENDONÇA, 2017), já que as principais forças políticas, à di-
reita, ao centro e à esquerda, manifestavam desconfiança e pouca dispo-
sição para respeitar as regras instituídas. Muitas lideranças políticas do
campo progressista descendiam do varguismo, uma escola que privilegia
o senso de oportunidade política. A direita, frustrada por sucessivas der-
rotas eleitorais, buscava nos quartéis as justificativas para impedir que
os resultados das urnas fossem respeitados. Não só os derrotados, aliás:
presidente no exercício do cargo, Jânio Quadros renunciou na esperança
de retornar com poderes de exceção. A renúncia levou a uma brutal crise,
resolvida com mais uma transgressão às regras do jogo, a adoção do par-
lamentarismo por imposição dos chefes militares. O golpe que derrubou
João Goulart, em 1964, foi aplaudido por muitos políticos que aceitavam
que as forças armadas “limpassem o tabuleiro” antes da rodada seguinte.

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Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil

O registro da Nova República se mostra diferente, já a partir do cenário


internacional. Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, a demo-
cracia está a caminho de se tornar um valor político cultuado por todos
– mas com sentidos muito díspares, de acordo com as preferências de
cada um. O fim da ditadura militar integra uma nova onda de democra-
tizações, mas na qual o que se persegue, mais do que o valor abstrato do
governo popular, é o conjunto de instituições próprio do mundo ociden-
tal. Trata-se de multipartidarismo, concorrência eleitoral, império da lei,
separação de poderes, direitos individuais e controle civil sobre as forças
armadas. Há uma definição muito mais clara de quais são as regras le-
gítimas do jogo e um novo ambiente discursivo, em que se torna muito
improvável que alguém combine de forma verossímil – por exemplo –
apelos à intervenção militar e protestos de respeito à ordem democrática.

Após o período inicial tumultuado, em particular durante a Assembleia


Nacional Constituinte, como já visto, o Brasil da Nova República pareceu
imune a tentativas de virar a mesa. Resultados eleitorais eram lamenta-
dos e mesmo desqualificados – por exemplo, com setores relevantes da
elite política e da mídia atribuindo as vitórias do PT à incompetência, à
ignorância ou mesmo à venalidade da base eleitoral que fora conquis-
tada com as políticas de transferência de renda iniciadas no primeiro
mandato de Lula. A revista Veja chegou a propor um plebiscito para sa-
ber se os beneficiários do Programa Bolsa Família deveriam ter direito de
voto (CABRAL; LEITÃO, 2013, p. 56). Mas, antes de 2014, não se registrou
nenhuma tentativa digna de nota de reverter o resultado de um processo
eleitoral, invalidando a expressão das urnas.

Estava assim configurado o apego às “regras do jogo”? Talvez nem tanto.


A elite política brasileira pode não ter agido para reverter resultados já
cristalizados nas urnas, mas seu repertório de ação sempre incluiu doses
generosas de práticas que nunca foram contempladas nas normas ofi-
ciais. O poder econômico condiciona fortemente as possibilidades de
êxito eleitoral, criando pontes privilegiadas por meio do financiamento
(legal ou ilegal) de campanhas, que se somam a outras, geradas pelos
lobbies ou pela corrupção de funcionários públicos, sem falar na dependên-
cia estrutural do Estado capitalista em relação ao investimento privado, que
faz com que os interesses da burguesia sejam automaticamente privile­
giados (OFFE, 1984 [1972]). Por outro lado, a manipulação da informação

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Luis Felipe Miguel

também foi sempre moeda corrente nas campanhas eleitorais brasilei-


ras, como visto na seção anterior.

Há um hiato entre as regras do jogo tal como consignadas na lei e as regras


do jogo aceito pelas elites. Este segundo é muito mais bruto, com pitadas
de vale-tudo. Seu limite, porém, era a expressão das urnas – os manda-
tos conquistados seriam respeitados. O impeachment de Fernando Collor,
em 1992, ocorreu sem que houvesse dúvida sobre a veracidade das acusa-
ções ao presidente – e muito menos sobre o fato de que elas constituiriam
crime de responsabilidade. Por isso, o processo foi saudado como uma
demonstração de amadurecimento da democracia brasileira. No caso de
Dilma Rousseff, foi o contrário. A derrubada da presidente foi definida no
dia seguinte à sua vitória, buscando-se apenas o melhor meio para efetivá-
-lo. Não foi um processo de impeachment desencadeado a partir da identi-
ficação de um crime; buscou-se um crime que justificasse o impedimento.

Não cabe, aqui, revisitar todo o processo – o papel desempenhado pelo


presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, notório gângster
político; as fragilidades da peça de acusação; a impossibilidade de consi-
derar as chamadas “pedaladas fiscais” como crime de responsabilidade.
O ponto é que ficou patente que importantes atores políticos estavam
dispostos a desprezar mesmo a regra mais básica do jogo, retirando da
presidência alguém que obtivera os votos populares, mas perdera a sim-
patia de grupos poderosos. O impedimento de Dilma foi, como gostavam
de enfatizar seus defensores, um “julgamento político”. Mas a ideia de
julgamento político sinaliza que, na ausência de um razoável consenso
sobre a presença de crimes de responsabilidade, e com setores impor-
tantes se alinhando à tese de que não há razão para uma interrupção do
mandato, o Congresso deve se abster de invalidar a legitimidade confe-
rida pelas urnas. Ou seja, impera a preocupação política de evitar uma
conflagração potencialmente incontrolável.

Foi rompido o respeito ao resultado eleitoral e também à Constituição


– com o Supremo Tribunal Federal, seu guardião, sendo incapaz de pro-
tegê-la, por covardia ou por conivência. Não é por acaso que o período
após o golpe é marcado por uma acentuada instabilidade institucio-
nal, da qual o exemplo mais extremo foi a crise ocorrida no começo de
dezembro de 2016, quando STF e Senado Federal entraram numa queda
de braço para saber quem mandava mais (o Senado ganhou aquele round).

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Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil

Revelou-se o sentimento geral, mesmo nas cúpulas dos poderes, de que


não há mais normas fixas vigentes, de que a institucionalidade se tornou
uma terra de ninguém e que é hora de medir forças, já que manda quem
pode (e, como conclui o dito popular, obedece quem tem juízo). A nova
regra do jogo é que as regras estão em aberto.

Conclusão

Diante deste cenário, ainda podemos falar em democracia no Brasil?


As respostas possíveis não se resumem a “sim” ou “não”: formam um
gradiente. Sob uma perspectiva muito exigente, não poderíamos falar em
democracia mesmo para o período anterior ao golpe de 2016. A capa­
cidade de influência política sempre foi distribuída de forma muito de-
sigual, a vigência dos direitos civis nunca esteve plenamente garantida
para a população preta, pobre e periférica. Se, para quem olha a políti-
ca com os olhos do ideal clássico, todos os regimes ocidentais deveriam
ser chamados de “oligarquias liberais” em vez de “democracias” (VIDAL-
NAQUET, 2002 [2000], p. 14), o Brasil acrescenta à mistura a sua desigual-
dade social gigantesca e a herança de uma sociedade que sempre presti-
giou relações hierárquicas e autoritárias.

Por outro lado, permanecem no Brasil muitos aparatos do regime repre-


sentativo liberal, isto é, do regime que a linguagem comum reconhece
como democrático no mundo contemporâneo. O processo eleitoral está
mantido, ainda que a deposição da presidente Dilma Rousseff lance uma
sombra sobre sua efetividade. A chamada “criminalização” do PT e da
esquerda em geral ainda é mais discursiva do que legal, de modo que a
ampla competição política está formalmente preservada. A despeito de
confusões como a descrita na seção anterior, permanece em vigor a se-
paração de poderes. O lawfare contra determinadas lideranças políticas,
em particular o ex-presidente Lula, mostra o enviesamento do sistema
judiciário, mas não foi abolido o preceito de que condenações só ocorrem
após processos na forma da lei. Há muitas ameaças aos direitos indivi­
duais e coletivos, desde a revogação da legislação de proteção ao trabalho
até a criminalização da docência cristalizada nos projetos do chamado
“Escola Sem Partido” (MIGUEL, 2016), mas eles ainda não foram anulados.
Os episódios de violência policial e de intimidação contra opositores e

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Luis Felipe Miguel

dissidentes se amiúdam, mas ainda podem ser considerados isolados


e provocam reações.

Para resumir, saímos de uma democracia muito insuficiente para um


regime pior ainda. Demos passos na direção de uma ditadura, mas não
trilhamos todo o caminho. Estamos entrando no finalzinho do gradiente,
no lusco-fusco, entre uma democracia que já não é e uma ditadura que
ainda não pode ser.

A Nova República não foi, tanto quanto a República Populista, capaz de


combinar o aprofundamento da democracia, que exige a resolução da dí-
vida social, com a estabilidade política. Há um trade-off, segundo o qual a
manutenção dos rituais da vida democrática implica em evitar promover
a redução das desigualdades, que corresponde a um teto, bastante baixo,
para a qualidade da democracia praticada no Brasil.

Para a ciência política conservadora, a estabilidade depende da contenção


da própria democracia. É a tese colocada em circulação pelo famoso
relatório da Comissão Trilateral sobre a crise dos regimes democráticos
(CROZIER; HUNTINGTON; WATANUKI, 1975) e que entrou na linguagem
corrente por meio do conceito sorrateiro de “governabilidade”. A gover-
nabilidade exige a submissão à correlação de forças real e, em nome dela,
a democracia precisa se autolimitar. Seus impulsos igualitários devem
ser refreados. O discurso realista da governabilidade leva ao paradoxo de
uma democracia que deve negar a si mesma. Como bem observou Anete
Ivo (2016), a conjuntura recente do Brasil expressa uma radicalização
deste entendimento.

É inevitável que, funcionando de forma mais plena, as regras democráti-


cas produzam medidas de combate à desigualdade. Afinal, é um regime
que se propõe dar poder às maiorias. A situação é mais dramática no
Brasil porque a tolerância de nossos grupos dirigentes à igualdade é mui-
to limitada. Mesmo a estratégia colocada em marcha pelos governos do
PT, conciliadora e avessa a enfrentamentos, mostrou-se demasiada para
eles. Seu programa – explicitado pelo governo que emergiu com a vitória
do golpe – é a ampliação da desigualdade e o reforço das hierarquias,
com o cancelamento de políticas sociais e a retirada de direitos.

Durante o experimento democrático de 1945-1964, o veto à mudança social


tomava a forma da intervenção militar ou da ameaça de intervenção

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Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil

militar. A Nova República pareceu superar o problema, alcançando, de


maneira quase inesperada, uma relativa paz nos quartéis. No entanto,
a ação conjunta do empresariado, das elites políticas tradicionais, dos
meios de comunicação de massa e de outros braços do aparelho repres-
sivo do Estado (Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal) alcançou
o mesmo resultado. Diante do veto dos setores dominantes, poucos se
levantaram em defesa dos procedimentos democráticos instituídos.

Como romper este círculo? Este é desafio que se coloca à imaginação


política. Como permitir o florescimento do ímpeto igualitário que a
democracia promove, sem que ele leve à ruptura da própria democracia?
É um desafio dramático, de proporções gigantescas. Mas ele não é facul-
tativo. As únicas opções são resolvê-lo ou se resignar a um país iníquo e
autoritário.

Notas

1 Para uma discussão, cf. Vitullo (2001).

2 Já há literatura disponível, que relata e discute com algum aprofundamento


a crise e o golpe, ainda que no calor do momento (ALMEIDA, 2016; FREIXO;
RODRIGUES, 2016; JINKINGS; DORIA; CLETO, 2016; ROVAI, 2016; SINGER;
LOUREIRO, 2016; SOUZA, 2016).

3 Com esta expressão, indico que as exceções – as crianças e jovens de


menos de 16 anos, os residentes que não dispõem de nacionalidade brasileira,
os incapazes civis (incluídos tanto os mentalmente insanos quanto os povos
indígenas não integrados), os conscritos e quem está cumprindo pena privativa
de liberdade, além dos cidadãos que foram condenados expressamente
à suspensão de seus direitos políticos – são em geral consideradas
“autoevidentes” e não há, com ligeira exceção apenas do caso dos conscritos,
nenhuma movimentação expressiva no sentido de revogá-las.

4 Uma interpretação da queda de Dilma aponta, como central, sua tentativa


de enfrentar o rentismo em favor do capital produtivo. Haveria aí outro limite
à ação governamental e ela pagou um alto preço por tentar ultrapassá-lo
(SINGER, 2016).

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5 Para um relato contrastante, por uma testemunha ocular, sobre o clima no


governo e as reações da presidente ao processo de impeachment, cf. Almeida
(2016).

6 Os dados mostram uma correlação muito significativa entre a entre taxa


de alfabetização em 1890 e a circulação atual dos jornais impressos (HALLIN;
MANCINI, 2004, p. 18). Ao que parece, a ampliação do letramento após
a disseminação do rádio e da TV tem impacto relativamente pequeno na
disseminação do consumo da mídia escrita.

7 Retomo e desenvolvo aqui argumentos sintetizados antes (MIGUEL, 2015).

8 Uma das primeiras iniciativas do governo Michel Temer, após o golpe,


foi na direção de desfazer o pouco que se havia caminhado nesta direção,
desmontando o projeto da Empresa Brasileira de Comunicações.

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Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil

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Para uma abordagem ampliada
das coalizões

Marcus Ianoni

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Caminhos e descaminhos da experiência democrática no Brasil

Marcus Ianoni
Professor Adjunto do Departamento de Ciência Política da
Universidade Federal Fluminense (UFF). É pesquisador do
INCT/Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento.
Tem pesquisado, na interface entre política e economia,
relações entre Estado, coalizões e desenvolvimento. Foi
Visiting Researche Associate da Universidade de Oxford
(Latin American Centre) entre 2015 e 2016, financiado
pela CAPES. É colunista do Jornal do Brasil e membro do
conselho editorial do site Brasil Debate.

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Luis Felipe Miguel

Resumo
O artigo explora, preliminarmente, o que o autor denomina
“abordagem ampliada das coalizões”, envolvendo as esferas
institucional e social. Tomando o Brasil como principal base
empírica para apoiar a referida abordagem, argumenta-se que
a análise dominante sobre coalizão na ciência política aplicada
à realidade brasileira dedica-se ao estudo do presidencialismo
de coalizão, mas o faz desconsiderando as influências objetiva
e volitiva de fatores exógenos às instituições políticas,
particularmente os efeitos das coalizões sociais sobre o conjunto
do Estado (o Executivo, o Legislativo e o Judiciário). É feita uma
revisão bibliográfica da literatura internacional e brasileira
das ciências sociais visando contribuir para a retomada da
reflexão sobre a perspectiva ampliada das coalizões, incluindo
os aspectos metodológicos da questão-chave. O autor argumenta
que tal abordagem pode trazer ganhos analíticos para entender
o presidencialismo de coalizão e a crise atual no Brasil.
Palavras-chave: Coalizões sociais. Presidencialismo de coalizão.
Estado. Ciência política.

Abstract
This article explores, preliminarily, what the author calls “expanded
approach of coalitions”, involving institutional and societal spheres.
Taking Brazil as the main empirical base to support such an approach,
it is argued that the dominant analysis on coalition in political
science applied to the Brazilian reality is dedicated to the study of
coalitional presidentialism, but it does that disregarding the objective
and volitional influences of factors exogenous to political institutions,
particularly the effects of social coalitions over the State (Executive,
Legislative and Judiciary). A bibliographical review of the international
and Brazilian literature on social sciences is carried out aiming to
contribute to the resumption of reflection on the broad perspective of
coalitions, including the methodological aspects of the key issue. The
author argues that such an approach can bring analytical gains to
understand coalitional presidentialism and the current crisis in Brazil.

Keywords: Social coalitions. Coalitional presidentialism. State. Political


science.

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Para uma abordagem ampliada das coalizões

Introducão

O caráter pujante da crise no Brasil, com acontecimentos e processos


inéditos e surpreendentes, como a nova conjuntura de participação da
classe média, aberta desde as manifestações de junho de 2013 nas ruas
das principais cidades; a grande envergadura da Operação Lava Jato,
lançada em março de 2014, trazendo à cena política o papel protagonista
de atores do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal; a dispu-
tadíssima eleição presidencial de outubro daquele ano; a recessão, desde
2015, e as políticas orientadas para o mercado e de austeridade fiscal e
monetária adotadas para enfrentá-la, ainda mais aprofundadas a par-
tir do processo do impeachment da presidenta Dilma Roussef, em 2016; a
ação impactante da grande mídia na esfera pública; enfim, todos esses
fatos relevantes e outros não mencionados propiciam uma oportunidade
única para uma autorreflexão da ciência política, como alguns eventos
acadêmicos e pesquisadores já vêm fazendo, para avaliar suas descober-
tas, argumentos, procedimentos e hipóteses de pesquisa em relação a
vários temas e questões.

Um conceito caro à produção atual da pesquisa em ciência política no


Brasil é o de presidencialismo de coalizão.2 Aqui se desatrela a noção de
coalizão – que possui enorme importância explicativa para a compreen-
são do que alavanca a ação e a decisão políticas – do conteúdo exclusiva-
mente institucional. Avalia-se que o entendimento do processo político
nacional, particularmente, mas não só, no Brasil, seja em contextos de
crise aguda, como a aberta em 2015, ou, por assim dizer, mais ordinários,
depende de uma visão ampla das coalizões, que aprecie, de modo con-
textualizado e também atento aos constrangimentos estruturais e insti-
tucionais, as relações sociais e partidárias de aliança para apoiar ou se
opor a certos cursos de ação do Estado, principalmente os que possuem
indubitável relevância para os grandes interesses em disputa. Embora o
escopo do artigo não seja abordar especificamente a conjuntura da crise
atual e as coalizões em cena, o argumento pode também instigar uma
reflexão política heterodoxa sobre as causas da crise política aberta em
2015 e do impeachment de Dilma Roussef, em 2016.3

O objetivo é fazer uma revisão bibliográfica sobre a ideia de coalizão –


especialmente em relação às suas conexões com o Estado – e resgatar

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Marcus Ianoni

procedimentos metodológicos para a pesquisa empírica da acepção


ampliada dessa noção, entendida como aquela que busca integrar duas
perspectivas, a sociopolítica e a institucional.4 Há uma preocupação
teórica-explicativa com a abordagem ampliada das coalizões, mas, para
respaldar, com base na experiência, a reflexão sobre os nexos entre as
duas perspectivas mencionadas, várias passagens do texto contêm
referências especiais ao Brasil atual. Ou seja, pretende-se aqui revisitar a
literatura política explicativa, empiricamente lastreada, sobre o impacto
no Estado das coalizões em sua acepção ampla, para o que a realidade
brasileira será uma das principais fontes.

A abordagem dominante da ideia de coalizão na literatura de ciência


política sobre a realidade brasileira desenvolveu-se na área de estudos
legislativos.5 Ela apoia-se em um olhar exclusivamente institucionalista,
que, em alguma medida, pode ser reducionista, porque sua análise tende
a desconsiderar ou a tomar como dadas a sociedade, a economia e a con-
juntura nacional. Uma coisa são as instituições (dimensão inegavelmen-
te relevante da análise política), outra é a perspectiva demasiadamente
endógena da abordagem neoinstitucionalista hegemônica. Aposta-se
aqui que, se o pouco considerado universo exógeno às instituições fosse
mais incorporado, a percepção da ciência política sobre as coalizões
insti­
tucionais poderia enriquecer-se. Inversamente, se as abordagens
sociopolíticas, principalmente as de veio (neo)marxista, encadeassem
mais adequadamente as instituições do Estado e as ações dos atores
coletivos, como os partidos e outros, a noções amplas como classes, coa­
lizões de classe, pacto social, aliança, bloco histórico, bloco no poder e
frente política, elas também poderiam reforçar sua contribuição para o
enriquecimento da pesquisa política acadêmica sobre coalizões. Devido
à hegemonia neoinstitucionalista que limita esse tema aos estudos
legislativos, a pesquisa sobre ele carece de um instrumental investiga-
tivo renovado. Essa renovação pode ocorrer inclusive a partir do reapro-
veitamento de linhagens teóricas hoje subutilizadas, mas o instrumental
deve ser aberto às descobertas das últimas décadas, saindo da atual zona
de conforto e se aventurando, no bom sentido, a nutrir-se na rica fron-
teira transdisciplinar que envolve a ciência política, a sociologia política,
a economia política e a história política.6 Se isso soa ecletismo, é que o
olhar holístico parece ser racional e vantajoso, embora sua operacionali-
dade seja desafiante.7

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Para uma abordagem ampliada das coalizões

Na chave teórica neoinstitucionalista, a ideia de coalizão é cara aos


estudos legislativos, que investigam o “presidencialismo de coalizão”.
Longe de desprezar as contribuições dessa abordagem para a compreen-
são das relações de apoio mútuo que vinculam o Executivo ao Legislativo
no Brasil, o artigo busca seguir um caminho não dicotômico, por avaliar
que a análise neoinstitucionalista dominante sobre os fundamentos ou
fontes de poder das decisões políticas tem desconsiderado a sociedade
civil e os interesses exógenos às instituições formais, que também
impor­tam para explicar tanto a origem quanto o funcionamento delas.
Na perspectiva neoinstitucionalista, os interesses sociais, que também
podem se expressar sob a forma de alianças, e não raramente o fazem,
não são examinados como variável independente relevante do processo
decisório, como são, por exemplo, a centralização ou a descentralização
do poder do chefe do Executivo e sua capacidade de controle da agenda
legislativa (LIMONGI, 2003).

