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O SUJEITO MORREU DE VELHO

O cenário some quando o telefone toca. Uma pequena casa


rústica no alto de um pico nebuloso ao largo de uma imensidão de
flora. E ao telefone, quem atende, esquece-se o mundo.
- Alô!
- Alô!
- Quem tá falando?
- O senhor quer falar com quem?
- O senhor tem que responder! Eu que liguei! Devo saber quem
tá falando para que eu possa saber se é mesmo com quem quero
falar! O senhor aí me deve uma resposta.
- Eu? Só aceito ligação de quem conheço! Se você não se
identifica eu não sei quem o senhor é.
- E por que atendeu? Você me conhece?
- Você não disse.
- Você acabou de dizer que não atende ligação de dês-
conhecido.
- Não! Falei que não atendo ligação de quem não conheço. Não
disse em nenhum momento a palavra “desconhecido”.
- E não é a mesma coisa?
- Não! A mesma coisa é bosta de burro, nem é quadrada nem é
redonda.
- E o que é então?
- Desconhecido é algo que não conheço. E o que não conheço
pode não ser desconhecido, só estranho. Talvez eu possa conhecê-lo
mesmo sendo um desconhecido. Entendeu?
- Vem cá! Agora eu me pergunto se liguei pro lugar certo, viu?
Você é um louco!
- Você é que não me dá as informações, Meu amigo! Me diga
para quem ligas que te direi quem tu és.
- Olha! Não vou fazer os teus caprichos!
- Capricho? Você é que quer mudar a ordem do discurso. Quem
disse que eu tenho que falar meu nome antes de você se identificar?
Eu digo se eu quiser!
Bateu o telefone e saiu resmungando palavras alegoricamente
bestiais da língua áspera e peçonhenta de descendência asquerosa e
símia. Remoia a história em sua cabeça. Farejava o estranho
acontecimento como trote ou alguém mais rabugento que ele próprio.
Não saía do pensamento do velho Capitão a possibilidade de ser
brincadeira de mau gosto, mas o que não se revela coça-se a
pergunta. Voltou às atividades de um pacato senhor de meia idade
após o acontecido, porém desejava animosamente o retorno daquela
estranha ligação. Punha a mão no queixo e repetia o diálogo em sua
cabeça procurando argumentos e as armadilhas que poderia utilizar
para descobrir a identidade do sujeito em uma próxima oportunidade,
se realmente acontecesse. Tivera pouco tempo para planejar alguma
estratégia plausível. O telefone toca. A cada passo manco e caquético
em direção ao telefone, maquinava; e nitidamente em seu rosto uma
expressão de um argumento fadado ao triunfo. O telefone parece que
toca de acordo com a velocidade de seus passos, esperando-o,
almejando-o graciosamente a orelha. Não haveria mais tempo de
estudar a situação. Ele atende e dispara:
- Meu nome é Alô. Quem fala?
- Alô? Mas quem é Alô?
- Vá para o quinto dos infernos! Primeiro você me pergunta
quem sou quando atendo, digo meu nome e você não conhece? Você
não tem nada pra fazer?
Bate o telefone novamente, mas dessa vez o retorno do tilintar
do aparelho foi tão rápido que mal deu a possibilidade ao velho de
voltar-se em direção a sua poltrona, na qual terminava de completar
alguns quadrinhos de seu caderno de palavras cruzadas.
Atendeu novamente e esperou em silêncio até alguém dizer
alguma coisa. Ouviu apenas respiração e baforada compassadas. A
respiração era audível e comensurava a proporção que o velho sentia
raiva e equilíbrio, paciência e indignação por seus precioso tempo
esvair-se em um silêncio apavorador de desperdício.
- Chega! – grita ensandecido. Para! O que é que você quer? Eu
estou quietinho aqui na minha humilde residência, meu caro! Você
me liga pra não dizer nada? Liga para perguntar quem sou. Na minha
idade eu não posso ter emoções fortes, seu imbecil.
- Seu velho escroto! Eu sei quem você é. Não precisa me dizer,
não. Você acha que essas tuas anáguas vão conseguir me conformar
com essa comemoração boba? Pode enganar as criancinhas seu
infeliz, mas não a mim. Capitão Noel, vê se te enxerga.
- Sam? Sandro?
- Oh! Oh! Oh! Velho filho-da-mãe! Você tem todo o status que
sempre quis. Uma carruagem pomposa, roupinha vermelha, pele
rosada, aquelas estúpidas renas domésticas por mim. Vai tomar no
olho do seu cume. Você nunca me deu um presente se quer. Lembra
em 29? Você passou longos anos sem mandar nada pra mim, aliás,
nunca mandou nem sinal de fumaça. Eu passei fome, viu? Seu velho,
cretino!
- Calma! Pra quê essa fúria meu filho?
Aos berros a resposta imediatamente lançada pela fibra ótica
chega à orelha do bom velho.
- Filho? Eu não sou teu filho, seu saco de banha. Olha aqui! Se
você tá pensando que vai levar meus netos a se iludirem com essa
festinha miserável que você criou, você está muito enganado. Eu já
avisei que essa história de Papai Noel é pura mentira. Pode deixar que
eu mesmo entrego os presentes aqui em casa.
- Mas...
- Mas nada! E se você pisar o pé aqui eu te denuncio, eu te
mato. Não quero você entalado na minha chaminé. Eu sei de todo o
teu esquema. Um dia vai acabar. Vai chegar o fim da linha para ti.
Olha! Eu esperava consideração. Trabalhei pra você duros longos
anos. Eu vestia aquela roupa horrível de duende... nem um
presentinho? Nem isso, Noel? Trabalhei sem carteira assinada, sem
direito a Fundo de garantia, seguro-desemprego... Poxa, e os meus
direitos de operário duende fajuto? E você quer que eu comemore tua
festinha, Noelzinho? HaHaHa nunca!
Enquanto isso Noel agonizava as suas últimas lembranças
ouvindo aquela voz demente e raivosa. Era o fim para o velhinho. O
que pode dizer ainda para o delinquente da linha telefônica foi:
- Ai! Feliz Natal!...
Sandro, ao ouvir aquela voz suplicante, distante, indo embora,
evocou rapidamente o nome:
- Noel? Noel? Oh! Velho safado! Morreu? Ah! Você sempre
arranja algum jeito de fugir. Eu te encontro. Pode esperar.

...

MANCHETE
Úbio Sandro Alvarez foi autuado pela morte do Capitão Noel
Apolônio Silva, segundo o grampo feito pela polícia. Este, conhecido
por suas ações de caridade, após sua morte, foi revelado à imprensa
a sua atuação em crimes como falsidade ideológica, fundos ilegais,
entre outros delitos, sendo considerado o maior traficante de
brinquedos. No depoimento à polícia, o senhor Úbio Sandro disse que
não tinha nada a ver com o incidente, “o sujeito morreu de velho”.

Alexandre Carlos Xuê


20/09/2009

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