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Os Intelectuais e o Direito
Os Intelectuais e o Direito
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Tratado, por ora, como a massa amorfa que se imagina pela evocação do conceito.
ordenamento jurídico e suas formalidades; e a baixa cultura, o direito enquanto saber
popular, mais ou menos ciente do sistema jurídico, mas mais preocupado com a
resolução do conflito em sua materialidade. Mas que conceito de cultura seria esse?
Segundo Chauí (1994, p. 14):
Obviamente, não deixaremos de lado o sentido amplo, mas o que mais nos
interessa aqui é o sentido restrito. Entender que as pessoas no processo não podem ser
tratadas apenas por categorias do tipo “autor” e “réu”, necessárias para a generalidade
das leis, e que elas próprias têm noções diversas sobre o motivo da prestação judicial é o
primeiro passo para que tal prestação seja efetiva para quem a procura. Podemos nos
perguntar, então, por que uma solução dada pelo Judiciário nem sempre é considerada
efetiva pelos jurisdicionados.
Segundo Oliveira (2010), há três níveis de análise ou “dimensões” do
direito: (a) a dimensão dos direitos; (b) a dimensão dos interesses; e, (c) a dimensão do
reconhecimento. Para ele,
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No âmbito federal, só foram criados em 2001, com a Lei 10.529/2001.
para que o processo não prossiga até a sentença do juiz: caso se alcance a conciliação, o
ato será homologado pelo juiz e o resultado terá a mesma eficácia que teria, caso fosse a
decisão do magistrado.
Assim, é através da figura do conciliador que as partes podem levar a juízo
suas motivações, sendo ele responsável pela consideração das três dimensões que já
estudamos. O conciliador não necessariamente será o juiz: na verdade, podem não ser
sequer bacharéis em direito (art. 73, parágrafo único). Entende-se que sua função não é
exatamente dominar o ordenamento jurídico e propor soluções coerentes com ele, pois
esta é a função do juiz togado. Outrossim, sua principal missão é dar voz aos atores e
conduzir sua negociação, a fim de manter padrões de respeito e consideração.
Tendo, dentre outras, essa abertura do Poder Judiciário, ficamos, então, com
o segundo requisito de equilíbrio, qual seja: a formação acadêmica de profissionais do
direito que entendam a importância e valorizem os saberes jurídicos populares. Para
tanto, podemos analisar a grade curricular dos cursos diretamente interessados,
conforme são oferecidos pelos respectivos departamentos da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte-UFRN. Para o presente recorte, analisaremos os cursos de direito
e de ciências sociais.
O curso de direito faz parte do Centro de Ciências Sociais Aplicadas-CCSA
e é dividido em dois departamentos: o de Direito Público-DPU e o de Direito Privado-
DPR. Na grande curricular atual, há duas disciplinas que interagem com o curso de
ciências sociais: Sociologia e Antropologia Geral (DSC0037) e Sociologia Jurídica
(DPU0203). A primeira disciplina dá conta de aspectos gerais das ciências sociais e é
mais voltada para o seu estabelecimento histórico. A segunda apresenta tópicos de
interesse do direito na sociologia jurídica, mas é ministrada por um professor do
próprio DPU.
Como se pode ver, falta uma maior aproximação entre os dois cursos, sendo
o direito mais voltado à formação técnico-teórica de seus alunos. O foco mais objetivo
da formação acaba por deixar de lado o aspecto mais humanístico: o direito, antes de ser
um corpo de disciplinas teóricas, lida com a vida de pessoas, ao reguladas através de
normas gerais que regem a sociedade e das quais não podem prescindir. Além disso, o
foco quase que exclusivo sobre o direito estatal não dá conta das dinâmicas sociais
subjacentes à sua aplicação.
Esse tipo de intelectual que formamos, que lida somente com o sistema em
si, é o que Almeida (2010, p. 46), comentando Morin, chama de “intelectual
ventríloquo”, que se expressa pelo povo, exigindo que ele se cale para tanto. Baseado na
concepção tradicional de ciência, ele é obcecado pela tradução e, enquanto tradutor, sua
única função é ser o “representante legítimo e verdadeiro das coisas, dos fenômenos e
dos homens” (ibid., p. 47). Obviamente, desconsiderar os saberes populares é somente
uma forma de julgá-los inferiores.
Essa desconsideração parte do pressuposto de que os saberes populares são
do senso comum, enquanto que os saberes acadêmicos são resultados de processos
racionais elaborados. No entanto, um olhar mais apurado sobre os saberes da tradução
verá que eles passam por critérios tão ou mais rigorosos que os acadêmicos. Em
primeiro lugar, porque, fossem falsos, não serviriam para ordenar suas vidas. Em
segundo lugar, tais saberes gozam de duas características: permanência e atualidade.
Gozam de permanência porque fazem parte de um longo processo de
elaboração que se estende vastamente no tempo. Gozam de atualidade porque sua
manutenção só é possível enquanto tiver importância para resolver problemas práticos.
Em suma, tais saberes tradicionais diferem do senso comum porque “arquitetam
compreensões com base em métodos sistemáticos, experiências controladas e
sistematizações reorganizadas de forma contínua” (ibid., 2010, p. 67).
Ao concluirmos que os dois saberes não fazem parte de uma hierarquia, mas
sim de níveis de especialização, não faz sentido desconsideramos o saber popular em
prol de uma hegemonia do saber acadêmico. Tendo o espaço processual previsto em lei,
dessa forma, é essencial que levemos em consideração as visões de mundo daqueles que
chegam em busca da prestação judiciária. Afinal de contas, trata-se de suas vidas em
juízo e todos devem ter algo a dizer sobre elas.
Referências