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A criança,

a matemática e
a realidade
Problemas do ensino da matemática
na escola elementar

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Reitor
Zaki Akel Sobrinho

Vice-Reitor
Rogério Mulinari

Diretor da Editora UFPR


Gilberto de Castro

Conselho Editorial

Alexander Welker Biondo


Carlos Alberto Ubirajara Gontarski
Ida Chapaval Pimentel
Jose Borges Neto
Luiz Edson Fachin
Maria de Fatima Mantovani
Maria Rita de Assis Cesar
Mario Antonio Navarro da Silva
Quintino Dalmolin
Sergio Luiz Meister Berleze
Sylvio Fausto Gil Filho
Ulf Gregor Baranow

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A criança,
a matemática e
a realidade
Problemas do ensino da matemática
na escola elementar

Gérard Vergnaud

Tradução
Maria Lucia Faria Moro

Revisão Técnica
Maria Tereza Carneiro Soares

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© Editions Peter Lang SA, Berne 1981, 1983, 1985
Successeurs des Editions
Herbert Lang & Cie SA, Berne
Título original
L’ enfant, la mathématique et la réalité.
3e édition

A criança,
a matemática e
a realidade
Problemas do ensino da matemática
Coordenação editorial
na escola elementar

Daniele Soares Carneiro

Revisão
Maria Cristina Périgo

Projeto gráfico, editoração eletrônica e capa


Reinaldo Weber
Série Pesquisa, n.146
Coordenação de Processos Técnicos. Sistemas de Bibliotecas. UFPR
Vergnaud, Gérard
A criança, a matemática e a realidade : problemas do ensino da ma-
temática na escola elementar / Gérard Vergnaud; tradução Maria Lucia
Faria Moro; revisão técnica Maria Tereza Carneiro Soares. – Curitiba :
Ed. da UFPR, 2009.
322p. : il. – (Pesquisa; n.146)

Inclui referências
ISBN 9788573352306
Título original: L’enfant, la mathematique et la réalité

1. Matemática – Estudo e ensino. 2. Educação de crianças. 3.


Ensino elementar. I. Título.
CDD 372.7
Andrea Carolina Grohs CRB 9/1.384

ISBN 978-85-7335230-6
Ref. 539
Editora UFPR
Rua João Negrão, 280, 2º andar, Centro
Caixa Postal 17.309
Tel.: (41) 3360-7489 / Fax: (41) 3360-7486
80010-200 - Curitiba - Paraná - Brasil
www.editora.ufpr.br
editora@ufpr.br
2009

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SUMÁRIO

PREFÁCIO DA EDIÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA/ 11


PREFÁCIO/ 13
INTRODUÇÃO/ 15
A análise das noções e de sua ordem de complexidade crescente/ 16
A análise das tarefas escolares/ 17
A análise dos acertos e dos erros. A análise dos procedimentos/ 18
A análise das representações/ 18
O plano desse livro/ 19

Capítulo I
NOÇÕES DE RELAÇÃO E DE CÁLCULO
RELACIONAL/ 23
Noção de relação/ 23
- Relações binárias/ 23
- Relações ternárias/ 24
- Relações quaternárias/ 24
Representação das relações/ 26
- Representação das relações binárias/ 26
- Representação das relações ternárias/ 28
- Representação das relações quaternárias/ 31
Que é um cálculo relacional?/ 32
- Primeira forma/ 33
- Segunda forma/ 35

Capítulo II
PROPRIEDADES DAS RELAÇÕES BINÁRIAS/ 41
Simetria e antissimetria/ 41
Transitividade e antitransitividade/ 43
Reflexividade e antirreflexividade/ 45

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Grandes categorias de relações binárias/ 46
- As relações de equivalência/ 46
- As relações de ordem estrita/ 47
- As relações de ordem ampla/ 47
Conexidade/ 49
Uma relação de equivalência particular, a relação de
igualdade/ 51

Capítulo III
RELAÇÕES TERNÁRIAS E TRANSFORMAÇÕES
RELAÇÕES QUATERNÁRIAS
CORRESPONDÊNCIAS E APLICAÇÕES/ 57
Relações ternárias/ 57
- Primeiro modelo: lei de composição binária/ 57
- Segundo modelo: elemento, relação-elemento, elemento/ 59
A noção de transformação/ 60
- Caso simples: uma só transformação/ 62
- Caso mais complexo: várias transformações/ 64
Relações quaternárias/ 71
Correspondências e aplicações/ 73
- Primeiro caso: correspondência biunívoca/ 73
- Segundo caso: correspondência bimultívoca/ 73
- Terceiro caso: correspondência co-unívoca/ 75
- A noção de aplicação/ 75

Capítulo IV
RELAÇÕES E TAREFAS ESCOLARES/ 81
Domínios de estudo/ 81
- O espaço/ 81
- As propriedades dos objetos/ 82
- Relações de parentesco/ 84
- Números/ 84
- Variedade dos domínios utilizáveis/ 85
Análise das tarefas/ 85
- A representação/ 86
- Compreensão-extensão/ 87
- Cálculos relacionais/ 89

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Capítulo V
CLASSIFICAÇÕES E OPERAÇÕES
CLASSIFICATÓRIAS/ 97
Noções de classe e de característica/ 98
- Noções de propriedade e de descritor/ 99
- Problemas de expressão/ 99
Semelhança, equivalência e identidade/ 102
Diferença qualitativa, ordinal e quantitativa/ 104
- Os descritores qualitativos/ 104
- Os descritores ordinais/ 105
- Os descritores quantitativos/ 106
Operações e relações: complemento, união, intersecção,
inclusão/ 107
- A noção de complemento/ 108
- As noções de união e de intersecção/ 111
- A noção de inclusão/ 118
Representação das classificações/ 119
- A representação cruzada/ 119
- A representação em “rede”/ 120
- A representação em árvore/ 120
- A representação de Euler-Venn/ 121

Capítulo VI
O NÚMERO E A MEDIDA/ 125
A sequência numérica falada como recitação e
como contagem/ 125
Correspondência biunívoca e equivalência entre
conjuntos/ 127
Relação de ordem e relação de equivalência: o problema do contínuo
e do discreto/ 129
O número como relação de equivalência e como relação
de ordem/ 132
O número como medida/ 135
A adição dos números/ 138

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Capítulo VII
A MEDIDA: ALGUNS PROBLEMAS PRÁTICOS
E TEÓRICOS/ 145
O problema do intermediário e do mensurador/ 145
A aproximação/ 149
- Os comprimentos e as quantidades contínuas/ 150
- A medida direta das superfícies e a noção de
enquadramento/ 152
- Exemplos de outras medidas diretas/ 155
- A decomposição do que é medido/ 156
As medidas indiretas e a noção de medida composta/ 156
A estrutura algébrica das medidas/ 160

Capítulo VIII
A NUMERAÇÃO E AS QUATRO OPERAÇÕES/ 167
Número e escrita do número/ 167
Os exercícios e os materiais empregados na aprendizagem
da numeração/ 173
Adição e subtração/ 177
- A subtração/ 181
Multiplicação e divisão/ 183
- A divisão/ 188
- Uma disposição interessante da multiplicação/ 192

Capítulo IX
OS PROBLEMAS DE TIPO ADITIVO/ 197
Medidas e transformações/ 197
- Números naturais e números relativos/ 198
- Números inteiros e números decimais/ 199
As seis grandes categorias de relações aditivas/ 199
Diversidade e dificuldade desigual dos problemas
de tipo aditivo/ 206
- Análise detalhada dos problemas referentes à segunda
categoria de relações aditivas/ 207
- Análise dos problemas referentes às outras categorias
de relações aditivas/ 215

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Capítulo X
A NOÇÃO DE GRUPO/ 225
Propriedades do grupo/ 225
Exemplos de grupos finitos/ 228
Lei de composição interna e lei de composição externa:
os três tipos de adições/ 235

Capítulo XI
OS PROBLEMAS DE TIPO MULTIPLICATIVO/ 239
Isomorfismo de medidas/ 239
- Análise detalhada de um exemplo simples/ 243
- Análise vertical (escalar)/ 247
- Análise horizontal (função)/ 251
Produto de medidas/ 253
Conclusão sobre a noção de dimensão/ 258
Classes de problemas de tipo multiplicativo/ 260
- Isomorfismos de medidas/ 260
- Caso de um único espaço de medidas/ 262
- Produto de medidas/ 264

Capítulo XII
REPRESENTAÇÃO E SOLUÇÃO DE PROBLEMAS
ARITMÉTICOS COMPLEXOS/ 269
Exemplo do tipo aditivo puro/ 270
Exemplo de tipo multiplicativo puro/ 276
- Análise das informações e algumas perguntas
plausíveis/ 276
- Soluções/ 278
- Tabelas e curvas/ 283
Exemplo misto (multiplicativo e aditivo)/ 288

CONCLUSÃO: OS PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DO


ENSINO DA MATEMÁTICA/ 297
A noção de homomorfismo e o papel da representação/ 297
A noção de invariante operatório/ 303
- O objeto permanente/ 305
- Invariantes relacionais e classificatórios/ 306

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- Invariantes quantitativos/ 307
- A noção geral de invariante operatório/ 308
A noção de algoritmo e seus derivados/ 309
A noção de complexidade lógica/ 314
- Hierarquia dos diferentes objetos lógicos/ 315
- Hierarquia das diferentes propriedades desses
objetos lógicos/ 317
- Hierarquia das diferentes classes de problemas/ 317
Observação final/ 319

BIBLIOGRAFIA/ 321

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PREFÁCIO DA EDIÇÃO EM LÍNGUA
PORTUGUESA

A primeira edição em francês deste livro “A criança, a matemá-


tica e a realidade” foi publicada há mais de vinte e cinco anos. É com
felicidade que essa edição em português vem somar-se às traduções para
o italiano, o espanhol e o russo. Isto me deixa muito satisfeito, consi-
deradas as inúmeras ligações que, já há muitos anos, mantenho com
pesquisadores brasileiros.
Agradeço calorosamente a Maria Lucia Moro por ter construí-
do o projeto desta edição e tê-lo conduzido a bom termo. Foram-lhe
necessárias muita energia e perseverança. Agradeço também a Maria
Tereza Soares e a Maria Helena Fávero pela contribuição fraterna a essa
empreitada.
E esse não foi um trabalho fácil porque o livro é visto como de-
masiadamente técnico, sobretudo em seus primeiros capítulos. Além
disso, ele surpreende bastante os leitores por causa de seu inusitado
encontro com a ideia geral de cálculo relacional. De fato, o conceito de
“cálculo” é frequentemente compreendido como aplicável aos números
e não aos objetos e às relações não numéricas. Ora, é justamente a cons-
tatação de que os processos de conceitualização e as dificuldades das
crianças referem-se, primeiro, aos objetos e às relações não numéricas,
algo anterior, mas em solidariedade às operações propriamente numéri-
cas, que me levou a desenvolver uma visão das estruturas aditivas e das
estruturas multiplicativas que vai muito além das quatro operações da
aritmética. Naturalmente, eu poderia ter me contentado em falar de
raciocínio, mas, se assim o fizesse, teria ficado aquém dessa ideia de que
o pensamento é “cálculo” e que as combinações e transformações das
relações fornecem a própria matéria desse cálculo.
Esta obra é apenas uma contribuição para uma empreitada mais
ampla, cuja finalidade seria a de analisar a formação dos conceitos em
diferentes domínios do pensamento racional e, naturalmente, a formação
dos esquemas, quer dizer, das formas de organização da atividade que ex-

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Gérard Vergnaud

pressam o conhecimento em situação. Louvemos Piaget por ter iniciado a


reflexão e as investigações sobre o conteúdo cognitivo da atividade.
Na verdade, a forma operatória do conhecimento é a fonte e o
critério desse conhecimento:
- fonte porque é tão somente em situação que os processos de
assimilação e acomodação são colocados em ação, e porque o que pri-
meiro se adapta são os esquemas.
- critério porque um conhecimento que não é operatório não é,
de fato, um conhecimento. Na matemática não faltam exemplos de
que um teorema pode ser formulado pelos alunos sem que estes sai-
bam empregá-lo em uma situação. As ideias de conceito-em-ato e de
teorema-em-ato vêm, de modo muito oportuno, estabelecer o vínculo
teórico entre a conceituação e a atividade.
A importância que atribuo, na teoria dos campos conceituais, à
forma do conhecimento poderia ser interpretada como uma desvalori-
zação do papel da linguagem nos processos de conceitualização. Quero
de pronto cortar pela raiz essa interpretação. Não se deve minimizar a
importância da explicitação e da simbolização na formação dos con-
ceitos. Um teorema formulado tem maior peso que um teorema-em-
ato. A história das culturas, a da matemática em particular, não é tão
somente balizada pela descoberta de novas formas e de novos sistemas
simbólicos, cujo poder pode ser avaliado e comparado, mas também o
conhecimento posto em palavras pode ser partilhado com mais facili-
dade, inclusive pelas crianças, desde que, bem entendido, lhe sejam en-
contradas as formas adequadas. Não se aprende sozinho e a estabilidade
dos invariantes operatórios é reforçada por sua formulação oral e escrita.
Esse ponto de vista, muito mais vygotskiano do que piagetiano, inspira
boa parte do presente livro, notadamente seus últimos capítulos.
Logo, é natural concluir esse prefácio fazendo-se referência a es-
ses dois gigantes da psicologia do desenvolvimento que são Piaget e
Vygotski. Devemos lê-los e relê-los.

Gérard Vergnaud

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PREFÁCIO

Este livro, escrito já há alguns anos, é publicado em um momen-


to no qual a crise do ensino da matemática continua grave. Essa crise se
deve a várias razões:
- A preparação insuficiente das reformas sucessivas e a falta de
continuidade e de acompanhamento na reflexão e experimentação que
deveria acompanhá-las e precedê-las.
- Os excessos de formalização que foram cometidos na concepção
e na aplicação da reforma inicial dos anos 70, sobretudo na redação dos
manuais.
- A ligação insuficiente dos programas e dos métodos de ensino
com a análise das capacidades e os modos de pensar da criança. Por exem-
plo, as relações entre a atividade intelectual das crianças e sua atividade
material sobre os objetos físicos ou com sua experiência das situações da
vida cotidiana não foram suficientemente levadas em consideração.
- Enfim, a formação insuficiente dos professores.
Para resolver essa crise em médio prazo, seria preciso impulsionar
um grande programa de pesquisas em psicologia e em didática, e ana-
lisar de modo mais completo as finalidades do ensino da matemática.
Seria preciso, também, obter meios de formar os professores. Essas con-
dições não foram realizadas e ainda não o são, hoje. Certas decisões do
Ministério1 visam mesmo um retorno no tempo, quando seria preciso,
ao contrário, avançar.
Escrito por um pesquisador, este livro não pretende responder
a todas as questões, nem mesmo formulá-las todas. No entanto, ele é
suscetível de trazer aos educadores e aos pesquisadores que se interes-
sam pelo ensino elementar da matemática, uma análise suficientemente
profunda das questões mais importantes, e de levantar perspectivas. Ele
pode interessar, igualmente, aos professores e formadores de professores
do primeiro ciclo.

O autor refere-se, naturalmente, ao Ministério da Educação Na-


1

cional da França. N. T.

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Gérard Vergnaud

Antes de tudo trata-se de um livro de psicólogo e os conheci-


mentos que ele contém não são expostos do ponto de vista do mate-
mático, mas do ponto de vista do psicólogo. Isso pode chocar certos
matemáticos, mas o autor escolheu colocar sem autocensura as questões
que julga necessário colocar, mesmo que elas sejam formuladas em uma
linguagem que alguns qualificam de “ingênua”, uma vez que ela não é
a formal.
Entre as influências mais importantes que inspiraram as ideias
aqui expostas é necessário citar as dos psicólogos J. Piaget, P. Gréco e
F. Bresson, assim como a do matemático G. Th. Guilbaud. Também
poderá se reconhecer sem esforço, em certas passagens, a influência de
G. Polya e a dos pedagogos Z. P. Dienes e N. Picard, apesar de certas
divergências importantes com esses autores marcarem este livro.
Finalmente, sem o trabalho de equipe, levado a cabo até 1974
com professores, animadores do grupo de matemática e a direção da
Escola Ativa Bilíngüe, este trabalho jamais seria realizado. De forma
particular, agradecimentos especiais a Anne Favier, Claire Garçon e Ra-
chel Cohen.

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INTRODUÇÃO

O autor deste livro atribui à criança e à atividade infantil sobre a


realidade papel decisivo no processo educativo. Os conhecimentos que
essa criança adquire devem ser construídos por ela em relação direta
com as operações que ela, criança, é capaz de fazer sobre a realidade,
com as relações que é capaz de discernir, de compor e de transformar,
com os conceitos que ela progressivamente constrói. Isso não quer dizer,
de modo algum, que o papel do professor deva ser negligenciado; mas o
valor do professor reside justamente na sua capacidade de estimular e de
utilizar essa atividade da criança. Toda formação do professor, todo seu
esforço, devem procurar lhe dar um maior conhecimento sobre a crian-
ça e permitir-lhe ajustar permanentemente as modalidades de sua ação
pedagógica. Como veremos ao longo deste livro, esse conhecimento
não pode ser um simples conhecimento geral da inteligência e do com-
portamento da criança. Trata-se de um conhecimento aprofundado do
conteúdo a ser ensinado e das relações desse conteúdo com a atividade
possível da criança.
No que diz respeito à aprendizagem da matemática, em particu-
lar, e algo igualmente verdadeiro para a aprendizagem da língua ou de
outras disciplinas, somente um conhecimento claro das noções a ensi-
nar pode permitir ao professor compreender as dificuldades encontradas
pela criança e as etapas pelas quais ela passa. A psicopedagogia geral é
insuficiente para guiar a ação do professor. Está na hora de afirmar com
ênfase a necessidade das psicopedagogias específicas que tratem dos mé-
todos de ensino de cada disciplina. É por isso que “A CRIANÇA, A
MATEMÁTICA E A REALIDADE” tem como subtítulo “Problemas
do ensino da matemática na escola elementar”.

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Gérard Vergnaud

A ANÁLISE DAS NOÇÕES E DE SUA ORDEM DE


COMPLEXIDADE CRESCENTE

A matemática forma um conjunto de noções, de relações, de sis-


temas relacionais que se apóiam uns sobre os outros. Mas a ordem pela
qual o matemático expõe essas noções evidentemente não é a mesma
pela qual a criança as adquire.
A noção de complexidade não é a mesma para o matemático e
para o professor, pois o primeiro procura os axiomas mais gerais e os
mais poderosos, enquanto o segundo procura as noções e as relações
mais simples para a criança, as quais não são, aliás, compreendidas,
repentinamente, com todas suas propriedades.
A ordem de complexidade crescente das noções adquiridas pela
criança não é, aliás, a ordem total ou linear, no sentido de que a criança
deveria necessariamente adquirir a noção A, depois a noção B, depois
a noção C, etc.
A B C D E F...
É uma ordem parcial ou com vários ramos, pois as noções A e
B podem muito bem ser adquiridas indiferentemente numa ordem ou
noutra, ou simultaneamente, sendo ao mesmo tempo, elas próprias,
anteriores à aquisição de uma outra noção C.
A D

C F I
B E G
H J
Uma ordem como essa é chamada de parcial porque há uma or-
dem entre certas noções, mas não em todas. No esquema acima:
- há uma ordem entre A e C, entre B e C, entre A e E, etc.;
- não há uma ordem entre A e B, entre D e E, entre D e F, entre G e
F, etc.
Vejamos um exemplo: é necessário aprender a série de números
de 1 a 9 antes do sistema decimal. Entretanto, a aprendizagem dos nú-
meros de 1 a 9 não condiciona e não é condicionada pela aquisição da
transitividade da relação de ordem: se João é maior que Paulo e Paulo

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A criança, a matemática e a realidade

é maior que Roberto, João é necessariamente maior que Roberto. No


entanto, a medida das grandezas necessitará, posteriormente, de uma e
de outra daquelas aprendizagens.
Logo, um dos problemas mais importantes da didática é o de
colocar em evidência a ordem pela qual as noções podem ser adquiridas
pela criança, considerando que a ordem de complexidade assim colo-
cada em evidência só pode ser uma ordem parcial, e que ela dará lugar,
eventualmente, à aprendizagem simultânea de noções relativamente in-
dependentes.

A ANÁLISE DAS TAREFAS ESCOLARES

Porém, essa análise das noções a serem adquiridas pela criança e


de sua ordem de aquisição não é suficiente. Com efeito, essa aquisição
se faz por meio de tarefas escolares de natureza diversa: estudo de si-
tuações novas, manipulações operatórias, lições do professor, análise e
discussões coletivas, exercícios.
Cada tarefa escolar demanda uma análise, do mesmo modo que
a psicologia do trabalho faz apelo a uma análise detalhada das tarefas. É
o caso, sobretudo para os exercícios.
- Que relações e noções devem ser compreendidas pela criança
para que ela tenha sucesso na tarefa?
- Qual é o critério de sucesso estabelecido? Pode-se, de acordo
com o caso, pedir-lhe para procurar um resultado, ou explicar como
esse resultado foi encontrado, ou provar (fazer a demonstração) que ele
é correto ou, ainda, encontrar todos os meios de chegar ao resultado.
- Em que condições a tarefa é executada? Em um trabalho indivi-
dual, em cooperação com um pequeno grupo, com toda a classe, com
ou sem a ajuda do professor?
A análise das tarefas escolares supõe uma pesquisa que, por ora,
apenas se inicia. Neste livro encontraremos um certo número de exem-
plos que permitem saber o que esperar da criança, como também variar
de modo mais sistemático e mais completo a natureza da tarefa.

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Gérard Vergnaud

A ANÁLISE DOS ACERTOS E DOS ERROS. A ANÁLISE DOS


PROCEDIMENTOS

A análise das tarefas e o estudo das condutas da criança diante


dessas tarefas permitem fazer uma análise dos acertos e dos erros.
No que diz respeito aos acertos, é muito importante saber quais
os meios que a criança utilizou para alcançar o objetivo colocado. Mes-
mo para os problemas ou exercícios que aparentemente permitem ape-
nas uma resposta, há frequentemente, diversos meios de produzir essa
resposta. No caso onde o objetivo não pode ser alcançado a não ser
depois de várias etapas intermediárias, existem, muitas vezes, vários ca-
minhos possíveis que pedem, em decorrência, uma análise. Que cami-
nho é o mais simples para a criança? Qual é o mais curto? Qual é o mais
frequentemente seguido pelas crianças de um nível determinado e por
quê?
No que diz respeito aos erros, a necessidade de analisá-los é ainda
mais evidente, pois essa análise permite saber que dificuldades a criança
enfrentou, e permite determinar os meios de remediar essa situação.
A análise dos acertos e dos erros faz parte integrante da análise
geral dos procedimentos que ocupa um lugar central na metodologia
da psicologia científica moderna. Essa noção de procedimento será de-
senvolvida e explicada várias vezes, sobretudo no capítulo XIII “os pro-
blemas fundamentais do ensino da matemática”.

A ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES

A análise dos procedimentos não é por si própria suficiente para es-


gotar a análise científica dos problemas colocados pelo ensino da matemáti-
ca. Na verdade, os meios utilizados pela criança, os caminhos que ela toma
para resolver um problema ou atingir um dado objetivo numa determinada
tarefa escolar, são profundamente enraizados na representação que ela faz
da situação. De acordo com a percepção que tem ou não tem das relações,
das transformações e das noções em jogo, com todas suas propriedades ou
somente com uma parte delas, ou com uma visão falsa dessas propriedades,
a criança utiliza esse ou aquele procedimento e, eventualmente, desinteres-
sa-se pela tarefa com a qual é confrontada. A noção de representação está,

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A criança, a matemática e a realidade

como a noção de procedimento, no centro da psicologia científica moder-


na. Ela será igualmente explicada de modo mais completo em seguida, mas
é preciso sublinhar desde já que a noção de representação não se reduz à
noção de símbolo ou de signo, uma vez que ela cobre também a noção de
conceito: o estudo do número mostrará isso claramente, dado que a escrita
simbólica do número é distinta do próprio número. Trata-se de uma ideia
universal, da qual os educadores devem absolutamente tomar consciência;
quer dizer, a ideia de que a representação não se reduz a um sistema simbó-
lico que remete diretamente ao mundo material, os significantes represen-
tando então diretamente os objetos materiais. Na verdade, os significantes
(símbolos ou signos) representam os significados que são eles próprios de
ordem cognitiva e psicológica. O conhecimento consiste ao mesmo tempo
de significados e de significantes: ele não é formado somente de símbolos,
mas também de conceitos e de noções que refletem ao mesmo tempo o
mundo material e a atividade do sujeito nesse mundo material.
Se o conhecimento se elabora lentamente, conforme as leis de
desenvolvimento que o psicólogo e o pedagogo devem estudar, é justa-
mente porque ele reflete a atividade do sujeito no mundo material e não
somente o próprio mundo material. O símbolo é a parte diretamente
visível do iceberg conceitual; a sintaxe de um sistema simbólico é apenas
a parte diretamente comunicável do campo de conhecimento que ele
representa. Essa sintaxe não seria nada sem a semântica que a produziu,
isto é, sem a atividade prática e conceitual do sujeito no mundo real.