Sem ignorar as variáveis institucionais do processo decisório do Legis­


lativo e do Estado como um todo, o que seria um equívoco teórico-meto-
dológico primário, o artigo recupera contribuições da sociologia política
e da economia política, especialmente as referentes às coalizões sociais,
visando inseri-las na explicação dos fatores que alavancam as decisões
políticas ou se opõem a elas, assim como também influenciam os pro-
cessos políticos, as lutas e as mudanças políticas. Ou seja, vejo as coali-
zões sociais como estruturas e agências conectadas, de modo complexo
e não necessariamente formalizado, à estrutura institucional do Estado
(incluindo o sistema representativo, mas não só) e às suas funções, para
usar a terminologia do estrutural-funcionalismo.8

Porém, é difícil pensar com rigor em uma concepção ampliada das coa-
lizões e operacionalizá-la, uma vez que, diferentemente da face partidá-
ria, a face sociopolítica tem, frequentemente, características informais,
além de componentes estruturais contextualizados (pertinentes à ordem
econômica, ao processo político, ao equilíbrio de forças entre os atores
sociais, à opinião pública etc.). As coalizões partidária e social são dis-
tintas e têm graus de autonomia relativa próprios, mas, como se argu-
menta neste artigo, também influenciam-se mutuamente de um modo
significativo. O objetivo aqui não é solucionar o problema complexo de
construção da ponte entre a coalizão partidária e a coalizão de classes,

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Marcus Ianoni

ou de definição de seu conjunto de intersecção. Não pretendo consumar,


com rigor teórico e metodológico, a superação das supostas tendências
reducionistas na ciência política institucionalista dedicada às coalizões
que suportam as decisões do Estado. Trata-se apenas de identificar o pro-
blema e recuperar algumas sugestões sobre como enfrentá-lo.9 Seria um
despropósito descartar as importantes contribuições dos estudos legis-
lativos, apenas desejo evocar alguns de seus limites, que derivam dos
ingredientes de suas análises.

Viso, principalmente, expor o que se supõe ser uma lacuna teórica no


mainstream da ciência política brasileira atual – o encerramento das coa­
lizões que fundamentam o poder político e as decisões-chave do Estado
em uma ilha institucionalista – e evocar a reflexão sobre uma perspecti-
va alternativa, de conteúdo ampliado, resgatando contribuições já exis-
tentes. Uma abordagem ampliada ou integrada e sintética das coalizões,
simultaneamente sociopolítica e político-institucional, precisa esclarecer
dois pontos teóricos e um metodológico. O primeiro elemento teórico
é que o leque de forças de sustentação do poder de decisão do Estado,
mormente as mais relevantes, abrange os atores políticos, sociais, eco-
nômicos e a burocracia pública, envolvendo todo o sistema político, as
instituições formais e as informais. O segundo aspecto é que determinados
padrões impactantes de conteúdo decisório das políticas públicas e de
mudança institucional, principalmente nas áreas-chave da economia e
das finanças públicas, surgem e se modificam, mesmo que em alguns
casos de modo nuançado, ao longo do tempo, conforme os arranjos e
rearranjos estruturais do capitalismo no espectro entre (neo)liberalismo
e intervencionismo, que passam, em cada país, pela cooperação e pela
disputa políticas do conjunto dos atores com recursos de poder relevan-
tes, e, no caso das democracias, dependem também, obviamente, dos
desdobramentos dos resultados eleitorais. Por fim, a pesquisa empírica
apoiada na perspectiva teórica aqui defendida sobre as alianças requer
uma metodologia. Aparentemente, estes três pontos não estão sendo
devidamente considerados na abordagem dominante que informa as
pesquisas sobre coalizão no Brasil. Dedicadas apenas à expressão institu-
cional das coalizões, essas pesquisas deixam de lado tanto os seus nexos
com os interesses sociais (que buscam influenciar decisões diversas, seja
sobre políticas públicas, mudanças na estrutura organizacional do Estado,

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 137


Para uma abordagem ampliada das coalizões

normas constitucionais ou as regras do jogo da competição política)


como também com a dimensão da economia política, crucial para a aná-
lise da dinâmica de cooperação e conflito em torno das decisões legisla-
tivas, administrativas e judiciárias relevantes, aquelas que efetivamente
perfilam a ação do poder público em determinados períodos.10

Desde que Abranches (1988) cunhou o termo presidencialismo de coalizão,


ele vem sendo muito pesquisado e debatido. Uma vez que os partidos
dos presidentes eleitos são minoritários no Congresso Nacional, poder
composto no Brasil por um grande número de legendas, a governabilidade,
no sentido de capacidade de implementação da agenda legislativa do
governo, depende de coalizões parlamentares interpartidárias que deem
sustentação política ao Executivo. O arranjo institucional destinado
a montar uma base de sustentação legislativa do chefe do Executivo
brasileiro é denominado presidencialismo de coalizão. A abordagem
político-institucional investiga os mecanismos e recursos através dos
quais o presidente da República constitui e mantém sua base partidária
de apoio no Congresso Nacional. As pesquisas sobre estudos legislativos
também têm comparado diferentes governos no manejo do presiden-
cialismo de coalizão.

Uma vez que o regime democrático brasileiro é uma federação com


liberdade partidária e os representantes na câmara baixa são escolhidos
pelo sistema proporcional, na modalidade de lista aberta, há grande pro-
pensão a um alto índice de fragmentação dos partidos na Câmara dos
Deputados e no Senado Federal. Essa fragmentação, de fato, é grande,
uma das maiores do mundo. Nenhum presidente eleito consegue ou tem
conseguido maioria parlamentar. Nesse contexto, o presidencialismo de
coalizão é a arquitetura político-institucional através da qual o Executivo
eleito opera visando governar com maioria no Congresso. Em regra, os
governos não têm optado por constituir gabinetes sustentados em coa­
lizões minoritárias (SANTOS, 2002; LIMONGI, 2006a).

Uma vez eleitos um presidente e um novo corpo de legisladores, em elei-


ções distintas, mas simultâneas, a abordagem político-institucional ajuda
a explicar o funcionamento do presidencialismo de coalizão. Ela evidencia
duas grandes características da estrutura institucional da Consti­tuição de
1988 que conferem poder de agenda ao chefe do Executivo. De um lado
da moeda, o presidente da República possui prerrogativas institucionais

138 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017


Marcus Ianoni

que, em tese, facilitam a governabilidade: a exclusividade de iniciativa


legislativa em áreas-chave, como tributação e orçamento, o direito a soli­
citar apreciação de matéria de seu interesse em regime de urgência e o
poder de decreto, através da edição de Medida Provisória (MP). Do outro
lado, com a formação de uma coalizão partidária no Congresso e também
com o suporte de governadores pertencentes às legendas da base aliada,
o governo tende a obter maioria para a aprovação das medidas de seu in-
teresse, uma vez que as lideranças dos partidos têm capacidade de disci­
plinar suas bancadas (POWER, 2010).

Certo. Porém, o que explica que candidatos com plataforma neoliberal


tenham sido eleitos em 1989, 1994 e 1998, e que em 2002, 2006, 2010 e
2014 elegeram-se candidaturas presidenciais encabeçadas pelo PT, com
um programa alternativo ao que hegemonizou os anos 1990? É possível
não admitir, por exemplo, que forças estruturais e cursos de ação prove-
nientes do ambiente de reformas orientadas para o mercado na América
Latina têm relação com o suporte dado pelas elites brasileiras à eleição e
ao impeachment de Fernando Collor de Mello e à dupla eleição de Fernando
Henrique Cardoso (FHC)?11 Será possível desconsiderar que a “Carta ao
povo brasileiro”, publicada por Lula na campanha eleitoral de 2002 em
meio à fuga de capitais, significou um compromisso de manutenção da
política macroeconômica estruturada em 1999, como forma de acalmar
o mercado? E o que é o mercado, tão mencionado pelo jornalismo eco-
nômico e pelos políticos eleitos, mas praticamente ausente das análises
do presidencialismo de coalizão? Será o mercado, ou o grande capital,
um oceano que, embora exista, é dispensável para o entendimento da
ilha, a coalizão de governo entre o chefe do Executivo e o Legislativo?
Como negar um caráter estrutural à onda rosa, que emergiu em vários
países latino-americanos nos anos 2000, inundando-os de renovação, ex-
pressando a busca de uma alternativa à crise das políticas neoliberais
(RODRIGUEZ, 2014; CHODOR, 2015)? Se as agendas governamentais, as
políticas públicas e as instituições passam por metamorfoses contextua-
lizadas, com intensidades e dimensões variadas, associadas a interesses
sociais – frequentemente articulados e agregados por atores coalizados
hierarquicamente em torno de certas demandas ou, em alguns momen-
tos, apresentando dificuldades de composição entre si –, como é possí-
vel prescindir da conjuntura, a começar pela econômica, e da sociologia

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 139


Para uma abordagem ampliada das coalizões

política para analisar o sistema político, inclusive seu funcionamento in-


terno e seus aspectos formais?

Por que PSDB e PT polarizaram seis eleições presidenciais, de 1994 a 2014?


Isso tem a ver com a onda neoliberal que alcançou a América Latina nos
anos 1990 e com as suas contradições e crises. Tais movimentos dizem
respeito às recorrentes oscilações estruturais entre economias de mer-
cado e economias coordenadas, que tanto têm caracterizado momentos
históricos internacionais e nacionais, como também ocorrem de modo
particular em cada país, a depender, entre outros fatores de maior rele-
vância, do comportamento dos atores e das coalizões que se formam e
lutam entre si no processo político de apoio ou de oposição a esses dois
grandes modelos de capitalismo. Grosso modo, essas coalizões confor-
mam a direita e a esquerda, os conservadores e os progressistas, os libe­rais
e os social-democratas (Europa), os republicanos e os democratas (EUA)
(JOHNSON, 1982; HALL; SOSKICE, 2001).12

Nesse movimento político e ideológico, o comportamento das forças


do centro, nos partidos e na sociedade, não raramente é fundamental.
Por que o centro político oscila, em momentos-chave, entre a direita
e a esquerda? Só para buscar cargos, movido por um oportunismo in-
dependente de ideias e contextos nacionais, como crises e mudanças
na opinião pública? Ou, por outro lado, a rota (o programa), o andar
(o desempenho) da carruagem política e seus passageiros (coalizões) são
sensíveis, por assim dizer, a uma economia política dos grandes interes-
ses, que extrapola, mas inevitavelmente permeia, a patronagem acentu-
adamente mundana por onde orbitariam os políticos mais utilitaristas?13

Por que José Sarney, a partir de outubro de 1988, tendo em suas mãos o
arranjo institucional propiciado pela nova Constituição, que lhe confe-
ria o poder de editar medidas provisórias, não conseguiu implementar a
estabilização monetária, e nem Fernando Collor de Mello, mas apenas o
governo Itamar Franco, em 1994? Aliás, falando em medidas provisórias,
por que motivo elas têm um conteúdo predominantemente econômico
e qual a influência dos interesses sociais em sua edição?14 Se a taxa de
aprovação pelo Congresso Nacional das medidas legislativas do Executi-
vo é muito alta desde o governo Sarney, por que, não obstante, apenas o
Plano Real virou uma página na crise brasileira então existente? O conhe­
cimento técnico utilizado para formular o Plano Real, a teoria inercial

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Marcus Ianoni

da inflação, já existia desde o início da década de 1980. Por que o país


precisou viver tanto tempo com a hiperinflação e a ingovernabilidade?

Ao criticar a interpretação do presidencialismo de coalizão erguida so-


bre o método do resultado agregado dos votos, um pesquisador afirma:
“este método não diferencia as políticas públicas, de modo que não há
como distinguir entre a legislação crucial e controversa e as questões
mais mundanas” (KINGSTONE, p. 158, nota 39; tradução do autor). O mé-
todo da taxa de sucesso do Executivo no Legislativo parece abstrair o
contexto nacional, o conteúdo das decisões (ao não distinguir pondera-
damente a importância das matérias), as questões substantivas envol-
vidas nas não decisões ou nos mecanismos de antecipação das reações
(retenção de envio de projetos por parte do Executivo, engavetamento
de proposições no Legislativo etc.) e tem examinado pouco as mudanças
nas propostas por parte dos parlamentares.15

Alguns se ocupam do índice de coalescência, para avaliar um aspecto


da gestão da coalizão, a proporcionalidade na distribuição dos cargos
ministeriais entre os partidos da base governista conforme o seu peso
no arranjo político (PEREIRA; PESSÔA, 2015). Concluem que esse índice
manteve-se alto durante os dois mandatos de FHC: 60 pontos, ao passo
que Lula conseguiu 50 pontos. Nesse modelo, no entanto, a popularidade
governamental, por exemplo, que diz algo a respeito da (in)satisfação
com os resultados da gestão presidencial, é uma variável desconsiderada.
Enquanto FHC terminou seu segundo mandato enfraquecido, sendo o
candidato de seu partido derrotado por Lula em 2002, inclusive com
o apoio de segmentos do empresariado industrial (a começar pelo então
candidato a vice-presidente, José Alencar), o líder petista, apesar de seu
governo apresentar um grau menor de coalescência, terminou seus oito
anos na presidência navegando em céu de brigadeiro nas pesquisas de
opinião pública e elegeu sua sucessora, a petista Dilma Roussef, que che-
gou a ser reeleita. O governo Temer, empossado definitivamente após o
impeachment de Dilma Roussef, tem hoje (março de 2017) um alto índice de
coalescência e tem logrado aprovar sua agenda legislativa no Congresso.
No entanto, ele é extremamente mal avaliado pela opinião pública, em-
bora, note-se, respaldado por uma substantiva coalizão empresarial em
torno de uma agenda ultraliberal de reformas orientadas para o mer-
cado.16 O formalismo da ciência política hegemônica na abordagem

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 141


Para uma abordagem ampliada das coalizões

das coalizões parece deixar a desejar ao desconsiderar importantes


aspectos substantivos e extra-institucionais. Seus esforços empíricos
e métodos quantitativos, de inegável utilidade, seriam ainda mais pro-
veitosos se fossem aplicados a uma cesta mais ampla de variáveis, que
pudessem iluminar as relações entre a coalizão partidária e a coalizão
social ou de classes.

Por que, em dezembro de 2007, o governo Lula perdeu, no Senado, a vota-


ção da parte da PEC 89 relacionada à renovação da Contribuição Provisória
sobre Movimentação Financeira (CPMF) – tributo instituído em 1997,
cujos recursos vinham financiando a saúde pública –, quando, pelo mo-
delo de análise estrutural-institucionalista, ele tinha condições formais
para ser vitorioso? E por que, na mesma sessão de votação, foi aprovada,
inclusive com o apoio da oposição, a parte da PEC que renovava a Des-
vinculação de Receitas da União (DRU), medida fiscal que, desde 1994,
destina-se à obtenção de recursos para o pagamento da dívida pública? É
claro o critério de decisão seletivo dos atores em relação à política fiscal
nesse exemplo significativo. Naquela conjuntura, uma coalizão reunindo
empresários e outros atores, entre eles a oposição institucional, rejeita-
vam a CPMF, mas não a DRU.17

Qual é a explicação exclusivamente político-institucional para esses


fatos e para a crise política de 2015, que, em um primeiro momento,
caracterizou-se pela perda do poder de agenda da presidenta da Repú­
blica, levando-a a inúmeras e importantes derrotas, desde não ter conse­
guido eleger para a Câmara dos Deputados um presidente de sua con-
fiança, até ter sido impedida? Será demais considerar que, nas eleições
gerais de 2014, a hesitante coalizão social-desenvolvimentista – da qual já
desembarcava o grande empresariado desde o primeiro turno, migrando
para as candidaturas oposicionistas de Aécio Neves e Marina Silva –
conquistou a chefia do Executivo apenas institucionalmente, mas não
propriamente em termos sociopolíticos, pois não contou de fato com o
estratégico respaldo dos capitalistas? Além disso, na lógica dialética, e
não na mera contagem formal de votos das bancadas partidárias eleitas,
o governo recém-empossado foi sendo derrotado na Câmara dos Depu-
tados, sob a regência de Eduardo Cunha. Ademais, não cabe pensar que,
em 2015, quando a presidenta Dilma deu um cavalo de pau na política
macroeconômica, escolhendo a agenda da austeridade fiscal, o que

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Marcus Ianoni

restava da pouco orgânica coalizão social-desenvolvimentista entre tra-


balhadores e capital produtivo enfraqueceu-se ainda mais, enquanto as
forças da coalizão neoliberal, às quais a grande mídia vincula-se, emba-
ladas em uma série de mediações – em especial a crise econômica e o
combate politizado à corrupção –, se viram fortalecidas para explorar as
contradições de um governo com a identidade confusa e acuado, visando
depô-lo, em um contexto de luta política que, obviamente, envolveu o
Congresso, mas também outras instituições do Estado e levou às ruas
novos movimentos sociais, de perfil ideológico liberal-conservador, e
indivíduos do estrato de renda mais alta da classe média tradicional?

Há várias evidências de que, sobretudo desde a conjuntura de 2013, hou-


ve um processo simultâneo, nas frentes de ação sociopolítica e político-
-institucional, de ruptura ou profundo enfraquecimento do esboço de
coalizão social-desenvolvimentista que havia suportado os governos
de Lula e também o primeiro mandato de Dilma, embora, nesse últi-
mo caso, de modo menos intenso. Dilma não foi derrubada apenas pelo
Congresso, mas também por elites da burocracia pública, pelo mercado
(o capital, altamente oligopolizado em vários setores-chave), por estra-
tos conservadores da classe média mobilizados nas ruas e pela opinião
pública, em um processo no qual as esferas institucional e social, ape-
nas aparentemente separadas no cotidiano da política representativa,
desnudaram-se para explicitarem ao país, em um momento crítico, seu
casamento (ou pecado?) original.18 A coalizão do impeachment é uma evi-
dência ímpar da perspectiva ampliada das coalizões, aqui analisada, reu-
nindo partidos, parlamentares, elites da burocracia pública do conjunto
do aparato estatal e atores da sociedade civil, em especial os setores
organizados e os agentes de mercado, incluindo, obviamente, a grande
mídia oligopolizada.19

Diante de tanta sociedade e economia, como é possível apoiar-se exclusi-


vamente em explicações alavancadas na endogenia institucional? “Nem
todos os resultados de políticas podem ser derivados das instituições. A
política não se resume à escolha das instituições. Há mais, muito mais,
em jogo” (LIMONGI, 2006b, p. 257). Essa assertiva merece ser explicitada.
No que diz respeito ao suporte das coalizões às decisões públicas, o que
haveria de muito mais em jogo além da perspectiva institucionalista,
que se atém às relações do presidente da República com os partidos da

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 143


Para uma abordagem ampliada das coalizões

base aliada, mas não examina os vínculos desses atores políticos e das
instituições com os grandes interesses sociais?

Questionando o argumento funcionalista segundo o qual as instituições


emergem motivadas pela busca de eficiência, Amable considera que

[...] instituições representam um compromisso resultante do conflito


social originado da heterogeneidade dos interesses entre os agentes [...]
As instituições são a expressão de um compromisso e tanto são influen-
ciadas como resultam da formação de um bloco sócio-político estável.
Uma coalizão política procurará manter-se no poder encontrando apoio
no bloco social dominante; nesse sentido, ela vai procurar implementar
mudanças institucionais que favoreçam o bloco sócio-político e tentará
evitar a mudança que seja prejudicial ao bloco (AMABLE, 2003, p. 10-11 ,
tradução do autor).

Ainda sobre a mudança institucional, ele a explica delineando três pos-


sibilidades: a influência de algumas mudanças exógenas, as consequên­
cias não intencionais de decisões dos atores ou o resultado de estraté-
gias volitivas. Sua abordagem vincula o fundamento das instituições
políticas a coalizões de dupla face, política e social, e relativiza a pró-
pria dicotomia entre o endógeno e o exógeno, mesmo sem negar o que
há de endógeno no universo institucional.20 Ou seja, essa abordagem
vê as próprias instituições, em sua generalidade, como resultantes de
coa­lizões amplas.

Um exemplo expressivo dos limites da abordagem institucionalista está


na explicação da crise múltipla, inclusive de governabilidade, ocorrida
desde o final dos anos 1980 até 1993, no governo Itamar Franco. Grande
parte dos cientistas políticos, então, interpretava a grave crise brasileira
como de natureza político-institucional. Para o seu enfrentamento, pro-
punham a reforma política, cujo centro seria o parlamentarismo.21 No
entanto, após a vitória do presidencialismo no plebiscito de 1993, o en-
tão parlamentarista FHC, ministro da Fazenda, desempenhou um papel
fundamental de liderança aglutinadora de forças partidárias e sociais
(coalizão no sentido amplo do termo) para implementar o Plano Real,
um programa de estabilização monetária de corte neoliberal, carro-chefe
de outras reformas estruturais orientadas para o mercado e, assim o
fazendo, reconstruiu o pacto de dominação, a hegemonia que havia desa­
parecido no estertor da década perdida (especialmente após o fracasso do

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Marcus Ianoni

Plano Cruzado). A ação política ampla e contextualizada, capitanea­da


pelo condottiere do bloco liberal, resultou em superação da crise de gover­
nabilidade sem que qualquer mudança político-institucional relevan-
te houvesse ocorrido. Em apenas cinco meses de implementação, de
dezem­bro de 1993 a maio de 1994, o ministro orquestrou, com o respaldo
das principais frações do empresariado e com surpreendente impacto, a
aprovação de uma emenda constitucional de revisão e as medidas pro-
visórias necessárias para estabilizar a inflação. Essa liderança envolveu
um amplo processo de coalition building, em duas frentes de ação simul-
tâneas, a sociopolítica e a político-institucional, que se moveu do Estado
em direção à sociedade e vice-versa. Mas tal feito, um exemplo ímpar de
mudança institucional respaldada em ampla coalizão, partidária e social,
só é inteligível à luz da conjuntura de então.

