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Os intelectuais e o direito

Como qualquer outra atividade institucionalizada pela criação de cursos


acadêmicos, o direito forma seus profissionais habilitados para o exercício. Essa
diferenciação dentro/fora dos círculos acadêmicos também estabelece quem está
habilitado ou não para operacionalizar o direito junto ao Estado, que busca ter o
monopólio na criação de regras gerais e abstratas, sejam elas leis no sentido estrito ou
quaisquer outros instrumentos normativos.
Em uma síntese mais ou menos grosseira, o Estado cria as leis e os
habilitados institucionalmente as operacionalizam. Já está decidido quem tem direitos,
quem tem obrigações e quem funcionará como ponte entre a previsão abstrata e a
concretização de tais previsões. Temos, assim, que o sistema jurídico brasileiro opera
fortemente por meio de representações: os políticos e governantes em geral são nossos
representantes na criação de normas e os advogados e outros profissionais do direito são
nossos representantes em sua concretização.
Não parece ser um sistema tão diferente de outros ramos profissionais, mas
acaba por deixar de fora, ao sagrar-se único meio concebível, exatamente quem seja
titular dos direitos. Não é incomum, quando se acompanha processos, ver que o titular
dos direitos entrou e saiu da lide sem entender completamente o que acontecera durante
o processo. Principalmente porque sua função no processo é apenas movimentar a
máquina jurídica, servindo como testemunhas ou na produção de outros tipos de prova.
No entanto, o “povo”1, mesmo não possuindo o saber institucionalizado das
universidades, tem suas próprias noções de justiça, ou, de forma mais aberta possível,
de certo e errado, bem como procura a prestação estatal quando se sente lesado ou
ofendido por atitudes de outrem. No mais das vezes, não porque entende como
funcionam as regras processuais ou de direito material, mas porque se sente agredido
por uma ação ou omissão e busca reparação onde aprendeu ser cabível.
Se, como Gramsci (1986, p. 188), entendermos que “Existe [...] uma massa
de opiniões ‘jurídicas’ populares, que assume a forma de ‘direito natural’ e forma o
‘folclore’ jurídico”, teremos por conclusão de que existe também no direito o que se
convencionou chamar “baixa” e “alta” cultura. Nesse caso específico, a alta cultura seria
o direito enquanto saber institucional, preocupado em dar uma resolução coerente com o

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Tratado, por ora, como a massa amorfa que se imagina pela evocação do conceito.
ordenamento jurídico e suas formalidades; e a baixa cultura, o direito enquanto saber
popular, mais ou menos ciente do sistema jurídico, mas mais preocupado com a
resolução do conflito em sua materialidade. Mas que conceito de cultura seria esse?
Segundo Chauí (1994, p. 14):

Em sentido amplo, Cultura é o campo simbólico e material das


atividades humanas, estudadas pela etnografia, etnologia e
antropologia, além da filosofia. Em sentido restrito, isto é, articulada à
divisão social do trabalho, tende a identificar-se com a posse de
conhecimentos, habilidades e gostos específicos, com privilégios de
classe, e leva à distinção entre cultos e incultos de onde partirá a
diferença entre cultura letrada-erudita e cultura popular.

Obviamente, não deixaremos de lado o sentido amplo, mas o que mais nos
interessa aqui é o sentido restrito. Entender que as pessoas no processo não podem ser
tratadas apenas por categorias do tipo “autor” e “réu”, necessárias para a generalidade
das leis, e que elas próprias têm noções diversas sobre o motivo da prestação judicial é o
primeiro passo para que tal prestação seja efetiva para quem a procura. Podemos nos
perguntar, então, por que uma solução dada pelo Judiciário nem sempre é considerada
efetiva pelos jurisdicionados.
Segundo Oliveira (2010), há três níveis de análise ou “dimensões” do
direito: (a) a dimensão dos direitos; (b) a dimensão dos interesses; e, (c) a dimensão do
reconhecimento. Para ele,

Enquanto as duas primeiras dimensões são diretamente enfrentadas


pelo judiciário (por exemplo, desrespeito a direitos positivos e
prejuízos causados como consequência), a última remete a um direito
de cidadania, associado a concepções de dignidade e de igualdade no
mundo cívico, e não encontra respaldo específico em nossos tribunais.
O reconhecimento, ou o direito de ser tratado com respeito e
consideração, é o aspecto que melhor expressaria a dimensão moral
dos direitos, e as demandas a ele associadas traduzem (grande)
insatisfação com a qualidade do elo ou relação entre as partes, vivida
como uma imposição do agressor e sofrida como um ato de desonra
ou de humilhação (p. 461).