***

O PLANO DESSE LIVRO

Não é fácil recortar em capítulos o conteúdo do ensino de mate-


mática na escola elementar, e o recorte aqui escolhido pode evidente-
mente ser contestado por várias razões. A escolha feita demanda uma
breve explicação.
A noção de relação é, sem dúvida, a noção mais geral e a mais pri-
mitiva, porque ela cobre, ao mesmo tempo, as atividades mais simples

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Gérard Vergnaud

e as atividades mais elaboradas das crianças. Por outro lado, podemos


colocar sem dificuldade, sob o termo genérico de “relações”:
- as relações estáticas entre objetos e as transformações que têm
um caráter dinâmico;
- as estruturas qualitativas e as estruturas quantitativas;
- as relações entre objetos e as correspondências entre conjuntos.
É por isso que os capítulos sobre as “relações” estão colocados no
início desta obra.
Vem, em seguida, o capítulo “classificações e operações classifica-
tórias”, que diz respeito, ele também, a um vasto domínio de atividades,
uma vez que vai das primeiras categorizações da criança, até os cálculos
lógicos do fim do primeiro grau e início do segundo.
Vêm, depois, os capítulos fundamentais da “medida” e do “núme-
ro”, da “numeração” e das “estruturas numéricas”, com as subdivisões
que nos parecem as mais naturais para a compreensão dos diferentes
problemas colocados:
- dois capítulos sobre as noções de número e medida;
- um capítulo sobre a numeração e as quatro operações;
- um capítulo sobre os problemas de tipo aditivo (cuja solução
comporta apenas as adições ou as subtrações);
- um capítulo sobre os problemas do tipo multiplicativo (cuja
solução repousa sobre as multiplicações e as divisões);
- um capítulo sobre os problemas de aritmética ditos “complexos”.
O último capítulo é consagrado aos “problemas fundamentais do
ensino da matemática”.
Certos capítulos são difíceis e o leitor iniciante pode eventual-
mente não captar sua importância. É o caso dos primeiros capítulos
sobre as relações e sobre as classificações. O leitor pode, então, passar
diretamente aos capítulos VI e aos seguintes, que tratam do número, da
medida, da numeração e dos problemas de aritmética; mas lhe será útil
voltar, depois, aos primeiros capítulos para, à luz dessa leitura, rever,
eventualmente, os capítulos que dizem respeito à aritmética.

20

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CAPÍTULO I

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NOÇÕES DE RELAÇÃO E DE CÁLCULO
RELACIONAL

NOÇÃO DE RELAÇÃO

A noção de relação é uma noção absolutamente geral. O conheci-


mento consiste, em grande parte, em estabelecer relações e organizá-las
em sistemas. Há relações entre objetos no espaço, entre quantidades
físicas, entre fenômenos biológicos, sociais, psicológicos2.
Eis alguns exemplos de relações:
• RELAÇÕES BINÁRIAS
que ligam dois elementos entre si.
(Nos exemplos que seguem, esses elementos estão sublinhados):
- o lápis está sobre a mesa
- Pedro está ao lado de Janine
- João é o filho do Senhor Silva
- Sete é maior que três
- Roberto tem a mesma faca que Paulo
- José se parece com seu pai
- x igual a 3y (x = 3y)
- os coelhos são mamíferos
- “embaixo” é a recíproca de “em cima”

Alguns matemáticos, habituados a reduzir a noção de relação à no-


2

ção de relação binária e à sua definição em extensão (conjunto de partida, con-


junto de chegada, gráfico), podem discordar com o que é dito nesse capítulo e
nos capítulos seguintes. É absolutamente necessário que eles aceitem aqui uma
outra linguagem, se quiserem compreender como funciona o cálculo relacional
apoiado na compreensão das relações, mais do que em sua extensão.

23

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Gérard Vergnaud

Vemos por esses exemplos que os elementos colocados em relação


podem ser de natureza muito diferente:
- objetos inertes: lápis, mesa...
- pessoas: Pedro, Janine...
- números: sete, três...
- expressões algébricas: x, 3y...
- conjuntos: coelhos, mamíferos...
- relações: embaixo, em cima.
...
• RELAÇÕES TERNÁRIAS
que ligam três elementos entre si:
- Pedro está entre André e Joana
- Sete é quatro a mais que três
- Seis multiplicado por cinco dá trinta
- Os habitantes da França que não são franceses são estrangeiros re-
sidentes na França
• RELAÇÕES QUATERNÁRIAS
que ligam quatro elementos entre si:
- Londres é para a Inglaterra o que Paris é para a França
- Antônio é tão moreno quanto Brigitte é loira
- O preço de 6 garrafas está para o preço de uma garrafa assim
como 6 garrafas estão para uma garrafa
18 6
- Dezoito sobre quinze é igual a seis sobre cinco:
15
= 5

*
Para além das relações quaternárias, a maior parte das relações
pode ser reduzida a conjunções ou a composições das relações binárias,
ternárias ou quaternárias.
É interessante salientar que as relações ternárias podem elas pró-
prias ser frequentemente colocadas sob a forma de uma relação binária
com uma indicação sobre a natureza da relação. Por exemplo:

relação binária simples: sete é maior que três


relação ternária: sete é quatro a mais que três

24

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A criança, a matemática e a realidade

O esquema sagital, no qual flechas são utilizadas para representar


as relações binárias, destaca bem esse aspecto.
relação binária simples: 7 3

é 4 a mais que
7 3
4
relação ternária 7 3
4
7 3

Quanto às relações quaternárias, elas frequentemente traduzem


a identidade de duas relações binárias. Tomemos o exemplo: Londres é
para a Inglaterra o que Paris é para a França.
Londres Inglaterra

Paris França
A flecha dupla vertical indica que a flecha superior e a flecha in-
ferior representam uma mesma relação.

25

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Gérard Vergnaud

REPRESENTAÇÃO DAS RELAÇÕES

Uma mesma relação pode ser representada de várias maneiras.


• REPRESENTAÇÃO DAS RELAÇÕES BINÁRIAS
Eis as formas de representação mais frequentes:

• linguagem natural Pedro está à esquerda de Rogério; Gilberto


está à esquerda de Henrique. Henrique está
à esquerda de Pedro

• esquema sagital Rogério

Henrique

Gilberto

Pedro

• escrita algébrica3, 4
primeira forma segunda forma (polonesa)
pRr R (p, r)
gRh R (g, h)
hRp R (h, p)
R significa “está à esquerda de”
p significa Pedro; r significa Rogério; g significa Gilberto; h sig-
nifica Henrique
A primeira forma pRr, ou a segunda forma R (p, r), é assim lida
“p está na relação R com r”
ou ainda
“há relação R entre p e r”

Estas escritas nunca são empregadas na escola elementar.


3

“Escola elementar” no sistema de ensino francês corresponde, apro-


4

ximadamente, às cinco séries iniciais do ensino fundamental brasileiro. N. T.

26

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A criança, a matemática e a realidade

• tabela cartesiana (ou matriz)

Pedro Rogério Gilberto Henrique

Pedro

Rogério

Gilberto

Henrique

A presença do sinal x traduz a existência da relação para a casela


considerada. A tabela deve ser lida no sentido da flecha. Por exemplo:
Pedro está à esquerda de Rogério.
• correspondência entre conjuntos
Em certos casos, podemos colocar o esquema sagital sob a forma
de uma correspondência: quando os elementos que são colocados na
chegada das flechas formam um conjunto completamente disjunto do
conjunto dos elementos colocados no início das flechas.
Por exemplo:
Joana é a filha do senhor Silva; Maria é a filha do senhor Souza;
Eliza é a filha do Senhor Silva; Tereza é a filha do Senhor Santino.
O senhor Santos não tem filha.

Joana Sr. Silva

Maria Sr. Souza

Eliza Sr. Santino

Tereza Sr. Santos

27

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Gérard Vergnaud

REPRESENTAÇÃO DAS RELAÇÕES TERNÁRIAS

Seguem, agora, várias formas de representação das relações ter-


nárias.
• linguagem natural
- Pedro está entre André e Joana
- quatro mais três dá sete
- o conjunto A é a intersecção dos conjuntos B e C
• esquema sagital

3
4 7

• esquema de Euler-Venn (para conjuntos)

B A C

• escrita algébrica usual


4+3=7
A=B∩C
∩ é o signo da operação de intersecção entre os dois conjuntos.

• escrita algébrica polonesa5


R (3, 4, 7)

Lê-se essa relação como: “há a relação R entre 3, 4 e 7”, onde R signi-
fica que o terceiro elemento entre parênteses é igual à soma dos dois
primeiros.

5
Esta escrita nunca é empregada na escola elementar.

28

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A criança, a matemática e a realidade

• tabela cartesiana
A tabela cartesiana de uma relação ternária pode ser escrita de
vários modos:
- escrevendo-se nas margens da tabela os elementos a compor, e
nas caselas da tabela, o resultado da composição. Eis, por exem-
plo, a tabuada de multiplicação dos nove primeiros números da
base dez: o número que é encontrado em uma casela é o produto
do número que está à esquerda na mesma linha (margem da es-
querda) e do número que está em cima, na mesma coluna (mar-
gem de cima). É a tabuada de Pitágoras.
1 2 3 4 5 6 7 8 9

1 1 2 3 4 5 6 7 8 9

2 2 4 6 8 10 12 14 16 18

3 3 6 9 12 15 18 21 24 27

4 4 8 12 16 20 24 28 32 36

5 5 10 15 20 25 30 35 40 45

6 6 12 18 24 30 36 42 48 54

7 7 14 21 28 35 42 49 56 63

8 8 16 24 32 40 48 56 64 72

9 9 18 27 36 45 54 63 72 81

A tabela de classificação que segue é lida segundo o mesmo prin-


cípio: a classe que se encontra em uma casela da tabela é a intersecção
da classe que se encontra à esquerda na mesma linha e da classe que se
encontra no alto na mesma coluna.

29

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Gérard Vergnaud

azuis vermelhos amarelos

triângulos triângulos triângulos triângulos


azuis vermelhos amarelos

círculos círculos círculos círculos


azuis vermelhos amarelos

quadrados quadrados quadrados quadrados


azuis vermelhos amarelos

retângulos retângulos retângulos retângulos


azuis vermehos amarelos

- Também se pode escrever nas margens da tabela os elementos


que estão ligados (ponto de partida e ponto de chegada da fle-
cha), e nas caselas, as próprias relações. Eis um exemplo de tabela
cartesiana que traduz as relações entre quatro personagens senta-
dos à mesa:
a
E = à esquerda de
D = à direita de
b d F = diante de
I = no mesmo lugar que

30

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A criança, a matemática e a realidade

a b c d

a I E F D

b D I E F

c F D I E

d E F D I

Notemos que os elementos da relação ternária assim representada


não são da mesma natureza: há personagens (a, b, c, d) e relações
binárias espaciais (E, D, F, I).
• REPRESENTAÇÃO DAS RELAÇÕES QUATERNÁRIAS
Várias formas de representação são análogas àquelas utilizadas
para as relações binárias e ternárias.
• linguagem natural
- Dezoito sobre quinze é igual a seis sobre cinco
- Há a mesma diferença de idade entre papai e mamãe que entre
João e sua irmã Sofia
- O preço de seis garrafas está para o preço de uma garrafa, assim
como seis garrafas estão para uma
- Londres é para a Inglaterra o que Paris é para a França

• escrita algébrica usual


18 6
15
= 5
p–m=j–s p = idade do pai
m = idade da mãe
j = idade de João
s = idade de Sofia

31

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Gérard Vergnaud

• escrita algébrica polonesa6

R (p, m, j, s)

Essa relação é lida do seguinte modo: “há uma relação R entre p,


m, j, s”.
Ou seja, a relação se refere à existência da mesma diferença entre
p e m de uma parte, e entre j e s de outra parte.

• o esquema sagital e a tabela cartesiana podem ser combinados


para representar simplesmente certas relações quaternárias, aque-
las que colocam em jogo dois conjuntos distintos e uma relação
entre eles.
Eis dois exemplos:
CAPITAIS PAÍSES
Londres Inglaterra
Paris França

GARRAFAS REAIS
1 a
6 x

a = preço de uma garrafa


x = preço de seis garrafas

QUE É UM CÁLCULO RELACIONAL?

As relações são, às vezes, simples constatações que podemos fazer


sobre a realidade. Frequentemente elas também não são constatáveis e
devem ser inferidas ou aceitas. Mesmo no caso das relações constatá-

6
Jamais utilizada na escola elementar.

32

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A criança, a matemática e a realidade

veis, a criança nem sempre é capaz de fazer tais constatações, pois estas
supõem uma atividade material e intelectual que pode estar acima das
suas possibilidades.
Eis vários exemplos:
- A desigualdade de dois lápis, cuja diferença de comprimento
é pequena, pode não ser constatada pelas crianças menores, sobretudo
quando estas não são capazes de assegurar-se de que a base dos dois
objetos a comparar está no mesmo nível.
diferença pequena

base de mesmo nível

- A relação “mamãe é a filha da vovó” não é algo diretamente


constatável pela criança. Para fazê-la compreender essa relação é preciso
recorrer a explicações verbais que apresentam certa dificuldade.
- Se escondermos o brinquedo preferido de um bebê atrás de um
pacote colocado em cima de uma mesa, a relação “brinquedo escondido
pelo pacote” não é compreendida completamente pelo bebê antes da
idade de 18 meses em média. No entanto, ele a compreende bem antes
de ser capaz de expressá-la verbalmente.
Mas as relações nada seriam se fossem apenas constatações. A in-
teligência ficaria muito limitada se restrita a elas. O trabalho da inte-
ligência conduz igualmente a deduções ou inferências e a construções.
Existem duas grandes formas de deduções.

PRIMEIRA FORMA:

Deduzir uma conduta ou uma regra de conduta de relações cons-


tatadas ou aceitas.
• Primeiro exemplo:
O bebê de 18 meses retira da relação “brinquedo escondido pelo
pacote” a conclusão de que, para encontrar o brinquedo, ele deve
alongar o braço, passar a mão por trás do pacote e alcançar o brin-
quedo. Aliás, é o fato de o bebê ser capaz de fazer essa operação

33

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Gérard Vergnaud

que dá ao psicólogo o direito de julgar que a criança efetivamente


compreendeu a relação “brinquedo escondido pelo pacote”.

• Segundo exemplo:
Suponhamos que as barras sejam encaixadas umas nas outras se-
gundo o esquema abaixo e que solicitamos a uma criança tirar a
barra A:

F E D
Vemos que é impossível tirar a barra A sem tirar antes a barra C,
a barra D, a barra B e a barra F.
Quando a criança é capaz de entender a relação de encaixe e, so-
bretudo, seu caráter antissimétrico (ver antissimetria no próximo
capítulo), ela adota uma regra de conduta simples que consiste
em ir da barra A à barra F, da barra F à barra B, da barra B à barra
D e da barra D à barra C.
Essa regra de conduta por regressão passo a passo não é utilizada
pelas crianças antes da idade de 5 anos e meio porque elas não
compreendem o caráter antissimétrico do encaixe. Uma minoria
de crianças a utiliza a partir de 4 anos e meio ou 5 anos.
• Terceiro exemplo:
É somente quando a criança compreende (sem, no entanto, for-
mular) a relação quaternária “o preço de seis garrafas está para o
preço de uma garrafa, como seis garrafas estão para uma” que,

34

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A criança, a matemática e a realidade

para achar o preço de seis garrafas, ela aplica ao preço de uma


(digamos R$ 3,00) o operador x6 , que é justamente o operador
que faz passar de uma a seis garrafas.
Garrafas Reais

1 3

x6 x6

6
Retornaremos a essa categoria de problemas no capítulo XI “os
problemas de tipo multiplicativo”.

SEGUNDA FORMA:

Deduzir novas relações a partir das relações constatadas e aceitas.


Essas novas relações podem ser, elas próprias, constatáveis ou não.
• Primeiro exemplo
No jogo das barras encaixadas já citado, a criança de 5 anos e
meio compreende bem que a relação de encaixe é uma relação de
bloqueio antissimétrica.
F bloqueia A; B bloqueia F; D bloqueia B; C bloqueia D; mas A
não bloqueia F; F não bloqueia B, etc.
Mas ela não é capaz de deduzir que:
- se F bloqueia A e B bloqueia F, então B bloqueia A
- se B bloqueia A e D bloqueia B, então D bloqueia A
- se D bloqueia A e C bloqueia D, então C bloqueia A.
Para fazer esse encadeamento de deduções é preciso que ela utilize
a transitividade da relação de bloqueio (ver mais adiante sobre transiti-
vidade). Enquanto ela não adquire essa transitividade, nada lhe permite
considerar que é preciso tirar a barra C em primeiro lugar. Com efeito,
não podemos constatar diretamente que C bloqueia A; é preciso dedu-
zi-lo das outras relações diretamente constatáveis pela transitividade. Só
a partir de 7 anos e meio, em média, é que a criança calcula transitiva-
mente esse tipo de situação.

35

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Gérard Vergnaud

• Segundo exemplo
Seja o enunciado: “Pedro acabou de jogar duas partidas de boli-
nha de gude. Ele perdeu 13 na primeira partida e ganhou 7 na
segunda, e ele tem, agora, 45. Quantas ele tinha antes de começar
a jogar?”
Suponhamos que uma criança de 10 anos, bem avançada, pro-
ceda da seguinte maneira: ela tira 7 de 13 e acha 6; ela soma 6
com 45 e acha 51, que ela dá como resultado. Que dedução, que
cálculo relacional ela fez?
O esquema sagital abaixo, que representa os dados do problema,
vai permitir mostrar que ela fez duas deduções importantes.
Estado inicial Primeira parte Estado intermediário Segunda parte Estado final

-13 +7

45

Primeira dedução: ela compôs duas relações entre si para achar


uma terceira. Mais precisamente, ela compôs as duas transfor-
mações −13 e +7 para encontrar o resultado –6, como mostra o
esquema abaixo.
-13 +7

45

--- -
----
---- -6 -- ---
-----
--------- ---- ----
--------------

36

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A criança, a matemática e a realidade

Segunda dedução: ela aplicou ao estado final 45 a transformação


recíproca de -6 para achar o estado inicial: se -6 faz passar do
estado inicial ao estado final, então +6 faz passar do estado final
ao estado inicial.
+6

-------------------- 45

-6

Somando 6 com 45, ela encontra o estado inicial. Esse exemplo


ilustra claramente dois aspectos importantes do cálculo relacional sobre
os quais retornaremos:
- compor duas relações;
- tomar a recíproca de uma relação.

Essa noção de cálculo relacional é fundamental. Nós a encontra-


remos frequentemente. Apenas quisemos mostrar, nesse capítulo inicial,
que a noção de cálculo relacional se aplica a todos os tipos de relações,
binárias, ternárias, quaternárias, e que ela tem ligações estreitas com a
noção de regra de conduta.
Com efeito, a criança, como qualquer outro sujeito, regula sua
conduta sobre as relações que ela apreende e sobre o cálculo relacional
que faz. A noção de cálculo relacional contribui para esclarecer e expli-
citar a noção, muito vaga, de raciocínio.

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CAPÍTULO II

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PROPRIEDADES DAS RELAÇÕES
BINÁRIAS

Os cálculos relacionais só são possíveis e têm validade se apoiados


nas propriedades das relações em jogo.
As propriedades das relações ternárias e quaternárias são difíceis
de tratar de um ponto de vista geral; nós as abordaremos, assim, no
próximo capítulo. No entanto, as propriedades possíveis das relações
binárias foram bem elucidadas pelos matemáticos e pelos lógicos. Eis as
propriedades mais importantes7:

SIMETRIA E ANTISSIMETRIA

• SIMETRIA
Uma relação binária é simétrica se, e somente se, a cada vez que
tivermos a relação entre um elemento x e um elemento y, tivermos ne-
cessariamente a mesma relação entre o elemento y e o elemento x.
Exemplos de relações simétricas:
- “Estar ao lado de”: se André está ao lado de Bernardo, Bernardo
está necessariamente ao lado de André.
- “Habita a mesma cidade que”: se André habita a mesma cidade
que Bernardo, Bernardo habita necessariamente a mesma cida-
de que André.
Exemplos de relações não simétricas:
- “É irmão de”: se A é irmão de B, B não é necessariamente irmão
de A. Na verdade, se B é uma menina (Beatriz), ela não pode ser

Que o leitor nos desculpe relembrar esse assunto, supérfluo, sem


7

dúvida! No entanto, o autor chama a atenção para algumas considerações ori-


ginais que dizem respeito à antissimetria, à antitransitividade e à antirreflexivi-
dade, assim como à relação de igualdade.

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Gérard Vergnaud

irmão de A. No entanto, se B é um menino (Bernardo), temos a


relação “Bernardo é irmão de A”; mas isso não é suficiente para
que a relação “é irmão de” seja simétrica, pois a definição da
simetria exige que ela seja verdadeira todas as vezes.

- “Estar à esquerda de”: se A está à esquerda de B, B não neces-


sariamente está à esquerda de A. Assim, não somente a relação
“à esquerda de” não é simétrica, mas ela é antissimétrica (ver
abaixo). Se A está à esquerda de B, B não está certamente à
esquerda de A. E existe uma relação recíproca “estar à direita
de” que é verdadeira para o par (B, A) cada vez que a relação
“estar à esquerda de” for verdadeira para o par (A, B)8. Se A está
à esquerda de B, B está à direita de A.
Vemos, portanto, que as relações “é irmão de” e “estar à esquerda
de” são bem diferentes, embora nenhuma delas seja simétrica.
• ANTISSIMETRIA
Uma relação binária é antissimétrica se, e somente se, a cada vez
que tivermos a relação entre um elemento x e um elemento y, não tiver-
mos a mesma relação entre o elemento y e o elemento x.

Exemplos de relações antissimétricas:


- “Estar à esquerda de”: se André está à esquerda de Bernardo,
Bernardo não está certamente à esquerda de André.
- “Ser maior que”: se André é maior que Bernardo, Bernardo cer-
tamente não é maior que André.
- “Estar dentro de”: se a caixa vermelha está dentro da caixa azul,
a caixa azul certamente não está dentro da caixa vermelha.

Exemplos de relações não antissimétricas:


- “Ser irmão de”: se A é o irmão de B, não está excluído que B seja
irmão de A. É o caso se B for um menino.
Vimos acima que “ser irmão de” não é uma relação simétrica,
vemos agora que ela também não é antissimétrica.

Um par é composto de um primeiro e de um segundo elemento;


8

o par (A, B) não é igual ao par (B, A).

42

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A criança, a matemática e a realidade

- “Amar”: se A ama B, não está excluído que B ame A. Aqui tam-


bém, as duas coisas são possíveis, e a relação “B ama A” pode
ser, conforme o caso, verdadeira ou falsa. A relação “ama” não é
nem simétrica, nem antissimétrica.
- “Estar sentado na frente de”: se A está sentado na frente de
B, não está excluído que B esteja sentado na frente de A. Na
verdade, pode-se mesmo afirmar que B esteja necessariamente
sentado na frente de A. A relação “estar sentado na frente de” é
uma relação simétrica.
Vemos assim que uma relação binária pode ser encontrada em
um dos três casos seguintes:
- simétrica: “está ao lado de”, “habita a mesma cidade que”, “está
sentado na frente de...”;
- antissimétrica: “é maior que”, “está dentro de”, “está à esquerda
de...”;
- nem simétrica, nem antissimétrica: “é irmão de”, “ama...”.