Como dito, apesar da importância da análise da estrutura institucional


do presidencialismo de coalizão, que, por exemplo, tem fornecido evi-
dências estatísticas da efetividade da capacidade de iniciativa legislati-
va do Poder Executivo, esta abordagem, devido ao seu formalismo, nem
sempre revela muito sobre as disputas políticas de conteúdo em torno
das matérias tramitadas no Congresso Nacional e sobre a influência de
fatores externos, por assim dizer, no processo decisório público. Batista
(2012), por exemplo, analisa o presidencialismo de coalizão sobre a ótica
do Executivo, procurando verificar quando há centralização do processo
decisório nas mãos do presidente e quando há descentralização da inicia-
tiva legislativa pela sua distribuição aos ministérios, antes de ser enviada
ao Congresso. A análise reproduz o procedimento de deixar a sociedade
de lado, focando apenas nos políticos e na burocracia. No entanto, a des-
peito dos modelos formais e dedutivos, os interesses sociais, sobretudo
os econômicos, têm importante participação na formulação das políticas
públicas, em várias áreas, como moeda, câmbio, tributos, infraestrutura,
saúde, educação, transporte, exportação. Eles têm poder e influência e
sua participação se dá tanto por mecanismos pluralistas como por uma
lógica mais concentrada, dado o impacto dos interesses dos agentes dos
mercados oligopolizados nas relações entre Estado e capital.22

Não dá para se desprezar a influência de fatores exógenos no processo


decisório governamental, como os provenientes da conjuntura (na defi­
nição da agenda pública, por exemplo), as tendências estruturais do

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 145


Para uma abordagem ampliada das coalizões

sistema econômico e a relação de forças entre as classes, assim como


as ações dos grupos de interesse sociais, principalmente dos mais pode­
rosos, sobre o Estado, os partidos, os parlamentares e a Presidência da
República.23 Como foi que o Regime Automotivo Brasileiro e sua reno-
vação, o Inovar Auto, chegaram ao Congresso por medida provisória, a
não ser também pela participação dos grupos de interesse da respectiva
indústria na formulação dessas políticas?24 Para mencionar outra fonte
importante de influência, o financiamento empresarial das campanhas
eleitorais, que vigorou até as eleições de 2014 e foi abolido em 2015, era
uma importante porta de entrada de interesses econômicos organizados
no seio dos partidos, do parlamento e do Executivo. E quem são os gran-
des doadores aos partidos e candidatos, senão um seleto grupo que cos-
tumeiramente compõe as coalizões, no sentido amplo aqui postu­lado,
e tem dado suporte e/ou se oposto às políticas governamentais, como
bancos, empreiteiras, indústrias de bens de consumo não duráveis etc.?25
Enfim, é limitado analisar as instituições políticas de costas para os siste-
mas econômico e social, para os interesses organizados e difusos e para
a conjuntura, tanto a nacional como a internacional, cuja inter-relação
tem pontuado momentos-chave da mudança política no Brasil, como se
deu em 1888-1889, 1930, 1945, 1964, 1989, 1999, 2008 ou no fim do boom
das commodities, que se consumou em 2014.

Ao revisar a bibliografia sobre o presidencialismo de coalizão brasileiro,


Power (2010, p. 25 e 29-30), após observar que os estudos recentes têm
usado esse conceito de um modo mais amplo, visando entender a arqui-
tetura institucional do país, levanta a seguinte questão: até que ponto as
avaliações positivas sobre a funcionalidade desse desenho institucional
em matéria de governabilidade não representam um efeito relacionado
aos períodos dos governos FHC e Lula? Assim, pode-se admitir que Power
deixa em aberto duas hipóteses não excludentes, a de que a efetividade
da governança do presidencialismo de coalizão depende da conjuntura
e/ou da liderança, vale dizer, a clássica relação entre virtù e fortuna
abordada por Maquiavel.26

Se, de um modo geral, em cada um dos dois mandatos que tanto FHC
como Lula exerceram, a estrutura institucional do presidencialismo de
coalizão garantiu a governabilidade, por que, paulatinamente a partir
de Dilma 1 e, fatalmente, em Dilma 2, o governo perdeu poder de agenda

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Marcus Ianoni

e abriu-se uma crise política que desaguou no controverso impeachment?


Será que a conjuntura e outros fatores externos, como a crise internacio-
nal e as mutantes relações entre as classes, através de suas organizações
representativas (ou grupos de interesse), o governo e os partidos, não são
um fator explicativo fundamental, mesmo sem se negar a relevância de
variáveis da endogenia institucional, como a inabilidade de Dilma para
lidar com o gerenciamento do presidencialismo de coalizão, que remete
ao papel da liderança, cuja visão ampliada, por sua vez, diz respeito tam-
bém à capacidade de construir alianças políticas e sociais?27 Ademais, os
problemas políticos entre Dilma e o Legislativo foram exacerbados pelos
protestos de rua de 2015 e 2016. Na verdade, Eduardo Cunha, o patrono
institucional do impedimento, por um lado, surfou em algumas tendên-
cias individualistas das instituições, como aquelas propiciadas pela lista
aberta e pela então vigente competição pela arrecadação de financiamento
privado, e por outro lado aliou-se aos movimentos sociais deposicionis-
tas (LIMONGI, 2015). Os protestos de rua tiveram um conteúdo liberal
em suas demandas, assim como são liberais o ideário da grande mídia e
o conteúdo das políticas implementadas pelo governo Temer. Aí já
está desenhada uma ampla coalizão institucional e social pelo impe-
dimento da presidenta Dilma, que, movimentando-se entre o combate
à corrupção e as supostas irresponsabilidades fiscais da mandatária do
Executivo, possuía um projeto de poder político e de política econô-
mica alternativo ao implementado pelos governos liderados pelo PT,
pró-políticas ultraliberais, conforme evidenciam as medidas aprovadas
desde a conclusão do impeachment.

Como se pode compreender, por exemplo, a ampliação dos poderes legis­


lativos do Presidente da República, a partir de 1988, sem associá-la ao
regime militar, conforme Figueiredo e Limongi (1999) reconhecem? E
como entender o regime militar, que desfigurou a Constituição de 1946 e,
em seguida, impôs outra em 1967, sem todo o respaldo sociopolítico ao
golpe de 1964, fornecido por setores da burguesia, conforme se mencio-
nará adiante? E ainda como estudar as transformações resultantes dos
governos militares nas instituições, como o Pacote de Abril, e na política
industrial, tal qual a contida no II PND (Plano Nacional de Desenvolvi-
mento), sem atentar para a tríplice aliança abordada por Evans (1979),
que, entre outros projetos, viabilizou institucionalmente as indústrias

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 147


Para uma abordagem ampliada das coalizões

petroquímica e de mineração, mas também se fez presente anteriormen-


te, na democracia populista, na siderurgia, no setor automotivo etc.?

Algumas análises do presidencialismo de coalizão têm ido além da con-


tribuição trazida pelo modelo estrutural-institucionalista, ao atentarem
para aspectos não formais, como, por exemplo, as relações entre o com-
portamento e o desempenho da coalizão governista com o conteúdo da
produção legislativa ou a tendência política internacional, observada nos
EUA, Europa e América do Sul, de “acentuação da clivagem entre conser-
vadores e trabalhistas, liberais e social-democratas, direita e esquerda”
(SANTOS, 2006, p. 235), enraizada em interesses associados a bases ou
coalizões sociais distintas. O trabalho de Santos e Canello (2013), mes-
mo tendo uma filiação teórico-metodológica institucionalista, analisa a
coalizão governista e a dinâmica legislativa referindo-se a atores exter-
nos à classe política, como o empresariado, e a categorias sociais e eco-
nômicas, entre elas, interesses, capital, capitalismo e desenvolvimento
capitalista; além disso, procura identificar o conteúdo da ação política
governamental. Nesse sentido, avalia que

[...]o governo Dilma se caracteriza pela transição de um modelo de


governança baseado em uma coalizão em favor da redistribuição (tal
como ocorreu durante o período Lula) para um que tem no investimento
seu ponto fulcral e nevrálgico, onde residem tanto os desafios econômicos
a resolver, quanto as tensões e fragilidades políticas a superar (SANTOS;
CANELLO, 2013, p.3).

Em outro estudo, Santos e Vieira (2013, p. 3), ao examinarem “a capacida-


de presidencial de gerenciar a implementação da agenda governamental
em gabinetes multipartidários no Brasil”, focando nos governos Lula 2 e
Dilma 1, referem-se à

[...] coalizão social e política em torno do PT, baseada em aliança que


abarca amplo espectro partidário, envolvendo partidos de diversos mati-
zes, grandes segmentos da comunidade empresarial, sindicatos de quase
todos os setores da economia, além de movimentos sociais urbanos e
agrários (SANTOS; VIEIRA, 2013, p. 2).

Nesse trabalho, além da mencionada referência a atores sociais e à pers-


pectiva ampla das alianças, os autores usam os termos Estado e hege-
monia, não típicos da literatura institucionalista, que falam em sistema
político e em maioria ou minoria.

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Marcus Ianoni

Mas predomina no estudo sobre coalizão no Brasil a abordagem neoins-


titucionalista e endógena. Será a face social da coalizão uma fanta-
sia, ideia etérea, por ser mais complexo alcançar a sua identificação
empí­rica?28 Poucos autores, atualmente, pensam em coalizão com uma
acepção sociopolítica, frequentemente recorrendo a sinônimos, ter-
mos intercambiáveis ou afins, tais como pacto, aliança, frente e bloco.
Entre os pesquisadores vinculados a essa perspectiva, mencionaria Diniz
e Boschi (2007), Bresser-Pereira e Diniz (2009), Boito (2012) e Singer
(2012).

Não parece haver dois mundos paralelos na produção acadêmica de ciên­


cias sociais no Brasil tentando compreender qual é a coalizão relevante
para explicar a estrutura e as decisões do Estado ou do sistema político,
sendo um universo o da sociologia política e o outro o institucionalista?
Não será essa dicotomia uma criação da comunidade científica, que não
corresponde ao que se passa na realidade do processo político, mesmo
não se ignorando a relativa autonomia tanto das instituições do Esta-
do, incluindo o Legislativo, como dos partidos em relação às suas bases
sociais mediatas e imediatas? Há uma lacuna a ser preenchida. Cadê a
engenharia política para a ponte entre a sociedade e as instituições? É
preciso coalizar as coalizões institucional e social, teórica e metodologi-
camente, embora não se pretenda descobrir a pólvora no século XXI, pois
muita água já passou debaixo dessa ponte, conforme sugere a revisão
bibliográfica adiante.29

De Sarney a Dilma, várias evidências apontam para uma forte propensão


a que a coalizão institucional promova governabilidade quando a coa-
lizão sociopolítica está estruturada e, inversamente, ingovernabilidade,
quando esta última se encontra desestruturada ou em crise. Não se trata
de recorrer a um determinismo unicausal, pois a coalizão institucional
também auxilia bastante a organizar a hierarquização dos interesses
sociais, mas de atentar para o poder estruturante tanto dos interesses
coalizados, em perspectiva ampliada, sobre o sistema político ou sobre
o Estado, como das forças provenientes das relações econômicas hege-
mônicas nas diversas fases do capitalismo internacional, inclusive em
momentos críticos, que impactam nas preferências dos atores nacionais
e no jogo das alianças, pela mediação de fatores de ordem institucional,
legado histórico etc.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 149


Para uma abordagem ampliada das coalizões

Assim, em linhas gerais, houve ingovernabilidade entre 1987 e 1993 (da


segunda metade do governo Sarney, após o fracasso dos planos Cruzado
I e Cruzado II, passando por Collor e o início da curta administração de
Itamar) e governabilidade entre 1994 e 2014 (último ano de Itamar, FHC I
e II, Lula I e II e Dilma I).30 A ingovernabilidade permeia a passagem que
vai da crise do nacional-desenvolvimentismo e o difícil parto da coalizão
neoliberal, consumado por FHC no processo do Plano Real, após o fra-
casso de Collor. Já o ambiente de governabilidade caracteriza o período
aberto pelo Plano Real, que conformou, principalmente a partir de 1999,
um arranjo institucional de política macroeconômica muito difícil de ser
alterado, fortemente alicerçado em práticas dos mercados e em interes-
ses ideológicos e materiais. Mas note-se que, durante a vigência, ainda
em curso, do tripé macroeconômico, a produção legislativa, a postura do
principal partido de centro, o PMDB, e o comportamento do empresaria-
do produtivo e dos movimentos sociais de esquerda, por exemplo, apre-
sentam mudanças analiticamente significativas, que têm relação com a
conjuntura nacional, com o equilíbrio de classes e seu impacto na dinâ-
mica de formação de coalizões, no sentido amplo aqui examinado.

A agenda política da Presidência da República e inúmeras decisões to-


madas pelo Legislativo são construídas por mecanismos que vinculam
a sociedade ao presidencialismo de coalizão. Se nos anos 1990 a agenda
pública se tornou minimalista, focando na estabilização monetária e nas
reformas orientadas para o mercado, na década seguinte, devido à relati-
va aproximação entre capital produtivo e trabalho assalariado, as políti-
cas sociais e de desenvolvimento entraram no temário da esfera pública
em nível nacional, configurando um esboço de social-desenvolvimentismo,
uma vontade política em busca de uma coalizão no sentido amplo do
termo. Tal aproximação foi costurada, inicialmente, pela chapa Lula-José
Alencar às eleições de 2002 e impulsionada, desde 2003, pelo presidencia-
lismo de coalizão e pelas novas relações e instituições vinculando Estado
e sociedade, como o “Conselhão” e as conferências nacionais. Os resulta-
dos desse processo de coalizão, apesar de não terem sido extraordinários,
foram significativos enquanto duraram, embora mais na esfera social que
na transformação industrial. Ademais, várias medidas importantes apro-
vadas pelo Congresso, antes e depois de Lula tomar posse na Presidência
da República, em 2003, tiveram origem nas relações entre agências do

150 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017


Marcus Ianoni

Executivo e forças sociais, e não no próprio Poder Legislativo, como, por


exemplo, a MP nº 130/2003, que introduziu o crédito consignado. Ou seja,
a decisão legislativa, quando de iniciativa do Executivo, não raramente
passa por algum tipo de participação dos grupos de interesse em sua for-
mulação e no processo de aprovação.31 Essa mesma presença de atores
sociais ocorre no processo decisório de matérias legislativas de origem
parlamentar, como foi o caso da Emenda Constitucional nº 40/2003,
referente ao sistema financeiro nacional, defendida pelos banqueiros,
agentes que operam em um mercado altamente concentrado e são
grandes financiadores da política e lobistas.

Por outro lado, nem toda a decisão política possui a forma de lei, mas pode
ter profundo impacto na delimitação da margem de manobra fiscal fa-
cultada ao Legislativo. A implementação do regime de metas de inflação,
em 1999, não passou por votação do Congresso. Apesar de ter sido e ain-
da continuar sendo uma decisão estruturante de política macroeconô-
mica, uma área-chave e tridimensional de política pública, envolvendo
nada menos que as políticas monetária, fiscal e cambial, ela foi insti-
tuída pelo Decreto Presidencial 3.088/1999 – um dispositivo normativo
dife­rente da medida provisória –, emitido em contexto de ataque especu-
lativo do mercado contra a âncora cambial que vigia desde 1994. Diversas
agências do Poder Executivo relacionam-se com grupos de interesses no
processo de tomada de decisão, como o Banco Central – ao implementar
a taxa básica de juros, gerindo a meta de inflação definida pelo Conselho
Monetário Nacional (CMN) – e o Tesouro Nacional, na gestão da dívida
pública. Tais vínculos institucionais têm levado alguns autores a levan-
tarem a hipótese de captura da política monetária e fiscal (BRESSER-
PEREIRA, 2007; IANONI, 2010). A autoridade monetária é beneficiada por
ampla delegação de prerrogativas do Legislativo (SANTOS; PATRÍCIO, 2002),
sob condições institucionais juridicamente controversas (OLIVEIRA
FILHO, 2008). O BCB toma decisões de política macroeconômica de grande
impacto sobre a despesa pública financeira, como a definição da taxa
básica de juros, com base, entre outros, em pesquisas de expectativas
de mercado cujos dados são fornecidos quase que exclusivamente pelas
instituições financeiras. A implementação da política monetária é insu-
lada na área econômica do Executivo, mas insulada do Congresso, da
grande maioria dos ministérios, do capital produtivo, dos trabalhadores

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 151


Para uma abordagem ampliada das coalizões

e dos estratos sociais de baixa renda, e não dos interesses financeiros.


As decisões nessa área de política têm profundo impacto orçamentário,
dada a perseverança da terapia de altas taxas de juros, praticada pelo
BCB desde o governo Collor. Ademais, a atual política monetária pres-
supõe a flutuação cambial. Dado o caráter estratégico da taxa de câm-
bio para o desenvolvimento industrial, qual tem sido a participação do
Congresso na área-chave da política cambial, além do cumprimento fre-
quentemente formal e passivo das exigências de prestação de contas da
Lei de Responsabilidade Fiscal?32 A política macroeconômica, em suas
três áreas, mostra que a coalizão do Estado, especialmente a Presidên-
cia da República, não é apenas com os partidos do Legislativo, mas tam-
bém com os interesses sociais, principalmente aqueles cujo poder nas
relações estruturais de dominação na esfera do mercado alavanca sua
influên­cia objetiva e volitiva nas decisões do Estado como um todo, des-
de o aparentemente insulado BCB até o Judiciário.33

Mesmo em períodos autoritários, o Estado interage com as forças so-


ciais, especialmente com as classes dominantes. Dessas interações
resultam decisões, políticas públicas, mudança institucional. Em re-
gimes democráticos, tais interações com os atores sociais tendem a
aumentar, sendo importante analisar os distintos meios institucionais,
formais e informais, em que elas ocorrem e o conteúdo resultante das
decisões políticas. Mesmo quando a decisão se transforma em lei, exa-
minar a matéria legislativa, sobretudo a proveniente do Executivo, só
a partir do momento em que ela ingressa no trâmite parlamentar não
elucida adequadamente quais são os atores, os interesses, as alianças
e o conjunto das instituições envolvidas. Ao se estudarem as decisões
e as não decisões que constituem o núcleo central da agenda gover-
namental de um ou mais mandatos presidenciais, como é o caso do
Brasil, a pergunta cuja formulação este artigo sugere é a seguinte: qual
coalizão importa, apenas a do presidencialismo de coalizão?34 O presi-
dencialismo de coalizão é uma ilha apartada dos interesses externos
ao sistema representativo clássico, no sentido de que seu exame é indi-
ferente para uma abordagem centrada nas instituições políticas, ou ele
tem conexões com o continente social, mormente com os interesses
sociais com mais recursos de poder, coalizados ou em crise de coali­
zação, cuja investigação poderia iluminar os estudos legislativos e
abrir, à ciência política sobre o Brasil, novas perspectivas de pesquisa

152 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017


Marcus Ianoni

dos elos do Estado como um todo com as forças da sociedade civil e do


mercado?

Em síntese: ao invés de se estudar apenas a cooperação entre Execu-


tivo e Legislativo, necessária para que presidentes minoritários obte-
nham maioria através de coalizões partidárias, há benefícios analíti-
cos se, simul­taneamente, investigar-se a cooperação e o conflito entre
Esta­do, partidos, representantes políticos e interesses socioeconômicos
com fortes recursos de poder e capacidade de influência. A despeito de
a ciên­cia política levar ou não em conta essa última dimensão, ela é
um imperativo de coalização objetivo e volitivo tão estrutural quanto o
examinado pelo neoinstitucionalismo, de modo que ambas as relações
de colaboração e oposição entre atores, inseridas em contextos determi-
nados, impactam nas disputas e resultados eleitorais, no conteúdo das
decisões governamentais, na opinião pública, na governabilidade e na
legitimidade. As relações de cooperação e conflito entre os atores envol-
vem as instituições políticas do Estado, a sociedade e as interações entre
essas duas esferas.

Seguem três seções e as considerações finais. A primeira aborda a coali-


zão nos clássicos das ciências sociais; a segunda, o tratamento dado ao
tema na literatura do século XX; a terceira, o Brasil.

Coalizão nos clássicos

Aqui, os termos pacto, aliança, coalizão, bloco ou frente, salvo algumas


exceções, são usados indistintamente. A formação de coalizões é ineren-
te à política, que, por sua vez, diz respeito a relações sociais de articula-
ção, agregação e conflitos de interesses, apoiadas em recursos de poder,
sobretudo meios coativos, entre eles, especialmente, em última instân-
cia, a força física, principalmente quando se trata do Estado – instituição
que reclama para si o monopólio da força legítima. O Cambridge Dictionary
(2017) assim define coalizão: “a junção de diferentes partidos políticos
ou grupos para uma finalidade específica, geralmente por um tempo li-
mitado, ou um governo assim formado” [tradução do autor]. Além dessa
acepção da ideia de coalizão, que a apreende como agência, esse artigo
incorpora também sua dimensão estrutural, devido à dependência do
Estado, no capitalismo, em relação ao capital. Essa dependência vincula

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Para uma abordagem ampliada das coalizões

as políticas do Estado à manutenção das relações de produção e tende a


limitar a capacidade dos governos para implementarem políticas redis­
tributivas que desequilibrem a relação entre lucros e investimentos e,
assim, inviabilizem o crescimento (PRZEWORSKI, 1995). Obviamente, a
dependência estrutural atua como um bloqueio à utilização do Estado
para fins de expropriação da propriedade privada dos meios de produção.
Há uma tendência estrutural de conformação de uma coalizão objetiva
entre o Estado e a classe economicamente dominante.