Sem dúvidas, essa terceira dimensão é de maior interesse para a


antropologia, pois leva em conta “como os direitos são vividos e como ganham sentidos
para as partes” (CARDOSO, 2010, p. 457). Também é mais interessante para o trabalho
em questão, pois não desconsidera o saber dos atores em favor do saber
institucionalizado dos intérpretes do direito. Em outras palavras, enquanto não deixa de
levar em consideração as outras duas dimensões, mais facilmente traduzidas pelo
ordenamento jurídico, também procura dar uma solução para os conflitos que emergem
pura ou majoritariamente por causa da terceira dimensão.
É uma possibilidade satisfatória, mas que poderia comprometer o
ordenamento, caso fosse criada uma espécie de hierarquia, na qual a terceira dimensão
fosse mais importante que as outras duas. Isso é, caso focássemos somente na satisfação
dos jurisdicionados, invariavelmente poderíamos nos ver em uma solução que
desrespeitasse as regras vigentes, que, por mais críticas que recebam, são uma das
garantias de nosso sistema democrático.
Para que isso não aconteça, deve haver um equilíbrio entre o que os
intelectuais populares entendem por justiça enquanto espaço para resolverem seus
conflitos de acordo com seus próprios pressupostos e o que os intelectuais do direito
entendem por decisões possíveis dentro do espectro previsto pelo ordenamento jurídico.
Dessa forma, não só as categorias populares seriam respeitadas, mas também suas
visões se aproximariam mais do saber institucionalizado, em uma espécie de processo
didático de troca.
Esse equilíbrio parece depender de dois requisitos principais para seu
estabelecimento: (a) a previsão de um espaço dentro do ordenamento jurídico que seja
aberto à manifestação mais espontânea dos intelectuais populares; e (b) uma formação
dos intelectuais da academia que seja direcionada à consideração dos saberes populares
na prestação jurisdicional. Satisfeitos os dois requisitos, em tese, as três dimensões do
direito seriam mais ou menos consideradas por igual, sem prejuízo para quaisquer das
partes.
No que tange o primeiro requisito, já há alguns passos nesta direção. O
maior deles, sem dúvidas, é o advento dos tribunais especiais, cíveis ou criminais,
criados, no âmbito estadual, pela Lei 9.099/952. Os cíveis ficaram popularmente
conhecidos “como tribunais de pequenas causas” e são responsáveis pelas causas cujo
valor não exceda quarenta salários mínimos (art. 3º, I), podendo dispensar a assistência
de advogados se o valor não superar vinte salários mínimos (art. 9º).
A possibilidade de falar em causa própria é maximizada pelas audiências de
conciliação (arts. 21 e ss.), durante as quais os atores podem falar livremente sem se ater
aos termos técnicos. O objetivo de tais audiências é chegar a pontos de comum acordo