TRANSITIVIDADE E ANTITRANSITIVIDADE

• TRANSITIVIDADE
Uma relação binária é transitiva se, e somente se, a cada vez que
tivermos a relação entre um elemento x e um elemento y de uma parte,
e entre o elemento y e um elemento z de outra parte, tivermos necessa-
riamente a mesma relação entre o elemento x e o elemento z.

Exemplos de relações transitivas:


- “Chegar antes de”: se André chegou antes de Bernardo e Ber-
nardo chegou antes de Carlos, André necessariamente chegou
antes de Carlos.
- “Habitar a mesma cidade que”: se André habita a mesma cidade
que Bernardo e Bernardo a mesma cidade que Carlos, André
habita necessariamente a mesma cidade que Carlos.
- “Ser maior que”.
- “Ser irmão de”.
- “Ser descendente de”.

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Gérard Vergnaud

Exemplos de relações não transitivas:


- “Amar”: se A ama B e se B ama C, A não ama necessariamente C.
- “Ser pai de”: se A é pai de B e B é pai de C, A não é necessaria-
mente avô de C e ele certamente não é pai de C. Assim, não so-
mente a relação “ser pai de” não é transitiva, mas ela é também
antitransitiva. E existe uma relação composta “ser avô de” que é
verdadeira para o par (A, C) a cada vez que a relação “ser pai de”
for verdadeira para o par (A, B) e para o par (B, C).
Vemos, portanto, que as relações “ama” e “é pai de” são muito
diferentes, embora nenhuma delas seja transitiva.
• ANTITRANSITIVIDADE
Uma relação binária é antitransitiva se, e somente se, a cada vez
que tivermos a relação entre um elemento x e um elemento y e um
elemento z, certamente não teremos a relação entre o elemento x e o
elemento z.

Exemplos de relações antitransitivas:


- “Ser pai de”.
- “Estar exatamente à direita de”: se André está exatamente à di-
reita de Bernardo e Bernardo exatamente à direita de Carlos,
André certamente não estará exatamente à direita de Carlos.

Exemplos de relações não antitransitivas:


- “Amar”: se A ama B e B ama C, não está excluído que A ame
C.
- “É mais velho que”: se A é mais velho que B e B é mais velho
que C, não está excluído que A seja mais velho que C. Na reali-
dade, A é necessariamente mais velho que C. A relação “é mais
velho que” é uma relação transitiva.
*
Vemos assim que uma relação binária pode ocorrer em um dos
três casos seguintes:
- transitivo: “chegou antes”, “habita a mesma cidade que”, “é
maior que”, “é irmão de...”;
- antitransitivo: “é pai de”, “está exatamente à direita de...”;
- nem transitivo, nem antitransitivo: “ama...”.

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A criança, a matemática e a realidade

REFLEXIVIDADE E ANTIRREFLEXIVIDADE

• REFLEXIVIDADE
Uma relação binária é reflexiva se, e somente se, todo elemento x
estiver necessariamente em relação com ele mesmo.
Essa propriedade das relações binárias é menos importante que as
precedentes, pois ela não é utilizada nos cálculos relacionais. Frequente-
mente ela não é nada mais que uma constatação.
Exemplos de relações reflexivas:
- “Ser tão grande quanto”: André é necessariamente tão grande
quanto ele mesmo.
- “Habitar a mesma cidade que”: André habita necessariamente a
mesma cidade que ele mesmo.
Exemplos de relações não reflexivas:
- “Desprezar”: André não despreza necessariamente a si próprio.
No entanto, é possível que ele despreze a si próprio.
- “Chegar antes”: André não chegou necessariamente antes dele
mesmo. Na realidade, é necessariamente falso que André tenha
chegado antes dele mesmo.
Vemos, portanto, que as relações “desprezar” e “chegar antes” são
muito diferentes, embora nenhuma delas seja reflexiva.
• ANTIRREFLEXIVIDADE
Uma relação binária é antirreflexiva se, e somente se, nenhum
elemento puder estar em relação com ele mesmo.
Exemplos de relações antirreflexivas:
- “Chegar antes”: A certamente não chegou antes de si mesmo.
- “Estar ao lado de”: A certamente não está ao lado de si mesmo.
- “Ser cônjuge de”: A certamente não é cônjuge de si mesmo.
Exemplos de relações não antirreflexivas:
- “Desprezar”: não está excluído que A despreze a si mesmo.
- “Habitar a mesma cidade que”: não está excluído que A habite
a mesma cidade que ele mesmo. Na realidade, A habita neces-
sariamente a mesma cidade que ele mesmo. A relação “habitar a
mesma cidade que” é reflexiva.
*

45

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Gérard Vergnaud

Vemos assim que uma relação binária pode ocorrer em um dos


três casos seguintes:
- reflexivo: “é tão grande quanto”, “habita a mesma cidade
que...”;
- antirreflexivo: “chegou antes que”, “está ao lado de...”;
- nem reflexivo, nem antirreflexivo: “desprezar...”.

GRANDES CATEGORIAS DE RELAÇÕES BINÁRIAS

Se considerarmos as diferentes possibilidades de uma relação bi-


nária, poderíamos ter um grande número delas.
3 possibilidades para a simetria,
3 possibilidades para a transitividade,
3 possibilidades para a reflexividade.
Ou seja, um total de 33 =27 possibilidades.
Porém, o número de categorias é inferior a 27, pois certas pro-
priedades não são independentes umas das outras: por exemplo, uma
relação simétrica e transitiva não pode ser antirreflexiva.
As duas categorias mais importantes são:
1. as relações de equivalência, que são:
- simétricas;
- transitivas;
- reflexivas.
2. as relações de ordem estrita, que são:
- antissimétricas;
- transitivas;
- antirreflexivas.

• AS RELAÇÕES DE EQUIVALÊNCIA
Elas permitem colocar em uma mesma classe elementos entre os
quais existe a relação de equivalência e, assim, formar classes disjuntas.
A relação “habitar a mesma cidade” é uma relação simétrica, transi-
tiva, reflexiva. Ela permite colocar em uma mesma classe pessoas que mo-
ram na mesma cidade e, assim, formar classes disjuntas, uma por cidade.
A relação “ter a mesma cor que” é uma relação simétrica, transiti-
va, reflexiva. Ela permite colocar em uma mesma classe objetos que têm

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A criança, a matemática e a realidade

a mesma cor e, assim, formar, classes disjuntas, uma por cor.


A relação “nascer no mesmo ano que” permite formar classes por
idade.
A relação “ser igual a” permite formar classes de expressões numé-
ricas ou algébricas iguais entre si.
Etc.

• AS RELAÇÕES DE ORDEM ESTRITA


Permitem ordenar os elementos de tal sorte que não haja dois
elementos no mesmo lugar (de onde o termo “estrita”).
A relação “nascer antes” é, frequentemente, uma relação antissi-
métrica, transitiva e antirreflexiva. Ela permite, em todo caso, ordenar
de modo estrito os filhos de uma mesma mãe (mesmo os gêmeos).
A relação “estar à esquerda de” é, igualmente, uma relação antis-
simétrica, transitiva e antirreflexiva. Permite ordenar de modo estrito os
objetos de um mesmo arranjo, por exemplo.
A relação “ser descendente de” permite ordenar as pessoas de uma
mesma família.
A relação “estar contido em” permite ordenar os capítulos e sub-
capítulos de um livro.
• AS RELAÇÕES DE ORDEM AMPLA
Existe uma outra grande categoria de relações binárias, deriva-
das das duas primeiras. De fato, se compararmos os elementos entre
si próprios, poderemos tê-los seja como equivalentes, seja estritamente
ordenados. Assim sendo, os matemáticos definiram uma nova categoria
de relações binárias, as relações de ordem ampla: “ampla” se opõe a “es-
trita” e remete à possibilidade de haver elementos não ordenados entre
si, mas equivalentes.
Por exemplo, em um concurso, os resultados levam, frequente-
mente, a uma ordem com empates.
Suponhamos que se considere, então, a relação “chegar antes” ou
“ao mesmo tempo em que”.
Ela é uma relação transitiva: se A chegou antes ou ao mesmo
tempo em que B, e B antes ou ao mesmo tempo em que C, A necessa-
riamente chegou antes ou ao mesmo tempo em que C.

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Gérard Vergnaud

Embora essa relação faça apelo à noção de ordem, ela não tem
as outras propriedades das relações de ordem estrita, a antissimetria e a
antirreflexividade.
• antissimetria:
tomemos dois candidatos empatados L e M;
temos, ao mesmo tempo: “L chegou antes ou ao mesmo tempo
em que M”.
e “M chegou antes ou ao mesmo tempo em que L”.
Segundo a definição dada acima, a relação não é, portanto, an-
tissimétrica.
Ela também não é evidentemente simétrica, porque, quando
comparamos os candidatos que não estão empatados R e S,
temos, por exemplo: “R chegou antes ou ao mesmo tempo em
que S”.
mas não temos: “S chegou antes ou ao mesmo tempo em que R”.
Para considerar a situação dos empates, os matemáticos imagina-
ram uma definição mais completa da antissimetria9.
Uma relação é antissimétrica se, e somente se, a cada vez que
tivermos, ao mesmo tempo, a relação entre um elemento x e um
elemento y e entre o elemento y e o elemento x, tivermos neces-
sariamente x equivalente à y.

Essa definição não deve ser utilizada na escola elementar, pois ela
9

se choca com a definição ingênua da assimetria que nós deliberadamente pre-


ferimos neste capítulo. A definição utilizada classicamente pelos matemáticos
supõe a compreensão da disjunção das relações:
“maior ou igual”,
“antes ou ao mesmo tempo”, etc
Ora, a disjunção das relações é muito difícil para a maioria das crianças do
ensino elementar. A antissimetria ingênua se escreve da seguinte forma:
∀x, ∀y x R y ⇒ y R x (a barra indica negação)
Há muitas escritas possíveis da antissimetria dos matemáticos:
1. ∀x, ∀y x R y e y R x ⇒ x = y (escrita habitual)
2. ∀x, ∀y x R y ⇒ y R x, exceto para x = y
3. ∀x, ∀y se x ≠ y x R y ⇒ y R x
As escritas 2. e 3. são as mais próximas da definição ingênua e parecem ser, de
qualquer forma, preferíveis.

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A criança, a matemática e a realidade

• reflexividade
O fato de colocar “ou ao mesmo tempo em que”, na relação
considerada acima, torna a relação reflexiva (e não antirreflexiva
como o quer a definição das relações de ordem restrita).
Qualquer candidato chegou antes ou ao mesmo tempo em que
ele mesmo, pois ele necessariamente chegou ao mesmo tempo em
que ele mesmo. A relação “chegou antes ou ao mesmo tempo em
que” é, portanto:
- transitiva,
- antissimétrica (no sentido da nova definição, mais complexa
que a primeira),
- reflexiva.
A verificação dessas três propriedades caracteriza as relações de
ordem ampla.

CONEXIDADE

Existe, finalmente, uma última propriedade das relações binárias,


a conexidade, que permite distinguir duas espécies de ordens:
- a ordem total ou linear,
- a ordem parcial ou de vários ramos.
Uma relação binária é conexa se, e somente se, a cada vez que
considerarmos dois elementos distintos x e y, tivermos necessariamente
a relação, seja entre x e y, seja entre y e x.
A definição que precede permite ver logo que a conexidade de-
pende do conjunto do qual os elementos são tomados.
Tomemos, por exemplo, a relação “estar à esquerda de”:
- para livros ordenados em três prateleiras superpostas, é uma re-
lação não conexa: com efeito, dos dois livros A e B situados um abaixo
do outro não podemos dizer nem que A está à esquerda de B, nem que
B está à esquerda de A;
- para os livros ordenados em uma só prateleira, trata-se de uma
relação conexa: para os livros A e B, um está necessariamente à esquerda
do outro.
A maior parte das relações de ordem podem ser conexas ou não
conexas segundo o conjunto de referência.

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Gérard Vergnaud

• Primeiro exemplo
A relação “é descendente de”, marcada por uma flecha no esque-
ma sagital abaixo (árvore genealógica) é uma relação:
- não conexa, se tomarmos como conjunto a árvore genealógica
completa, pois dois elementos de linhagem diferente não estão
em relação;
- conexa, se tomarmos como conjunto uma só linha (A, B, F, M,
por exemplo).
não conexa conexa

A A

B C D B

E F GH I J

F
K L M NO P Q R

M
No entanto, como não temos qualquer razão para nos atermos
apenas a uma só linhagem, podemos dizer que a relação “ser des-
cendente de” não é, em geral, uma relação conexa.
A ordem a que chegamos, ilustrada pelo esquema sagital, nada
mais é que uma ordem parcial, pois certos pares de elementos não
são ordenados pela relação: não podemos colocar a relação nem
num sentido, nem no outro.
Exemplos: E e F, E e I, E e D.
Dizemos ainda que se trata de uma ordem de vários ramos.
• Segundo exemplo
A relação “nascer antes” é, frequentemente, uma relação conexa:
se tomarmos as crianças de uma classe, por exemplo, podemos
em geral, dizer, de duas crianças quaisquer, qual delas nasceu an-
tes da outra.

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A criança, a matemática e a realidade

Pode ocorrer, no entanto, que duas crianças A e B tenham nasci-


do absolutamente ao mesmo tempo, ou que não tenhamos meios
de identificar tal diferença. Nesse caso, a relação não é conexa
para o conjunto que compreende A e B.
No caso de uma relação de ordem conexa, a ordem a que chega-
mos é uma ordem total, pois todos os pares são ordenados pela
relação (podemos sempre colocar a relação seja num sentido, seja
em outro). Dizemos ainda que se trata de uma ordem linear ou
de um só ramo.
*
A conexidade é uma propriedade das relações binárias que pode
ter interesse para outras relações que não sejam relações de ordem, mas
ela tem menor importância. Ficaremos por aqui.

UMA RELAÇÃO DE EQUIVALÊNCIA PARTICULAR, A RELA-


ÇÃO DE IGUALDADE

A relação de igualdade é uma relação simétrica, transitiva e refle-


xiva. É, portanto, uma relação de equivalência. No entanto, ela tem a
particularidade suplementar de afirmar que o que está à direita do sinal
de igualdade nada mais é que aquilo que está à esquerda: ela não apenas
afirma uma equivalência, mas também uma identidade. Na verdade,
quando se escreve uma relação de igualdade
entre conjuntos A=B
ou entre números a=b
isso significa que o conjunto de A e o conjunto de B são um só e mesmo
conjunto, e que o número a e o número b são um só e mesmo núme-
ro.
Como pode ser assim, uma vez que a relação de igualdade se
comporta, em certo sentido, como uma relação binária, entre objetos
distintos?

Analisemos um exemplo numérico


3+4=7
As propriedades das relações de equivalência são todas verdadei-
ras e utilizáveis

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simetria 3+4=7 7=3+4

3+4=7
transitividade 3+4=5+2
7=5+2

7=7
reflexividade
3+4=3+4

Dizer, ao mesmo tempo, que se trata do mesmo número à direita


e à esquerda do sinal de igualdade, significa que a expressão simbólica 3
+ 4 representa o mesmo número que o símbolo 7.
Em outros termos, a igualdade pode ser lida de dois modos:
- como uma identidade no nível do número representado,
- como uma equivalência entre representações simbólicas diferen-
tes desse mesmo número.
A relação de igualdade coloca, portanto, ao mesmo tempo, a
identidade única do significado e a equivalência dos diferentes signifi-
cantes. Ela é interpretada em dois níveis.
Essa é uma dimensão original, não claramente assim encontrada
nas outras relações binárias. De fato, quando escrevemos, por exemplo:
a I b (André é irmão de Bernardo)
designamos por a, apenas um só objeto, André, e por b, igualmente
apenas um só objeto, Bernardo, distinto do primeiro: a e b não podem
designar o mesmo objeto. Não há dois níveis de leitura da relação a I b,
mas somente um.
a simboliza o objeto André
b simboliza o objeto Bernardo
I simboliza a relação “é irmão de”
O duplo aspecto da relação de igualdade se deve ao fato de que
um ou mais dos membros de uma igualdade coloca em jogo
seja uma operação ou uma sequência de operações:
3+4=7

4 x (3 + 6)
= 6
6

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A criança, a matemática e a realidade

seja uma ou várias incógnitas cujo valor procuramos determinar:


x=7-3

x+y=7
- sejam, e mais frequentemente, tanto incógnitas como operações
ao mesmo tempo:

4 x (3 + 6)
x =
6

y=3+x

Frequentemente, são os dois números de uma igualdade que


comportam incógnitas e operações:
3x + 2y + 3 = 3 - 2x
A relação de igualdade afirma, então, que o valor conferido a cada
um dos dois membros da equação pela substituição de valores adequa-
dos às incógnitas e pela efetuação das operações, é idêntico à direita e à
esquerda do sinal de igualdade. A relação de igualdade afirma, assim, a
invariância desse valor através das diferentes operações simbólicas indi-
cadas pelo membro da esquerda de uma parte, e o membro da direita,
de outra parte. Retomaremos essa questão da invariância no capítulo
XIII “os problemas fundamentais do ensino de matemática”.

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CAPÍTULO III

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RELAÇÕES TERNÁRIAS E
TRANSFORMAÇÕES
RELAÇÕES QUATERNÁRIAS
CORRESPONDÊNCIAS E APLICAÇÕES

RELAÇÕES TERNÁRIAS

As relações ternárias são relações que, como o nome indica, ligam


três elementos entre si. Apresentamos delas, antes, vários exemplos:
- Pedro está entre André e Joana.
- Sete é quatro a mais que três.
- Seis multiplicado por cinco dá trinta.
- Os habitantes da França que não são franceses são estrangeiros
residindo na França.
Vemos, por meio desses exemplos, que os elementos ligados podem
ser pessoas, números, conjuntos... enfim, objetos lógicos de natureza bem
diversa.
Os lógicos e os matemáticos não fizeram a análise sistemática das
propriedades das relações ternárias como o fizeram para as das relações
binárias.
Isso se deve ao fato de que as relações ternárias são mais comple-
xas e que, frequentemente, podemos colocá-las sob formas mais apro-
priadas ao seu estudo.

• PRIMEIRO MODELO: LEI DE COMPOSIÇÃO BINÁRIA


Podemos frequentemente colocar uma relação binária sob a for-
ma de uma composição de dois elementos com o resultado dessa com-
posição.

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Gérard Vergnaud

Exemplos:
- Sete é quatro a mais que três, pode-se escrever:
7=3+4
ou ainda
4+3=7
ou ainda
7-4=3
ou ainda
7-3=4
- Seis multiplicado por cinco dá trinta, pode-se escrever:
6 x 5 = 30
Os habitantes da França que não são franceses são estrangeiros
residindo na França, pode-se escrever:
H F’ = E
(com o simbolismo seguinte):

H = conjunto dos habitantes da França


F’ = conjunto das pessoas que não são francesas
E = conjunto dos estrangeiros que habitam a França
∩ = sinal de intersecção de dois conjuntos

Em todos esses casos, dois elementos são compostos entre si para


formar um terceiro elemento: é o que os matemáticos convencionaram
chamar de “uma lei de composição binária” ou uma “operação binária”:
a adição, a subtração, a multiplicação, a divisão de dois números, a in-
tersecção, a união de dois conjuntos são leis de composição binárias.
As leis de composição binárias podem ter as propriedades seguin-
tes, as quais estudaremos em capítulo posterior:
- associatividade;
- comutatividade;
- existência de um elemento neutro;
- existência de um inverso para todo elemento;
- distributividade de uma lei de composição sobre uma outra;
etc.

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A criança, a matemática e a realidade

Essas propriedades das leis de composição binárias permitem


cálculos relacionais de uma grande riqueza, os quais constituem, na
realidade, um cálculo relacional próprio às relações ternárias. Mas as
propriedades das leis de composição binárias não esgotam o que pode
ser dito das relações ternárias.
Por exemplo, a relação “entre” não pode ser representada por uma
lei de composição binária. No entanto, ela está ligada às relações como
“ao lado de”, “à frente”, “atrás”, etc., e dá lugar a cálculos relacionais ou
a inferências interessantes, não sem dificuldades para a criança. Eis aqui
um exemplo:

Sejam as seguintes informações:


A, B, C, D são colegas sentados num mesmo banco
A está entre B e C
D está entre A e C
D está à direita de C
Podemos deduzir, no caso, várias relações interessantes:
A está à direita de D
A está entre B e D
etc.

A noção de relação ternária é muito mais ampla que a de compo-


sição binária:
Se toda lei de composição binária a ∗ b = c (∗ = sinal da compo-
sição) é uma relação ternária, uma vez que ela enuncia uma relação entre
três elementos a, b e c. Porém, nem toda relação ternária pode ser sempre
representada pela lei binária: é o caso, sobretudo, da relação “entre”.
Mesmo quando uma relação ternária pode ser representada por
uma lei de composição binária, às vezes é mais adequado representá-la
por um modelo diferente, como vamos ver em seguida.
• SEGUNDO MODELO: ELEMENTO, RELAÇÃO-ELEMEN-
TO, ELEMENTO
Nessa representação de uma relação ternária, colocamos em evi-
dência que dois elementos são ligados por uma relação, ela mesma con-
siderada como um elemento. Conservemos então a ideia de que tal
relação-elemento opera sobre o primeiro elemento para resultar no se-

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Gérard Vergnaud

gundo. Encontramos ilustrações desse modelo em inúmeros problemas


de aritmética, tal como veremos nos capítulos posteriores.

Retomemos o exemplo da relação:


“sete é quatro a mais que três”
que podemos também escrever assim:
“para ir de três a sete, é preciso juntar quatro”.
A representação sagital seguinte:
+4
3 7
mostra claramente que, com referência à relação binária simples:
“sete é maior que três”
7 > 3 ou 3 < 7
uma informação suplementar é dada sobre a diferença entre 7 e 3.

Inúmeras relações ternárias são constituídas de dois elementos e


de uma relação-elemento. No exemplo acima, os elementos são 7 e 3 e
a relação-elemento é +4 . Frequentemente, os elementos são estados
e a relação-elemento é uma transformação que faz passar do primeiro
estado ao segundo.
A noção de transformação é tão fundamental que ela demanda
uma análise separada.

A NOÇÃO DE TRANSFORMAÇÃO

Inúmeras relações do mundo real são, de fato, relações “dinâmi-


cas” no sentido de que elas ligam estados sucessivos da realidade e não
elementos simultâneos da realidade.
Poderíamos nos contentar em falar de relações “estáticas” (ligan-
do os elementos simultâneos da realidade) e de relações “dinâmicas” (li-
gando os elementos não simultâneos). Mas é mais claro, mais explícito,
neste caso, falarmos de transformações.
O que se passa no tempo pode ser descrito sob a forma de uma
sequência de transformações:

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A criança, a matemática e a realidade

Tr. 1 Tr. 2 Tr. 3

estado 0 estado 1 estado 2 estado 3, etc.


no interior dessa sequência podemos reconhecer, numa tríade particu-
lar, o modelo ternário:
transformação
estado estado
Eis alguns exemplos:
-“6 pessoas entram num ônibus. Nele já havia 4. Agora há 10”.
+6
4 10
-“Eu gastei R$ 18,00 no açougueiro. Agora eu tenho R$ 3,00 na minha
carteira. Quanto eu tinha antes de ir ao açougueiro?”.
(x representa a pergunta)

-18
x 3
-“Em um jogo, Beatriz deve mudar a cor, e somente a cor, dos objetos
que lhe são dados: se ele é vermelho, ela deve devolver um azul, se ele
é azul, ela deve devolver um vermelho. Se lhe for dado um pequeno
triângulo azul, ela deve devolver um pequeno triângulo vermelho”.
mudança de cor
pequeno triângulo pequeno triângulo
azul vermelho
-“Uma criança desloca um objeto em diagonal, sobre um quadrado,
para ir do ponto A ao ponto C (que lhe é oposto)”.
deslocamento diagonal
A C
Seria fácil multiplicar os exemplos. Adiante, este livro poderá
mostrar que a noção de transformação esclarece inúmeras noções mate-
máticas e facilita a análise de numerosos problemas.
Podemos assinalar, no entanto, que os elementos em jogo na rela-
ção ternária estado-transformação-estado não têm exatamente o mesmo

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Gérard Vergnaud

status, pois dois termos são os estados e o outro, uma transformação.