Coalizão envolve agência e estrutura, podendo implicar tanto em encon-


tro, como em desencontro ou arranjos entre essas duas dimensões das
ciências sociais. As políticas do consenso keynesiano dos Trinta Gloriosos,
por exemplo, começaram através de agências de partidos preocupados
com o desemprego, por terem laços com os trabalhadores, mas, em segui-
da, foram mantidas, mesmo que nuançadas, por partidos conservadores
e pelos agentes econômicos que os apoiavam. Tornaram-se estruturais,
ainda que tenha havido particularidades políticas importantes em sua
implementação nos diferentes países, como EUA e Inglaterra (WEIR, 1989).
Em outro exemplo, pode-se dizer que, em um contexto de forte tendência
estrutural no sentido de manter uma política macroeconômica ortodoxa,
a Nova Matriz Econômica, colocada em prática pelo governo da presi­denta
Dilma Roussef, no Brasil, entre 2012 e 2014, foi uma decisão de inspiração
social-desenvolvimentista, visando beneficiar a produção industrial e o
emprego, que resultou em conflito com os interesses neoliberais.

As relações políticas ocorrem tanto na sociedade civil como no Estado,


objeto maior dos atores políticos coletivos. As coalizões políticas visam
conquistar o poder de Estado, por meios legais ou violentos, preservá-lo
ou influenciar suas decisões. A ideia de coalizão talvez possa ser ilumi-
nada pelo conceito weberiano de relação associativa, relação passível
de ser identificada, de maneiras e em intensidades variadas, tanto no
Estado e na sociedade, tomados separadamente, como também nos
nexos entre ambos. As coalizões dizem respeito tanto às relações de po-
der objetivas ou volitivas que vinculam e separam o Estado às classes
sociais (que se expressam através de suas organizações de interesses) e
vice-versa, como também aos atores sociais entre si.35

Na história dos países, as coalizões para fins de fortalecimento de interes-


ses e combate pacífico ou militar aparecem, desaparecem, reaparecem,

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Marcus Ianoni

renovam-se, podem durar períodos mais longos ou mais curtos etc. No


século XX, por exemplo, a Internacional Comunista implementou, a par-
tir de 1934, a política de formação de frentes populares, sobretudo com
os partidos social-democratas, para combater o avanço eleitoral e militar
do fascismo (HOBSBAWN, 1977). Dois casos importantes dessa coa­lizão
ocorreram na Espanha e na França. Coalizões envolvem classes e frações
de classes, grupos, elites políticas e burocráticas, partidos, representantes
eleitos (no caso das democracias); sua gênese e características dependem
tanto das instituições que balizam as interações dos atores como do con-
texto. Elas ajudam muito a explicar o tipo de regime político, o conteúdo
da ação estatal, a cooperação e o conflito entre os atores, inclusive quando
forças contraditórias e em relativo equilíbrio disputam o direcionamento
de um Estado em crise. A ascensão do fascismo na Itália, considerando
outro exemplo, passou pela aliança de Mussolini, em 1922, com a Monar-
quia, os militares, os empresários e forças partidárias de direita. Em 1924,
o Partido Nacional Fascista logrou aprovar uma mudança na lei eleitoral
que lhe favorecia. Em 1925, o regime totalitário estava implantado.

Em sua obra máxima, Economia e sociedade, Max Weber (2004, p. 562) afirma
o seguinte: “A essência de toda política […] é a luta, a conquista de aliados
e de um séquito voluntário”. A conquista de aliados e voluntários pela
“empresa” política, como são os partidos modernos, tem como razão de
ser a luta pelo poder (WEBER, 2004, p. 538). “Quem pratica política, recla-
ma poder” (WEBER, 2004, p. 526). A principal associação política moderna,
o Estado, é definida classicamente por Weber como “aquela comu­nidade
humana que, dentro de determinado território […], reclama para si (com
êxito) o monopólio da coação física legítima” (WEBER, 2004, p. 525). A aná-
lise weberiana esclarece uma ideia praticamente intuitiva: o poder insti-
tucional do Estado moderno, assim como o de outras associações políti-
cas que o antecederam ou que com ele coexistem na atualidade, como os
partidos, é uma estrutura cuja gênese, desenvolvimento e funcionamento
dependem de alianças e aliados. A política e o Estado são inseparáveis da
coalition building (construção da coalizão). State building (construção do Es-
tado) e coalition building são duas faces da mesma moeda, o poder político.

Ao examinar a dominação burocrática, Weber exemplifica uma aliança


de relevância histórica, envolvendo Estado e interesses sociais, que se
assemelha à abordagem da sociologia política marxista:

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 155


Para uma abordagem ampliada das coalizões

A burocratização e o nivelamento social dentro de grandes formações


políticas, especialmente Estados, em conexão com a ruptura dos privilé-
gios locais e feudais opostos a estes processos, realizaram-se, na Época
Moderna, muitas vezes em favor dos interesses do capitalismo e até com
seu apoio direto. É o caso da grande aliança histórica entre o poder prin-
cipesco absoluto e os interesses capitalistas, pois, em geral, um nivela-
mento jurídico e uma ruptura de firmes complexos locais dominados por
bonoratiores costumam ampliar o campo de ação do capitalismo (WEBER,
2004, p. 223-224).

As obras de Weber e de outros autores clássicos modernos – como


Maquiavel, Hobbes, Hegel e Marx – elevam o Estado à posição de tema ou
objeto fundamental do pensamento político. Diversas perspectivas teóri-
cas que buscam explicar a origem da estrutura do Estado, as lutas entre
os atores políticos por sua conquista e preservação, os conflitos de inte-
resse em seu interior, as mudanças em seu aparato e funções ao longo
do tempo (como quando emergem novas demandas ou em situações de
crise), sua burocracia ou o conteúdo das decisões governamentais recor-
rem às relações de coalizão envolvendo as classes sociais, as elites, os
grupos de interesse.

As abordagens que adotam o conceito de sistema político, ao invés de


Estado, como é o caso do estrutural-funcionalismo e do pluralismo, com-
partilham com o marxismo a visão que Theda Skocpol (1985) caracteri-
zou como centrada na sociedade. Essa autora iniciou, junto com Evans
e Rueschemeyer, o empreendimento intelectual conhecido como “novo
institucionalismo histórico”, que evoca, apoiando-se principalmente em
uma determinada leitura da obra de Max Weber, a importância dos fato-
res estadocêntricos (aparato administrativo, burocracia, leis, sistema co-
ercitivo) para a compreensão das relações entre Estado e sociedade e das
próprias relações sociais. Aqui, por um lado, busca-se retomar a ora se-
cundarizada tradição sociocêntrica, que vincula a política e a sociologia,
para se abordar a relação entre coalizões e Estado. Mas, por outro lado,
vários dos conceitos e argumentos da perspectiva centrada no Estado
são úteis para o exame teórico e empírico das coalizões, sobretudo sua
tradição de estudo das instituições. O exame da construção das coalizões
depende do foco nas instituições, inclusive, obviamente, as instituições
representativas. Portanto, não se trata de substituir a análise institu-
cional das coalizões pela sociocêntrica, mas de beber das duas fontes,

156 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017


Marcus Ianoni

optando por uma reflexão política que não trate dicotomicamente, nem
tampouco como uma coisa só, por um lado, o Estado e suas instituições
e, por outro, a sociedade.

Um exemplo da importância de se levar em conta contribuições dessas


duas tradições está na visão do Estado como expressão de um pacto de
dominação, que possui raízes (neo)marxistas e weberianas (CARDOSO,
1977). Ocorrem várias relações de dominação de classe na sociedade, na
economia, entre os diferentes grupos sociais, nas esferas da ideologia
e da política associativa em geral. A preservação e, em boa medida, o
sucesso ou fracasso dos interesses envolvidos nessas relações de domi-
nação passam pelo aparelho burocrático, jurídico, político, ideológico e
coercitivo do Estado. O Estado tem autonomia em relação aos interesses
e ao mercado, mas ela é relativa (POULANTZAS, 1971 [1968]).

O conceito de pacto de dominação evoca, por um lado, a extensão até o


Estado, sem prejuízo de sua autonomia relativa, de alianças políticas en-
tre classes ou frações de classe visando manter e desenvolver as relações
que fundam a dominação configurada na estrutura social.

O Pacto Fundamental de Dominação se alicerça na sociedade civil e se


expressa no estado. Esta expressão [...] supõe uma teoria dos encadea-
mentos (linkages) entre o estado como burocracia e como organização e
a sociedade civil: partidos, lobbies, anéis burocráticos, mass-media etc.
(CARDOSO, 1977, p. 27).

A dominação e a política não se confundem com o Estado, nem na teo-


ria, nem na prática, embora ele seja um espaço fundamental de articu-
lação da ordem dominante. Além disso, Cardoso, como outros autores a
serem mencionados, não separa os partidos dos interesses da sociedade
civil. Para ele, “impõe-se a elaboração de uma teoria das instituições
políticas e de sua relação com as classes” ou uma “teoria dos regimes”
(CARDOSO, 1977, p. 27).36

Por outro lado, o mesmo autor esclarece ainda que, na dominação que
o Estado expressa institucionalmente, seus vínculos com os principais
interesses em ação conformam um pacto contraditório de classes e fra-
ções, cujas características fundamentais (composição, conteúdo, impac-
to no regime) mudam conforme a dinâmica da economia e da acumu-
lação de capital.37 Tal como Poulantzas, ele identifica a heterogeneidade
dos interesses sociais e, diante disso, enfatiza a importância do Estado

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 157


Para uma abordagem ampliada das coalizões

como “uma força que permita organizar a hegemonia da classe domi-


nante como um todo” (CARDOSO, 1977, p. 21). O pacto pode envolver
apenas frações da mesma classe, mas com interesses específicos distin-
tos, ou classes diferentes, tornando sua coordenação política ainda mais
complexa, tensa e propensa à mudança. Enquanto o pacto vigora, ele
direciona um conjunto mais ou menos coerente de ações governamen-
tais e políticas públicas.

Poulantzas (1971) não fala em pacto de dominação, mas em bloco no


poder, conceito que se refere à existência, na sociedade capitalista, de
uma pluralidade de frações de classe burguesas dominantes, que, atra-
vés de relações contraditórias, hierarquizadas e mediadas pelos espaços
institucionais do Estado, exercem a dominação política e influenciam as
decisões públicas.38 Esse mesmo autor define o Estado “como uma rela-
ção, mais exatamente, como a condensação material de uma relação de
forças entre classes e frações de classes” (POULANTZAS, 2000, p. 130). O
neomarxista grego-francês distingue bloco no poder, que contém forte
conteúdo estrutural, de uma mera aliança ou coalizão. As transforma-
ções no bloco no poder – como, por exemplo, a mudança nas relações de
força entre suas frações componentes e nos vínculos delas com as ou-
tras classes – impactam na forma do Estado, ou seja, nas relações entre
os níveis político e econômico, ao passo que, na teoria de Poulantzas, as
meras alianças não têm esse alcance.39 A temática das relações de forças
é fundamental para o estudo das coalizões que sustentam politicamente
a estrutura e as decisões do Estado.

As conexões entre as elites políticas e burocráticas do Estado e as


(frações de) classes sociopoliticamente relevantes estruturam a dominação
exercida pelo mais importante complexo institucional da ordem política
nacional. O poder de Estado não se origina no aparato estatal tomado
isoladamente em relação à sociedade e à economia. Mas a burocracia pú-
blica não é desprovida de poder. O Estado tem graus de autonomia relati-
va em relação às forças sociais, cuja intensidade depende da dinâmica do
equilíbrio de forças. Não se trata de adotar uma perspectiva de determi-
nismo econômico ou sociológico para explicar o Estado. A política não é
marionete nem da moral individual e nem da economia, mas o fato de o
Estado dispor da força não lhe confere um poder de ação ilimitado sobre
a sociedade. Como argumentou Weber, o uso estável da força pelo Estado

158 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017


Marcus Ianoni

depende de legitimidade, um conceito sociopolítico relacional e cuja reali-


zação empírica é historicamente variável. As coalizões, que são inerentes
à política, antes e depois dos modernos partidos, participam do proces-
so de construção do consenso. A estruturação das coalizões impacta com
maior ou menor grau de sucesso na agregação de legitimidade ao Estado e
opera como um fator de limitação do uso puro e simples da força.40

A história do Estado Moderno é pontuada por coalizões. Marx foi um


pioneiro na referência às alianças entre classes enquanto um dos fatores
políticos constitutivos do Estado moderno, desde as monarquias abso-
lutas, e de sua mutação em diferentes regimes, como o Commonwealth,
o Protetorado e a Monarquia Constitucional, instituídos no percurso his-
tórico das Revoluções Inglesas do século XVII. Referindo-se à Revolução
Puritana, esse autor diz o seguinte sobre a aliança realizada naquele
período histórico: “Em 1648 a burguesia aliou-se à aristocracia moderna
contra a monarquia, a aristocracia feudal e a igreja estabelecida” (MARX,
1848; tradução do autor). Em O Capital, o pensador alemão refere-se aos
resultados da Revolução Gloriosa, de 1688, nos seguintes termos:

A ‘Revolução gloriosa’ trouxe ao poder, juntamente com Guilherme de


Orange, o senhorio e os capitalistas apropriadores de mais-valia [...] Além
disso, a nova aristocracia territorial foi a aliado natural da nova banco-
cracia e dos grandes manufatureiros, então dependentes de direitos de
proteção (MARX, 1887; tradução do autor).

Entre outros trabalhos, Marx desenvolve a análise das coalizões de classe


na clássica obra O 18 Brumário de Luís Bonaparte. A massa do povo era
composta pelos pequenos camponeses. O pensador alemão observa as
disputas dinásticas entre legitimistas e orleanistas, grupos então apoia-
dos pela massa da burguesia, que, antes de apoiar o golpe bonapartista,
defendeu a monarquia. Marx associa a massa da burguesia ao partido da
ordem, que abrangia os grandes latifundiários, a aristocracia financeira,
a grande burguesia industrial e as cúpulas “do exército, da universidade,
da igreja, da Justiça, da academia e da imprensa” (MARX, 1978, p. 142). Ele
distingue a massa da burguesia e a burguesia republicana – os republi-
canos, reunidos no partido do National, tendo como principal represen-
tante o general Louis-Eugène Cavaignac. Identifica a pequena burguesia
democrático-republicana, liderada por Ledru-Rollin, e os trabalhadores
socialistas, destacando-se Louis Auguste Blanqui. Esse autor clássico

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 159


Para uma abordagem ampliada das coalizões

trabalha com uma concepção ampliada de partido, que abrange as clas-


ses e os atores institucionais, ou seja, os representantes parlamentares
e os detentores de cargos no Executivo. O argumento de Marx ilumina os
nexos estruturais entre as coalizões de classe e os diferentes regimes e
governos existentes na história política da França de então: a Restaura-
ção (1814-1830), a Monarquia de Julho (1830-1848), a II República (1848-
1851) e o II Império (1852-1870). E ele mostra como o equilíbrio de classes
abriu espaço para o fortalecimento da autonomia do Estado, mas por
uma via autoritária, liderada por Luís Bonaparte.

Ainda no campo marxista, Gramsci (1999) trouxe contribuições novas


para a compreensão das relações que vinculam o Estado e a sociedade,
como a ênfase na interpenetração entre ambos. Segundo ele, “a noção
geral de Estado inclui elementos que precisam ser remetidos à noção de
sociedade civil (no sentido de que se poderia dizer que Estado = socie-
dade política + sociedade civil, em outras palavras, hegemonia protegida
pela armadura de coerção)” (GRAMSCI, 1999, p. 532; tradução do autor).
Em outro escrito, ele se refere ao Estado “como um equilíbrio da socieda-
de política com a sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social so-
bra a sociedade nacional inteira, exercida através das organizações que
muitas vezes consideram-se privadas, como a igreja, os sindicatos, as
escolas, etc.)” (GRAMSCI, 1931, tradução do autor). Segundo alguns in-
térpretes, essas ideias de Gramsci compõem uma “teoria ampliada do
Estado” (COUTINHO, 1999, p. 119-143).

Ao abordar o tema da hegemonia, um dos mais importantes conceitos de


sua reflexão, Gramsci destaca o papel do consenso que, além da coerção,
é um dos fundamentos da dominação de classes e um fator estruturante
na interpenetração entre Estado e sociedade civil:

Sem dúvida, o fato da hegemonia pressupõe que sejam levados em con-


ta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia
deve ser exercida e que certo equilíbrio de compromisso deve ser forma-
do – em outras palavras, que o grupo dirigente deve fazer sacrifícios de
um tipo econômico-corporativo. Mas também não há dúvida de que tais
sacrifícios e tal compromisso não podem tocar no essencial; pois embora
a hegemonia seja ético-política, ela também deve ser econômica, deve
necessariamente se basear na função decisiva exercida pelo grupo diri-
gente no núcleo decisivo da atividade econômica (GRAMSCI, 1999, p. 373;
tradução do autor).

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Marcus Ianoni

A interpenetração entre Estado e sociedade civil e o consenso (que não


é simplesmente ideológico, pois também possui pressupostos materiais)
preparam o terreno para o autor italiano abordar as alianças ou compro-
missos de classe.

Através do conceito de bloco histórico, Gramsci aborda a questão das


alianças e dos compromissos nelas implicados: “Estruturas e superes-
truturas formam um ‘bloco histórico’. Ou seja, o conjunto complexo,
contraditório e discordante das superestruturas é o reflexo do conjunto
das relações sociais de produção” (GRAMSCI, 1999, p. 192; tradução do
autor). Essa apreensão do bloco histórico é importante por destacar o po-
der estrutural ou a dimensão objetiva da coalizão, embora esse conceito
também envolva ou possa envolver elementos subjetivos associados à
ação racional com relação a fins, para usar termos weberianos. Gramsci
dá exemplos de blocos ou de tentativas de formá-los, como ocorreu en-
tre o primeiro-ministro Giovanni Giolitti e os liberais democráticos, que
pretenderam formar um bloco de industriais e trabalhadores no norte da
Itália, no início da segunda década do século XX, mas não conseguiram,
tanto pela aproximação entre o Partido Socialista, liderado por Mussolini,
e as elites sulistas, como pela introdução do sufrágio universal na re-
gião do Mezzogiorno (GRAMSCI, 1999, p. 269). Para se fortalecer, o liberal
Giolitti estabeleceu um pacto com Gentiloni, líder dos católicos. O Pacto de
Gentiloni foi uma aliança entre industriais e agricultores nas eleições
gerais de 1913. Estima-se que o acordo resultou na eleição de 200 depu­
tados, propiciando maioria para o governo Giolitti. A abordagem de
Gramsci mostra o caráter dinâmico e mutável dos blocos ou coalizões, a
coexistência de diversas alianças em um mesmo contexto histórico de
disputa política e as mediações ou vínculos entre o sistema de partidos
e o sistema social das classes, frações e grupos de interesse.

Concluindo essa parte, foi visto, com Weber, que a prática política é in-
separável das coalizões e que, por exemplo, houve uma grande aliança
histórica entre o Estado absoluto e os interesses capitalistas para fins de
nivelamento jurídico e racionalização burocrática do poder público. Vin-
culando ideias de Weber e Marx, o conceito de pacto de dominação busca
identificar os encadeamentos entre os agentes do Estado e as classes e
frações dominantes, costurados por instituições públicas, partidos e or-
ganizações da sociedade civil, para assegurar e desenvolver a dominação

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Para uma abordagem ampliada das coalizões

social. Tais encadeamentos ajudam a explicar os regimes políticos. Por


sua vez, Marx argumenta que o Estado moderno, em sua forma constitu-
cional, emerge na Europa ancorado em coalizões entre as frações de classe
dedicadas à extração da mais-valia, nas diversas atividades da econo-
mia, na agricultura, na manufatura e nas finanças. As coalizões de classe
ajudam a explicar tanto o comprometimento do Estado com as relações
de produção capitalistas quanto suas transformações em diferentes regi­
mes políticos. A obra de Gramsci contribui ao salientar a interpenetração
entre Estado e sociedade civil na Europa Ocidental, cujas bases se fun-
dam na coerção, no consenso e no bloco histórico, uma coalizão entre
forças políticas e sociais, constituída para fins de dominação política,
e não meramente ou necessariamente por motivos eleitorais. O con­ceito
de bloco no poder, de Poulantzas, cuja formulação recebeu influência
das obras de Marx e Gramsci, procura mostrar que diferentes frações de
classe, a despeito das contradições entre elas, se unem, por uma hierar-
quização viabilizada pelas instituições do Estado, para conformar uma
determinada relação entre o poder público e a economia. Todas essas
abordagens sociopolíticas vinculam as esferas político-institucional e
sociopolítica ao abordarem as coalizões.