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No âmbito federal, só foram criados em 2001, com a Lei 10.529/2001.
para que o processo não prossiga até a sentença do juiz: caso se alcance a conciliação, o
ato será homologado pelo juiz e o resultado terá a mesma eficácia que teria, caso fosse a
decisão do magistrado.
Assim, é através da figura do conciliador que as partes podem levar a juízo
suas motivações, sendo ele responsável pela consideração das três dimensões que já
estudamos. O conciliador não necessariamente será o juiz: na verdade, podem não ser
sequer bacharéis em direito (art. 73, parágrafo único). Entende-se que sua função não é
exatamente dominar o ordenamento jurídico e propor soluções coerentes com ele, pois
esta é a função do juiz togado. Outrossim, sua principal missão é dar voz aos atores e
conduzir sua negociação, a fim de manter padrões de respeito e consideração.
Tendo, dentre outras, essa abertura do Poder Judiciário, ficamos, então, com
o segundo requisito de equilíbrio, qual seja: a formação acadêmica de profissionais do
direito que entendam a importância e valorizem os saberes jurídicos populares. Para
tanto, podemos analisar a grade curricular dos cursos diretamente interessados,
conforme são oferecidos pelos respectivos departamentos da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte-UFRN. Para o presente recorte, analisaremos os cursos de direito
e de ciências sociais.
O curso de direito faz parte do Centro de Ciências Sociais Aplicadas-CCSA
e é dividido em dois departamentos: o de Direito Público-DPU e o de Direito Privado-
DPR. Na grande curricular atual, há duas disciplinas que interagem com o curso de
ciências sociais: Sociologia e Antropologia Geral (DSC0037) e Sociologia Jurídica
(DPU0203). A primeira disciplina dá conta de aspectos gerais das ciências sociais e é
mais voltada para o seu estabelecimento histórico. A segunda apresenta tópicos de
interesse do direito na sociologia jurídica, mas é ministrada por um professor do
próprio DPU.
Como se pode ver, falta uma maior aproximação entre os dois cursos, sendo
o direito mais voltado à formação técnico-teórica de seus alunos. O foco mais objetivo
da formação acaba por deixar de lado o aspecto mais humanístico: o direito, antes de ser
um corpo de disciplinas teóricas, lida com a vida de pessoas, ao reguladas através de
normas gerais que regem a sociedade e das quais não podem prescindir. Além disso, o
foco quase que exclusivo sobre o direito estatal não dá conta das dinâmicas sociais
subjacentes à sua aplicação.
Esse tipo de intelectual que formamos, que lida somente com o sistema em
si, é o que Almeida (2010, p. 46), comentando Morin, chama de “intelectual
ventríloquo”, que se expressa pelo povo, exigindo que ele se cale para tanto. Baseado na
concepção tradicional de ciência, ele é obcecado pela tradução e, enquanto tradutor, sua
única função é ser o “representante legítimo e verdadeiro das coisas, dos fenômenos e
dos homens” (ibid., p. 47). Obviamente, desconsiderar os saberes populares é somente
uma forma de julgá-los inferiores.
Essa desconsideração parte do pressuposto de que os saberes populares são
do senso comum, enquanto que os saberes acadêmicos são resultados de processos
racionais elaborados. No entanto, um olhar mais apurado sobre os saberes da tradução
verá que eles passam por critérios tão ou mais rigorosos que os acadêmicos. Em
primeiro lugar, porque, fossem falsos, não serviriam para ordenar suas vidas. Em
segundo lugar, tais saberes gozam de duas características: permanência e atualidade.
Gozam de permanência porque fazem parte de um longo processo de
elaboração que se estende vastamente no tempo. Gozam de atualidade porque sua
manutenção só é possível enquanto tiver importância para resolver problemas práticos.
Em suma, tais saberes tradicionais diferem do senso comum porque “arquitetam
compreensões com base em métodos sistemáticos, experiências controladas e
sistematizações reorganizadas de forma contínua” (ibid., 2010, p. 67).
Ao concluirmos que os dois saberes não fazem parte de uma hierarquia, mas
sim de níveis de especialização, não faz sentido desconsideramos o saber popular em
prol de uma hegemonia do saber acadêmico. Tendo o espaço processual previsto em lei,
dessa forma, é essencial que levemos em consideração as visões de mundo daqueles que
chegam em busca da prestação judiciária. Afinal de contas, trata-se de suas vidas em
juízo e todos devem ter algo a dizer sobre elas.

Referências

ALMEIDA, Maria da Conceição de. A dupla face de um mesmo intelectual. In:


Complexidade, saberes científicos, saberes da tradição. São Paulo: Editora Livraria
de Física, 2010.
CHAUÍ, Marilena. Introdução, como de praxe. In: Conformismo e resistência. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
GRAMSCI, Antônio. Observações sobre o folclore. In: Literatura e vida nacional. Rio
de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1986.
OLIVEIRA, Luís Roberto Cardoso de. A dimensão simbólica dos direitos e a análise
dos conflitos. Revista de Antropologia da USP. São Paulo, v. 53, n. 2, p. 451-473. Jul-
Dez., 2010. Disponível online no endereço
http://www.fflch.usp.br/da/arquivos/53%282%29.pdf. Acesso em 01 jul. 2013.

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