Assim, nos exemplos precedentes, podemos distinguir:
OS ESTADOS AS TRANSFORMAÇÕES

1º exemplo As pessoas que estão no ônibus As pessoas que entram e saem


(em um momento dado)
2º exemplo O dinheiro que tenho na carteira O dinheiro que tiro ou ponho
(em um momento dado) na carteira
3º exemplo A cor dos objetos A mudança de cor

4º exemplo A posição dos objetos O deslocamento

Essa diferença de status entre estado e transformação não aparece


quando colocamos as relações ternárias sob a forma de lei de composi-
ção binária (a ∗ b = c) que vimos antes, pois os três elementos a, b e c
são agora considerados como sendo de mesma natureza.
O modelo estado-transformação-estado permite uma análise mais
fina das relações e dos problemas que podem ser propostos. Façamos
brevemente essa análise, que será retomada de modo mais completo por
ocasião do estudo dos problemas de aritmética elementar.
• CASO SIMPLES: UMA SÓ TRANSFORMAÇÃO
Três categorias de problemas podem ser identificadas:
1 - Conhecendo o estado inicial e a transformação, encontrar o
estado final.
2 - Conhecendo a transformação e o estado final, encontrar o
estado inicial.
3 - Conhecendo o estado inicial e o estado final, encontrar a
transformação.
Os exemplos que seguem, retirados unicamente da aritmética
aditiva, permitem ver que sua solução coloca em ação cálculos relacio-
nais diferentes.

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A criança, a matemática e a realidade

CATEGORIAS DE CÁLCULO RELACIONAL


PROBLEMAS CORRESPONDENTE

1ª categoria “Eu tinha 13 bolinhas,


perdi 4; quantas tenho
agora?”
Cálculo do estado final
-4 pela aplicação da transformação
13 x direta -4 ao estado inicial 13.

2ª categoria “Ganhei 6 bolinhas. Agora


tenho 12. Quantas eu tinha
antes de jogar” Cálculo do estado inicial
pela inversão da transformação
+6 direta +6 e aplicação da
x 12 transformação inversa -6 ao
estado final 12.
3ª categoria “Tinha 8 bolinhas, acabei de
jogar uma partida e agora tenho14.
O que aconteceu na partida?”
Cálculo da transformação
pela diferença entre o estado
x inicial 8 e o estado final 14.
8 14
Embora nos três casos a solução consista em uma simples subtra-
ção, a dificuldade desses três problemas não é a mesma e, para algumas
crianças, há um intervalo de dois anos entre o sucesso no primeiro pro-
blema e o sucesso no segundo.
Essas três categorias de problemas não são outra coisa senão as
três questões que podem ser colocadas sobre as relações binárias: sobre
o elemento da direita, sobre o elemento da esquerda, e sobre a própria
relação. Tomemos o seguinte exemplo: “Pedro é o sobrinho da Dona
Maria”. As três questões possíveis são então:

sobre o elemento da direita:


- Pedro é sobrinho de quem?
sobre o elemento da esquerda:
- Quem é o sobrinho da Dona Maria?
sobre a própria relação:
- Que relação há entre Pedro e Dona Maria?

Ocorre simplesmente que, no caso das relações ternárias propria-


mente ditas, a relação é ela própria considerada um elemento. Vemos
também que ela não é um elemento idêntico aos outros.

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Gérard Vergnaud

Veremos, nos parágrafos seguintes, que existem certas relações


ternárias nas quais podemos colocar, sem ambiguidade, os três elemen-
tos no mesmo plano.

• CASO MAIS COMPLEXO: VÁRIAS TRANSFORMAÇÕES


Quando há várias transformações sucessivas, uma questão nova
se coloca: aquela da composição das transformações. As categorias de
problemas, que então podemos propor, são muito mais numerosas.
• Primeira categoria: a pergunta diz respeito ao estado
Podemos, por exemplo, colocar uma questão sobre o estado ini-
cial, o estado final ou um dos estados intermediários, conhecendo
certos estados e certas transformações. A configuração das trans-
formações pode, então, ser de uma grande variedade, gerando um
grande número de subcategorias de problemas. Por outro lado,
pode haver (e, em geral, há), vários caminhos possíveis para achar
a resposta à questão colocada.
Tomemos o problema seguinte:
“Queremos conhecer o número de habitantes de uma ilha em
1.900. Dispomos para isso do número de falecimentos e de nas-
cimentos que ocorreram na dita ilha desde 1.900 (1.253 fale-
cimentos e 1.728 nascimentos) e do número de chegadas e de
partidas definitivas por barco, registradas no caderno do porto
(342 chegadas e 2.785 partidas). Sabemos também que hoje há
603 pessoas na ilha”.
Eis um esquema que representa bem o problema:

-1.253 + 1.728 +342 -2.785

x 603

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A criança, a matemática e a realidade

Outros esquemas obtidos da mudança da ordem das transformações


são também tão adequados quanto o anterior. Mas fiquemos com este.
Podemos ver facilmente que há vários meios de resolver o problema. Os
cálculos relacionais são indicados pelos traços interrompidos.
1 - Retornar do estado final ao estado inicial, aplicando sucessivamente
as transformações inversas das transformações diretas dadas no enun-
ciado.
2.571 1.318 3.046 3.388 603

+1.253 -1.728 -342 +2.785

2 - Somar as transformações positivas de um lado, as transformações


negativas de outro, calcular o resultado e aplicar o inverso do resultado
ao estado final.

-1.253 +1.728 +342 -2.785

603
+2.070 -4.038
603

-1.968
603

2.571 603
+1.968

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Gérard Vergnaud

3 - Somar os falecimentos e os nascimentos e encontrar o excedente dos


nascimentos, somar as chegadas e as partidas e encontrar o excedente das
partidas. Não calcular o resultado total, mas aplicar imediatamente ao
estado final as transformações inversas das transformações diretas assim
encontradas.

-1.253 +1.728 +342 -2.785

603
+475 -2.443
603

2.571 3.046 603


-475 +2.443

Evidentemente, há várias outras soluções possíveis. Essas diferentes so-


luções são equivalentes entre si do ponto de vista do resultado, mas não
do ponto de vista dos cálculos relacionais que implicam, como veremos
mais tarde.
• Segunda categoria: a pergunta diz respeito a uma transformação.
Podemos fazer uma pergunta sobre uma das transformações ele-
mentares, sobre a transformação composta que resulta da composi-
ção de todas as transformações em jogo, ou sobre uma das transfor-
mações compostas intermediárias (por exemplo, o excedente dos
nascimentos sobre os falecimentos, no exemplo acima).
É claro que aqui também a configuração possível das transforma-
ções é de uma grande variedade e, desse fato, resulta um grande
número de subcategorias de problemas. Nós não os descrevere-
mos aqui em detalhe, como também não descrevemos as diferen-
tes subcategorias de problemas relativos à procura de um estado.
No entanto, destacaremos uma diferença importante: a que existe
entre os casos em que está disponível uma informação sobre os

66

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A criança, a matemática e a realidade

estados e os casos nos quais nenhuma informação está disponível.


Na verdade, no primeiro caso, a informação sobre os estados per-
mite, em geral, encontrar, passo a passo, os dois estados que ligam
a transformação procurada, e encontrar, então, pela diferença en-
tre esses dois estados, a dita transformação. No segundo caso, ao
contrário, como não dispomos de nenhuma informação sobre os
estados, é preciso, necessariamente, passar pela composição e pela
decomposição das transformações, o que implica os cálculos rela-
cionais tidos como os mais difíceis para as crianças. É assim que,
no problema precedente sobre a ilha, a segunda solução é usada
mais tarde que a primeira.
Vamos dar dois exemplos que permitem ao leitor representar me-
lhor essa distinção.

A. Caso com informação sobre os estados


“Um entregador de correio parte de manhã com 14 caixas no seu
caminhão. Ele para uma primeira vez e pega 3 caixas suplementa-
res. Ele para uma segunda vez para entregar as caixas. Ele parte e
se pergunta, de repente, se não entregou algumas caixas por enga-
no, pois não se lembra do número exato de caixas que entregou.
Ele conta as caixas que estão no seu caminhão e acha 7 a menos
que de manhã. Quantas caixas ele entregou?”.

B. Caso sem informação sobre os estados


Do mesmo enunciado do exemplo precedente, é suprimida a pri-
meira informação sobre o número de caixas que estão no cami-
nhão, inicialmente.

Esquema correspondente ao enunciado A

+3 x

14

-7

67

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Gérard Vergnaud

Esquema correspondente ao enunciado B

+3 x

-7
Os meios de que dispomos para resolver o problema são, eviden-
temente, diferentes nos dois casos. (No caso B, não temos escolha
e o número de caixas entregues não pode ser encontrado a não
ser pela adição do número de caixas a menos em relação ao início
(7) e do número de caixas suplementares apanhadas na primeira
parada (3)).
Trata-se de cálculo relacional que incide sobre as transformações
+3 , x, -7 , cálculo cuja dificuldade é grande para as crian-
ças do primeiro grau: 75% das crianças do CM210 são incapazes
de resolver um problema desse tipo. Se escrevermos a equação
correspondente e sua solução, vemos imediatamente sua dificul-
dade:
(+3) + x = (-7)
x = (-7) - (+3) = -7 -3 = -10
No caso A, dispomos de dois meios:
- o meio que acabamos de descrever e que é válido igualmente
nesses casos; a informação sobre o estado inicial não é então uti-
lizada;
- um outro meio que consiste em procurar, primeiro, o estado
intermediário e o estado final, depois em buscar a transformação,
pela diferença entre o estado intermediário e o estado final. Re-
presentemos esse raciocínio em várias etapas:

Alunos matriculados no CM2 do sistema de ensino básico francês


10

têm, em geral, 10 anos de idade. N. T.

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A criança, a matemática e a realidade

Primeira etapa

+3

14 17 7

-7
Segunda etapa

-10

17 7

Embora esse procedimento seja mais longo que o primeiro, ele é


mais utilizado que o outro pelas crianças que conseguem resolver
o problema. A maior parte das crianças não utiliza o primeiro
procedimento.
A dificuldade para calcular diretamente sobre as transformações é
tal que, no caso B, as crianças explicam que, “como não sabemos
quanto ele tinha no início, não podemos resolver o problema”.
A composição das transformações nada mais é que um caso par-
ticular da composição das relações. O enunciado seguinte mostra
que a composição das relações estáticas não é menos complicada
que a composição das transformações ou relações dinâmicas.
“Alberto tem duas bolinhas a mais que Bernardo. Carlos tem qua-
tro bolinhas a mais que Alberto. Quantas bolinhas Carlos têm a
mais ou a menos que Bernardo?”.

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Gérard Vergnaud

Temos várias representações possíveis das informações (a para Al-


berto, b para Bernardo, c para Carlos); eis três delas:

-2 +4

a b c

-4 +2

c b a

+2

b a c

+4

De fato, a ausência de ordem temporal permite colocar a, b, c em


qualquer ordem, o que não é o caso com as transformações. Por conta
desse fato podemos também utilizar uma disposição triangular:
a

+2
+4
b c

A composição das relações e das transformações será abordada


novamente por ocasião da solução dos problemas aritméticos.
Estudaremos então, com mais detalhes, as leis de composições
binárias, que permitem tratar adequadamente a composição das
relações e das transformações. Certas questões que acabamos de
abordar ficarão, assim, mais claras.

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A criança, a matemática e a realidade

RELAÇÕES QUATERNÁRIAS

Uma relação quaternária tem frequentemente a forma seguinte:


“a está para b assim como c está para d”
Ela reafirma que a relação entre a e b é a mesma que a relação
entre c e d.
Os exemplos que demos no capítulo I dizem respeito a esse caso:
- Londres é para a Inglaterra, o que Paris é para a França
- André é tão moreno quanto Beatriz é loira
- O preço de seis garrafas está para o preço de uma garrafa, assim
como seis garrafas estão para uma garrafa
18 6
- Dezoito sobre quinze é igual a seis sobre cinco: =
15 5
Existem outras relações quaternárias, mas que não são matemati-
sáveis em uma estrutura algébrica simples. Por isso, vamos nos conten-
tar em analisar esse caso.
As relações binárias podem existir entre objetos de mesma natu-
reza ou entre objetos de natureza diferente.
“Londres é maior que Paris” é uma relação entre cidades, portan-
to, entre objetos de mesma natureza.
“Londres é a capital da Grã-Bretanha” é uma relação entre uma
cidade e um país, portanto, entre objetos de natureza diferentes.
As mesmas distinções são necessárias para as relações quaternárias.
18 6
=
15 5
é uma relação entre objetos de mesma natureza (números).
“O preço de seis garrafas está para o preço de uma garrafa assim
como seis garrafas estão para uma garrafa.”
é uma relação entre objetos de natureza diferente (quantidades de
garrafas e preços).

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Gérard Vergnaud

Frequentemente, nas situações encontradas pelas crianças na es-


cola básica, as relações quaternárias são relações entre objetos de natu-
reza diferente que supõem, portanto, conjuntos diferentes.

Primeiro exemplo: cidades (Paris, Londres, ...)


países (França, Grã Bretanha, ...)
Terceiro exemplo: quantidades de mercadorias (uma garrafa,
seis garrafas, ...)
preços (preço de uma garrafa, de seis
garrafas, ...)

Esse último exemplo é muito importante porque é o protótipo da


categoria mais frequente dos problemas do tipo multiplicativo, como
veremos no capítulo que lhes é consagrado.
A análise das relações quaternárias não demanda muitas conside-
rações novas em relação à análise das relações binárias e quaternárias.
Já vimos que as relações ternárias não são, com algumas exceções, nada
mais que relações binárias nas quais as próprias relações são considera-
das como elementos. A própria forma das relações quaternárias às quais
decidimos limitar nossa proposição
“a está para b assim como c está para d”
mostra que tais relações voltam a afirmar a identidade de duas relações
binárias.
No entanto, um aspecto novo deve ser colocado em evidência: é
o fato de que as relações quaternárias colocam frequentemente em jogo
dois conjuntos de referência e não apenas um (cidades e países, quanti-
dades de garrafas e preço, etc.) e a correspondência entre eles.
É verdade que o estudo das relações ternárias já nos permitiu ver
que há uma diferença de status entre os elementos ligados e a relação
elemento, entre os estados e a transformação, por exemplo. Mas essa di-
ferença de status, à qual teremos, aliás, ocasião de retornar, não tornava
obrigatório o estudo dessas importantes noções matemáticas que são as
noções de correspondência e de aplicação.

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A criança, a matemática e a realidade

CORRESPONDÊNCIAS E APLICAÇÕES

Quando dois conjuntos são colocados em correspondência, vá-


rios casos podem ocorrer.
• PRIMEIRO CASO: CORRESPONDÊNCIA BIUNÍVOCA (uní-
voca nos dois sentidos)
“A cada elemento do primeiro conjunto corresponde um elemen-
to e um só do segundo conjunto e reciprocamente”.
É caso particularmente simples, e que podemos observar tanto
nos exemplos qualitativos como nos qualitativos.
Exemplo qualitativo:
Entre o conjunto das capitais e o conjunto dos países existe uma
correspondência biunívoca: um país tem uma capital e uma só; uma
capital é capital de um país e de um só.
Exemplo quantitativo:
Entre o conjunto dos pesos e o conjunto dos volumes para uma
mesma matéria, existe uma correspondência biunívoca: a um peso dado
corresponde um volume e um só, a um volume dado corresponde um
peso e um só.
• SEGUNDO CASO: CORRESPONDÊNCIA BIMULTÍVOCA
(multívoca nos dois sentidos)
“A cada elemento do primeiro conjunto pode corresponder um ou
vários elementos do segundo conjunto e reciprocamente”.
É caso menos simples que o precedente no sentido de que podemos ter
várias situações diferentes. Enquanto a correspondência biunívoca se reduz a
um só caso que podemos ilustrar pelo esquema seguinte:
0

0 Univocidade nos dois sentidos.


Uma só possibilidade:
0 um corresponde a um

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Gérard Vergnaud

a correspondência bimultívoca pode resultar em um esquema como o


seguinte:
0

0 Multivocidade nos dois sentidos.


Várias possibilidades:
0 - um corresponde a um
- um corresponde a vários
0 - vários correspondem a um
- vários correspondem a vários
0

0
Exemplo qualitativo:
Entre o conjunto de homens que têm pelo menos uma irmã e o
conjunto das mulheres que têm pelo menos um irmão, existe uma cor-
respondência bimultívoca: um homem pode ter uma ou várias irmãs;
uma mulher pode ter um ou vários irmãos. Algumas dessas irmãs e
desses irmãos podem ser comuns a várias pessoas, no total ou somente
em parte (no caso das meias irmãs e meio irmãos).
Exemplo quantitativo:
Entre o conjunto das distâncias percorridas normalmente de
carro e o conjunto do consumo de gasolina correspondente, há uma
correspondência bimultívoca: a cada distância percorrida podem cor-
responder vários consumos de gasolina possíveis (segundo o percurso
escolhido, segundo a velocidade, segundo o dia, a hora e as condições
do tempo); a cada consumo de gasolina pode corresponder várias dis-
tâncias (pelas mesmas razões).

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A criança, a matemática e a realidade

• TERCEIRO CASO: CORRESPONDÊNCIA CO-UNÍVOCA


(unívoca em um só sentido)

Deveríamos distinguir dois casos, aquele no qual a correspon-


dência é unívoca à direita (do primeiro para o segundo conjunto) ou à
esquerda (do segundo para o primeiro). Vamos nos limitar a dar uma
definição como a seguinte:
“A cada elemento de um dos dois conjuntos corresponde um ele-
mento e um só do outro, mas a recíproca não é verdadeira”.
Em outros termos, a correspondência é unívoca em um sentido e
multívoca em outro.
Exemplo qualitativo:
Entre o conjunto das crianças de uma escola e o conjunto de
suas mães, existe uma correspondência co-unívoca; a cada criança cor-
responde uma mãe e uma só; a cada mãe podem corresponder uma ou
várias crianças.
Exemplo quantitativo:
Entre o conjunto das pequenas somas de dinheiro que uma
criança pode dispor e o conjunto das quantidades de balas que pode
comprar com aquelas somas, existe uma correspondência co-unívoca: a
cada soma dada, corresponde uma quantidade de balas e uma só; mas
reciprocamente, uma quantidade de balas corresponde a várias somas
diferentes. Suponhamos que uma bala custe 7 centavos; a criança não
pode comprar mais que uma bala, enquanto não tiver 14 centavos; uma
bala corresponde, portanto, a várias somas de dinheiro (7-8-9-10-11-
12-13 centavos).
• A NOÇÃO DE APLICAÇÃO
Quando uma correspondência é unívoca em um sentido, ela se
presta a cálculos dedutivos simples pois, quando percorremos a relação
entre os dois conjuntos no sentido da univocidade, podemos estar cer-
tos de que:
“a um elemento do primeiro conjunto corresponde um elemento
e um só do segundo conjunto”.
Dizemos, então, que há uma “aplicação do primeiro conjunto no
segundo”.

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Gérard Vergnaud

Essa noção de aplicação é uma das noções mais importantes da


matemática dita moderna; ela generaliza a noção de função a casos não
numéricos, e a matemática ensinada na escola básica deve lhe dar um
bom espaço.
Parece-nos que é chegado o momento de voltar e examinar me-
lhor as relações binárias. Com efeito, nós as consideramos até agora sob
um ângulo que permitia colocar em um mesmo conjunto os dois ele-
mentos ligados pela relação. Ora, acabamos de ver que existem relações
binárias para as quais o elemento da esquerda e o elemento da direita
estão dentro de conjuntos diferentes.
x é a capital de y x é uma capital
y ém uma nação

x km percorridos em x é uma distância


y segundos y é um tempo

x km necessitam y litros x é uma distância


de gasolina y é uma quantidade
de gasolina
As propriedades que descrevemos no capítulo consagrado ao estudo
das relações binárias (simetria, antissimetria, transitividade, etc.) não são
bem adaptadas à análise das relações binárias entre objetos de conjuntos
diferentes. Não há nenhum sentido em, por exemplo, interrogar-se sobre
a simetria ou a transitividade das relações em jogo nos conjuntos acima.
Tomemos o primeiro exemplo: se x é a capital de y, y é uma nação e não
poderia ser a capital de z.
A linguagem das correspondências e das aplicações melhor se
adapta à análise das relações binárias entre objetos tomados de con-
juntos diferentes. As correspondências e as aplicações são igualmente
susceptíveis de se compor pelo encadeamento, mas essa composição diz
respeito às relações diferentes entre si.

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A criança, a matemática e a realidade

Exemplos:
QUILÔMETROS LITROS DE GASOLINA DESPESAS EM $

Relações acarreta
x y
elementares um consumo de
custam
y z

Relação acarretam uma despesa de


x z
composta
EMBAIXADORES CAPITAIS PAÍSES

Relações é embaixador de
x y
elementares
é a capital de
y z

Relação é embaixador no país


x z
composta

Em um próximo capítulo, vamos retomar e ampliar essa questão


da composição das relações binárias. Sublinhemos simplesmente, por
ora, que essa composição é única quando compõe, em si, apenas as
aplicações (quer dizer, as correspondências unívocas), à condição, entre-
tanto, de fazer tal composição no sentido da univocidade.
Logo, o estudo das relações ternárias e quaternárias não nos teria
feito sair das relações binárias a não ser para nos obrigar a elas retornar:
elas formam o nódulo fundamental do cálculo relacional.
O cálculo relacional pode atingir uma grande complexidade,
mesmo na escola básica. Ele supõe, sobretudo, a elaboração das estrutu-
ras de conjunto (álgebra de Boole, grupo, espaço vetorial, etc.) que não
abordamos até aqui e que veremos posteriormente. Mas todo o edifício
repousa sobre a noção de relação binária, de tal modo que é preciso, de
início, saber falar da relação que existe entre dois objetos.

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CAPÍTULO IV

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RELAÇÕES E TAREFAS ESCOLARES

Vimos nos capítulos precedentes que a noção de relação abran-


ge todas as outras noções matemáticas. Paralelamente, todo raciocínio
matemático pode ser analisado como um cálculo relacional. A generali-
dade da noção de relação é tal que se poderia, teoricamente, colocar sob
o mesmo título, toda a sequência desse livro. Mas é preciso, evidente-
mente, analisar, por elas mesmas, e em detalhe, certas questões funda-
mentais como as: da classificação, da medida, do sistema de numeração,
etc., que são objeto dos capítulos posteriores. O presente capítulo será
também consagrado somente à análise das tarefas principais às quais a
criança pode ser confrontada.

DOMÍNIOS DE ESTUDO

Não existe nenhum domínio que impeça o exercitar da inteli-


gência matemática da criança, e certos exercícios podem ser feitos a
partir de uma observação, de uma leitura, de uma lição de história ou
de gramática. Tudo pode ser objeto de inspiração e podemos analisar as
relações de parentesco e suas propriedades (pai, mãe, neta, tio, sobri-
nha, avô, bisavô, descendente, consanguíneo, primo de primeiro grau,
etc.), as relativas a um tema histórico, como também se podem reali-
zar exercícios excelentes de classificação sobre uma lição de vocabulário
(palavras que começam com certo prefixo, palavras que têm certa termi-
nação, palavras situadas na intersecção, etc.). Há, no entanto, grandes
domínios de estudo que devem ser lembrados brevemente.
• O ESPAÇO
A atividade da criança se exerce, de início, no espaço, onde se
acham os objetos e as pessoas. Nele a criança opera as localizações e as
transformações. Ela se desloca e muda assim seu sistema de localização;
ela desloca objetos e transforma, assim, o mundo exterior. Ela segue
caminhos e desenha representações; ela o organiza.