Coalizões nas ciências sociais de meados do século XX

Dois autores abordam coalizões estruturadas no contexto da Longa


Depressão, no século XIX. Por um lado, Gerschenkron (1989 [1943]) ana-
lisou uma aliança entre duas frações de classe, gerada na Alemanha de
Bismarck, à qual chamou de “coalizão do ferro e do centeio”, que asso-
ciou politicamente, com propósitos desenvolvimentistas, interesses dos
grandes industriais e agricultores. Para o objetivo deste artigo, um dos as-
pectos importantes de sua análise é a conexão entre as frações de classe,
os partidos políticos e o Poder Executivo, no qual destaca-se o Chanceler.
A abordagem de Gerschenkron vai ao encontro da perspectiva amplia-
da ou integrada de coalizão aqui pesquisada, abrangendo as dimensões
sociopolítica e institucional. Dois partidos representavam cada uma das
frações: o Partido Liberal Nacional, os industriais, e o Partido Conservador
Alemão, os agricultores. Entre 1873 e 1879, em meio à Longa Depressão,
o partido dos agricultores, que era tradicionalmente liberal em matéria
de comércio exterior, passou a defender a bandeira protecionista, até

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Marcus Ianoni

então exclusivamente erguida pelos industriais. A intensificação da


compe­tição no mercado europeu de grãos, devido à crise econômica,
induziu os Junkers ao protecionismo. A coalizão protecionista atendeu
aos interesses das duas frações e do Chanceler, que buscava maximizar
as possibilidades de arrecadação tributária com o incentivo à atividade
produtiva. A coalizão do ferro e do centeio foi fundamental para o desen-
volvimento alemão até a Primeira Guerra Mundial.

Gourevitch (1977) também pesquisa a relação entre política tarifária e


regimes políticos no contexto da Longa Depressão. No entanto, ele toma
quatro países como base empírica: Alemanha, França, Grã-Bretanha e
Estados Unidos. Seu objetivo é entender as diferentes estratégias tarifárias
às quais os países recorreram diante da intensa mudança no mercado.
Ele examina quatro explicações: a econômica, a do sistema político, a do
sistema internacional e a da ideologia econômica. Conclui que não há
relação direta entre o nível tarifário e o tipo de regime político. França,
Grã-Bretanha e Estados Unidos, mesmo possuindo, então, regimes seme-
lhantes, adotaram protecionismo ou livre-cambismo. As tarifas para a
indústria e a agricultura foram, respectivamente, alta-alta na Alemanha
e França, alta-baixa nos EUA, e baixa-baixa na Grã-Bretanha.Em sua aná-
lise, Gourevitch descarta as duas últimas explicações e aproveita as duas
primeiras, desde que combinadas. A explicação econômica, por si só, não
é considerada suficiente. Do ponto de vista da lógica puramente econô-
mica, as coalizões vencedoras poderiam também ter se beneficiado de
uma política tarifária oposta à que prevaleceu em cada um dos países.

Em todas as situações, os grupos vencedores possuíam características


comuns: seus objetivos de política eram intensos e urgentes, e não difu-
sos; ocupavam posição estratégica na economia e situavam-se em lugar
estruturalmente superior no sistema político. Porém, o autor considera
que tanto a ação como a organização políticas são fatores indispensáveis
para que a vantagem econômica seja convertida em política pública. Nos
casos pesquisados, esses fatores dependeram de indivíduos (lideranças)
e instituições. Na coalizão alemã do ferro e centeio, por exemplo, ele cita
Bismarck, os Junkers, a constituição autoritária, o serviço civil e a co-
nexão especial entre Estado, banco e indústria. Pode-se citar também,
conforme o fez Gerschenkron, os partidos e as associações de interesses
industriais e agrários.

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Para uma abordagem ampliada das coalizões

Esses dois autores contribuem para a teoria das coalizões ao menos por
três motivos: vinculam classes, frações, grupos e partidos; destacam a
importância da conexão entre interesse e ação política; atentam para
a disputa entre coalizões distintas e, finalmente, Gourevitch contorna
o problema das classes recorrendo aos grupos de interesse econômico,
segundo ele, um conceito mais simples, que, em seu trabalho, parece
corresponder à noção de fração de classe. A abordagem desse autor se
propõe a compreender “a política da escolha da política pública através
de uma ‘sociologia política da economia política’ – que é [...] a política de
apoio a diferentes políticas econômicas em resposta a grandes mudan-
ças na economia internacional” (GOUREVITCH, 1986, p. 19, tradução do
autor). Nessa última obra, ele aborda o papel explicativo das coalizões,
na perspectiva das cross-class coalitions (coalizões entre classes), para a
compreensão das diferentes respostas dadas por Inglaterra, Alemanha,
França, Suécia e EUA na Longa Depressão, na Grande Depressão (antes e
após a Segunda Guerra Mundial) e na crise de estagflação dos anos 1970.

Em uma obra clássica e pioneira nos estudos comparativos da sociedade


e da história – e que também se situa na tradição de pesquisa da coalizão
entre classes, de Gerschenkron e Gourevitch –, o sociólogo Barrington
Moore Jr. (1966) propõe-se a observar o papel desempenhado pelas elites
rurais e o campesinato na passagem das sociedades agrárias para as in-
dustriais.41 Para Moore Jr., o papel das classes rurais é um componente
explicativo fundamental para distinguir os processos históricos de mo-
dernização. Ele identifica três rotas nas revoluções de modernização: a
liberal-democrática (Inglaterra, França e EUA), a operada a partir de cima,
que conduziu ao fascismo (Alemanha e Japão), e a comunista (Rússia e
China). Moore explica esses diferentes resultados tomando como variá-
vel fundamental as coalizões políticas realizadas em cada uma das três
grandes rotas. Na análise das coalizões não importam apenas os gru-
pos sociais que as compõem, mas também a relação de força entre eles.
Na revolução liberal-democrática, Moore concorda com a tese mar-
xista de que uma classe de residentes urbanos foi um elemento fun-
damental para o desenvolvimento da democracia parlamentar, acom-
panhado de um relativo enfraquecimento da aristocracia agrária, pelo
desenvolvimento da agricultura comercial e pelo controle e moderação
da revolução camponesa e do comportamento político do campesinato.

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Marcus Ianoni

Em relação ao fascismo, sua base social estaria na coalizão entre elites ur-
banas do comércio e da indústria e a classe dominante rural tradicional, em
oposição aos camponeses e aos assalariados (MOORE JR., 1966, p. 418, p. 305).

Inspirado em Moore, Esping-Andersen (1990, p. 1-18) analisa os dife­rentes


tipos de estado de bem-estar social através da abordagem da coalizão de
classe, segundo a qual “o poder de um agente não pode simplesmente ser
indicado por seus próprios recursos: dependerá dos recursos de forças
contendoras, da durabilidade histórica de sua mobilização e dos padrões
de alianças de poder” (ESPING-ANDERSEN, 1990, p. 6; tradução do autor).
Esse autor identifica três regimes, o liberal (EUA, Canadá e Austrália), o
conservador-corporativo (Áustria, França, Alemanha e Itália) e o social-
-democrata (Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia) e considera que a
causa decisiva dessas variações está nas coalizões de classe. “É um fato
histórico que a construção do estado de bem-estar dependeu da forma-
ção de coalizões políticas. A estrutura das coalizões de classe é muito
mais decisiva que os recursos de poder de qualquer classe” (ESPING-
ANDERSEN, 1990, p. 30). Em relação ao modelo social-democrata, por
exemplo, Esping-Andersen (1990) afirma:

O papel dos agricultores na formação da coalizão e, portanto, no desen-


volvimento do bem-estar social é claro. Nos países nórdicos, as condições
necessárias foram obtidas para uma ampla aliança vermelho-verde para
um estado de bem-estar de pleno emprego em troca de subsídios aos pre-
ços agrícolas. Isto foi especialmente verdadeiro na Noruega e na Suécia,
onde a agricultura era altamente precária e dependente de ajuda estatal
(ESPING-ANDERSEN, 1990, p. 30).

Ademais, a concepção estruturalista do welfare state é relevante para se


pensar sobre o impacto estrutural das coalizões, por considerar que o
Estado, dotado de relativa autonomia, pode regular o equilíbrio de poder
entre empresários e trabalhadores, absorvendo demandas dessas duas
classes fundamentais. Essa abordagem destaca o impacto das relações
de força nas políticas públicas (ações/decisões) e no arcabouço institu-
cional (estrutura) do Leviatã.42

A análise da coalizão de classe em contextos democráticos elaborada


por Przeworski (1985) para explicar a trajetória dos partidos social-demo-
cratas marcou as ciências sociais. Seu objetivo foi, principalmente, com-
preender as experiências europeias, mas ele usa a mesma estrutura de

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 165


Para uma abordagem ampliada das coalizões

análise para entender o golpe militar no Chile, em 1973, quando o Partido


Socialista era a principal organização partidária no governo. Essa aborda-
gem do capitalismo democrático examina principalmente o compromisso
de classe resultante de uma coalizão entre trabalhadores e capitalistas
(PRZEWORSKI; WALLERSTEIN, 1982). O argumento é que a decisão das
orga­nizações social-democratas de participar das eleições representati-
vas para efetivamente vencê-las implicou em um conjunto de mudanças
no programa e nas ações dos socialistas. Como a classe trabalhadora não
constitui a maioria do eleitorado, o discurso eleitoral passou a ter um
conteúdo mais amplo, não destinado apenas à classe trabalhadora.43

A opção eleitoral das organizações dos trabalhadores na Europa impli-


cou em inúmeras vitórias nas urnas e no crescimento dos partidos social-
-democratas, embora ao custo de elitizar as lideranças e aumentar a
distância entre direção e base, representantes e representados. Uma vez
no governo, para não serem minoritários, precisaram fazer coalizões.
Mesmo quando governaram na condição de minoria, mantiveram a
perspectiva reformista, como ocorreu, por exemplo, no primeiro ano de
governo de Harold Wilson, em 1974, no Reino Unido.

Przeworski argumenta que a Grande Depressão ensejou uma definição


na estratégia programática da social-democracia, que, em resposta ao
desemprego, implementou políticas anticíclicas, de corte keynesiano.
Em 1936, a publicação da principal obra de teoria econômica de Keynes
ensejou a consolidação da legitimidade do programa reformista da
social-democracia.44 A política econômica keynesiana tornou-se a base
de um compromisso de classe e de uma coalizão entre capital e trabalho.

Existem condições econômicas e políticas sob as quais ambas as classes


escolheriam simultaneamente cursos de ação que constituem um com-
promisso: os trabalhadores consentem à instituição do lucro e os capi-
talistas, às instituições democráticas através das quais os trabalhadores
podem efetivamente demandar por ganhos materiais. Quando estas con-
dições se mantêm e um compromisso está em vigor, o papel do Estado
consiste em institucionalizar, coordenar e fazer cumprir os termos de um
compromisso que representa as preferências tantos dos trabalhadores
como dos capitalistas (PRZEWORSKI; WALLERSTEIN, 1982, p. 215).

A formulação teórica, produzida no âmbito do neomarxismo, que argu-


menta sobre a dependência estrutural do Estado em relação ao capital,

166 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017


Marcus Ianoni

é preciosa para o tema das coalizões (MILIBAND, 1972 [1969]; OFFE, 1975;
ELSTER, 1985; PRZEWORSKI; WALLERSTEIN, 1988). O Estado, no capita­
lismo, é estruturalmente constrangido a orientar suas ações tendo como
referência as relações de produção desse sistema econômico. O capital
possui poder público.

O Estado e a sociedade dependem estruturalmente do capital. Os im-


postos arrecadados pelo Estado provêm das relações de produção capi­
talistas. Indivíduos e grupos dependem das decisões das firmas, que
afetam os níveis de atividade econômica, emprego e consumo. E a so-
ciedade como um todo depende das decisões de investimento tomadas
pelo setor privado (IANONI, 2013, p. 585, tradução do autor).

Esse argumento inclui em uma moldura teórica mais ampla o compro-


misso de classe social-democrático, supracitado, além de outros casos.

A tese da dependência estrutural do Estado em relação ao capital implica


a coalização do poder público, por mecanismos estruturais, institucionais
e de agência, aos interesses capitalistas. Nesse sentido, Offe (1984) argu-
menta que o Estado capitalista tem a acumulação como refe­rência. No
que diz respeito aos partidos social-democratas, essa tese contribui para
explicar a trajetória deles no sentido de se coalizarem ou tecerem com-
promissos com os capitalistas. A experiência histórica, até agora, mostra
que as condições de ocorrência das vitórias eleitorais dos partidos social-
-democratas alteram a relação de forças entre as classes, mas não ao
ponto de propiciar a formação de governos que prescindam das relações
de produção capitalistas e tenham meios e disposição para expropriar a
propriedade privada e implantar o socialismo. O impulso transformador
dos governos social-democratas encontra seu limite na economia capi-
talista. Por outro lado, sendo a história mutável, o compromisso social-
-democrata deve ser compreendido de modo contextualizado.

A literatura sobre corporativismo também fornece elementos teóricos


importantes para a compreensão das coalizões que suportam o Estado
capitalista. Tanto o pluralismo como o corporativismo mostram, cada
qual a seu modo, que, além da política eleitoral, a política dos grupos de
pressão também é importante (WILLIAMSON, 1989). O desenvolvimento
dessa literatura foi especialmente importante nos estudos de economia
política sobre a organização sindical dos trabalhadores e as instituições
da social-democracia (THELEN, 2002).

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 167


Para uma abordagem ampliada das coalizões

No trabalho pioneiro sobre corporativismo, Schmitter (1974) distin-


guiu dois subtipos, o de Estado e o social, o primeiro tendo origem em
regimes autoritários e o segundo, nas democracias. Ele identificou o
corporati­vismo social na Suécia, Suíça, Holanda, Noruega e Dinamarca,
assim como algumas de suas características em países com siste-
mas de representação de interesses supostamente pluralistas, como
Reino Unido, Alemanha Ocidental, França, Canadá e Estados Unidos.
Todos esses países compartilham a condição de serem desenvolvidos
e possuírem regimes democráticos. Por outro lado, o corporativismo de
Estado foi então identificado em Portugal, Espanha, Brasil, Chile, Peru,
México, Grécia e nas experiências fascistas na Itália, França de Petain,
Alemanha e Áustria.

A literatura sobre o corporativismo o apreendeu como uma modalidade de


intermediação de interesses, como meio de formulação de políticas públi-
cas e como arranjo institucional. Schmitter formula uma macro-hipótese
explicativa de natureza sistêmica para o corporativismo, relacionando-o

[...] a certos imperativos básicos ou necessidades do capitalismo para re-


produzir as condições de sua existência e continuamente acumular mais
recursos. As diferenças na especificidade desses imperativos ou neces-
sidades em diferentes estágios do desenvolvimento institucional e do
contexto internacional do capitalismo, especialmente na medida em que
afetam o padrão de interesses de classe conflitantes, explicam a dife-
rença de origens entre as formas societária e estatal de corporativismo
(SCHMITTER, 1974, p. 107).

Em contextos nacionais de regimes democráticos, especialmente na


Europa após 1945, a modalidade social, também chamada de neocorpo-
rativismo, fez parte do arranjo institucional do compromisso de classe
supramencionado, especialmente por meio da concertação social ou
diá­logo social e o tripartismo, envolvendo, em distintas experiências
nacionais, governos e organizações representativas dos trabalhadores e
dos empregadores (LEHMBRUCH, 1984). A Organização Internacional do
Trabalho inclui o diálogo social e o tripartismo nas suas diretrizes básicas de
atuação, sendo que uma perspectiva-chave de seus instrumentos de traba-
lho é ampliar a coalizão política entre os atores (RODGERS et al., 2009).

Schimmter e Grote (1997) argumentam que, nos anos 1980, avaliou-se


que o neocorporativismo estava em decadência, mas tais autores consi-

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Marcus Ianoni

deram que ele ganhou impulso na década seguinte em países que não
tinham forte tradição nesse tipo de arranjo institucional.

A temática das coalizões também aparece na literatura sobre a ação de-


senvolvimentista dos Estados. A existência de uma coalizão desenvolvi-
mentista sustentando politicamente um consenso com o mesmo adjetivo
foi essencial em experiências de industrialização retardatária, a começar
por Japão, Coreia do Sul e Taiwan (JOHNSON, 1982, 1999; EVANS, 1995).
Essa coalizão estrutura-se na cooperação público-privado visando ao
desenvolvimento industrial, e envolve instituições do Estado, como, no
caso do Japão, o Ministério do Comércio Internacional e Indústria (MITI).
De um modo geral, as análises sociocêntricas propiciam uma visão das
coalizões preocupada com os seguintes aspectos: o modo como as rela-
ções de força influenciam o posicionamento, a ação e a organização dos
atores e a formação dos blocos em disputa; o impacto dos diversos arran-
jos entre classes e frações nas políticas do Estado; os campos ideológicos
configurados a partir das disputas de interesses entre os grupos aliados e
conflitantes. Por outro lado, o enfoque institucionalista, como o aplicado
ao desenvolvimento, preocupa-se mais com outro aspecto fundamental
e necessário para operar a transformação econômica: a construção ins-
titucional da coalizão, que envolve decisores públicos, empresários e, em
alguns casos, como em experiências da social-democracia europeia e no
Brasil entre 2003 e 2014, trabalhadores e movimentos sociais, além de
outros atores da sociedade civil.

Transformações históricas de abrangência internacional, regional ou na-


cional que conformam ora um modelo de capitalismo mais liberal, como
foi o caso do Brasil na Primeira República, no início do século XX, ora
mais desenvolvimentista, verificado entre os anos 1930 e 1980, nova­
mente seguido por um modelo de corte (neo)liberal, nos anos 1990, e
que, por sua vez, foi sucedido por uma experiência de inclinação social-
-desenvolvimentista entre 2003 e 2014, remetem a três literaturas: uma
sobre cross-class coalitions, já mencionada; outra sobre variedades de ca-
pitalismo; e a referente aos policy regimes (regimes de políticas públicas).45
A abordagem corporativista enfatiza mais a organização dos trabalhado-
res, ao passo que a literatura sobre cross-class coalitions mostra o papel
dos empregadores (SWENSON, 2002; THELEN, 2002). Por outro lado, dife-
rentemente da literatura específica sobre o Estado desenvolvimentista,

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 169


Para uma abordagem ampliada das coalizões

acima mencionada, que se refere a uma economia de mercado plane-


jada, por assim dizer, a abordagem das variedades de capitalismo, por
possuir perspectiva comparativa, também analisa os modelos liberais de
capitalismo, ocupando-se das relações entre regimes políticos e econo-
mias políticas, como as diferentes coalizões e formas de coordenação
das instituições do trabalho e da produção existentes nos dois principais
modelos de economia capitalista (HALL; SOSKICE, 2001; THELEN, 2002;
HANCKÉ, RHODES, THATCHER, 2007). Já o debate sobre os policy regimes
procura compreender o motivo pelo qual, em alguns períodos, a distân-
cia entre as políticas dos diversos partidos diminui, quando então ocor-
rem mudanças ou inovações nas políticas públicas, que passam a ser o
novo padrão em torno do qual se retoma certa convergência nas linhas
que orientam as políticas dos diferentes partidos nos governos democrá-
ticos (PRZEWORSKI, 2014).

Duas dimensões de análise não excludentes, pelo contrário, complemen-


tares, mas distintas da ideia de coalizão são importantes. Por um lado,
coalizão/coalizões diz respeito aos desdobramentos dialéticos das rela-
ções de força e de interesse entre classes, frações de classe e partidos,
que direcionam politicamente e ideologicamente certos cursos de ação
do Estado, comumente contraditórios, uma vez que, normalmente, há
mais de uma coalizão pressionando as decisões públicas. Em geral, coa-
lizão é uma noção plural, pois a disputa política, sobretudo em contextos
democráticos, envolve, pelo menos, oposição e situação. Provavelmente,
apenas em uma hegemonia fechada, um dos tipos de regime político de-
finido por Robert Dahl (1971), se possa imaginar uma coalizão no singular,
composta por uma pequena elite coesa. Há tanto divergências internas a
cada uma das coalizões, como, obviamente, diferenças entre elas. Tanto
os consensos e dissensos em que há intracoalizão como aqueles em que
ocorrem intercoalizões impactam ou podem influenciar as instituições
e decisões do Estado. No caso do Brasil pós-2003, por exemplo, não só a
coalizão neoliberal pressionou muito a política macroeconômica, estru-
turada em torno de pressupostos cognitivos ortodoxos que dificultaram
a implementação da política de desenvolvimento, como também houve
diver­gências internas ao campo desenvolvimentista sobre a reforma tra-
balhista e a política fiscal, por exemplo. Por outro lado, aumentou, naquele
período, o consenso geral em relação a se enfrentar, com mais empenho,
o problema da desigualdade social.

170 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017


Marcus Ianoni

A influência das coalizões sobre o Estado, incluindo as disputas políticas


internas e externas que as acompanham, pode também ser esclarecida
pelo argumento teórico, já mencionado, que distingue, por um lado, as
relações de dominação de classe existentes na sociedade e, por outro,
o pacto fundamental de dominação que estrutura o poder de Estado.
Embora o governo seja a principal instituição e função do Estado, ele não
se confunde com o Leviatã enquanto uma estrutura enraizada nas rela-
ções de classe, mesmo levando em conta a autonomia relativa do poder
político-institucional. Em um regime democrático, por exemplo, a con-
quista do governo por um partido ou coalizão de esquerda não implica
controlar a capilaridade de vínculos sociopolíticos que estrutura o poder
de Estado. Mesmo em um regime autoritário de direita, para pensar em
outro exemplo, a elite governante não paira acima dos interesses socioe-
conômicos; está inserida nas relações sociais e constrangida a não virar
as costas para a sociedade civil burguesa, como diria Hegel. Por outro
lado, o poder de classe sobre e no pacto de dominação não é uma mera
decorrência de atos de vontade, mas também de condições estruturais e
conjunturais, como o momento histórico do capitalismo e seu impacto
no país, as crises na economia ou nas relações políticas entre os atores,
os realinhamentos de forças sociais e/ou eleitorais etc. O poder estru-
tural das diferentes coalizões capitalistas, especialmente as suas duas
modalidades típicas, a neoliberal e a desenvolvimentista, depende das
características do processo social, econômico e político em determinado
período histórico.46

O poder da coalizão neoliberal tem íntima relação com as mudanças


estru­turais que caracterizam a globalização, que tendem a padronizar as
políticas propostas no Consenso de Washington. Mesmo após a crise inter­
nacional de 2008, a força inercial das políticas neoliberais sobreviveu no
Ocidente com mais intensidade que as políticas desenvolvimentistas.
Só a partir de 2016 e 2017, com a vitória do Brexit no Reino Unido e de
Donald Trump nos EUA, uma reação nacionalista nas duas pátrias-mães
do liberalismo econômico começa a se desenhar. Na Ásia, sobretudo na
China, o desenvolvimentismo é mais forte. No caso do Brasil, de Lula a
Dilma, o máximo que as decisões e demandas das forças desenvolvi-
mentistas lograram alcançar em termos de mudança na política macro-
econômica foi flexibilizar o regime neoliberal de metas de inflação, de

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Para uma abordagem ampliada das coalizões

câmbio flutuante e de arrecadação de superávit primário, sem jamais


substituí-lo por outro (OREIRO, 2016; IANONI, 2016).