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Gérard Vergnaud

Aos seis anos, quase todas as crianças sabem reconhecer sua mão
direita e sua mão esquerda. Mas são numerosas aquelas que ainda são
incapazes de reconhecer a mão direita de uma pessoa que está à sua
frente. É preciso se servir daquilo que a criança compreende e ajudá-la
a desenvolver as noções e relações mais complexas.
O espaço fornece um grande número de relações binárias: “ao
lado de”, “em frente de”, “atrás de”, “à direita de”, “à esquerda de”, “em
cima de”, “embaixo de”, “no interior de”, “no exterior de”, “na mesma
fila que”, “na mesma região que”, “diante de”, “imediatamente à direita
de”, “perto de”, “exatamente ao lado de”, “na vertical de”, “no mesmo
plano que”, etc.
O espaço fornece igualmente um grande número de transforma-
ções possíveis: translações, rotações, simetrias, permutações, homote-
tias, similitudes, etc.
A criança não percebe de uma vez só todas essas relações e trans-
formações; ela as compreende progressivamente, à luz de sua experiên-
cia ativa no espaço e percorrendo as diferentes etapas de seu desenvol-
vimento intelectual. Inúmeras são as relações simples cujos significados
são compreendidos pela criança antes ou fora da escola. Não obstante,
isso não quer dizer que ela compreenda e utilize todas as propriedades
dessas relações e que delas se sirva adequadamente, nos cálculos rela-
cionais; forçosamente isto não quer dizer que ela veja com clareza que
certas relações espaciais têm as mesmas propriedades e se comportam
do mesmo modo que outras relações tomadas de um outro domínio,
como o da medida, por exemplo, ou o das relações de parentesco. Há,
portanto, um lugar importante para a aprendizagem escolar do espaço.
• AS PROPRIEDADES DOS OBJETOS
A cor, a forma, o tamanho, a presença ou a ausência dessa ou da-
quela característica são as propriedades que são utilizadas para reconhe-
cer os objetos, para classificá-los, para designá-los, para representá-los,
enfim, para pensá-los. Aqui também, uma boa parte das aquisições da
criança se faz antes ou fora da escola. Mas a escola permite desenvolver
de modo sistemático essa atividade natural que é a atividade de classi-
ficar. As propriedades não são consideradas como relações no sentido
estrito, pois elas não ligam dois ou vários elementos entre si, mas quali-
ficam somente um elemento, por exemplo, um objeto.

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A criança, a matemática e a realidade

“A manteiga está ao lado do sal” é evidentemente uma relação,


enquanto que “a manteiga é amarela” geralmente não é considerada
uma relação, mas uma propriedade.
Ao lado das relações binárias, ternárias, quaternárias, que colocam
em jogo respectivamente, dois, três e quatro elementos, os matemáticos
definiram as relações unárias, as que colocam em jogo apenas um ele-
mento. As relações unárias não são, portanto, nada mais que proprieda-
des e se colocam, algebricamente, sob uma forma que faz compreender
bem a filiação terminológica.

Assim, na escrita polonesa das relações, considerando que

m = manteiga s = sal v = vinho


R1 = amarelo R2 = ao lado de R3 = entre

podemos dizer que:

R1(m) a manteiga é amarela


R2 (m, s) a manteiga está ao lado do sal
R3 (m, s, v) a manteiga está entre o sal e o vinho

“amarelo” é uma propriedade ou relação unária, “ao lado de” é uma


relação binária, “entre” é uma relação ternária, o que é coerente com o
número de elementos entre parênteses.
Mas essas propriedades e características permitem, igualmente,
estabelecer relações binárias interessantes:
“tem a mesma cor que”, “se parece com”, “é diferente de”, “não
tem a mesma forma que”, “é equivalente a”, “não tem a mesma blusa
que”, “tem a mesma idade que”, “é maior que”, “não é mais jovem que”,
etc.
Essas relações são muito importantes; elas desempenham um
grande papel no desenvolvimento das atividades intelectuais da crian-
ça, não somente na atividade classificatória, como veremos no próximo
capítulo, mas também no desenvolvimento das noções de quantidade,
de medida, de número.

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Gérard Vergnaud

• RELAÇÕES DE PARENTESCO
As relações de parentesco fornecem uma grande variedade de re-
lações que interessam muito as crianças e sobre as quais é possível fazer
inúmeros exercícios simples e claros.
Podemos partir das relações de parentesco para encontrar rela-
ções antissimétricas, simétricas, antitransitivas, transitivas, etc. A árvore
genealógica é, talvez, o exemplo mais simples de ordem parcial que se
pode fazer a criança compreender: de fato, as duas relações, entre si
recíprocas, “é descendente de”, “é um ascendente de”, são as relações
de ordem que organizam, de baixo para cima e de cima para baixo, a
árvore genealógica; mas a ordem, assim estabelecida, não é total, pois as
pessoas que não são da mesma descendência não são ordenadas.
Exemplo:

“é um ascendente de” André

Bernardo Carlos Daniel

“é um descendente de”

Emílio Francisco Gustavo Henrique João

• NÚMEROS
Os números formam, evidentemente, um domínio privilegiado
para o estudo das relações na escola básica. As relações binárias mais
importantes são, evidentemente, “é igual a”, “é maior que”, “é um múl-
tiplo de”, “é um divisor de”, etc.; mas as relações mais complexas podem
ser estudadas sem inconvenientes. Assim, o estudo da divisão com resto
conduz a definir as classes de números cuja divisão por p dá o mesmo
resto; no interior de uma mesma classe, dois números são ligados por
uma relação de equivalência “n1 dá o mesmo resto que n2” (pela divisão
por p) o que permite exercícios originais.

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A criança, a matemática e a realidade

O ensino da escola elementar reserva um lugar central às quatro


operações aritméticas (adição, subtração, multiplicação, divisão). Em
consequência, é no domínio das leis de composições binárias (isto é, as
relações ternárias) que os números permitem utilizações mais ricas.
Veremos, com o estudo dos problemas de tipo multiplicativo, que
as relações quaternárias entre números são igualmente fundamentais.
• VARIEDADE DOS DOMÍNIOS UTILIZÁVEIS
Na realidade, podemos estudar as relações em todos os domínios
e utilizá-las para o ensino da matemática. Por exemplo, o estudo do vo-
cabulário, da ortografia, da gramática, permite identificar as principais
características das palavras, classificá-las, estudar as relações que elas têm
entre si, analisar as principais transformações léxicas. A modernização
do estudo da sintaxe permite, igualmente, análises interessantes no pla-
no matemático.
Tudo é matéria para a relação, e uma das tarefas do educador é a
de utilizar a matemática para analisar as relações e para levar a criança a
descobrir, por trás da variedade das coisas, o pequeno número e a sim-
plicidade das relações que as estruturam.

ANÁLISE DAS TAREFAS

As tarefas escolares não são, em sua natureza, diferentes das ta-


refas que uma criança pode enfrentar na vida cotidiana. Analisar uma
situação, representá-la, operar sobre essa representação para encontrar
uma solução e aplicar a solução assim encontrada, recomeçar no caso
de fracasso: eis o processo psicológico fundamental da vida, não da es-
cola.
Mas o educador tem necessidade de saber mais sobre esse pro-
cesso se quiser compreender o que fazem os alunos e a natureza das
dificuldades às quais eles são confrontados.
No primeiro capítulo, atribuímos um lugar central à noção de cálcu-
lo relacional. Desenvolveremos um pouco essa noção e o que dela decorre.

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Gérard Vergnaud

• A REPRESENTAÇÃO
Para compreender a realidade e agir sobre ela, a criança constrói
representações mentais dessa realidade. Entre essas representações, al-
gumas não são acessíveis ao observador externo e o educador está, às
vezes, despreparado para interpretar o que a criança acreditou compre-
ender ou fazer. Mas certas representações são objetiváveis, no sentido de
que podemos delas perceber indicadores importantes nas produções do
sujeito (palavras pronunciadas, desenhos, gestos analógicos, operações
feitas pelos sujeitos, etc.).
As principais representações utilizadas no ensino da matemática
são as seguintes:
- expressões linguísticas ou enunciados da língua natural;
- esquemas espaciais no plano (linhas, flechas, regiões do espaço,
localizações);
- expressões algébricas.
Para as relações binárias há dois esquemas espaciais principais, o
esquema sagital e a tabela cartesiana (ver capítulo III), de tal modo que
podemos representar da maneira seguinte todos os exercícios possíveis
de passagem
A) de uma situação a uma representação e reciprocamente (traços
cheios);
B) de uma representação a outra (traços pontilhados).
enunciados
esquema sagital

situação

tabela cartersiana
álgebra

A prática pedagógica mostra, de fato, que um exercício intelectu-


al essencial consiste em
A - elaborar uma representação de uma situação real;
- reconstruir uma situação real a partir de uma dada representação;
B - elaborar uma representação em um sistema S2 a partir de uma
representação em um sistema S1.

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A criança, a matemática e a realidade

• Exemplos de tarefas A
- descrever verbalmente as relações que existem entre crianças
sentadas a uma mesa (ao lado de, em frente de, na mesma fila
que, etc.);
- desenhar o esquema sagital (ou tabela cartesiana) de uma dessas
relações;
- colocar as crianças ao redor de uma mesa, conforme um enuncia-
do (ou a um esquema sagital, ou a uma tabela cartesiana) dado.
• Exemplos de tarefas B
- compor o esquema sagital correspondente a um dado enunciado;
- compor a tabela cartesiana correspondente a um dado esquema
sagital;
- escrever a equação algébrica correspondente a um dado enun-
ciado;
- dar um exemplo de enunciado correspondente a uma dada
equação (ou a um dado esquema sagital, ou a uma dada tabela
cartesiana).
• COMPREENSÃO-EXTENSÃO
Veremos no capítulo seguinte que um conjunto é definido seja
pela sua função característica, seja pela lista de seus elementos. “Função
característica” é o nome dado pelos lógicos à propriedade (ou à função
lógica) que permite dizer se um dado elemento está ou não em um
conjunto.
Por exemplo:
“é um número par e é inferior a 10” é uma função característica
do conjunto
C = {2, 4, 6, 8}
Logo, temos duas maneiras de definir o conjunto C
- por sua função característica: x pertence a C se x é par e inferior a 10.
Dizemos que E é definido em compreensão.
- pela lista dos elementos: 2, 4, 6, 8 pertencem a C.
Dizemos que C é definido em extensão.

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Gérard Vergnaud

Ocorre que, nos exercícios possíveis sobre os conjuntos e as clas-


sificações, poderemos ter duas tarefas entre si recíprocas:
A - achar a extensão de um conjunto conhecendo sua compre-
ensão;
B - achar a compreensão de um conjunto conhecendo sua exten-
são.
No exemplo que precede, essas duas tarefas levam, respectiva-
mente, a:
A - achar os números pares e inferiores a 10;
B - achar o que é comum aos números 2, 4, 6, 8.
Tarefas análogas podem ser inferidas para as relações binárias. No
lugar de definir um conjunto, uma relação binária define, em geral, um
domínio, um co-domínio e um conjunto de pares de elementos ligados
dois a dois.
O domínio é o conjunto dos elementos que podem estar na ori-
gem da relação: é o conjunto de partida. O co-domínio é o conjunto
dos elementos que podem estar na chegada da relação: é o conjunto de
chegada. Por exemplo, na relação “tem como professor”, o domínio ou
conjunto de partida é formado pelos alunos. O co-domínio ou conjun-
to de chegada é formado pelos professores.
Pode acontecer, para certas relações, que o domínio e o co-domí-
nio sejam um só e mesmo conjunto, ou que o domínio e o co-domínio
tenham uma parte comum.
Uma relação binária é definida seja em compreensão (pelo enun-
ciado da relação), seja em extensão (pelo domínio, o co-domínio e a
lista dos pares de elementos que estão em relação). Por exemplo, entre
os números inferiores a 10 e superiores a 1, podemos definir a seguinte
relação:

- em compreensão “a é divisor de b”
- em extensão domínio {2, 3, 4}
co-domínio {4, 6, 8, 9}
pares ligados {(2, 4), (2, 6), (2, 8),
(3, 6), (3, 9), (4, 8)}

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A extensão pode, aliás, limitar-se à lista de pares ligados, pois essa


lista determina, univocamente, o domínio e o co-domínio.
Como para os conjuntos, distinguimos duas tarefas diferentes:
- achar a extensão de uma relação conhecendo sua compreensão;
- achar a compreensão de uma relação conhecendo sua extensão.
Apesar de sua aparente simetria, essas duas tarefas não são de igual
significação. Na verdade, a compreensão de uma relação permite definir
a extensão sem ambiguidade. No entanto, a extensão de uma relação é
frequentemente compatível com várias compreensões possíveis.
Enquanto a primeira tarefa exige do sujeito aplicar sistematica-
mente a mesma regra, a segunda consiste em procurar, no campo dos
possíveis, o que é comum a um conjunto de pares e isso não pode deixar
de parecer ao sujeito como uma espécie de “adivinhação”. Não deve-
mos, no entanto, excluí-la completamente dos exercícios escolares, e
uma parte da atividade intelectual consiste em “induzir” uma relação a
partir de um conjunto de constatações. Mas não se deve abusar desse
tipo de exercício.
• CÁLCULOS RELACIONAIS
Vimos, no primeiro capítulo, que há dois tipos de deduções pro-
dutivas para o sujeito:
- deduzir uma regra de conduta;
- deduzir uma relação nova.
Nesse parágrafo nos ateremos ao segundo tipo de dedução. Há,
é claro, as deduções próprias às propriedades ou relações unárias, as
deduções próprias às relações binárias, as deduções próprias às relações
ternárias, etc. Mas há, também, muitas deduções mistas colocando em
jogo as relações de nível diferente, o que torna impossível, no estado
atual das coisas, um quadro completo das deduções susceptíveis de se-
rem colocadas em ação em um raciocínio.
Por exemplo, o raciocínio seguinte:
“a é um múltiplo de seis
a é um divisor de b
os múltiplos de seis são os números pares
portanto, b é um número par”.

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coloca em jogo, ao mesmo tempo, as propriedades dos números, uma


relação binária entre números e uma relação binária entre conjuntos de
números.
Vimos, no capítulo precedente, algumas classes de problemas re-
lacionados às relações ternárias e quaternárias. Iremos focalizar, agora, o
caso das relações binárias; três problemas resumem muito bem a noção
de cálculo relacional:
- o problema da recíproca;
- o problema da composição;
- o problema da implicação entre relações.
• Problema da recíproca
Quando há uma relação R entre dois elementos a e b, que relação
há entre b e a?
Há três respostas possíveis:
- a mesma relação R é verdadeira; isso significa que R é simétrica
e é, ela própria, sua própria recíproca.
Exemplos: a é diferente de b ⇒ b é diferente de a11.
a habita a mesma cidade que b ⇒ b habita a mesma cidade que a.
- a negação de R é verdadeira, isso significa que R é antissimétrico
e que, então, há uma relação positiva R’ recíproca de R.
Exemplo: a está à esquerda de b ⇒ b não está à esquerda de a, e
b está à direita de a.
- nada de certo pode ser afirmado; isso significa que B não é nem
simétrico nem antissimétrico.
• Problema da composição
Quando há entre três elementos a, b e c, duas relações aRb e bR’c,
a qual podemos compor graças à existência de um intermediário
b, que relação há entre a e c?
É preciso distinguir dois casos.
- Primeiro caso: R = R’ (duas relações idênticas são encadeadas)
Há três respostas possíveis:
- a mesma relação R é verdadeira, isso significa que R é transitiva
e ela é, ela mesma, sua própria composta.

⇒ é o sinal da implicação lógica, frequentemente lido como “...


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então...”, “... logo...”.

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Exemplo: a é maior que b, b é maior que c ⇒ a é maior que c.


- a negação de R é verdadeira, isso significa que R é antitransitiva,
e que a composta eventual de R e de R é uma relação R’ diferen-
te de R.
Exemplo:
a é pai de b a não é pai de c

b é pai de c a é avô paterno de c

- nada de certo pode ser afirmado; isso significa que R não é nem
transitiva, nem antitransitiva.
- Segundo caso: R ≠ R’(duas relações não idênticas são encadea-
das)
Há três respostas possíveis:
- uma das relações R (ou R’) é verdadeira; isso significa que esta
relação esgota a outra.
Exemplo:
a é maior que b a é maior que c

b é igual a c
A relação “maior que” esgota a relação “igual”.
É preciso, no entanto, distinguir vários casos, pois uma relação R
pode esgotar uma relação R’ quando esta é colocada à direita, e
não o fazer, quando é colocada à esquerda.
Assim, a pai de b, b irmão de c ⇒ a pai de c
A relação R “pai de” esgota a relação R’ “irmão de” colocada à
direita.
R o R’ = R
mas ela não a esgota se colocada à esquerda.
Assim, a irmão de b, b pai de c ⇒ a tio de c (e não pai)
R’ o R = R
É preciso salientar, no entanto, que a relação de ordem “maior
que” esgota a relação “igual” à direita e à esquerda.

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- nenhuma das relações R ou R’ é verdadeira; isto significa que R


e R’ são “antiesgotantes” uma da outra, e que a composta even-
tual de R e R’ é uma relação R’’ diferente de R e de R’.
Exemplo:
a é irmão de b a não é nem irmão nem pai de c

b é irmão de c a é tio paterno de c

- nada de certo pode ser afirmado; isso significa que R e R’ não


esgotam, nem se deixam esgotar, uma pela outra.
*
Podemos igualmente colocar o problema da composição das relações
binárias nos casos onde não há intermediários que permitam compor
as duas relações por encadeamento simples. Os casos que acabamos de
citar são, na verdade, todos do tipo seguinte (caso 0).
caso 0 aRb

bR’c que relação há entre a e c?


mas existem dois outros casos possíveis:
caso 1 aRb

aR’c que relação há entre b e c?

caso 2 aRb

cR’b que relação há entre a e c?

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cujos exemplos são os seguintes:


caso 1 a irmão de b
b filho ou filha de c
a filho de c

caso 2 a pai de b
a pai de c
c irmão de b

Na realidade, uma dedução só é possível com essas duas configurações


na medida em que a reciprocidade de uma das relações R ou R’ permite
reconstituir um encadeamento do tipo “caso 0”.
Assim, no último exemplo podemos escrever:

a pai de b

b irmão ou irmão de c a pai de c


(recíproca de: c irmão de b)

• O problema da implicação entre relações


Ocorre frequentemente que uma relação R implique uma outra
relação R’ (ou a negação de uma outra relação).
Por exemplo: se consideramos os espectadores de uma sala de ci-
nema, “a está ao lado de b” implica entre outras coisas que “a está
na mesma fileira que b” e que “a não está na frente de b”.
O cálculo relacional é baseado não apenas nas propriedades das re-
lações (simetria, transitividade, etc.), mas também nas ligações que
as relações têm entre si, isto é, sobre as relações entre relações.

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CAPÍTULO V

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CLASSIFICAÇÕES E OPERAÇÕES
CLASSIFICATÓRIAS

Juntar objetos é uma atividade precoce da criança. Esta se apoia


na comparação dos objetos entre si e na análise de suas semelhanças
e diferenças, de sua equivalência ou de sua complementaridade. Mas
essa atividade pode ter duas finalidades contraditórias, frequentemente
mescladas na criança pequena, o que complica a análise dos comporta-
mentos desta criança.
A primeira finalidade consiste em comparar objetos para colocá-los
em uma mesma classe ou em classes distintas em função de suas semelhan-
ças e diferenças: pôr os azuis com os azuis, e os vermelhos com os verme-
lhos, os meninos com os meninos e as meninas com as meninas.
No entanto, existe também uma outra finalidade que consiste
em colocar objetos juntos porque eles se completam bem e formam
um objeto ou um arranjo novo, interessante e significativo: pôr um
triângulo vermelho acima de um quadrado azul para formar uma casa,
carneiros junto com um cachorro mais uma pastora para formar uma
tropa, um menino com uma menina para formar um casal... Este se-
gundo aspecto, particularmente importante para os pequenos, subsiste
nas atividades adultas; a dona de casa e o decorador se comportam da
mesma forma quando “reúnem” ou “arranjam” objetos que, contudo,
jamais poderiam ser julgados equivalentes de um ponto de vista pro-
priamente classificatório.
A matematização dessa atividade de composição de objetos com-
plementares é muito diferente da matematização da atividade de com-
paração e de classificação.
Examinaremos neste capítulo somente os problemas acarretados
pela atividade classificatória: eles já são demasiadamente complicados. É
desse modo que a busca das semelhanças e diferenças entre objetos pode
situar-se em níveis de análise muito diversos e que as propriedades das
classificações que dela resultam são de uma riqueza inigualável. Na busca
das semelhanças, a criança pode se prender a semelhanças vagas, dando-se

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conta de um conjunto indiferenciado de descritores (forma, cor, uso, ta-


manho...) ou, ao contrário, procurar equivalências estritas. Na busca das
diferenças, ela pode também se prender a diferenças relativamente vagas
ou, ao contrário, procurar um descritor que indique com rigor as diferen-
ças. É preciso distinguir então entre descritores qualitativos, ordinais ou
quantitativos, e entre descritores discretos ou contínuos.
Antes de analisar esses problemas com mais detalhe, é necessário
fornecer uma definição da noção de classe e da noção de característica,
como também das noções de propriedade e de descritor.

NOÇÕES DE CLASSE E DE CARACTERÍSTICA


Assim, como vimos brevemente no capítulo precedente, uma
classe pode ser definida em compreensão e em extensão. Existe, aliás,
em matemática, duas formas de definir um conjunto.

C é o conjunto de elementos x que têm a propriedade P

1º C= x tal que P(x)

C é o conjunto de elementos enumerados dentro das chaves.

2º C= x1 , x2 , ..., x n

Se, no exercício de sua atividade profissional, o matemático se vê


frequentemente obrigado a se servir da segunda forma (em extensão),
o psicólogo, por seu lado, é levado a considerar que a criança trabalha
principalmente com a primeira forma (em compreensão). Isto se deve ao
fato de que a propriedade P, comum aos diferentes objetos que se quer
juntar, é constitutiva da noção de classe; sem ela não teria sentido colocar
os objetos juntos. A relação “pertence à mesma classe que” é, de fato,
uma consequência da relação “tem a mesma propriedade P que”.
Se x se encontra (ou é colocado) na mesma classe que y, é porque
x tem, como y, a propriedade P ou, ainda, que x é equivalente a y, no
que concerne a propriedade P. “Ter a propriedade P” é a característica
associada ao conjunto C. Isto é verdadeiro para os objetos que perten-
cem a C, e é falso para os demais.

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Esta característica pode ser mais ou menos complexa e mais ou


menos analisada. Eis alguns exemplos:
- o conjunto dos blocos vermelhos
- o conjunto dos cachorros
- o conjunto das crianças que não estão presentes nem doentes
- o conjunto dos múltiplos de 4 inferiores a 100 que não são
múltiplos de 3.
• NOÇÕES DE PROPRIEDADE E DE DESCRITOR
É necessário distinguir também, antes de ir adiante, entre a noção
de propriedade e a de descritor.
Azul é uma propriedade dos objetos azuis; a cor é um descritor
dos objetos e que pode assumir diversos valores (azul, vermelho, amare-
lo, verde, laranja, violeta, etc.).
Do mesmo modo, quadrado é uma propriedade de certas formas
planas, como também a forma geométrica é um descritor que pode
assumir vários valores (quadrado, retângulo, círculo).
Um descritor é então um conjunto de propriedades distintas, e
uma propriedade é o valor assumido por um descritor.
Esta distinção ficará mais clara quando estudarmos, algumas pá-
ginas adiante, os descritores qualitativos, ordinais e quantitativos.
• PROBLEMAS DE EXPRESSÃO
Frequentemente as crianças são solicitadas a classificar objetos
verbalizando-se a propriedade P que é comum aos objetos de cada uma
das classes, por exemplo:
“Coloque juntos todos os objetos que são azuis, depois todos os
objetos que são vermelhos, etc.”.
Às vezes, também lhes é pedido classificar os objetos verbalizando-
se uma relação de equivalência que se refere ao descritor, por exemplo:
“Coloque juntos os objetos que têm a mesma cor.”
Esses dois tipos de instruções verbais são, em geral, suficiente-
mente explícitas e, pelo menos nos casos mais simples, permitem à
criança classificar objetos sem ambiguidades.

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Não ocorre o mesmo com algumas outras instruções verbais, por


exemplo:
“Coloque juntos os objetos que ficam bem juntos.”
“Coloque juntos os objetos que são os mesmos.”
“Coloque juntos os objetos que são parecidos.”
Esses pedidos são ambíguos segundo vários pontos de vista.
A primeira fonte de ambiguidade vem do fato de que algumas
dentre elas mudam de sentido conforme o conjunto de objetos (o cha-
mado conjunto de referência) ao qual elas se aplicam. Examinemos, por
exemplo, a instrução “coloque juntos os objetos que são os mesmos”
nos três casos seguintes:
1. O conjunto de referência é formado de duas categorias de obje-
tos distintos, mas idênticos entre si no interior de cada categoria:
por exemplo, os quadrados grandes azuis e os círculos pequenos
vermelhos12.
2. O conjunto de referência é formado, por um lado, de uma cate-
goria de objetos todos idênticos entre si e, de outro lado, de objetos
diferentes entre si, mas podendo ter propriedades comuns entre si e
com outros objetos: por exemplo, quatro quadrados grandes azuis,
um círculo pequeno azul, um quadrado pequeno azul.
3. O conjunto de referência é formado de objetos todos diferen-
tes entre si, mas tendo propriedades comuns: por exemplo, os
círculos, os quadrados, os azuis, os vermelhos.
No primeiro caso, a interpretação da expressão “os mesmos” é
bastante unívoca e as crianças colocarão juntos, de um lado, os quadra-
dos grandes azuis, de outro, os círculos pequenos vermelhos.
Para o segundo caso há várias interpretações possíveis da instrução:
“Coloque juntos os quadrados grandes azuis.”
“Coloque juntos os quadrados azuis.”
“Coloque juntos os quadrados grandes.”
“Coloque juntos os quadrados.”
“Coloque juntos os azuis.”

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Para simplificar a exposição, os exemplos propostos neste capítulo
referem-se quase sempre à cor e à forma geométrica.

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Para o terceiro caso, há igualmente várias interpretações possíveis:


“Coloque juntos os quadrados de um lado, os círculos, de outro.”
“Coloque juntos os azuis de um lado, os vermelhos, de outro.”
“Coloque separadamente os círculos vermelhos, os círculos azuis,
os quadrados vermelhos, os quadrados azuis.”
A segunda fonte de ambiguidade se deve ao fato de que certas ins-
truções verbais incitam tanto à busca de propriedades complementares
como à de propriedades comuns. É notadamente o caso da instrução:
“Coloque juntos os objetos que ficam bem juntos”
que suscita reações análogas às que foram assinaladas no início deste
capítulo: um quadrado azul vai bem com um triângulo vermelho, pois
se pode fazer com tudo isto uma casa, etc.
Uma terceira fonte de ambiguidade é devida à ausência de tran-
sitividade das relações empregadas: elas não permitem então compor
uma classificação incontestável.
Por exemplo, se x vai bem com y e y com z, x não vai necessa-
riamente bem com z; suponhamos que x e y já sejam de uma mesma
classe, a decisão a tomar sobre z é contraditória segundo se aproxime z
de y (y vai bem com z) ou de x (x não vai bem com z).
Da mesma forma, suponhamos que uma criança tenha colocado
um quadrado grande vermelho com um quadrado grande azul porque
eles são “do mesmo”, do ponto de vista da forma; se ela considerar um
círculo grande azul, ela pode ser levada seja a juntá-lo com as duas ou-
tras formas porque o círculo é “do mesmo” do segundo quadrado, do
ponto de vista da cor, seja a colocá-lo de lado porque ele, o círculo, não
é “do mesmo” do primeiro quadrado. A possível mudança de interpre-
tação do termo “do mesmo” acarreta assim a ausência de transitividade
da relação “é o mesmo que.”.
Esse fato é igualmente verdadeiro para todas as relações de seme-
lhança que pedem tão somente uma análise frágil e pouco diferenciada
das propriedades dos objetos. Ora, as crianças encontram grandes difi-
culdades em analisar os objetos em propriedades independentes. Para
as menores, por exemplo, forma e tamanho constituem não dois descri-
tores, mas um único; e os objetos complexos que comportam, às vezes,
uma dezena de propriedades distintas, são percebidos e avaliados por
meio de alguns descritores globais mal definidos.

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SEMELHANÇA, EQUIVALÊNCIA E IDENTIDADE

A única semelhança entre objetos que é verdadeiramente classifica-


tória é a relação de equivalência: sua transitividade permite compor sem
ambiguidade possível classes disjuntas, de fronteiras bem definidas.
Por exemplo, a relação “mora na mesma rua que” permite classi-
ficar as crianças em classes disjuntas, que não se sobrepõem. Se x mora
na mesma rua que y e y mora na mesma rua que z, então x mora na
mesma rua que z (transitividade), e z está na mesma classe que x e y; no
entanto, se x mora na mesma rua que y, enquanto y não mora na mes-
ma rua que z, então x não mora na mesma rua que z, e z está em outra
classe que não a de x e y.
O mesmo acontece com a relação “da mesma cor que”, ou a rela-
ção “a mesma forma e a mesma cor que” entre blocos lógicos.
É preciso sublinhar, contudo, que dificuldades podem surgir
quando os valores do descritor utilizado formam uma gradação contí-
nua: com efeito, uma avaliação de proximidade entre x e y e entre y e z
não acarreta necessariamente uma avaliação de proximidade entre x e z.
Tomemos o conjunto do espectro contínuo das cores: se x é vermelho, y
vermelho alaranjado e z alaranjado, pode-se julgar normal colocar junto
x e y de um lado, e y e z, de outro, mas não x e z. Defrontamo-nos então
com o problema da não-transitividade, já apontado antes. É preciso as-
sim, prestar atenção ao fato de que uma mesma relação de equivalência
como “da mesma cor que”, não ambígua no caso de valores puros e dis-
cretos (azul, vermelho, amarelo, verde), pode tornar-se ambígua no caso
de uma continuidade de valores (o espectro contínuo das cores).
Entretanto, na maior parte dos casos utilizados na escola, os va-
lores empregados são puros e discretos e as relações de equivalência que
são expressas sob a forma “tem a mesma... [descritor] ... que” não são
então ambíguos.
Não ocorre o mesmo para relações de simples semelhança, como
já dissemos antes: por exemplo, se Renato se parece com seu irmão
Pedro, e se Pedro se parece com sua irmã Ana, disto não decorre neces-
sariamente que Renato se pareça com sua irmã Ana. Essa ausência de
transitividade é igualmente verdadeira para as semelhanças entre obje-
tos comuns.

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A criança, a matemática e a realidade

Ora, as crianças bem pequenas se organizam muitas vezes diante de


tarefas de classificação em função de semelhanças globais simples; e não
se pode ter como certo então que elas empreguem relações transitivas e
classificatórias verdadeiras. É por causa disso que é necessário desenvolver
sistematicamente na escola exercícios de classificação, com instruções ver-
bais não ambíguas, com materiais cada vez mais complexos: blocos lógi-
cos, animais, vegetais, vestuário, números, etc. É a única forma de levar as
crianças a uma análise rigorosa das propriedades dos objetos e à distinção
entre a simples semelhança e a verdadeira equivalência.
Outro problema surge do fato de que frequentemente, nos exer-
cícios de classificação são empregados objetos e desenhos todos idênti-
cos entre si no interior de uma mesma classe, o conjunto de referência
constituindo-se então da reunião de classes de objetos idênticos. Mais
precisamente, como se trata de objetos distintos, é necessário falar de
objetos quase-idênticos. Uma breve explicação permitirá a diferencia-
ção entre identidade e quase-identidade.
Há, de fato, três níveis bem distintos de reconhecimento e de
tratamento das propriedades dos objetos:
- A equivalência simples: os objetos são distintos e suas proprie-
dades não são todas comuns (um quadrado vermelho e um círculo ver-
melho, por exemplo, são equivalentes quanto à cor).
- A quase-identidade ou limite superior de equivalência: os obje-
tos são distintos, mas todas as suas propriedades são comuns e eles não
são totalmente substituíveis um pelo outro (dois botões de um calção
da mesma marca, por exemplo).
- A identidade: não existe senão um objeto, evidentemente idên-
tico a ele mesmo no que se refere a todas as propriedades possíveis.
Retornemos por um momento ao problema da quase-identidade.
Os exercícios de classificação nos quais as classes que a criança deve
formar são todas classes de objetos quase-idênticos entre si são natu-
ralmente indispensáveis, sobretudo para as crianças menores. Pode-se,
assim, pedir-lhes para separar talheres de diversos tipos, parafusos ou
verrumas de forma e de espessura diferentes, bolinhas de gude, etc. Mas
a atividade de classificação só pode ser plenamente desenvolvida por
meio de exercícios nos quais é solicitado juntar objetos que não são qua-
se-idênticos: por exemplo, o conjunto dos blocos vermelhos e espessos
se parece, ao mesmo tempo, ao dos retângulos vermelhos grandes e ao

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dos círculos vermelhos pequenos e espessos; ou ainda, o conjunto das


meninas que não têm sapatos com lacinhos se parece ao do conjunto
das crianças que têm sapatos diferentes.
Somente exercícios que pressupõem colocar em uma mesma classe
objetos diferentes entre si é que levarão a criança a analisar as proprieda-
des diferentes, a distinguir entre propriedades dependentes e indepen-
dentes, a considerar uma classificação conforme diversos pontos de vista
ao mesmo tempo e, assim, dali inferir as noções de intersecção de classes
e de cruzamento de descritores. Voltaremos a esse tema, adiante.

DIFERENÇA QUALITATIVA, ORDINAL E QUANTITATIVA


Assim como existem vários níveis de análise das semelhanças, exis-
tem várias possibilidades de análise das diferenças. Vamos então analisar
três grandes categorias de descritores: os descritores qualitativos, os des-
critores ordinais e os descritores quantitativos. Esta distinção que, em
princípio, é ligada às propriedades objetivas dos próprios objetos, não
é assimilada da mesma forma pelas crianças no decurso de seu desen-
volvimento: um descritor quantitativo pode ser simplesmente tratado
como um descritor ordinal ou também, pelas crianças menores, como
um descritor qualitativo. Exemplificaremos isto adiante.
• OS DESCRITORES QUALITATIVOS
Situam-se nesta categoria descritores cujos possíveis diferentes va-
lores não são ordenáveis, mas permitem constituir categorias distintas,
por exemplo:
DESCRITOR VALOR POSSÍVEL

O sexo Feminino e masculino


A situação familiar Solteiro, casado, viúvo, divorciado, etc.
A nacionalidade Francesa, britânica, brasileira, etc.
A cor Azul, vermelha, amarela, verde,
violeta, etc.
A forma geométrica Quadrado, triângulo, círculo, losango,
retângulo, etc.
A marca do automóvel Renault, Citroën, Ford, Fiat, etc.

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A criança, a matemática e a realidade

Situam-se notadamente nesta categoria todos os descritores de


alguma forma chamados de “critérios”.
A capacidade de nadar ou não nadar
O atributo de estar vivo ou não
etc.
Pode-se evidentemente estimar que seja melhor ser menino que
menina, ser solteiro que casado, ou preferir um Renault a um Fiat. Po-
rém, estas preferências são consideradas subjetivas e os diferentes valores
assumidos pelos descritores “sexo”, “situação familiar” e “marca de auto-
móvel” não são considerados como objetivamente ordenáveis.
• OS DESCRITORES ORDINAIS
Situam-se nesta categoria os descritores cujos possíveis diferentes
valores são ordenáveis, mas não mensuráveis, por exemplo:
DESCRITOR VALOR POSSÍVEL

Tamanho de certos Grande, médio, pequeno, etc.


objetos (ovos, peixes)
A cor mais ou menos Preto, castanho escuro, castanho claro,
escura dos cabelos loiro, etc.
O valor do imposto de 1.0; 1.4; 1.6; 1.8; 2.0; etc.
um automóvel conforme
a potência do veículo, etc.

De fato, em todos os casos há uma ordem objetiva entre as dife-


rentes categorias, mas não se evoca verdadeiramente uma escala objetiva
de medida. Não há problema, por exemplo, em saber se a diferença
entre o grande e o pequeno é a mesma que a diferença entre o médio
e o pequeno, ou se a diferença do imposto entre modelos 1.0 e 1.4 é a
mesma que entre 1.4 e 1.6. Os valores numéricos só são utilizados em
seu aspecto ordinal e não em seu aspecto cardinal.

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• OS DESCRITORES QUANTITATIVOS
Situam-se nesta categoria os descritores cujos diferentes valores po-
dem ser distribuídos em uma escala de medida numérica, por exemplo:
DESCRITOR VALOR POSSÍVEL

O comprimento
A superfície
O volume Valores numéricos
O peso
O preço
etc.

As diferentes categorias (que, neste caso, são valores numéricos)


evidentemente são ordenáveis; contudo, possuem, além disto, proprie-
dades que não são números de ordem, mas somente medidas. Estuda-
remos estas propriedades em detalhe mais adiante, no capítulo sobre o
número e a medida; agora, diremos somente que suas duas proprieda-
des fundamentais são:
1. A possibilidade de comparar as diferenças: por exemplo, a dife-
rença entre 2 metros e 3 metros é a mesma que a diferença entre
3 metros e 4 metros; ou, ainda, a diferença entre 5 metros e 7
metros é duas vezes maior que a diferença entre 2 e 3 metros. A
título de contra-exemplo não seria possível dizer que a diferença
entre o valor do imposto entre um automóvel 1.6 e um 1.8 é duas
vezes maior que a diferença entre o de 1.3 e o de 1.4.
2. A possibilidade de fazer composições aditivas: por exemplo,
dois pesos de 2 kg e um de 1 kg pesam juntos 5 kg. A título de
contra-exemplo, não seria possível afirmar que o valor do impos-
to de um automóvel 1.3 e o de um 1.4 equivale a um de 1.7.
Essa possibilidade de fazer composições aditivas e de comparar
diferenças deve-se, sobretudo, à existência de uma unidade de medida,
noção que é estranha à noção de ordem.
Levando a análise mais longe, os matemáticos, na verdade, fazem
a distinção entre os descritores que tornam possíveis a adição e os que
permitem apenas a comparação das diferenças (como a temperatura,
por exemplo). Mas essa análise nos levaria demasiadamente longe.

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A criança, a matemática e a realidade

Em suma, se uma classificação é definida pela aplicação que vai de


um conjunto de objetos a um conjunto de classes, pode-se afirmar que:
- O descritor quantitativo é o que permite associar aos objetos
números que são sua medida.
- O descritor ordinal é o que permite somente associar aos objetos
números de ordem ou categorias ordenáveis.
- O descritor qualitativo é o que permite associar somente aos
objetos categorias diferentes, mas não ordenáveis.
O que foi dito acima sobre a cor, isto é, que a situação não é a
mesma quando as cores formam uma sequência de valores discretos ou,
ao contrário, um espectro contínuo, é naturalmente verdadeiro para os
critérios quantitativos. Voltaremos a esse assunto, no capítulo relativo
ao número e à medida.
Entretanto, antes de encerrar essa parte, é indispensável sublinhar
que as noções de descritor quantitativo, ordinal ou qualitativo desenvol-
vem-se de forma muito lenta na criança. O tamanho ou a espessura de
objetos, por exemplo, muito antes de ocasionarem verdadeiras medidas
de comprimento, de superfície ou de volume, são considerados por mui-
tos anos (até 7 a 10 anos conforme o caso) como simples descritores or-
dinais. Pode-se mesmo dizer que, para as crianças menores, as categorias
“grande” e “pequeno” são tidas mais como simples valores qualitativos
do que como valores ordenados. Um testemunho disto está no fato de
que crianças de 5 ou 6 anos ainda não são capazes de expressar uma rela-
ção comparativa do tipo: “o objeto x é maior que o objeto y” e prendem-
se então a uma formulação como “x é grande, y é pequeno”.

OPERAÇÕES E RELAÇÕES: COMPLEMENTO, UNIÃO, IN-


TERSECÇÃO, INCLUSÃO

As operações classificatórias mais elementares:


- juntam objetos que têm a mesma propriedade P;
- juntam objetos que são equivalentes entre si do ponto de vista
de um descritor determinado;
não fazem intervir de forma manifesta operações e relações sobre o con-
junto das classes mas somente sobre o conjunto de objetos. Algo muito
diferente se passa no caso das operações e relações que estudaremos ago-

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Gérard Vergnaud

ra. Com efeito, no caso dessas operações e relações, leva-se em conta dos
objetos exclusivamente sua pertença a essa ou aquela classe, e raciocina-
se diretamente sobre as classes. Em trecho anterior, com a análise das di-
ferenças, procedemos a uma primeira análise das relações entre classes,
uma vez que as relações entre valores diferentes de um mesmo descritor
(qualidade, ordem, medida) aplicam-se ao mesmo tempo à noção de
característica das classes e à noção de propriedade dos objetos.

• A NOÇÃO DE COMPLEMENTO
Frequentemente, a classe complementar é escrita da seguinte forma:

A’ = A A’ é a classe complementar
B de A no conjunto de referência B
Às vezes, ela é também assim escrita:
A’ = B - A O sinal - tem aqui um sentido lógico e
e não um sentido aritmético
Essas duas escritas podem levar a tomar a noção de complemento
como uma relação ternária entre A’, A e B. Porém, o conjunto de re-
ferência B não exerce um papel tão importante na lógica de classes tal
como os matemáticos o formalizaram; e, frequentemente, concorda-se
em considerar o complemento lógico seja como uma relação entre duas
classes A e A’, seja como uma operação exercida sobre a classe A.
A noção de complemento deve ser compreendida, ao mesmo
tempo, em extensão e em compreensão, e deste fato se pode retirar
quatro tarefas diferentes:
1. Dada a classe A por sua característica (ou compreensão), en-
contrar a característica da classe complementar A’.
2. Dada a classe A em extensão (pela enumeração de seus elemen-
tos), encontrar a extensão da classe complementar A’.
3. Dada a classe A por sua característica, encontrar a extensão da
classe complementar A’.
4. Dada a classe A em extensão, encontrar a característica da clas-
se complementar A’.

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A criança, a matemática e a realidade

Estas quatro tarefas não têm grau de dificuldade igual e, espe-


cialmente, elas esbarram na questão de se saber se, para as crianças, A’
é um simples resíduo extensivo (o que sobra do conjunto de referência
quando os objetos da classe A são retirados) ou se a classe A’ é associada
a uma característica precisa. Dois exemplos permitem compreender esse
aspecto:
• Primeiro exemplo:
Em um conjunto de blocos lógicos, o complemento da classe dos
objetos vermelhos pode ser visto segundo três formas diferentes:
- a classe dos objetos que não são vermelhos;
- a classe dos objetos azuis ou amarelos13;
- a classe dos objetos que sobram quando são retirados os objetos
vermelhos.
A primeira forma é a que permite tomar a característica da classe
complementar A’ como negação da característica da classe A.
A segunda forma permite tomar a característica da classe comple-
mentar A’ como disjunção das características positivas possíveis
(azuis ou amarelas). A disjunção das características corresponde,
de fato, à união das classes, como veremos adiante.
A terceira forma não permite considerar qualquer característica,
mas somente reunir objetos que sobram em um resíduo extensi-
vo. De fato, não é possível confundir formulações como “os que
sobram” ou “os outros” com uma verdadeira expressão de uma
característica.

Lembremos que os blocos lógicos são apenas de três cores: verme-


13

lho, azul e amarelo.

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Gérard Vergnaud

• Segundo exemplo
O complemento da classe de objetos “vermelhos-ou-azuis” pode
ser considerado de várias formas:
- A classe dos objetos que não são “vermelhos-ou-azuis”;
- A classe dos objetos que são amarelos;
- A classe dos objetos que sobram quando são retirados os objetos
“vermelhos-ou-azuis”;
- A classe dos objetos nem vermelhos, nem azuis.
A primeira forma é a da negação simples, a segunda a da caracte-
rização positiva da classe complementar, e a terceira a do resíduo
extensivo, e que não permite caracterizar a classe complementar
negativa ou positivamente.
Quanto à última formulação “nem vermelho, nem azul”, é ela
uma forma elaborada da negação de uma classe disjuntiva; volta-
remos a esse ponto adiante.

As formulações das crianças não são independentes das opera-


ções mentais que elas, crianças, são capazes de realizar, e as dificulda-
des de utilização de certas expressões traduzem, de fato, dificuldades
de conceitualização. Por seu lado, o emprego da negação é correlato
do desenvolvimento da noção de complemento lógico. Assim como
existem diferentes níveis da complementação lógica, existem operações
negativas de nível diverso e as expressões seguintes, embora todas elas
comportem uma forma de negação, não apresentam o mesmo grau de
complexidade:
- Os blocos que não são vermelhos;
- Os blocos que não são círculos vermelhos;
- Os círculos que não são vermelhos;
- Os blocos que não são vermelhos-ou-azuis;
- Os blocos que são nem vermelhos, nem azuis;
- Os blocos que não são círculos ou vermelhos;
- Os blocos que são nem círculos, nem vermelhos.
Os estudos psicológicos sobre o desenvolvimento da criança
mostram que a noção de complemento se desenvolve muito len-
tamente, e que dificuldades de compreensão do complemento, da
união e da intersecção persistem para a maior parte das crianças até
o fim da escola básica.

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A criança, a matemática e a realidade

• AS NOÇÕES DE UNIÃO E DE INTERSECÇÃO


A união e a intersecção de duas classes A e B são respectivamente
escritas da seguinte forma:
União A B
Intersecção A B
A união é a classe de objetos pertencentes à classe A ou à classe
B; a intersecção é a classe dos objetos pertencentes ao mesmo tempo à
classe A e à classe B.
Ambas podem ser consideradas ou como leis da composição bi-
nária ou como relações ternárias.
Tomemos o seguinte conjunto simples:
D=C S
o conjunto D de deficientes sensoriais é a união do conjunto C dos
cegos e do conjunto S dos surdos.
Pode-se interpretar essa equação de duas formas diferentes:
- como lei de composição binária: a classe D é o resultado da
composição das duas classes C e S;
- como relação ternária: a equação traduz então uma relação entre
três classes D, C e S.
A mesma dualidade de interpretação existe para a intersecção.
Os matemáticos desenvolveram uma teoria algébrica, a álgebra
de Boole, que trata da união e da intersecção como leis de composição
binárias.
Tal como a noção de complemento, as noções de união e de in-
tersecção devem ser entendidas ao mesmo tempo em extensão e em
compreensão, e isto não é equivalente a considerá-las como simples re-
sultados extensivos ou como métodos de cálculo das características.
Os exercícios escolares relativos à união e à intersecção devem,
assim, levar a criança a trabalhar ao mesmo tempo com as represen-
tações extensivas das classes e com as características. Especialmente, a
classe obtida da união de duas ou mais classes não existe plenamente
enquanto classe exceto se for possível caracterizá-la; a capacidade da
criança em utilizar para esta caracterização uma formulação disjuntiva
(os blocos vermelhos ou azuis, as crianças nascidas em janeiro, fevereiro
ou março, os doentes ou as pessoas idosas, os múltiplos de 3 ou 4, etc.)
é um critério importante de compreensão da união. Do mesmo modo,

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Gérard Vergnaud

a capacidade de a criança empregar uma formulação de conjunção (os


blocos vermelhos e os quadrados, os blocos que são, ao mesmo tempo,
vermelhos e quadrados, etc.) é um critério importante de compreensão
da intersecção. Uma formulação como “os quadrados vermelhos”, ao
contrário, não deixa claramente evidente a conjunção, em pé de igual-
dade, das duas propriedades identificadas: “quadrado” é um nome,
“vermelho” um adjetivo, na ausência da conjunção “e”.
Retornemos à união. Dela existem dois grandes casos:
- a união de classes disjuntas, sem parte comum: por exemplo, o
conjunto dos blocos quadrados ou retangulares;
- a união de classes não disjuntas, tendo eventualmente uma par-
te comum: por exemplo, o conjunto dos blocos vermelhos ou
quadrados.
A união de classes disjuntas, que designaremos simplesmente por
“união disjunta” é, naturalmente, a mais simples. Entretanto, é necessá-
rio prestar atenção ao fato de que existe, além da formulação disjuntiva,
várias maneiras de expressar a característica da união.
A classe obtida pela união disjunta de duas classes, às vezes, pode
ser caracterizada positivamente, de forma diversa do que por uma
disjunção: por exemplo, a classe das crianças nascidas em janeiro, feve-
reiro ou março não é nada mais nada menos que a classe das crianças
nascidas no primeiro trimestre.
Ela pode, às vezes, ser caracterizada negativamente: por exemplo,
a classe dos blocos vermelhos não é outra coisa senão a classe dos blocos
que não são amarelos (no conjunto de referência dos blocos lógicos com
três cores).
Exercícios de passagem recíproca de uma formulação disjuntiva
a uma formulação não disjuntiva equivalente são meios pedagógicos
eficazes para levar a criança a trabalhar com a classe-união e não com
classes elementares. Esses exercícios completam utilmente os exercícios
indispensáveis de passagem recíproca da compreensão à extensão.
A união de classes não disjuntas é mais difícil e, para ser aprofun-
dada, exige um pouco mais de cuidado e de busca. Na verdade, muitos
exemplos são vistos pelas crianças como artificiais e desinteressantes.
Tomemos, por exemplo, a classe dos blocos vermelhos ou quadrados:
para nada se vê a que a união desses dois blocos elementares possa ser-
vir, uma vez que a primeira classe dos blocos vermelhos está baseada no

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A criança, a matemática e a realidade

descritor “cor”, enquanto que a segunda, a classe dos quadrados, está


baseada no descritor “forma geométrica”. Assim como a união disjunta
é natural porque ela reúne classes cujas características são valores de
um mesmo descritor (vermelho ou azul, quadrado ou retângulo, etc.),
a união não disjunta é percebida como artificial porque reúne classes
cujas características são valores de descritores independentes.
Portanto, é útil buscar na vida cotidiana exemplos mais significa-
tivos, nos quais a união não disjunta corresponda a uma preocupação
natural.
Esses exemplos não são frequentes, mas podem ser encontrados:
assim, a classe dos deficientes físicos é a união da classe dos deficientes
visuais, da classe dos deficientes auditivos, da classe dos deficientes mo-
tores. Como as classes elementares não são disjuntas, posto que existem
deficientes visuais e auditivos, deficientes visuais e motores, deficientes
auditivos e motores, trata-se claramente de uma união não disjunta.
Do mesmo modo, a classe dos múltiplos de três ou de quatro é a união,
relativamente pouco artificial, da classe dos múltiplos de três e da classe
dos múltiplos de quatro.
Tal como a união disjunta, a união não disjunta permite outras
formulações além das formulações disjuntivas. Assim temos, para o
exemplo precedente, a formulação positiva “a classe dos deficientes físi-
cos”, e a formulação negativa “a classe das pessoas que não dispõem de
todos os seus meios sensoriais e motores”.