Por outro lado, há a dimensão institucional da coalizão. As abordagens


neoinstitucionalistas contribuem ao focarem o processo de construção
de coalizões não no plano macroestrutural, mas nos níveis médio e mi-
cro de análise, como fazem Sabatier e Weible (2007) em relação a certas
áreas de políticas públicas. Kingstone (1999, p. xxi) distingue três tipos de
coalizões: legislativa, eleitoral e de governo, referindo-se esta última aos
grupos sociais que apoiam certas políticas públicas.47 Todas essas três
coalizões podem ser mais ou menos definidas, explícitas, formalizadas e
mobilizadas, estáveis ou instáveis, fortes ou fracas, e podem apresentar
diferentes níveis de participação. Ao estudar os industriais brasileiros,
esse autor considera que eles compõem coalizões eleitorais e gover-
namentais. Mas pode-se acrescentar que, embora os empresários de
qualquer ramo de atividade não pertençam formalmente ao Legislativo,
podem apoiar ou se opor a coalizões pontuais ou mais estáveis consti-
tuídas no interior desse poder supremo. Além disso, Kingstone distingue
quatro tipos de respostas políticas às propostas de reforma econômica:
oposição agressiva, oposição passiva, aquiescência e apoio entusiástico.
Todas essas dimensões de análise são importantes para uma perspec-
tiva ampliada das coalizões, sobretudo quando se trata de compreen-
der um padrão geral de ação econômica do Estado em um determinado
momento de sua história. Especificamente no que diz respeito ao Brasil,
esse autor examinou a construção de coalizões com o empresariado
para a implementação das reformas neoliberais nos governos de Collor,
Itamar e FHC. O método de investigação que ele mobilizou combina o
exame do contexto, dos atores (presidente, congressistas, organizações
empresariais), das instituições políticas e de intermediação de interesses
e dos eventos significativos. Por outro lado, Mancuso (2007), ao investigar
a ação do empresariado industrial, desde meados dos anos 1990, para
enfrentar a concorrência externa e interna em contexto de globalização
do comércio internacional e abertura comercial no país, avalia que a
redução do custo Brasil foi a pauta que unificou esse setor de atividade
ou fração de classe, tendo suas principais entidades representativas or-
ganizado com significativo sucesso, segundo o referido autor, um dispo-
sitivo de ação específico para viabilizar a agenda legislativa da indústria
no Congresso Nacional.

172 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017


Marcus Ianoni

O estudo das coalizões requer pesquisa empírica para apreender suas


carac­terísticas concretas em cada contexto de análise, como o fez tam-
bém Gourevitch (1986), autor já mencionado. Por exemplo: a hipótese da
coa­lizão social-desenvolvimentista nos governos de Lula e Dilma deve
ser investigada empiricamente. Outra dimensão importante para a pes-
quisa das coalizões na perspectiva ampliada é o contexto ideológico e
a opinião pública, uma vez que ambos influenciam a agenda política.
No caso do Brasil, as grandes corporações de mídia, que conformam um
sistema de propriedade concentrada da comunicação social, defendem,
de um modo geral, uma política econômica neoliberal. A ideia de articu-
lação de fatores causais é importante para se compreender o processo
político e a formação das coalizões (Sallum Jr., 2015).

Quanto mais se avança, a partir de uma determinada relação de forças


(que afasta e aproxima classes e frações), na construção de uma coalizão,
através de meios institucionais formais e informais e mais ou menos
estáveis de agregação de interesses (concertação, diálogo social, pacto
social etc.), para realizar certos objetivos, como a formulação e imple-
mentação de políticas de desenvolvimento ou redistributivas, aumenta
a chance de sucesso dos propósitos políticos em jogo. Isso ocorre, entre
outros motivos, porque a aliança de apoio é uma relação associativa qua-
lificada, não amorfa, que suporta um conjunto de ações politicamente
orientadas, propiciando, em tese, ganhos na capacidade política estatal
de implementação, embora a expertise também seja muito relevante para
a efetividade das medidas tomadas. Nesse sentido, como já referido, coa­
lizão (coalition building) é condição sine qua non da dominação política
(state building); uma e outra são interdependentes.

Ou seja, a análise da coalizão requer a observação de componentes socio­


políticos e institucionais, entre os quais, os atores, seu comportamento,
seus interesses e recursos de poder, a disputa no campo ideo­lógico, os
mecanismos decisórios e de agregação de interesses e o conteúdo das
decisões tomadas. Mas todos esses elementos precisam ser vistos em
uma perspectiva histórica, que leve em conta as tendências de conteúdo
estrutural (na economia, nas relações externas, no sistema de classes,
no aparato estatal etc.) e sua interação com as condições conjunturais,
que delimitam o campo das ações. Nas eleições presidenciais brasilei-
ras de 2014, por exemplo, institucionalmente venceu a coalizão social-

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 173


Para uma abordagem ampliada das coalizões

-desenvolvimentista, com a reeleição de Dilma Roussef em um pleito


disputadíssimo. Porém, a crise do crescimento, um déficit fiscal nominal
excepcionalmente elevado e uma taxa de inflação no limite superior da
meta estavam presentes naquele contexto nacional. Não à toa, no plano
das eleições legislativas para o Congresso Nacional e na esfera socio-
política, pode-se considerar que quem venceu mesmo o debate público
de então e o jogo das alianças foi a coalizão conservadora-neoliberal,
o que levou a presidenta reeleita a nomear um ministro da Fazenda
defensor de uma política econômica ortodoxa, de austeridade fiscal e
monetária, cuja possibilidade de implementação ela havia rejeitado
durante a disputa eleitoral.

As abordagens sociocêntrica e estadocêntrica do Estado percorreram ca-


minhos distintos, mas podem ser integradas na análise das coalizões,
que são um componente estrutural inerente ao Estado e ao processo po-
lítico. Enquanto alguns críticos consideram a formulação sociocêntrica
muito genérica, macroestrutural e não preocupada com a fundamen­
tação empírica de seus argumentos teóricos e conceitos, a interpretação
estadocêntrica, que procurou ser uma alternativa à anterior, tende, em
alguma medida, ou a isolar-se no universo institucionalista que ela cria,
prescindindo da ordem social e econômica para analisar o Estado ou a
apresentar componentes analíticos voluntaristas. Não obstante, o ins-
titucionalismo, principalmente o histórico, possui uma tradição experi-
mentada em pesquisa empírica e métodos qualitativos e quantitativos,
assim como argumentos teóricos sobre a importância do Estado para ex-
plicar certos cursos de ação, por exemplo, em relação ao welfare state e
ao desenvolvimento. A síntese entre as duas abordagens pode propiciar
resultados com menos problemas que cada uma delas isoladamente
pode possuir. Assim, se o campo do neoinstitucionalismo histórico rea­
giu à abordagem sociocêntrica clamando para que o Estado fosse trazi-
do de volta, é hora de superar essa dicotomia e construir pontes entre
Estado e sociedade, que iluminem com um duplo holofote, sociopolítico
e político-institucional, as coalizões inerentes à estrutura de poder polí-
tico, à dominação política e à ação política.

Os autores mencionados trazem contribuições teóricas, empíricas e


metodológicas relevantes tanto para avaliar a influência das coalizões
sociais sobre o Estado como sobre os nexos entre elas e os partidos

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Marcus Ianoni

políticos. Entre eles, Moore destaca, pelo método comparativo da sociolo-


gia histórica, o papel explicativo das coalizões sociais nas rotas políticas do
processo de modernização; Gershenkron e Johnson abordam o papel das
coalizões entre classes, partidos e burocracia pública no desenvolvimento
industrial; Przeworski analisa o papel da coalizão ampliada na estrutu-
ração do compromisso de classe de natureza social-democrata, arranjo
político que a literatura sobre o corporativismo também contribui para
ser compreendido. Gourevitch mostra como as coalizões forjaram diferen-
tes respostas nacionais à mesma crise internacional. Kingstone analisa
institucionalmente as coalizões envolvendo atores sociais e partidários,
apontando suas modalidades (legislativa, eleitoral e de governo) e aspec-
tos como sua força e fraqueza. Essa literatura precisaria ser revalorizada.

Coalizões nas ciências sociais sobre o Brasil

A visão das coalizões como um elemento explicativo chave da mudança


econômica, política e social já foi relativamente mais importante nas
análises das ciências sociais sobre a modernização do Brasil, sobretudo
em obras publicadas entre as décadas de 1960 e 1980, do que tem sido
desde então. Assim, na interpretação da Revolução de 1930, argumenta-se
que houve uma aliança entre as oligarquias dissidentes e as camadas
médias urbanas, cuja principal expressão política seria o movimento
tenentista, visando contrapor-se à crise de hegemonia da burguesia
cafeeira (FAUSTO, 1967; WEFFORT, 1980). Para Weffort, o compromisso
entre as oligarquias não ligadas à exportação e as classes médias não é
suficiente para que o Estado que emerge no pós-1930 produza sua legiti-
midade apenas dessa aliança sociopolítica.

Depois de 1930 [...] estabelece-se uma solução de compromisso de novo


tipo, em que nenhum dos grupos participantes do poder [...] pode ofe-
recer as bases da legitimidade do Estado: as classes médias porque não
possuem autonomia política frente aos interesses tradicionais em geral,
os interesses cafeeiros porque foram deslocados do poder político sob
o peso da crise econômica, os setores menos vinculados à exportação
porque não se encontram vinculados aos centros básicos da economia
(WEFFORT, 1980, p. 50).

Nessas condições, Weffort argumenta que a única fonte de legitimi-


dade possível para o novo Estado serão as massas populares urbanas

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 175


Para uma abordagem ampliada das coalizões

(WEFFORT, 1980, p. 63). Um dos principais desdobramentos institucionais


desse compromisso de novo tipo seria a política trabalhista e o sindica-
lismo corporativista.

Cardoso (1968) refere-se à aliança desenvolvimentista que, sobretudo a


partir do final da Segunda Guerra Mundial, promoveu uma “política de
compromisso entre os setores industrial-financeiros nacionais e os setores
urbano-populares”, que “não excluiu nem a vinculação do primeiro des-
tes dois conjuntos de forças com o que muitas vezes com impropriedade
se chamou o ‘setor tradicional latifundista exportador’, nem impediu a
pressão urbano-popular” (CARDOSO, 1968, p. 105). Era uma aliança assi-
métrica, com as vantagens principais sendo apropriadas pelos setores
industrial-financeiros nacionais. Além disso, as massas rurais estavam
dela excluídas, assim como, em menor medida, também estavam de
fora as populações urbanas denominadas marginais. Essas duas exclu-
sões contribuíram para a manutenção da aliança desenvolvimentista
“enquanto houve expansão do sistema produtivo” (CARDOSO, 1968,
p. 105). Esse autor está se referindo às bases de sustentação social e polí-
tica das transformações promovidas pelo Estado no âmbito da estratégia
nacional-desenvolvimentista, particularmente na democracia populista.

Em outro trabalho, Cardoso (1993 [1971]), ao avaliar o golpe militar de


1964, diz que seu desdobramento

[...] deslocou o setor nacional-burguês e o grupo estatista-desenvolvi-


mentista da posição hegemônica que mantinham em proveito do setor
mais internacionalizado da burguesia, mais dinâmico e mais ‘moderno’,
porque partes integrantes do sistema produtivo do capitalismo interna-
cional (CARDOSO, 1993 [1971], p. 97).

É nesse contexto que ele caracteriza a “revolução” feita pela burguesia


brasileira como um movimento de integração ao capitalismo interna-
cional na condição de associada e dependente. Essa transformação na
economia dependente “pôs de lado [...] os empecilhos ideológicos e orga-
nizacionais que dificultavam a definição da política de associação entre
o Estado, as empresas nacionais e os trustes internacionais” (CARDOSO,
1993 [1971], p. 99). O desenvolvimento dependente passa a ser associado-
-dependente e a aliança que lhe corresponde exclui os setores populares
urbanos. Até Vargas, a frente desenvolvimentista teria tido um conteú-
do mais nacionalista e redistributivista. Com a abertura ao ingresso dos

176 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017


Marcus Ianoni

capitais externos para alavancar uma nova fase da industrialização subs-


titutiva de importações, essa frente teria se tornado mais desenvolvi-
mentista e menos nacional-redistributiva.48

A análise de Evans (1979) seguiu a mesma direção, concebendo a exis-


tência, no Brasil do regime militar, de uma tríplice aliança, composta pelas
multinacionais, pela burguesia estatal e pela burguesia nacional. Ele qua-
lifica a burguesia estatal

[...] como uma espécie de ‘fração de classe’ que participa de um projeto


comum tanto com as multinacionais, como com o capital privado na-
cional. Cada grupo pode ver no projeto diferentes limitações e um deles
pode ter interesses particulares que contrariam os interesses dos outros,
mas todos têm uma alta taxa de acumulação no nível nacional (EVANS,
1980, p. 53).

No andamento desse desenvolvimento dependente brasileiro, apoiado


na tríplice aliança, a democracia pode ser desnecessária e, inclusive,
atrapalhar, pois já não se está mais na primeira fase de substituição
de importações, centrada nos bens de consumo, mas em seu segundo
momento, quando os bens de produção e intermediários ganham desta-
que, requerendo investimentos elevados. Nesse contexto, que se caracte-
riza por uma maior integração do país à economia internacional, devido
à internacionalização do mercado interno, que se abre às multinacionais,
ou seja, ao investimento direto estrangeiro (IDE), as pressões salariais são
prejudiciais às necessidades da acumulação de capital. Assim, o regime
autoritário pode ser compreendido como uma resposta política vinculada
tanto à conjuntura de avanço das lutas pelas reformas de base como a
imperativos estruturais da acumulação capitalista.

As duas principais clivagens seriam entre a dependência clássica, na


qual o modelo agroexportador estava inserido, e o desenvolvimento de-
pendente. Esse último, em seu aprofundamento, passa a ser um desen-
volvimento dependente-associado, a partir do Plano de Metas, e mais
intensamente ainda durante o regime militar.

O desenvolvimento dependente-associado ocorreu em um ambiente


inter­nacional anterior à globalização. Por outro lado, o início da nova
ordem internacional, no final dos anos 1980, coincide com a crise do
Estado desenvolvimentista brasileiro, que, embora não tão capaci­tado
quanto o soberano congênere japonês, havia desempenhado papel

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 177


Para uma abordagem ampliada das coalizões

importante na promoção da industrialização nacional. Sallum Jr. (1994,


1995) foi pioneiro na caracterização da crise do Estado desenvolvimen­
tista como tendo atingido as bases de sustentação sociopolíticas do
Leviatã, ou seja, seu pacto de dominação, resultando na ruptura da trí-
plice aliança, devido à crise fiscal do Estado, de natureza financeira,
estreitamente vinculada à crise da dívida externa. Os investimentos das
estatais minguaram e as inversões estrangeiras também, estas inclusive
pela emergência de novas possibilidades de negócios em outras regiões
do mundo globalizado, principalmente no Leste da Ásia. Com a redução
drástica dos investimentos pelos dois principais braços do tripé, o
aliado mais frágil, a burguesia nacional, deixou de contar com a indução
para a produção proveniente do Estado e das multinacionais. Em linhas
muito gerais, é esse o cenário de fundo da década perdida, o desarranjo
simultâneo da economia e da coalizão sociopolítica e institucional, que
atingiu o estertor da ditadura militar e logo também converteu em pe-
sadelo o sonho da Nova República e da Aliança Democrática, embora,
simultanea­mente, uma sociedade civil pluralista, exibindo indicadores
vitais até então inéditos, tenha logrado formalizar várias de suas deman-
das na Constituição de 1988.

A reconstrução de um pacto de dominação ou coalizão estruturante neo­


liberal ocorrerá no processo e nos desdobramentos políticos do Plano
Real, a partir de 1994 (KINGSTONE, 1999; IANONI, 2009). Esse plano de
estabilização monetária foi o carro-chefe de um conjunto de reformas
neoliberais que lograram articular uma convergência sociopolítica e
político-institucional de reconstrução das bases de sustentação de um
novo projeto hegemônico norteador das ações do Estado em relação
à gestão de seus recursos, à economia e ao setor privado. Sucederam-
-se dois mandatos presidenciais de orientação neoliberal, encabeçados
por Fernando Henrique Cardoso. No pacto de dominação neoliberal dos
anos 1990, as frações de classe predominantes foram os rentistas e os
financistas (BRESSER-PEREIRA, 2007), sendo que os setores da burguesia
vinculados aos investimentos produtivos – a indústria e o agronegó-
cio, especialmente o primeiro – posicionaram-se como participantes
de segundo plano na hierarquia de poder, inclusive pelo fato de que
todos os grandes grupos empresariais têm a possibilidade de recor-
rer ao rentismo como alternativa aos riscos da inversão produtiva.

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Marcus Ianoni

Há uma tendência estrutural de submissão do capital produtivo à


gestão financeirizada (GUTTMANN, 2008; VAN DER ZWAN, 2014).

Mas a coalizão neoliberal, institucionalmente sustentada pela aliança


PSDB-PFL-PTB, de centro-direita, não logrou, com as suas reformas,
promover o crescimento, gerar o emprego e a renda demandados pela
sociedade e avançar na equidade social.49 Nas eleições de 2002, a can-
didatura da esquerda moderada, capitaneada por Lula, venceu o pleito
e tomou posse em 2003. Durante a campanha eleitoral, em função da
fuga de capitais, que expressava o receio e as pressões dos agentes de
mercado sobre o Estado em relação ao que poderia ocorrer na economia
com a então provável vitória de Lula, esse candidato tornou pública a
“Carta ao povo brasileiro”, garantindo que, em caso de vitória, as mudan-
ças a serem feitas não alcançariam a política macroeconômica e nem
os contratos internos e internacionais. Na medida em que, no primeiro
mandato de Dilma, ela tentava se afastar do tripé macroeconômico (com
forte resistência do comboio sociopolítico estruturado em torno do setor
financeiro), a economia não crescia, a crise internacional dificultava os
planos do governo, cujas políticas não conseguiam reverter a queda dos
investimentos, e a situação nacional ia se complicando. Em 2014, a Ope-
ração Lava Jato, a cobertura da política patrocinada pela grande mídia e
a acirrada disputa eleitoral evidenciavam que estava em curso um ciclo
de polarização social, de politização institucional, tendo como móvel a
luta pelo poder do Estado.50 Eram os desdobramentos de uma conjuntura
cujas raízes vinham se fortalecendo desde as complexas manifestações
de rua de 2013. A coalizão vencedora da polarização política estruturou-
-se em torno de um programa neoliberal. Se a Febraban, para citar um
exemplo representativo dos interesses da financeirização, não capita-
neou a coalizão do impeachment – liderada, na esfera institucional, pelo
PMDB do documento “Uma ponte para o futuro”, pelo PSDB e por elites
da burocracia pública (no Judiciário, na PGR, na PF e no TCU) e, no meio
social, pela nova direita das ruas (Movimento Brasil Livre, Vem pra Rua
e Revoltados On Line) e pela grande mídia –, mas a ela acabou aderindo,
conforme ocorreu também com a Fiesp e inúmeras outras organizações
de representação do empresariado, isso indica que a política e a econo-
mia têm suas autonomias, de modo que seus nexos podem ser tortuosos,
mas não fortuitos. Se, em 2015 e meados de 2016, no calor intenso da

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 179


Para uma abordagem ampliada das coalizões

disputa política, a oposição liberal mais aguerrida posicionou-se contra


a austeridade, no Congresso e na sociedade civil (através das lideranças
dos protestos de rua mencionados) e a esquerda governista a defendeu,
contrariando as suas bases sociais, uma vez esclarecido o desfecho da
crise de controle do poder do Estado, com a consumação da deposição
presidencial, cada coalizão ampliada, seja a vencedora ou a vencida, e
a despeito de suas contradições internas, voltou a apresentar coerência
bem maior com seu programa econômico de fundo, de modo que a
desordem, embora não tenha sido superada, foi ganhando clareza.

Considerações finais

A abordagem desse trabalho, um exercício exploratório de recolhimento


preliminar de matéria-prima a ser ampliada e manufaturada em outros
estudos, desatrelou a noção de coalizão da chave analítica exclusiva-
mente institucionalista. Resgatou-se uma bibliografia sobre coalizão
sociopolítica para explorar seus nexos com o conjunto das instituições
do Estado, inclusive com a coalizão institucional que, no caso do Brasil,
país com sistema político presidencialista, federativo e multipartidário,
vincula o Executivo ao Legislativo, por meio de uma base de partidos
governistas, construída pela distribuição de cargos ministeriais e de
segundo escalão, a fim de formar uma maioria parlamentar para o
presidente da República.

O objetivo foi sustentar o argumento de que, mesmo não se ignoran-


do a autonomia da política em relação à economia (que, não obstante,
não é absoluta), as decisões políticas são influenciadas por caracterís-
ticas estruturais das relações entre Estado e mercado no capitalismo e
pelos interesses de atores sociais dotados de efetivos recursos de poder
que, por se situarem em setores distintos da atividade econômica e di-
ferenciarem-se também por clivagens ideológicas, tendem a se coalizar,
sobretudo informal e hierarquizadamente e de modo, por assim dizer,
tanto objetivo como volitivo, para direcionar cursos de ação do conjunto
do Leviatã, incluindo, obviamente, nas democracias, as instituições for-
mais do sistema representativo. Em algumas conjunturas e desdobra-
mentos eleitorais, grupos organizados dos assalariados, com expressão
partidária, podem ter presença importante na cena política nacional e

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Marcus Ianoni

governamental, como tem sido tradicional em países da Europa e ocor-


reu recentemente no Brasil.

Defendeu-se a perspectiva teórica de se fazer uma análise ampliada das


coalizões, levando em conta as esferas sociopolítica e político-institu-
cional, na qual se destacam o Legislativo e os partidos, mas dela tam-
bém fazem parte as agências do Executivo e o Judiciário. Não se trata de
substituir o foco nas instituições políticas pelo foco nos interesses so-
ciais e econômicos, mas sim de integrar, contextualizadamente, os dois
olhares. No caso do presidencialismo de coalizão brasileiro, sua agenda
de políticas, o maior ou menor respaldo da sociedade civil a ela, a (in)
governabilidade e a legitimidade têm conexões empiricamente eviden-
ciáveis com as coalizões sociais, que precisam ser examinadas à luz da
conjuntura nacional (economia, opinião pública, calendário eleitoral
etc). Por outro lado, a coalizão institucional, como, por exemplo, a que
ocorreu entre PSDB e PFL de 1994 até 2002, também pode ajudar a con-
formar a coalizão social. Mas nem toda coalizão institucional tem a mes-
ma chance de aceitação pelo conjunto dos atores partidários e sociais e
igual capacidade de implementar sua agenda. Essa assimetria de capa-
cidade de implementação de alianças ocorre, sobretudo, em contextos
de tendências estruturais adversas, como vem acontecendo no mundo
com as políticas sociais e, no caso dos países retardatários, com as
políticas de desenvolvimento industrial, diante das estratégias de conso-
lidação fiscal e de mercantilização dos serviços públicos de bem-estar.51
Outro ponto importante é o papel da liderança. Tanto FHC quanto Lula
esforçaram-se para costurar uma coalizão ampliada. Abordando a crise
brasileira em 2015, FHC recorreu a um método de reflexão ampliada da
perspectiva de coalizão (bloco de poder) coerente tanto com a sua pro-
dução intelectual suprarreferida como com a sua ação na conjuntura
crítica de 1993-1994. Sua avaliação acabou por prevalecer no processo
político do impedimento, em 2016:

[...] a solução da crise não decorrerá apenas da remoção do obstáculo


mais visível a um reordenamento político, simbolizado por quem exer-
ce o Executivo e pelo partido de apoio ao governo, mas da formação de
um novo bloco de poder que tenha força suficiente para reconstruir o
Estado brasileiro, livrando-o do endividamento crescente e já contratado
pelas leis aprovadas. Bloco de poder não é um partido, nem mesmo um
conjunto deles, é algo que engloba, além dos partidos, os produtores e

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Para uma abordagem ampliada das coalizões

os consumidores, os empresários e os assalariados, e que se apoia tam-


bém nos importantes segmentos burocráticos do Estado, civis e militares
(CARDOSO, 2015).

A esfera político-institucional envolve um conjunto de instituições e ato-


res dos três poderes do Estado, do sistema representativo formal, dos
partidos políticos, das elites políticas e da burocracia pública e as nor-
mas, regras, leis, práticas informais, enfim, que regulam o processo de
decisão política e a interação entre os atores. Já foi abordado que todos
os poderes do Estado se relacionam com as forças sociais. Os partidos,
por sua vez, vinculam-se não apenas a eleitores atomizados, embora
isso varie conforme os sistemas partidários e as agremiações concretas.
Eles também se entrelaçam a organizações e líderes da sociedade civil,
dotados de variados recursos de poder, como empresas, empresários,
associações, sindicatos, meios de comunicação, jornalistas, comunida-
des religiosas e assim por diante.

A esfera sociopolítica diz respeito às classes, frações, grupos de interesse,


que se expressam politicamente por meio de elites ou lideranças, como
as organizações já mencionadas. Essas forças sociais se relacionam não
apenas com os partidos políticos e com o Legislativo, mas também com
diversas instituições do Estado que lidam com matérias que lhes inte-
ressam. Se, por um lado, as instituições públicas importam, o Estado, na
verdade, constitui um conjunto delas, não apenas o Legislativo, embora
esse poder tenha inquestionável importância decisória e seja peça-chave
na função de legitimação do regime democrático-representativo. Os mi-
nistérios responsáveis por áreas como a indústria, a agricultura e o tra-
balho, por exemplo, estabelecem, comumente, vínculos com industriais,
agricultores e trabalhadores, respectivamente. Os ministérios da educa-
ção e da saúde, por sua vez, tendem a se relacionar com proprietários de
instituições de ensino, professores, empresas de saúde do setor priva-
do, médicos e assim por diante. Uma vez que as relações sociais dessas
agências do Executivo dizem respeito a interesses dos atores envolvidos,
elas tendem a impactar o processo de decisão política, seja ela legisla-
tiva, administrativa ou judiciária, sobretudo quando possuem caráter
institucional formalizado, mas também em contextos informais, lícitos
ou ilícitos, de ligação entre o Estado e as classes ou grupos. Então, im-
porta também analisar as relações do Estado em geral, o Legislativo, mas

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Marcus Ianoni

também o Executivo e o Judiciário, com as forças sociais.52 Na crise polí-


tica aberta no Brasil em 2015, por exemplo, atores situados no Judiciário,
no Ministério Público e na Polícia Federal desempenharam um impor-
tante papel, por sua atuação nas investigações de corrupção envolvendo
elites políticas e empresariais e pelas decisões que tomaram. Fizeram-no
em conexão direta com a grande mídia, costurando, assim, um núcleo
de coalizão oposicionista, que foi se articulando também a forças parti-
dárias e do Congresso Nacional e a outras elites empresariais, além das
corporações dos meios de comunicação de massa, em um processo que
desembocou no impeachment da presidenta Dilma Roussef.

Além dos mecanismos institucionais que estruturam o presidencia­


lismo de coalizão, há outros que vinculam os interesses sociais às várias
agências importantes do Estado, nos três poderes.53 Inúmeras iniciativas
legislativas do Executivo são antecedidas por processos de formulação
de políticas públicas, dos quais participam, de uma forma ou de outra,
frações de classes, por intermédio de suas elites, como são certos gru-
pos associativos.54 Mas a influência dos interesses sociais também pode
ocorrer de modo estrutural-difuso. Geralmente, o Estado está sob o duplo
constrangimento da estrutura e da agência. Quando projetos de lei, no
sentido amplo do termo, tramitam no Legislativo, os atores sociais con-
trários e favoráveis às iniciativas legislativas do Executivo ou de algum
parlamentar ou partido também se organizam para apoiar ou se opor.
Em diversas áreas de políticas públicas, grupos de interesse empresa-
riais formulam propostas normativas e as submetem a parlamentares
individuais ou a partidos para fins de inclusão e aprovação na agenda
legislativa. Isso ocorre principalmente nos regimes democráticos, mas
mesmo em regimes autoritários os grupos de interesse influenciam a
decisão pública, pois não há como o Estado pairar acima do mercado,
conforme argumenta a tese da dependência estrutural do Estado em re-
lação ao capital, e tampouco existe uma mecânica natural do “sistema”
que torne a ação política desnecessária. O desenvolvimento econômico
em regimes autoritários, como exemplificado no Japão antes da Segunda
Guerra Mundial, nas primeiras décadas da industrialização da Coreia do
Sul e no Brasil, durante a ditadura militar, não se deu meramente por
decisões de cima para baixo, sem que o empresariado exercesse algum
nível de influência nas políticas públicas, entre elas a política industrial

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 183


Para uma abordagem ampliada das coalizões

(EVANS, 1979; JOHNSON, 1982; CHANG, 2002). Ademais, a hipótese aqui


defendida é que as estruturas e ações políticas que interagem com e no
Estado, que é um ente ativo, e não passivo, não podem ser concebidas
apenas em uma chave teórica pluralista, dado o caráter centralizado do
capital. Por outro lado, há distintas frações de classe, entre o empresaria-
do em geral e mesmo entre os assalariados etc., de modo que as coali-
zões, sejam elas mais ou menos implícitas ou explícitas, fracas ou fortes,
tendem a ser, por assim dizer, um imperativo da cooperação e da compe-
tição políticas entre os diversos interesses, um constrangimento relacio-
nal que permeia a sociedade, a economia e a esfera político-institucional.
Por fim, há momentos de crise no bloco de poder, no pacto de domi-
nação ou nas coalizões que efetivamente marcam a realidade nacional
em determinados períodos, sejam seus resultados bem ou malsucedidos.
Tais crises podem implicar em mudança de trajetória, como ocorreu no
pós-1930, quando o modelo agroexportador e liberal foi substituído pelo
nacional-desenvolvimentismo, ou em acomodação, como foi o caso es-
pecificamente da política macroeconômica de Lula, que, no máximo, fle-
xibilizou o tripé vigente desde 1999 (OREIRO, 2016; IANONI, 2016).

Os atores políticos em uma democracia não são apenas aqueles inseridos


no modelo do sistema representativo clássico: eleitores, partidos, políti-
cos eleitos ou nomeados para cargos no Executivo e burocratas públicos.
Há várias outras formas de intermediação de interesse, como foi visto no
caso do corporativismo, assim como há audiências públicas, conselhos
consultivos ou deliberativos etc. As instituições de democracia participa-
tiva no Brasil são outra forma de intermediação de interesse complemen-
tar à democracia representativa. As forças sociais têm laços tanto com
os partidos e parlamentares como também com atores políticos e buro-
cráticos posicionados em postos decisórios relevantes dos ministérios,
bancos e empresas públicas, Poder Judiciário etc. Uma possibilidade de
pesquisa sobre as relações entre atores sociais e institucionais no processo
decisório do Legislativo e de outras arenas do Estado seria definir critérios
para selecionar uma cesta de decisões e não decisões efetivamente impor-
tantes para os empresários e os trabalhadores em um dado período (um
ou mais mandatos presidenciais ou uma fase do capitalismo, por exem-
plo) e avaliar o comportamento político e as alianças dos grupos interessa-
dos nessas matérias. Mas isso requer também uma avaliação do contexto.

184 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017


Marcus Ianoni

As abordagens não exclusivamente estruturalistas, centradas na ação,


fornecem contribuições teóricas e metodológicas para conectar os atores
com as classes, frações e grupos de interesse, ou seja, com a sociedade
civil e o mercado.

As diferentes conjunturas, que se inserem em condições estruturais, às


vezes mais estáveis, outras vezes instáveis, de conteúdo econômico, po-
lítico e ideológico, fornecem contornos importantes em relação à agenda
pública e ao processo decisório. A conjuntura pode mudar, por exemplo,
de uma situação favorável, como se deu para o Brasil durante o boom de
commodities, entre mais ou menos 2007 e 2013, até uma situação oposta,
quando há crise econômica nacional e/ou internacional (estagnação, re-
cessão, inflação alta, fuga de capitais etc.), crise política, crise do pacto de
dominação, enfim.

Por outro lado, uma vez que a dimensão da coalizão diz respeito tanto
às relações de força – que aproximam ou distanciam umas das outras as
classes e frações de classe, as elites governantes e partidárias e a burocra-
cia pública – como ao ambiente ideológico e às expectativas da opinião
pública, alimentadas pelos discursos dos principais atores, sobretudo os
que atuam no meio político-governamental e nas corporações midiáticas,
ou têm acesso a estas últimas, é necessário identificar e analisar evidên-
cias referentes a essas duas fontes. A ideologia e a opinião pública ajudam
a formar e modificar o processo de alianças e oposições entre os atores e
tendem a impactar as decisões políticas. Obviamente, a vitória eleitoral
de certos partidos em eleições nacionais, como ocorreu com o PSDB em
1994 e com o PT em 2002, pode alterar, em maior ou menor medida, o
equilíbrio de forças entre os atores, assim como o perfil e o programa das
alianças.

Em 1993 e 1994 no Brasil, por exemplo, o ambiente ideológico e de opi-


nião pública priorizava o combate à inflação, problema que Collor não
havia logrado resolver. Esse contexto, quando também se aproximava a
eleição presidencial, contribuiu para pavimentar o terreno de confecção
da coalizão neoliberal em torno do Plano Real, aliança ampla, que fez da
estabilidade monetária o ponto de partida de seu programa político. Se,
do ponto de vista técnico, o Plano Real se valeu de instrumentos hete-
rodoxos, em termos políticos, ele foi o carro-chefe das reformas liberali-
zantes desenhadas no Consenso de Washington, e inaugurou a macro-

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 185


Para uma abordagem ampliada das coalizões

economia da estagnação (BRESSER-PEREIRA, 2007). Já no período aberto


em 2003, o discurso político do desenvolvimento com justiça social veio
à tona, por meio de várias vozes, começando pela do recém-empossado
presidente Lula.

Em síntese, as relações de força, o ambiente político, ideológico e discur-


sivo e a opinião pública também são elementos de análise das coalizões
que disputam o controle do Estado, para influenciar as decisões de polí-
tica econômica e outras políticas públicas. A noção ampliada de coalizão
evoca o conceito amplo de Estado, que envolve elementos sociopolíticos
e político-institucionais, as bases sociais da dominação política, o tipo de
regime e o perfil da burocracia pública e de suas agências.

A tradição pluralista de avaliação da influência dos grupos de interesse


no processo decisório contribui propondo identificar os atores, seus inte-
resses e recursos de poder, suas ações e suas decisões políticas. Bachrach
e Baratz (1962) atentam para a importância de se observar também as
não decisões, que podem ocultar o poder de atores poderosos. Para a
metodologia da pesquisa sobre a visão ampliada das coalizões, importa
também observar as estruturas (relações de forças, perfil das classes e
frações de classe, sistema produtivo, inserção do país na economia
internacional, path dependence [dependência de trajetória], meios de comu­-
nicação etc.), mas inserindo-as no contexto, uma vez que a perspectiva
histórica do Estado e de suas relações com a dinâmica da economia e
da política é imprescindível.55 Poulantzas (1971 [1968]) concebe ‘estrutura’
como a matriz organizadora das instituições, que as influencia não só
externamente, mas também internamente. O marco estrutural influen-
cia as coalizões e a mudança institucional. Por outro lado, instituições
estáveis, como no caso das organizações de cúpula dos patrões e tra-
balhadores no neocorporativismo dos países nórdicos, podem facilitar a
formação das coalizões em sua acepção ampliada.

Por fim, uma vez que a perspectiva histórica apoia-se no método indu-
tivo, é racional que a pesquisa sobre coalizões – disposta a analisar, de
modo macro, a estrutura de alavancagem política do conteúdo funda-
mental das decisões do Estado em um determinado período – escore-se
em várias áreas de políticas públicas, mas o ponto de partida, segundo
o pressuposto aqui defendido, com base na bibliografia consultada, con-
centra-se nas principais áreas de política que vinculam ao poder público

186 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017


Marcus Ianoni

os interesses dos capitalistas e dos trabalhadores, as duas classes sociais


fundamentais, tais como: a política macroeconômica (áreas fiscal, mone-
tária e cambial), a política industrial e tecnológica, a política trabalhista
e de qualificação profissional, a política externa e de comércio exterior, a
política agrícola e fundiária, a política social e a política de concertação
social. O desafio essencial é resgatar a orientação de Hegel, de não se
perder de vista a floresta em meio a tantas árvores. Para tanto, há que
se identificar o pacto de dominação em que o Estado (pelo conjunto de
suas instituições e decisões relevantes), simultaneamente está ancorado
e ancora, em uma relação de powersharing (compartilhamento de poder),
por assim dizer.56 Quem compõe esse pacto de dominação envolvendo
forças sociais, elites políticas e burocráticas e que é mediado por insti-
tuições e organizações públicas e privadas (associações, sindicatos etc.)?
Quem o apoia por estar incluído, ou quem a ele se opõe por estar de fora
e ter recursos políticos? Quais são as suas preferências, meios de poder e
contradições internas? Quais são as decisões fundamentais tomadas em
determinados períodos, que podem ou não coincidir com um ou mais
governos específicos? Em contexto democrático e de fortes tendências
estruturais neoliberais, em que medida um governo em exercício, eleito
em uma onda de oposição a um antecessor de programa market oriented,
pode atuar como alavanca de um pacto de dominação alternativo, tal
qual, por exemplo, o social-desenvolvimentismo tentado no Brasil entre
2003 e 2014? Pressões tanto de continuidade como de acomodação de
projetos são inelutáveis? Em que condições pode haver mudanças mais
próximas a rupturas ou de alteração de trajetória? Nas critical junctures,
como em 1993-1994, 2002 e 2015-2016?

Enfim, parece ser analiticamente promissor para a ciência política apos-


tar na retomada da pesquisa empírica respaldada em teorias que indu-
zem a considerar que a abordagem dominante sobre coalizão, inscrita
nos estudos legislativos, tem desconsiderado como variável independen-
te e tomado como dados os interesses sociais, mormente os de grande
porte, que, inseridos em determinadas conjunturas e sob constrangi-
mentos institucionais, alavancam o poder decisório do Estado. E assim
o fazem de modo mais ou menos organizado e coalizado entre si e com
os atores políticos, particularmente os partidos, conforme toda uma lite-
ratura internacional e sobre o Brasil, hoje pouco considerada, apontava
no passado e, de modo marginal, ainda insiste em apontar no presente.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017 187


Para uma abordagem ampliada das coalizões

Por outro lado, não se ignora que há momentos de crise, marcados pela
desorganização e rearranjo das coalizões, que, inclusive, podem ser dura­
douros, como, por exemplo, observa-se hoje na Venezuela, principalmente
após a morte de Hugo Chávez.

Conforme dito no início, longe de resolver o complexo problema da inte-


gração e da síntese das perspectivas institucional e social das coalizões
que impactam no Leviatã e, mal ou bem, o suportam enquanto estrutu-
ra e agência, o objetivo foi apenas retomar esse debate importante para
a reflexão acadêmica da política, mormente no atual contexto da crise
brasileira, em que uma aliança conservadora entre interesses sociais
(incluindo a grande mídia), partidos e elites da burocracia pública em
áreas-chave de poder construiu, em 2015 e 2016, a ingovernabilidade do
segundo mandato da presidenta eleita em 2014 e, nesse ambiente de luta
política, promoveu, apoiada em motivo formal no mínimo duvidoso, o
processo de impeachment, ensejando a avaliação de que houve um golpe
de Estado no Brasil, mesmo que formalmente os direitos civis e políti-
cos da Constituição de 1988 não tenham sido abolidos por uma ruptura
institucional. Vitoriosa e a despeito de suas contradições internas (por
exemplo, em relação ao que fazer com a agenda de combate à corrupção
após o impeachment), a coalizão conservadora, na qual o grande capital
de todos os setores se assentou no processo político da crise nacional,
vem redefinindo e capturando (como nunca antes na história deste
país, diria Lula?) substantivamente o conteúdo das decisões do Estado,
convertendo-o para um liberalismo econômico de alto teor, e fazendo a
democracia retroceder como regime, processo de igualdade de oportu-
nidades e cultura política.

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Marcus Ianoni

Notas

1 Escrevi a primeira versão deste trabalho durante meu estágio sênior na


Universidade de Oxford, entre 2015 e 2016. Outra versão, intitulada “Coalizões
e Estado: história, teoria e método”, foi debatida em outubro de 2016 no
Grupo de Discussão sobre o Desenvolvimentismo Social, coordenado por Luiz
Carlos Bresser Pereira, a quem sou grato, assim como aos demais colegas lá
presentes. A responsabilidade pelas limitações é toda minha.

2 Power (2010, p. 25) define presidencialismo de coalizão como “uma resposta


matemática ao problema do permanente presidencialismo de minoria e um
meio de reunir maiorias legislativas” (tradução do autor).

3 Um trabalho recente (IANONI, 2016) aborda a disputa de coalizões em torno


da política macroeconômica nos governos de Lula.

4 As abordagens sociopolíticas das coalizões, não só as marxistas, são amplas


no sentido de que falam da influência sobre o Estado (suas instituições e o
processo decisório) das coalizões de classe ou de grupos de interesse (caso do
pluralismo). Mas aqui se entende por acepção ampliada de coalizão aquela que
busca integrar, através de argumentos teóricos e procedimentos metodológicos,
duas tradições relativamente paralelas de abordagem dessa ideia, a que é
exclusivamente político-institucional e a sociopolítica.

5 Para uma visão ampla da área de estudos legislativos no Brasil, consultar


Limongi (2010).

6 Por outro lado, não se ignora que essas disciplinas são permeáveis à
filosofia, à normatividade.

7 Sobre o pluralismo eclético e sinérgico na ciência política, consultar Almond


(1996).