Consideremos, agora, a intersecção. É uma noção que, contraria-


mente a de união, não tem sentido senão quando as características das
duas classes elementares pedem descritores independentes: a intersecção
da classe dos quadrados e da classe dos vermelhos tem evidentemente
um sentido, a intersecção da classe dos quadrados e da classe dos círculos
é uma noção contraditória porque um objeto não pode ser, ao mesmo
tempo, quadrado e círculo. O “cruzamento” de dois descritores inde-
pendentes é tão importante para a noção de intersecção que é natural
introduzir esta noção com o apoio de uma “representação cruzada” ainda
chamada de “tabela de dupla entrada” ou, ainda, “diagrama de Carrol”.

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Gérard Vergnaud

COR

Azul Vermelho Amarelo


Quadrados Quadrados Quadrados
Quadrados
FORMA Azuis Vermelhos Amarelos
GEOMÉTRICA Círculos Círculos Círculos
Círculos
Azuis Vermelhos Amarelos

Exemplo de representação cruzada



Uma representação desse tipo pode ser facilmente empregada
com crianças a partir de 5 ou 6 anos em tarefas de classificação. Porém,
isto não significa que, por causa desse fato, tenham elas uma compre-
ensão clara e completa da noção de intersecção. Inúmeros níveis podem
ser identificados, os quais não envolvem as mesmas operações mentais,
mas balizam o desenvolvimento da atividade classificatória.
A capacidade de utilizar uma tabela de dupla entrada para classi-
ficar objetos é um critério frágil, alcançado pelas crianças desde o início
do ensino básico. A concepção clara de uma intersecção por referência
simultânea a duas classes nas quais ela se inclui e em relação a outras
subclasses da classificação já é um critério mais forte.
A capacidade de empregar a noção de intersecção em casos em
que as classes elementares são definidas negativa ou disjuntivamente é
um critério de nível ainda mais elevado. E pode-se encontrar critérios
que não são cumpridos pela maioria das crianças, a não ser depois do
ensino básico. É o que ocorre, por exemplo, com a capacidade de en-
contrar a classe complementar da intersecção dos não triângulos e dos
não vermelhos.
É o caso, também, da capacidade de encontrar o cardinal da in-
tersecção de uma classe a partir do cardinal de duas classes elementares e
do cardinal da união; exemplo: quantas bolinhas de gude azuis de vidro
Paulo tem, sabendo-se que ele tem 7 bolinhas azuis, 6 bolinhas de vidro
e que em tudo ele tem 9 bolinhas de gude azuis ou em vidro? O mesmo
ocorre com vários outros critérios.

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A criança, a matemática e a realidade

De todas as formas, o que é preciso compreender é, de um lado,


o caráter central da noção de intersecção para o desenvolvimento da
atividade classificatória e, de outro, as interrrelações que esta noção tem
com aquelas de complemento, de união e de inclusão.
Esquematicamente, a intersecção C = A ∩ B tem como proprie-
dade fundamental o fato de estar incluída, ao mesmo tempo, em A e
em B. Ela tem um complemento em A e um complemento em B; mas o
complemento da intersecção é, de fato, a união das classes complemen-
tares, da mesma maneira que o complemento da união é a intersecção
das classes complementares.
Vejamos este caso no seguinte exemplo:
Quadrados Não quadrados
Vermelhos C
Não vermelhos

C, a classe dos quadrados vermelhos, é a intersecção da classe A dos


quadrados e da classe B, dos vermelhos
C=A B

Quadrados

Vermelhos C B

A
C está incluída na classe dos quadrados

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Gérard Vergnaud

Quadrados

A
assim como na classe dos vermelhos

C B

C tem um complemento na classe dos quadrados, a classe dos


quadrados não vermelhos. E tem um complemento na classe dos ver-
melhos, a classe dos vermelhos não quadrados.

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A criança, a matemática e a realidade

C tem um complemento no conjunto de referência, a união de


três subclasses: vermelhos e não quadrados, quadrados e não vermelhos,
nem quadrados nem vermelhos. Mas esta união não é nada mais que a
união dos não quadrados, como mostra o esquema abaixo:
Não quadrados

Não vermelhos

Logo, pode-se escrever:


(A B)’ = A’ B’
o complemento da intersecção é a união dos complementos; neste caso,
o complemento da classe dos quadrados é a união dos não quadrados
com os não vermelhos.
Um raciocínio análogo mostra que o complemento da união é a
intersecção dos complementos:
(A B)’ = A’ B’
o complemento da classe dos “quadrados ou vermelhos” é a intersecção
da classe dos não quadrados e da classe dos não vermelhos.
Assim sendo, a intersecção, a união e o complemento são ligados por
teoremas lógicos (as chamadas leis de Morgan) que têm como corolários
certas equivalências, na linguagem, entre conjunção, disjunção e negação.
Portanto, o critério das formulações empregadas não é absoluta-
mente o único critério da aquisição das noções de união, de intersecção
e de complemento. A busca de critérios propriamente operatórios con-
duz à variação sistemática das tarefas e dos exercícios que colocam em
ação aquelas noções.

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• A NOÇÃO DE INCLUSÃO
A inclusão é uma relação binária entre classes mas, ao contrário
do que dissemos sobre o complemento, não há como considerá-la uma
operação. A inclusão liga simultaneamente duas classes sem que apareça
qualquer transformação temporal.
Ela é escrita da seguinte forma:
A B
que se lê como: a classe A esta incluída na classe B.
Por definição, isto quer dizer que todos os elementos da classe A
são também elementos da classe B.
É possível mostrar facilmente que se trata de uma relação antis-
simétrica, transitiva e reflexiva: é uma relação de ordem ampla entre
classes de objetos.
É também uma relação de ordem parcial que permite organizar
classes não somente com base em apenas uma dimensão, mas com base
em uma “rede”. Eis um exemplo no qual as flechas representam relações
de inclusão (nem todas elas estão representadas).
quadrados grandes vermelhos

quadrados grandes quadrados vermelhos grandes vermelhos

quadrados grandes vermelhos

conjunto de referência
Não é necessário insistir a respeito do elo da noção de inclusão
com a noção de intersecção; cada classe é a intersecção de classes do
patamar imediatamente inferior, nas quais está incluída: a classe dos
grandes vermelhos é a intersecção da classe dos grandes e da classe dos
vermelhos.
Como para a união, a intersecção e o complemento, há diversos
critérios relativos à aquisição da noção de inclusão pelas crianças.

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A criança, a matemática e a realidade

Um critério relativamente rigoroso consiste na capacidade de a


criança deduzir sem dificuldade e em todos os casos, a partir de uma
relação de ordem relativa às classes:
A B
a relação de ordem correspondente relativa aos cardinais:
n (A) < n (B)
Segundo Piaget, que estudou muito esse assunto, é somente ao
redor de 8 ou 9 anos que uma criança é capaz de dizer sem hesitar que,
em um vaso onde há margaridas e algumas outras flores (em número
menor que o número das margaridas), há necessariamente mais flo-
res do que margaridas porque todas as margaridas são flores, enquanto
que nem todas as flores são margaridas. Antes disso, as crianças apenas
comparam as margaridas com as não margaridas (menos numerosas) e
afirmam que há mais margaridas do que flores; é que somente a compa-
ração entre classes disjuntas tem sentido para elas. Este é um indício da
dificuldade relativa da noção de inclusão.

REPRESENTAÇÃO DAS CLASSIFICAÇÕES


Vimos já duas representações possíveis das classes e das classifi-
cações.
• A REPRESENTAÇÃO CRUZADA
(denominada ainda de tabela de dupla entrada ou diagrama de
Carroll)
Ela é particularmente simples para dois descritores, por exemplo,
cor e forma geométrica:
COR
vermelha azul amarela verde etc.
quadrado
círculo
FORMA retângulo
GEOMÉTRICA triângulo
losango
etc.

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Mas ela é utilizável para três ou mais descritores, pela subdivisão


das linhas e colunas. Ela perde, então, muito de sua simplicidade, so-
bretudo para as crianças.
Eis, no entanto, um exemplo simples com quatro descritores:
vermelhos azuis
grandes pequenos grandes pequenos
espessos
quadrados
finos
grandes círculos
espessos azuis espessos
círculos
finos
espessos
retângulos
finos

• A REPRESENTAÇÃO EM “REDE” apoiada na relação de inclusão


quadrados grandes vermelhos

quadrados grandes quadrados vermelhos grandes vermelhos

quadrados grandes vermelhos

conjunto de referência
Esta representação é especialmente difícil para as crianças porque
leva em consideração vários descritores ao mesmo tempo.
• A REPRESENTAÇÃO EM ÁRVORE
É mais simples que a representação em “rede” porque se apoia no fato
de levar em conta sucessivamente cada um dos descritores, sem interferência
entre eles. Também tem a vantagem de ser infinitamente extensível.

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A criança, a matemática e a realidade

Primeiro descritor Segundo descritor Terceiro descritor etc.

espessos
vermelhos
finos
quadrados
espessos
azuis
finos
espessos
vermelhos
finos
círculos
espessos
azuis
finos
espessos
vermelhos
finos
retângulos
espessos
azuis
finos
Esta representação em árvore tem elos privilegiados com a com-
binatória.
• A REPRESENTAÇÃO DE EULER-VENN
Esta representação, muitas vezes considerada como representação
natural dos conjuntos não é, na verdade, nada mais que uma represen-
tação entre outras. Ela é particularmente cômoda quando é necessário
localizar objetos (ou os sinais que representam estes objetos) em regiões
do espaço, mas a representação cruzada também permite, com igual
facilidade, tais localizações.
A vantagem da representação de Euler-Venn é que ela coloca mui-
to bem em evidência, sobretudo, as noções de complemento, de união
e de intersecção. Como se trata de noções fundamentais da atividade
classificatória, seu interesse é bem compreensível. Eis um exemplo com
três características; aliás, dificilmente se pode ir além disto.

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quadrados vermelhos

grandes
Os exercícios de passagem de uma representação a outra são pe-
dagogicamente muito fecundos tanto no caso da atividade classificató-
ria como no caso de outras atividades lógico-matemáticas.

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CAPÍTULO VI

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O NÚMERO E A MEDIDA

A noção de número é a noção mais importante da matemática


ensinada na escola básica.
Longe de ser uma noção elementar, ela se apoia em outras noções,
tais como a de aplicação, de correspondência biunívoca, de relação de
equivalência, de relação de ordem. Na criança pequena, ele é indissoci-
ável da noção de medida. Enfim, é a possibilidade de fazer adições que
dá à noção de número seu caráter específico em relação às noções sobre
as quais ela se baseia.

A SEQUÊNCIA NUMÉRICA FALADA COMO RECITAÇÃO E


COMO CONTAGEM

A criança pequena aprende os primeiros números já muito cedo


e, mais frequentemente, fora da escola. Desde dois ou três anos, ela sabe
dizer “um” e “dois”, este último significando “muitos”.
A sequência numérica falada: “um”, “dois”, “três”, “quatro”, etc.,
é progressivamente estendida quando a criança cresce. Esta sequência
chega a “cinco”, “seis” ou “sete” para a maior parte das crianças de 5
anos; ela pode chegar a “dez” e ir além para algumas crianças.
Quando a criança enuncia essa sequência numérica, ela pode es-
tar situada em dois níveis diferentes:
- no nível da simples recitação (do “canto” como se diz às vezes): a
criança então se limita a recitar as palavras que ela sabe que devem
vir uma após a outra. Muitas vezes, aliás, ocorre de ela se enganar.
Mas, mesmo quando ela se engana e recita a sequência dos n pri-
meiros números, não se poderia afirmar que, por conta disso, ela
sabe “contar até n”, como às vezes se diz de forma errônea. Na ver-
dade, a atividade de contar implica não apenas que a criança recite
a sequência numérica, mas que, ao mesmo tempo, faça correspon-
der esta recitação à exploração de um conjunto de objetos;

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Gérard Vergnaud

- no nível da contagem, propriamente dito: a recitação da se-


quência numérica é então acompanhada de gestos da mão e de
movimentos dos olhos que mostram que a criança executa sua
atividade de estabelecer uma correspondência entre o conjunto
de objetos, de um lado, e a sequência numérica falada, de outro.
Esta é a primeira forma, muito rústica, de aplicação numérica
que se é possível imaginar.
Podemos assim representá-la:
coleção de objetos sequência numérica falada

um

dois

três

quatro

A criança se engana com muita frequência, aliás, sobretudo quan-


do a disposição espacial dos objetos fica desalinhada: na ausência de
uma exploração sistemática, ocorre-lhe contar duas vezes o mesmo ob-
jeto e esquecer que o fez. De qualquer forma, ela apenas pode contar
coleções pequenas.

Ao mesmo tempo em que desenvolve essa atividade de contagem,


a criança deve captar outros aspectos do número, aqueles que estão li-
gados às noções de equivalência e ordem, as quais não necessariamente
implicam o uso da sequência numérica falada.

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A criança, a matemática e a realidade

CORRESPONDÊNCIA BIUNÍVOCA E EQUIVALÊNCIA EN-


TRE CONJUNTOS

O número quatro é uma propriedade comum a todos os conjun-


tos de objetos que têm quatro elementos. Esta propriedade é chamada
de “cardinal”.
A propriedade “quatro” comum a todos os conjuntos que têm qua-
tro elementos apoia-se para a criança, fundamentalmente, na possibili-
dade que ela tem de fazer corresponder termo a termo dois conjuntos
quaisquer de quatro elementos. Contudo, essa correspondência termo a
termo entre dois conjuntos com o mesmo número de elementos, e que
com frequência é qualificada de “bijectiva”14 ou de “biunívoca” (unívoca
nos dois sentidos), não surge facilmente no desenvolvimento da criança.
A esse respeito, Jean Piaget mostrou a ocorrência de dificuldades
em crianças de até 6 ou 7 anos. Suas experiências são muito numero-
sas, muito variadas e muito sofisticadas para aqui serem analisadas em
detalhe, mas é necessário delas citar ao menos um exemplo, o qual bem
ilustra suas descobertas.
Apresenta-se a crianças de 5 ou 6 anos porta-ovos dispostos em
linha, cada um deles diante de ovos também arrumados em linha. As
duas linhas são arrumadas de modo que não haja dificuldade em esta-
belecer-se visualmente a correspondência termo a termo entre as duas
coleções: para tanto é suficiente dispor cada ovo exatamente em frente
de cada porta-ovo, conforme o desenho seguinte:

Pergunta-se então à criança se há mais porta-ovos do que ovos,


ou se há o mesmo tanto, ou menos. Sem dificuldade, crianças de 5 ou 6
anos respondem que “tem o mesmo tanto igual” ou que “é o mesmo”.

14
Uma aplicação de um conjunto em outro é bijectiva se, e somente
se, cada elemento do primeiro conjunto tem uma imagem, e uma só, no se-
gundo e, reciprocamente, se cada elemento do segundo conjunto é a imagem
de um elemento, e de um, só do primeiro.

127

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Gérard Vergnaud

Sem retirar ou colocar algum objeto, os objetos de uma das li-


nhas, os porta-ovos, por exemplo, são afastados uns dos outros, de tal
modo que a correspondência termo a termo se torne difícil de ser feita
visualmente, como no desenho abaixo. Esta transformação é feita sob as
vistas da criança e, eventualmente, com sua participação:

Faz-se, agora, à criança a mesma pergunta antes colocada: “Agora,


há mais porta-ovos que ovos, o mesmo tanto ou mais?”. Aos 5, 6 ou 7
anos, conforme os indivíduos, a criança responde então que “tem mais
porta-ovos porque eles estão mais espalhados”, ou que “eles passam os
ovos”, ou que “tem mais ovos porque os ovos estão mais juntos”.
É somente ao redor de 6 ou 7 anos que, segundo Piaget, as crian-
ças respondem que “é a mesma coisa”, com os seguintes argumentos: “
Não foi posto nem tirado nada”, “dá para voltar a ficar como era antes”,
“a linha dos porta-ovos está mais comprida, mas a dos ovos está mais
juntinha”.
Esses fatos mostram que colocar em correspondência termo a
termo dois conjuntos suscita dificuldades, mesmo tardias, ao desen-
volvimento da criança, o que impede considerar que a grandeza de um
conjunto, seja, para a criança, independente da configuração espacial
assumida por esse conjunto.
O que é verdadeiro para dois conjuntos dispostos em duas linhas
paralelas é forçosamente verdadeiro para conjuntos dispostos segundo
outras formas ou que estão dispersos: de fato, a isto uma dificuldade
suplementar é então somada, a da exploração completa e sem repetição
dos elementos de cada conjunto, exploração que supõe uma regra siste-
mática, a qual os pequenos são incapazes de dominar.
Disso resulta que a equivalência quantitativa de dois conjuntos
com o mesmo número de elementos, equivalência que, bem entendido,
fundamenta a noção de cardinal, não é, na criança, um fato pronto sobre
o qual o pedagogo poderia apoiar-se sem problema, mas constrói-se pro-
gressivamente em função do desenvolvimento da atividade da criança.

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A criança, a matemática e a realidade

RELAÇÃO DE ORDEM E RELAÇÃO DE EQUIVALÊNCIA: O


PROBLEMA DO CONTÍNUO E DO DISCRETO

As relações entre números apoiam-se em relações entre objetos. A


atividade de comparação entre objetos está, evidentemente, na origem
do desenvolvimento das noções de equivalência e de ordem, as quais são
necessárias ao desenvolvimento da noção de número.
Fazer comparações para ver qual é o maior (dentre dois objetos
ou dentre duas pessoas), a mais gentil (dentre duas pessoas), o mais de-
licioso (dentre dois doces), etc., é uma atividade relativamente precoce.
O caráter frequentemente subjetivo dessas comparações não lhes retira
seu interesse, a saber, que a criança estabelece então uma relação de
ordem entre dois elementos.
Nessa atividade de comparação é a noção de ordem que parece
fundamental, e a noção de equivalência não resulta senão da impossibi-
lidade em que, por vezes, encontra-se o sujeito de discernir, ou de deci-
dir: deste ponto de vista, a relação de equivalência “Pedro é do mesmo
tamanho que João” (o que significa, de fato, “nem maior, nem menor”)
não pode ser tratada da mesma forma que esta outra relação de equiva-
lência “Pedro está na mesma equipe que João”.
Certamente, nos dois casos a análise bem destaca a mesma ideia,
a saber, que Pedro e João guardam a mesma imagem:
- no conjunto das alturas possíveis, para o primeiro exemplo;
- no conjunto das equipes possíveis, para o segundo exemplo.
Mas as alturas formam um conjunto contínuo no qual, para dois
tamanhos a e b, sendo um próximo do outro, sempre se pode encontrar
um intermediário c que estará separado de a por um intervalo ainda
menor. Já as duas equipes possíveis formam um conjunto discreto, no
qual elas podem ser vizinhas e distintas, a primeira equipe e a segunda
equipe, por exemplo, sem que qualquer outra equipe intermediária pos-
sa ser colocada entre elas.
O problema da decisão é muito diferente no caso dos conjuntos
discretos e no dos conjuntos contínuos. Decidir se duas crianças perten-
cem à mesma equipe ou a duas equipes diferentes é mais fácil que deci-
dir se eles têm a mesma altura ou alturas diferentes: na verdade, quando
sua altura é muito próxima, os riscos de erro na comparação são tais
que tanto se pode decidir pela igualdade quando pela desigualdade; e,

129

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Gérard Vergnaud

reciprocamente: pode-se mesmo incorrer em um engano no sentido da


desigualdade e pretender, com base em certos indícios perceptivos, que
Pedro é maior que João, enquanto o contrário é que é o verdadeiro.
A noção de “tamanhos vizinhos” é, assim, diferente da noção de
“classes vizinhas”. No primeiro caso, trata-se de uma vizinhança fluída,
sobre uma dimensão contínua que sempre admite intermediários. No
segundo caso, trata-se de uma vizinhança sem ambiguidade, cada classe
podendo ser facilmente caracterizada e diferenciada das outras.
Podemos então distinguir dois domínios de aplicação das relações
de equivalência, conforme a “dimensão” de interesse esteja compondo
um conjunto discreto ou um conjunto contínuo de valores; e é possí-
vel distinguir igualmente dois domínios de aplicação das relações de
ordem.
• Exemplos de relações de equivalência no caso discreto
- nasceu no mesmo mês que
- tem o mesmo avô que
- tem a mesma cor que15
- tem a mesma forma que (ver nota de rodapé 15)
• Exemplos de relações de equivalência no caso contínuo
- é tão grande quanto
- tem a tez tão fresca quanto
- tem a mesma altura que
- chegou na mesma hora que
• Exemplos de relações de ordem no caso discreto
- chegou antes (em uma corrida)
- tem mais irmãos e irmãs que
• Exemplos de relações de ordem no caso contínuo
- é maior que

Para cores e formas é possível imaginar transições contínuas (o es-


15

pectro contínuo de cores, as deformações contínuas de certas formas), mas a


maior parte dos objetos corriqueiros é feita com conjuntos discretos de cores e
formas.