8 Piketty (2013) reclama do isolamento da economia em relação às ciências


sociais. A ciência política neoinstitucionalista talvez cometa esse mesmo
pecado. A ciência econômica liberal aparta mercado e Estado, enquanto a
ciência política que incorpora o racionalismo utilitarista aos seus pressupostos
afasta-se da sociedade civil. Por outro lado, uma coisa é a inegável importância
das instituições, outra é como o neoinstitucionalismo as apreende.

9 Esta pesquisa é um work in progress.

10 Por outro lado, o artigo argumenta que há decisões relevantes tomadas em


outros poderes e agências do Estado.

11 Sobre a onda neoliberal na América Latina nos anos 1990, consultar Walton
(2004).

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Para uma abordagem ampliada das coalizões

12 Sobretudo desde a vitória do Brexit no referendum do Reino Unido, e de


Donald Trump nas eleições nos EUA, tem se fortalecido uma direita de teor
nacionalista, que é outra possibilidade histórico-estrutural conhecida, embora,
desta vez, como não poderia deixar de ser, esteja lastreada na atual conjuntura
internacional, aberta na crise de 2008, e em seus impactos nacionais.

13 No que respeita aos partidos, estou pensando principalmente na trajetória


oscilante do conteúdo da participação do PMDB, do governo Sarney ao atual
governo Temer, no presidencialismo de coalizão, configurando movimentos
pendulares entre nacionalismo e liberalismo, embora desde o documento
“Uma ponte para o futuro” o equilíbrio ideológico desse partido, visto como a
encarnação mais acabada do clientelismo e do fisiologismo no Brasil, pareça
ter mudado qualitativamente.

14 Consultar Amorim Neto e Tafner (2002).

15 Não é nada cômodo criticar alguns trabalhos de colegas de profissão,


sobretudo para quem admira sua excelência acadêmica e apenas inicia a
aventura arriscada de uma abordagem complementar. Mas a crítica das teorias
e metodologias do campo de estudos faz parte do ofício dos cientistas sociais.

16 Consultar Abrantes (2017), Amorim (2017), Entidades... (2016), Federação


Brasileira de Bancos (2016).

17 Consultar: Federação das Indústrias do Estado de São Paulo ([201-]).

18 Não estou, indiretamente, defendendo a política macroeconômica de Dilma


e nem a sua política de manutenção do emprego através de robustos e amplos
subsídios e desonerações para dezenas de setores. Nem tampouco desconheço
seus limites para a arte da política. Por outro lado, não se trata de negar a
autonomia relativa do Legislativo, que compõe a autonomia relativa do Estado.

19 “A conivência com a operação [impeachment] foi muito além do PSDB e dos


movimentos sociais anti-PT. A imprensa colaborou” (LIMONGI, 2015, p. 111).

20 Para uma discussão sobre a dinâmica entre fatores exógenos e endógenos


associados à mudança institucional, consultar Koning (2015).

21 Em Ianoni (2009) há fontes bibliográficas sobre a visão político-


institucionalista da crise nacional de então.

22 Sobre a concentração e centralização do capital no Brasil já nos anos 1950 e


1960, consultar Queiroz (1965) e Baer (1966). Para dados atuais, consultar Assaf
Neto, Lima e Araújo ([200-]).

23 Para uma referência aos conceitos de estrutura e ação e ao clássico


debate sobre isso nas ciências sociais, consultar Barker (2005). Abordando
o conceito de vias de desenvolvimento, Draibe (1985, p. 33) refere-se a elas
como “alternativas estruturais [que] configuram tendências-limite de direção

190 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 131-201 | jan.-abr. 2017


Marcus Ianoni

do Estado” e que “determinam – de forma simultânea – o espaço substantivo


da política”. Para uma referência à importância da relação de forças,
consultar Esping-Andersen (1990), que, inspirado na economia política de
Michael Kalecki, analisa o welfare state recorrendo ao balance of class power,
perspectiva que vê as coalizões de classe como fundamentais.

24 Consultar: Entenda... (2015) e Anfavea... (2016).

25 Consultar Samuels (2006), Mancuso (2015) e Piccioni (2014) Uma agenda


fundamental para prosseguir na pesquisa sobre a perspectiva integrada das
coalizões seria estudar os vínculos mútuos entre os partidos e as ideologias e
interesses; para uma referência, consultar Rodrigues (2002) e Nicolau (2010).
Por outro lado, o estudo de outros mecanismos de intermediação de interesses
vinculando grupos sociais e Estado também é importante. A perspectiva
ampliada das coalizões requer uma metodologia que se apoie em um sistema
de observações e inferências.

26 Santos (2006) também destaca a importância do contexto ao abordar o


presidencialismo de coalizão. Rennó (2006, p. 269) aponta que a “relação entre
Executivo e Legislativo não é constante no tempo”.

27 Timothy Power, aprofundando a reflexão desenhada em sua obra de 2010, faz


autocrítica em relação à insuficiência da análise da liderança nos estudos sobre
o presidencialismo de coalizão; consultar Vasconcelos (2016).

28 Baran (1972, p. 74) critica a economia neoclássica por “sacrificar a relevância


do assunto à elegância do método analítico; é preferível tratar imperfeitamente
o que é importante do que atingir habilidade extrema no trato de questões
irrelevantes”. Mas não se trata aqui, como já esclarecido, de atribuir irrelevância
à análise neoinstitucionalista das coalizões, e sim de defender uma expansão
do olhar sobre o tema do suporte político às decisões do Estado.

29 Creio que Sallum Jr. (2015) contribui para a referida engenharia política.

30 Não se ignora que essas tendências gerais possuem nuanças. Nos dois
últimos anos de Dilma I, por exemplo, foram aumentando as dificuldades do
governo com o Congresso e com os interesses das forças rentistas e mesmo
com os das forças desenvolvimentistas.

31 Mancuso (2007, p. 78), ao abordar a ação política do empresariado industrial,


argumenta que, com a democratização e o maior protagonismo do Legislativo, o
Congresso Nacional passou a atrair mais a atenção dessa fração de classe e de
outros atores sociais, que antes era dirigida, sobretudo, ao Executivo.

32 Consultar os artigos 4º, 9º, 30º e 66º da Lei Complementar nº 101 (Lei de
Responsabilidade Fiscal) (BRASIL, 2000).

33 Consultar Codato e Costa (2006).

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Para uma abordagem ampliada das coalizões

34 Minha abordagem aqui considera também que certas tendências estruturais


transcendem o ciclo eleitoral e, assim, demarcam constrangimentos para
a política econômica cujo desbloqueio nem sempre depende do mero
voluntarismo dos atores ou das coalizões. É celebre, por exemplo, a frase que
Richard Nixon, supostamente liberal em matéria de economia, teria proferido
nos anos 1960: “Nós todos somos keynesianos agora” (FOX, 2008).

35 Para os conceitos de associação, relação associativa, associação de


dominação, associação política, Estado, ação política e ação politicamente
orientada, consultar Weber (1991, p. 25-35; p. 185-186), onde também ele aborda
os partidos enquanto relação associativa, conceito mais amplo que associação.
Essa distinção pode ser vista, por exemplo, em Weber (2004, p. 47).

36 Uma determinada interpretação da Revolução Francesa, em seus primeiros


15 anos de intensas lutas, poderia associar a mudança de regime e as alianças
entre as forças em ação nas diferentes conjunturas: 1789 (Monarquia Absoluta,
Estados Gerais); 1789-1791 (Assembleia Nacional Constituinte); 1791-1792
(Monarquia Constitucional, Assembleia Legislativa); 1792-1804: I República
(Convenção, 1792-1795; Diretório, 1795-1799, e Consulado, 1799-1804); e 1804-
1814: Império.

37 Mas provavelmente o referido autor não pressupõe que a economia tem


vida própria, à parte das decisões políticas. As políticas públicas e o contexto
internacional são importantes na dinâmica nacional.

38 Sobre o conceito de bloco no poder, consultar Poulantzas (1971 [1968], Vl. 2,


p. 57-85 e p. 138-151).

39 Poulantzas é tão teórico que chega a ser chamado por alguns críticos de
teoricista. Ele distingue formas de Estado de formas de regime.

40 Para uma visita ao tema da autonomia do Estado, nas visões sociocêntricas e


estadocêntricas, consultar Ianoni (2013).

41 Para uma referência à aproximação intelectual entre os três autores,


consultar Gourevitch (1986, p. 11). A obra de Gerschenkron ([1989] 1943),
autor que influenciou Moore Jr. (1966), também se preocupou com os
desdobramentos macrossociais da trajetória das classes rurais (sobretudo
suas elites econômicas), particularmente com o impacto de suas alianças nas
características democráticas ou autoritárias do regime político.

42 Consultar Barrow (1993).

43 Consultar Bresser-Pereira e Ianoni (2015).

44 A obra clássica de Keynes chama-se A teoria geral do emprego, do juro e da


moeda.

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Marcus Ianoni

45 Nem sempre a clivagem entre os modelos liberal e desenvolvimentista é


acentuada, havendo frequentemente, na prática, graus maiores ou menores
de mistura entre esses tipos ideais, como ocorreu no chamado social-
desenvolvimentismo de Lula e Dilma, que não desmontou a armadilha câmbio-
juros (OREIRO, 2016).

46 Para uma referência ao processo político, consultar Sallum Jr. (2015, p. 7-12).

47 Aqui a preocupação não é com a miríade de coalizões que caracterizam a


política pluralista, mas com coalizões que têm impacto estrutural no perfil das
políticas públicas e instituições do Estado em certos períodos mais longos, que
abarcam mandatos governamentais nacionais ou fases mais duradouras da
economia.

48 Consultar Cardoso (1968, p. 105-106).

49 Para uma referência em relação ao caráter liberal do programa do PSDB


desde a sua fundação, consultar Roma (2002).

50 Acima eu mencionei a seguinte tese de Weber: quem pratica política,


reclama poder.

51 Para uma reflexão sobre relações entre presidencialismo de coalizão, agenda


governamental, governabilidade e legitimidade, consultar Avritzer (2016).

52 A importância relativa dos poderes do Estado pode apresentar variações


conforme a área de política a ser investigada. No caso da política monetária e
da gestão da dívida pública, por exemplo, o Banco Central e o Tesouro Nacional
são muito importantes, e essas agências relacionam-se institucionalmente com
os interesses financeiros.

53 Mancuso (2007, p. 197) afirma que a ação política da indústria se dirige


aos “poderes Legislativo, Executivo e Judiciário em âmbito federal, estadual e
local”.

54 Para a relação entre classe social e ação política, consultar Codato e


Perissinotto (2011).

55 As recomendações que Codato e Perissinotto (2011) fazem para a


identificação das classes também servem para as coalizões de classes.

56 Trata-se de um uso livre do termo power sharing, emprestado da literatura


sobre consociativismo.

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Para uma abordagem ampliada das coalizões

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DOSSIÊ

VOLTAR
Fernanda Cimini Salles

NÚMEROS ANTERIORES
Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 169-201 | jan.-abr. 2017 203
EDIÇÃO 28

Dossiê
Florestan: 20 anos depois
Gabriel Cohn (Organização)

A margem e o centro. Travessias de Florestan Fernandes


Gabriel Cohn

Sessenta anos da publicação de um relatório exemplar


Elide Rugai Bastos

Modos de explicar o Brasil: o estruturalismo sociológico de Florestan Fernandes


e o construtivismo institucional de Mangabeira Unger
Carlos Sávio Teixeira

Sobre cinema pago no contexto cultural pós-moderno.


Três teses sobre arte, estética e sociedade
Ronaldo Rosas Reis

A independência do poder judiciário em perspectiva comparada:


Brasil e Argentina
Luciléia Aparecida Colombo

EDIÇÃO 29

Abrigamento de mulheres em situação de violência de


gênero: um estudo comparativo Salvador-Madri
Cândida Ribeiro Santos

Os Sertões, ainda e além


Carolina Correia dos Santos

Uma análise sobre a economia étnica no Brasil


Cláudia Lima Ayer de Noronha e Elaine Meire Vilela

Imprensa e esfera pública: retomando o debate Lippmann e Dewey


Luiz Augusto Campos

Convenções de qualidade e a inserção da agricultura familiar


na cadeia produtiva do leite na região de Imperatriz/MA
Marcelo Sampaio Carneiro

204 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 1-212 | jan.-abr. 2017


EDIÇÃO 30

Crise e reformas no Brasil: trajetória em prol das reformas


orientadas para o mercado nos anos 1990
Alessandro André Leme

Nuno Ramos e suas metamorfoses


Júlia Studart

A autorreação entre arte e vida social


Lucyane De Moraes

A filosofia e seus conteúdos desprezados:


filosofia pop em questão
Marcia Tiburi

Abstração e desfiguração: a crise da representação


na pintura moderna
Marco Casanova

EDIÇÃO 31

Racionalidade, alteridade e violência: uma abordagem


à luz de Emmanuel Lévinas e Hans Jonas
Alexandre Marques Cabral

Entre a obrigação e o prazer: a leitura para adolescentes


de Barcelona e do Rio de Janeiro
Isabel Travancas

De volta ao futuro: o que podemos concluir do debate


acerca das cotas raciais
João Feres Júnior

‘Ler, ver o rosto’ e ‘Olhar com todo o corpo’:


anotações, montagens e investigação com a arte
Manoel Ricardo de Lima

O papel da China no desenvolvimento latino-americano nas


duas últimas décadas: implicações econômicas e políticas
Wagner Tadeu Iglecias

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 1-212 | jan.-abr. 2017 205


EDIÇÃO 32

A agenda social brasileira e os desafios da desigualdade


Fernanda Cimini Salles

Sob suspeita: a literatura brasileira no Uruguai


Ieda Magri

Parabelo: uma performance das veredas do Sertão


Jacques Fux

Relações raciais no Brasil contemporâneo:


uma análise preliminar da produção em artigos acadêmicos
dos últimos vinte anos (1994-2013)
Luiz Augusto Campos e Ingrid Gomes

O fenômeno da pobreza na leitura hegemônica


Maria Fernanda Escurra

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206 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 1-212 | jan.-abr. 2017


Fernanda Cimini Salles

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 169-201 | jan.-abr. 2017 207


Política editorial
A revista Sinais Sociais é editada pelo Departamento Nacional do Ser­viço
Social do Comércio (Sesc) e tem por objetivo contribuir para a difusão e o
desenvolvimento da produção acadêmica e científica nas áreas das ciências
humanas e sociais. A publicação oferece a pesquisadores, universidades,
instituições de ensino e pesquisa e organizações sociais um canal plural
para a disseminação do conhecimento e o debate sobre grandes questões
da realidade social, proporcionando diálogo amplo sobre a agenda
pública brasileira. Tem periodicidade quadrimestral e distribuição de
5.000 exemplares entre universidades, institutos de pesquisa, órgãos
públicos, principais bibliotecas no Brasil e bibliotecas do Sesc e Senac.

A publicação dos artigos, ensaios, entrevistas e dossiês inéditos está con-


dicionada à avaliação do Conselho Editorial, no que diz respeito à ade-
quação à linha editorial da revista, e por pareceristas ad hoc, no que diz
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mensagem deve informar ainda endereço, telefone, e-mail e, em caso de
mais de um autor, indicar o responsável pelos contatos.

Incluir também o currículo (com até cinco páginas) com a formação


acadêmica e a atuação profissional, além dos dados pessoais (nome
completo, endereço, telefone para contato) e um minicurrículo (entre
5 e 10 linhas, fonte Times New Roman, tamanho 10), que deverá constar
no mesmo documento do artigo, com os principais dados sobre o autor:
nome, formação, instituição atual e cargo, áreas de interesse de trabalho,
pesquisa, ensino e últimas publicações.

Os textos devem ser encaminhados para publicação ao e-mail:


sinaissociais@sesc.com.br, ou em CD ao endereço a seguir:

208 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 1-212 | jan.-abr. 2017


DEPARTAMENTO NACIONAL DO SESC
Gerência de Estudos e Pesquisas
Av. Ayrton Senna 5.555, CEP 27775-004 Rio de Janeiro/RJ

O corpo do texto deverá ter no mínimo 35.000 e no máximo 60.000 ca-


racteres, digitado em editor de texto Word for Windows, margens 2,5 cm,
fonte Times New Roman, tamanho 12, espaçamento entrelinhas 1,5. As
páginas devem ser numeradas no canto direito superior da folha.

A estrutura do artigo deve obedecer à seguinte ordem:

a) Título (e subtítulo se houver).


b) Nome(s) do(s) autor(es).
c) Resumo em português (de 100 a 250 palavras, fonte Times New Roman,
tamanho 10, não repetido no corpo do texto).
d) Palavras-chave (no máximo de cinco e separadas por ponto).
e) Resumo em inglês (de 100 a 250 palavras, fonte Times New Roman,
tamanho 10).
f) Palavras-chave em inglês (no máximo de cinco e separadas por ponto).
g) Corpo do texto.
h) Nota(s) explicativa(s).
i) Referências (elaboração segundo NBR 6023 da ABNT e reunidas em
uma única ordem alfabética).
j) Glossário (opcional).
l) Apêndice(s) (opcional).
m) Anexo(s) (opcional).

Anexos, tabelas, gráficos, fotos e desenhos, com suas respectivas legen-


das, devem indicar as unidades em que se expressam seus valores, assim
como suas fontes. Gráficos e tabelas devem vir acompanhados das pla-
nilhas de origem. Todos esses elementos devem ser apresentados no
interior do texto, no local adequado ou em anexos separados do texto com
indicação dos locais nos quais devem ser inseridos. Sempre que possível,
deverão ser confeccionados para sua reprodução direta. As imagens de-
vem ser enviadas em alta definição (300 dpi, formato TIF ou JPEG).

Recomenda-se que se observem ainda as normas da ABNT referentes à


apresentação de artigos em publicações periódicas (NBR 6022), apresenta-
ção de citações em documentos utilizando sistema autor-data (NBR 10520)
e numeração progressiva das seções de um documento (NBR 6024).

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 1-212 | jan.-abr. 2017 209


Referências (exemplos):

Artigos de periódicos

DEMO, Pedro. Aprendizagem por problematização. Sinais Sociais, Rio de


Janeiro, v. 5, n. 15, p. 112-137, jan. 2011.

DIAS, Marco Antonio R. Comercialização no ensino superior: é possível


manter a ideia de bem público? Educação & Sociedade, Campinas, v. 24,
n. 84, p. 817-838, set. 2003.

Capítulos de livros

CANDIDO, Antonio. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio


Buarque de. Raízes do Brasil. 25. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1993. p. 39-49.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Tratado de nomadologia: a máquina


de guerra. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e
esquizofrenia. Trad. Aurélia Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo:
Ed. 34, 1980. v. 5, p. 14-110.

Documentos eletrônicos

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: síntese de indicadores:


2002. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: < http://www.ibge.gov.
br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2002/
sintesepnad2002.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013.

SANTOS, José Alcides Figueiredo. Desigualdade racial de saúde e contexto


de classe no Brasil. Dados, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, 2011. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-
52582011000100001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 jul. 2013.

SANTOS, Nara Rejane Zamberlan; SENNA, Ana Julia Teixeira. Análise


da percepção da sociedade frente à gestão e ao gestor ambiental. In:
CONGRESSO BRASILEIRO DE GESTÃO AMBIENTAL, 2., 2011, Londrina.
Anais eletrônicos... Bauru: IBEAS, 2012. Disponível em: < http://www.ibeas.
org.br/congresso/Trabalhos2011/I-002.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2013.

210 Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 1-212 | jan.-abr. 2017


Livro

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio,


1936.

Trabalho acadêmico

VILLAS BÔAS, G. A vocação das ciências sociais (1945/1964): um estudo


da sua produção em livro. 1992. Tese (Doutorado em Sociologia) –
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992.

Sinais Sociais | Rio de Janeiro | v.11 n. 33 | p. 1-212 | jan.-abr. 2017 211


Esta revista foi composta na tipologia Caecilia LT Std
e impressa em papel pólen 90g, na Rona Editora Ltda.
O beato propagandista do paraíso também tomba - Davi Pessoa Carneiro •

9 771809 981005
Lukács e Mészáros, críticos de Weber - Paulo Henrique Furtado de Araujo •

ISSN 1809-9815
Dossiê: A ciência política e a crise no Brasil - Marcus Ianoni (org.) • Os
protestos e a crise brasileira. Um inventário inicial das direitas em
movimento (2011-2016) - Luciana Tatagiba • Caminhos e descaminhos

01
da experiência democrática no Brasil - Luis Felipe Miguel • Para uma
abordagem ampliada das coalizões - Marcus Ianoni

FINALIDADE SOCIAL 
A revista Sinais Sociais tem por objetivo enriquecer a agenda pública
brasileira fomentando um diálogo amplo e consistente sobre suas
principais questões. Coerentemente com a missão do Sesc de
promover o bem-estar, a produção acadêmica é aqui veiculada tendo
em vista sua contribuição à transformação social. 

PLURALIDADE 
A qualidade de vida é objeto de diversas áreas do conhecimento.
Este é o motivo pelo qual a Sinais Sociais recebe a produção de
múltiplas especialidades, reunidas sob a perspectiva de reconhecer
e valorizar um pensamento crítico capaz de motivar o aprendizado
e o desenvolvimento. 

ALCANCE 
Uma vez que a difusão do conhecimento exige manter e incorporar
canais para garantir o acesso do leitor, esta publicação é distribuída
regularmente a bibliotecas, universidades, instituições de ensino e
pesquisa e organizações sociais. A cada número lançado é realizado
um seminário com a presença dos autores, para transmissão pela
internet. Todas as edições são posteriormente disponibilizadas para
acesso e leitura via web. 

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