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A criança, a matemática e a realidade

- tem cabelos mais escuros que


- é mais bonita que16
As relações de equivalência no caso discreto podem ser compreen-
didas muito cedo e sem ambiguidade pelas crianças (ao redor de 4 anos),
enquanto as relações de equivalência no caso contínuo podem ser com-
preendidas, esquematicamente, de duas maneiras muito diferentes.
Uma afirmação como “sou tão grande quanto você” não significa a
mesma coisa na boca de uma criança de 4 anos e na de uma criança de 8
anos. Para a criança de 4 anos, trata-se de situar a própria altura na vizi-
nhança (ampla) da altura de outrem; já para a criança de 8 anos, trata-se,
melhor, de afirmar que uma operação de comparação sistemática (costas
contra costas, avaliada com a toesa17...) não resultaria em desigualdade.
A noção de relação de ordem desenvolve-se precocemente, em
paralelo às atividades de comparação e sem que, no atual estado de
nossos conhecimentos, possa-se dizer que o caso discreto beneficie-se de
algum privilégio em relação ao caso contínuo. As propriedades espaciais
dos objetos são apreendidas, ao mesmo tempo, em seu caráter discreto
(Pedro está na frente de João, o açucareiro está em cima do pote de
café...) e em seu caráter contínuo (a bengala de Pedro á mais comprida
que a bengala de João, o pinheiro é mais alto que o carvalho...).
Em suma, a noção de número apoia-se necessariamente em pro-
priedades das relações de equivalência e de ordem, adquiridas antes pela
criança. Quando os números lhe são apresentados como cardinais de
conjuntos de objetos isoláveis (sobretudo objetos sólidos), a criança se
defronta, então, com o caso menos ambíguo das relações de ordem e de
equivalência:
- ou bem dois conjuntos A e B podem ser colocados em corres-
pondência biunívoca; eles são, assim, equivalentes e seu cardinal
é o mesmo;

A apreciação “bonita” consiste em um julgamento complexo que


16

emprega, na verdade, vários índices, dentre os quais alguns se referem a di-


mensões que podem ser consideradas como contínuas (por exemplo: o com-
primento do nariz, o brilho dos olhos, etc.).
17
“Toesa” é o nome de uma antiga medida francesa de comprimento
(valor 1,949 m). No exemplo, designa uma régua vertical graduada, com cur-
sor, e que serve para medir a altura das pessoas (Le Petit Larousse Illustré. Paris:
Larousse – Bordas, 1998; Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 1. ed.
4. impressão. Rio: Nova Fronteira, s/d). N. T.

131

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Gérard Vergnaud

- ou bem o conjunto B corresponde biunivocamente apenas a


uma parte do conjunto A (ou ao inverso); eles são então ordena-
dos, A é maior que B, e o cardinal de A é maior que o cardinal de
B (ou o inverso, respectivamente).
O fato de o conjunto dos cardinais não comportar intermediários
entre 1 e 2, entre 2 e 3, entre 3 e 4, etc., ilustra bem o caráter discreto
dos cardinais, logo, dos primeiros números adquiridos pela criança. Isto
permite a economia temporária de dificuldades ligadas à compreensão
do contínuo, evocadas a propósito da relação de equivalência e da rela-
ção de ordem, a que retornaremos adiante.

O NÚMERO COMO RELAÇÃO DE EQUIVALÊNCIA E COMO


RELAÇÃO DE ORDEM

A relação “o mesmo número de elementos que” é uma relação de


equivalência entre conjuntos, assim como a relação “tem a mesma cor
que” é uma relação de equivalência entre objetos.
A relação “tem maior número de elementos que” é uma relação
de ordem entre conjuntos, assim como a relação “chegou antes” é uma
relação de ordem entre crianças em uma corrida. No entanto, como a
comparação é feita entre conjuntos e não entre objetos, deve-se esperar
que as relações numéricas sejam, em certos aspectos, mais complexas
que as relações entre objetos.
Quando as crianças contam suas bolas de gude e dizem: “Tenho
o mesmo tanto de bolinhas que você”, “você e eu temos o mesmo tanto
de bolinhas”, etc., elas estabelecem relações entre conjuntos e é preciso,
então, representar estas atividades de uma forma muito mais complexa
do que seria o simples esquema da contagem. Recordemos este esquema
e tentemos representar a atividade em jogo em relações numéricas de
equivalência e de ordem.

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A criança, a matemática e a realidade

• contagem
coleção de objetos sequência numérica falada

X um

X dois

X três

X quatro

A flecha simboliza a operação de contagem elemento por elemen-


to.
• relação de equivalência
conjuntos números

A B

quatro
C

As flechas duplas simbolizam as correspondências biunívocas que


podem ser estabelecidas entre os conjuntos A, B e C (e todos os outros
conjuntos de quatro elementos). Elas representam, assim, as relações de
equivalência entre A e B, B e C, A e C, etc.
No plano do número propriamente dito, essa equivalência se tra-
duz pelo fato de A, B e C (e todos os conjuntos de quatro elementos)
terem a mesma imagem no conjunto dos números, a saber, o número
quatro. É o que representam as flechas simples dirigidas dos conjuntos
A, B e C para o número “quatro”.

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Gérard Vergnaud

• relação de ordem
Para não complicar o esquema, foi empregada abaixo somente
uma família de conjuntos de objetos (cruzes), sabendo-se que cada con-
junto é apenas um conjunto possível de todos os conjuntos que podem
ser colocados em correspondência biunívoca com ele próprio.
família de conjuntos sequência de números

um

dois

três

quatro

Neste esquema, “um” aparece como a imagem do conjunto de


um elemento, “dois”, a imagem do conjunto de dois elementos e não
como segundo elemento, “três”, a imagem do conjunto de três elemen-
tos e não como terceiro elemento, etc., cada um desses elementos con-
tendo os precedentes e, a cada vez, enriquecendo-se com um elemento
suplementar. A relação de ordem “quatro é maior que dois” traduz en-
tão o fato de que o conjunto de dois elementos pode ser colocado em
correspondência biunívoca com somente uma parte do conjunto de
quatro elementos.

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A criança, a matemática e a realidade

quatro é maior que dois

O NÚMERO COMO MEDIDA

Comparar objetos entre si para ordená-los ou para estabelecer sua


equivalência é uma atividade que não implica, de forma alguma, essa
nova categoria de símbolos que são os números. Também, conjuntos
como objetos e operações de fazer a correspondência poderiam ser sufi-
cientes para a comparação dos conjuntos.
A utilização de símbolos numéricos e a atividade de contagem
permitem, porém, poupar esta colocação em correspondência em ca-
sos em que ela é difícil e mesmo, por vezes, impossível: por exemplo,
comparar rebanhos de animais seria uma tarefa muito mais incômoda
se não se soubesse contar. Vamos tentar analisar o funcionamento dessa
atividade de contagem e, para tal, imaginemos um problema simples:
“Quem tem mais irmãos e irmãs, Pedro ou João?” O problema é o de
estabelecer uma relação de ordem (ou, eventualmente, de equivalência)
entre dois conjuntos,

o conjunto P, dos irmãos e irmãs de Pedro,


o conjunto J, dos irmãos e irmãs de João.

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Gérard Vergnaud

A alternativa é, então
tem mais que
P tem menos que J
tem o mesmo tanto que

Para a criança que não sabe contar, o único meio é colocar os


conjuntos P e J em correspondência.
A contagem permite economizar o colocar em correspondência e
o deduzir a relação entre P e J da relação entre dois números, aos quais
se chega contando as ocorrências de P e J. Vamos supor, por exemplo,
que se contou
até cinco para os irmãos e irmãs de P;
até três para os irmãos e irmãs de J.
Como cinco é mais que três (vem depois na sequência dos núme-
ros), P tem mais que J.
Vamos representar esquematicamente as diferentes etapas do pro-
cedimento acima cumprido:
Primeira etapa Pergunta P ? J o ponto de interrogação
representa a alternativa:

Segunda etapa Contagem P ? J tem mais que


tem menos que
tem o mesmo tanto que

cinco três

Terceira etapa Comparação entre os dois números obtidos


P ? J

cinco é mais que três

Quarta etapa Dedução da relação de ordem entre os conjuntos


P tem mais que J

cinco é mais que três

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A criança, a matemática e a realidade

A relação entre os conjuntos P e J é, dessa forma, deduzida da


relação entre os cardinais de P e de J. Isto se deve ao fato de que a ope-
ração de medida dos conjuntos, que consiste em encontrar seu cardinal,
conserva a relação de ordem: se o conjunto A é maior que o conjunto
B, então o cardinal de A é maior que o cardinal de B. Reciprocamente,
se o cardinal de A é maior que o cardinal de B, então o conjunto A é
maior que o conjunto B. É esta recíproca que foi utilizada na quarta
etapa do raciocínio.
Diz-se, ainda, que os conjuntos e suas medidas são homomorfos18
para a relação de ordem. Desse modo, os números, como os cardinais
de conjuntos, constituem de fato um sistema de medida que facilita as
comparações de conjuntos.
Veremos mais adiante que esse sistema de medida permite muitas
outras operações mais importantes; contudo, é preciso sublinhar aqui
que, mesmo em uma tarefa tão simples como é a de comparação de dois
conjuntos, os números têm um papel relativamente complexo. Esse pa-
pel não é assim tão claro para as crianças e, se não se prestar atenção,
pode-se ali confundir relações entre conjuntos e relação entre números,
quando são elas relações diferentes, as segundas baseando-se nas primei-
ras, mas permitindo, em troca, estabelecer de forma mais econômica
certas relações entre conjuntos.
De um modo geral, pode-se representar da seguinte maneira o
papel dos números na comparação dos objetos:
comparação
objetos objeto A direta dos objeto B
objetos entre si

comparação
números medida (A) dos números medida (B)
entre si

Homomorfos: de mesma estrutura. Essa noção de homomorfismo


18

é abordada no capítulo XIII a respeito dos problemas fundamentais do ensino


da matemática.

137

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Gérard Vergnaud

Dispõe-se de dois meios para comparar os objetos A e B:


- a comparação direta entre os dois objetos;
- a comparação indireta, consistindo em, primeiro, tomar as me-
didas de A e de B para, em seguida, comparar entre si os núme-
ros assim obtidos.
No caso dos conjuntos, o esquema passa a ser o seguinte:
conjunto de comparação
objetos isoláveis conjunto A direta mediante conjunto B
correspondência

comparação
números cardinal (A) de números cardinal (B)
inteiros entre si

Resta o problema da comparação dos números entre si. Se for


simples dizer que é o lugar na sequência falada que determina o maior e
o menor, é necessário também destacar que esta regra se apoia em todas
as atividades de comparação paralelas entre conjuntos de um lado, e as
entre números, de outro, as quais permitem à criança assegurar-se do
bom funcionamento da regra.
Outros problemas aparecem quando os números ultrapassam a
dezena e recorrem a um sistema de numeração.

A ADIÇÃO DOS NÚMEROS

Nada do que dissemos até aqui caracteriza verdadeiramente os


números, e todo e qualquer sistema arbitrário ordenado, como o alfa-
beto, por exemplo, poderia ter servido para o mesmo uso.
O que dá aos números sua característica essencial é a possibilida-
de que temos de adicioná-los e de atribuir um sentido a essa adição.
Para melhor explicar esse problema, vamos recorrer a um exem-
plo um pouco mais complexo do que os que se podem apresentar às
crianças quando elas aprendem a contar; mas, em troca, isto esclarecerá
a aprendizagem do cálculo.

138

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A criança, a matemática e a realidade

Suponhamos que um fazendeiro dispõe de dois rebanhos de car-


neiros A e B, um com 53 cabeças e o outro com 89. Ele quer saber
quantos carneiros tem ao todo.
Um primeiro método consiste em colocar todos os carneiros jun-
tos e recontá-los: um, dois, três, etc., até 142. É uma operação simples,
mas pouco econômica.
Um segundo método consiste em adicionar simplesmente 53 e
89, sem juntar os dois rebanhos e sem fazer nova contagem.
Não se pode fazer isto sem sistema numérico. Vamos tentar repre-
sentar este raciocínio:
conjunto C
conjunto de (reunião dos
objetos isoláveis conjunto A conjunto B dois primeiros)

números 53 89 58 + 89 = 142
inteiros
Dois meios de encontrar 142 estão disponíveis:
- reunir os conjuntos A e B em um conjunto C e contá-los em
seguida;
- contar primeiro A e B, depois adicionar os dois números assim
obtidos.
O primeiro método pode ser simbolizado da maneira seguinte:
- reunião de dois conjuntos: A UD B19
- contagem deste novo conjunto: medida (A UD B)
O segundo método pode ser simbolizado da maneira seguinte:
- contagem de A e de B: medida (A), medida (B)
- adição de dois números: medida (A) + medida (B)
A equivalência desses dois métodos é assim escrita:
- medida (A UD B) = medida (A) + medida (B)

UD = símbolo da união entre dois conjuntos disjuntos, ou em ter-


19

mos mais rápidos, “união disjunta”, por diferenças com U, símbolo da união,
operação geral sobre os conjuntos que sejam ou não disjuntos.

139

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Gérard Vergnaud

Tal igualdade, se verdadeira, quaisquer que sejam A e B, é, para os


matemáticos, um teorema de homomorfismo. No caso presente, trata-
se de um homomorfismo entre o conjunto dos conjuntos com a opera-
ção de união disjunta, de um lado, e de outro, o conjunto dos números
com a operação de adição.
Voltemos, agora, a um exemplo mais simples que mostra com
clareza o passo decisivo que as crianças devem dar na aquisição da noção
de número.
Suponhamos que uma criança de 6 anos conta as crianças sentadas
em volta de uma mesa: ela primeiro conta quatro meninas, depois, três
meninos e, enfim, pode encontrar o número total: ela reconta tudo: um,
dois, três... até sete.
Poderemos estar seguros que a criança compreendeu que quatro
mais três é igual a sete?
Depois da análise precedente, podemos ver que não, uma vez
que ela empregou, de fato, unicamente o primeiro meio à sua dispo-
sição sem fazer a adição dos dois números exercer seu papel. Somente
depois de fazer outras verificações, por exemplo, guardando nos dedos
o número de meninas e, em seguida, contando ali cinco, seis, sete, para
os meninos, é que a criança dará à adição de quatro com três sua verda-
deira significação.
Para encerrar, vamos compor um esquema mais geral da noção de
adição no caso da adição de cardinais de conjuntos.
conjuntos conjunto A conjunto B conjunto C = A U B
D

números medida (A) medida (B) med (A) + med (B) = med (C)

Como as flechas simbolizam a operação de medida, a última fle-


cha à direita permite reencontrar a igualdade fundamental vista acima.
medida (A UD B) = medida (A) + medida (B)
A aquisição da noção de número acarreta outros numerosos pro-
blemas, os quais serão abordados nos capítulos seguintes. Este capítulo
limitou-se a aspectos elementares que condicionam tudo o que segue.
Pode-se notar que, ao longo deste mesmo capítulo, tanto para as rela-

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A criança, a matemática e a realidade

ções de ordem e de equivalência, como para a adição, foi sistematica-


mente desenvolvida a ideia de que as relações entre números não são
independentes das relações entre objetos e, mais particularmente, das
relações entre conjuntos no que concerne aos primeiros números com-
preendidos por uma criança. Estes primeiros números compreendidos
por uma criança são, de fato, números naturais: 1, 2, 3, 4..., e eles não
serão outra coisa senão a medida dos conjuntos de objetos isoláveis.
Isto porque as relações numéricas não podem ser compreendidas pelas
crianças se não se apoiarem fundamentalmente na análise das relações
entre conjuntos, quer se trate das relações binárias de ordem ou de equi-
valência, quer da relação ternária de união disjunta que dá seu sentido
à adição de números.
Afastar-se dessa ideia de correspondência necessária, ou de homo-
morfismo, entre os objetos e os conjuntos de um lado, e os números,
de outro, seria condenar-se a nada compreender da didática da noção
de número.

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CAPÍTULO VII

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A MEDIDA:
ALGUNS PROBLEMAS PRÁTICOS
E TEÓRICOS

A primeira atividade de mensuração é a atividade de contagem e,


no capítulo anterior, vimos quais problemas complexos essa atividade
apresenta antes de, verdadeiramente, gerar a noção de número. Porém,
os conjuntos não são os únicos objetos que são mensuráveis; os com-
primentos, as áreas, os volumes, os pesos, etc., são também medidas
utilizadas na vida cotidiana e que devem ser ensinadas na escola básica.
Os preços não são medidas físicas, mas se comportam quase do mesmo
modo; nós os designaremos pelo nome de “quase-medidas”.
A atividade prática da medida coloca, com efeito, questões teóri-
cas de uma grande importância, as quais iremos abordar neste capítulo.
Estudaremos, sucessivamente:
- o problema do intermediário e do mensurante;
- a aproximação;
- as medidas compostas;
- a estrutura algébrica das medidas.

O PROBLEMA DO INTERMEDIÁRIO E DO MENSURADOR

Acabamos de ver que a atividade de contagem é, na verdade, um meio


de comparar os conjuntos sem estabelecer a correspondência direta entre eles.
A sequência numérica, de fato, serve de intermediário e, na falta dela, é pos-
sível imaginar outros intermediários possíveis: por exemplo, para comparar
dois rebanhos A e B, difíceis de serem diretamente comparados, pode-se esta-
belecer uma correspondência biunívoca entre o rebanho A e um conjunto I
de pedrinhas, depois colocar em correspondência o conjunto I de pedrinhas
e o rebanho B. Na hipótese de se verificar que B é maior que I deduz-se evi-
dentemente que B é maior que A. Vamos escrever o raciocínio sob a forma

145

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Gérard Vergnaud

simbólica seguinte: aqui, as letras minúsculas são empregadas para designar as


medidas, reservando as maiúsculas para os objetos propriamente ditos.
a = medida (A)

a=i constatados
b>i
b>a conclusão deduzida
Portanto, o conjunto I de pedrinhas serviu de intermediário para
comparar A e B.
Suponhamos que se queira comparar a altura da janela e a largura
do quadro de giz da sala de aula sem que seja possível dizer, somente por
estimativa perceptiva, o que é maior. Naturalmente não podemos com-
pará-las diretamente, pois o quadro de giz está preso na parede, sendo
então necessário empregar um intermediário. Várias soluções para esse
problema podem ser consideradas:
• A primeira solução consiste em pegar um objeto cujo compri-
mento seja muito próximo das duas outras grandezas a compa-
rar e dele servir-se como intermediário. Vamos escrever todos os
casos possíveis. Designaremos j a altura da janela, q a largura do
quadro de giz e i o comprimento do objeto intermediário.
comparação entre j e i

j>i j=i j<i

impossível
q>i q>j q>j
decidir
comparação
entre q e i q=i q<j q=j q>j

impossível
q<i q<j q<j
decidir

A tabela é lida da maneira seguinte:


margem da esquerda: comparação entre q e i

146

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A criança, a matemática e a realidade

margem de cima: comparação entre j e i


caselas da tabela: conclusões que podem ser obtidas
Exemplos:
Primeira casela
q>i
j>i
impossível decidir porque os dois objetos
são maiores que o intermediário
Segunda casela (à direita da primeira)
q>i
j=i
q>j

Terceira casela (à direita)


q>i equivalente à q > i
j<i i>j
q>j (por transitividade
da relação de ordem)
Vemos, dessa forma, que os raciocínios postos em ação em uma
tarefa de comparação simples podem ser bastante complicados, pela:
- impossibilidade de decisão em certos casos;
- composição de uma relação de ordem e de uma relação de igual-
dade por absorção da relação de igualdade;
- comparação transitiva de duas relações de ordem.
Uma sensível melhoria do procedimento acima adotado consiste
em fazer com que, de certa forma, o objeto intermediário seja simples-
mente igual a um dos objetos, o quadro de giz, por exemplo. É possível
realizar isto pondo uma marca com lápis na régua ou ali localizando
o ângulo formado pelo polegar. Então, assim os casos possíveis ficam
reduzidos a três, que são todos de decisão possível.
q=i q=i q=i
j>i j=i j<i
j>q j=q j<q

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Gérard Vergnaud

Frequentemente, utiliza-se um barbante, como o fazem os pe-


dreiros, para fazer esse gênero de comparações; mas há, no emprego
de um barbante uma dificuldade suplementar para as crianças. Na ver-
dade, o barbante é flexível e a criança não tem a garantia de que o
comprimento do barbante permanece o mesmo quando este muda de
forma. É isto que leva, por exemplo, alguns dos pequenos a se deslocar,
mantendo o barbante estendido, os braços esticados. A composição de
duas comparações não tem efetivamente sentido, exceto se o interme-
diário é invariante entre as duas comparações; assim, há a respeito dos
comprimentos um problema análogo ao que vimos no capítulo prece-
dente, em relação aos conjuntos.
• A segunda solução consiste em utilizar não um intermediário
qualquer, mas um mensurador ou um instrumento de medida,
que exercerá o mesmo papel que o da operação de enumeração
de conjuntos, e que permitirá associar um número a cada um dos
objetos a comparar. Essa questão da mensuração está longe de
ser simples e nós a ela retornaremos mais adiante, à propósito da
aproximação. Porém, o princípio a ela associado é simples, como
mostra o esquema, a seguir:
Grandezas a comparar Q J

Números (por exemplo,


expressam centímetros) 213 215

A comparação dos dois números 215 e 213 permite concluir que


J é maior que Q.
A função dos instrumentos de medida (metro, fita métrica, cor-
rente de agrimensor, balança, litros, decilitros, etc.) é a de permitir as-
sociar a um objeto um número que será sua medida e a de, assim, fa-
cilitar a comparação dos objetos entre si. Não se poderia compreender
essa função dos instrumentos de medida se não se entendesse que ela se
apoia fundamentalmente na função de objeto intermediário. Logo, o
emprego de um mensurador tem como pano de fundo todos os proble-
mas ligados à composição das relações de ordem e das relações de igual-
dade, notadamente aqueles da transitividade e da absorção, a respeito
dos quais numerosas observações experimentais mostram que trazem
dificuldades mesmo em crianças de 8 ou 9 anos e mais.

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A criança, a matemática e a realidade

Daremos a respeito um único exemplo, ainda emprestado de


Piaget.
Vamos supor que se dá a uma criança objetos de forma parecida e
de peso diferente e que se lhe pede ordená-los do mais pesado ao menos
pesado. Se o número de objetos for suficientemente grande (por exem-
plo, seis objetos), o número de composições distintas é importante. Se
esses seis objetos forem assim designados A, B, C, D, E e F, ter-se-ão as
seguintes comparações possíveis:
AB, AC, AD, AE, AF, BC, BD, BE, BF, CD, CE, CF, DE, DF,
EF. Ou seja, um total de quinze comparações a respeito das quais a
criança terá dificuldades em ver as que são úteis, as que são inúteis, as
que já foram feitas, as que são esquecidas. A experiência mostra que a
criança não consegue seriar esses seis objetos, a não ser quando emprega
a transitividade da relação de ordem e, desse modo, “economiza” algu-
mas das comparações possíveis. Por exemplo, da constatação que A > F
e F > E, pode se deduzir que A > E, economizando assim uma compa-
ração. Mais precisamente, quando os objetos F e E já estão localizados
na série, o fato de descobrir que A é mais pesado que F permite localizar
A sem compará-lo com E.
Entretanto, essa capacidade de empregar a transitividade em uma
atividade de seriação de peso não é adquirida por algumas crianças antes
de 7 ou 8 anos e, por vezes, mais tarde ainda.

A APROXIMAÇÃO

Acabamos de ver que a função do instrumento de medida é a de


permitir associar a um objeto um número que será sua medida.
Mas a determinação desse número não é também algo tão fácil
quanto parece, ao menos para certas categorias de medidas.
No caso dos conjuntos de objetos isoláveis, não há problema para
os conjuntos pequenos e não há ali ambiguidade. Por exemplo, é fácil
determinar se há 22 ou 23 crianças na sala de aula: isto se deve ao cará-
ter “discreto” dos cardinais.
Contudo, a medida dos conjuntos de objetos isoláveis já acarreta,
em vários casos, os problemas de aproximação.

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Gérard Vergnaud

- Primeiro, no caso de conjuntos grandes, para os quais as opera-


ções de enumeração trazem problemas tais que se é obrigado a apontar
uma simples aproximação: por exemplo, o número de habitantes de
uma cidade.
- Da mesma forma, no caso de conjuntos efêmeros, para os quais
uma enumeração exata suporia uma visão simultânea, muitas vezes im-
possível de se realizar, do que está no conjunto, do que acaba de sair
dele, do que acaba de nele entrar: por exemplo, o número de crianças
presentes no pátio da escola no momento do fim das aulas (quer dizer,
em um momento em que há múltiplos vais e vens).
• OS COMPRIMENTOS E AS QUANTIDADES CONTÍNUAS
Com a medida dos comprimentos, o problema da aproximação
muda um pouco seu significado. De fato, no caso dos conjuntos de
objetos isoláveis, é sempre possível pensar que a melhoria das técnicas
de medida permitiria encontrar a medida exata de um conjunto ainda
que grande e efêmero.
Mas isto não ocorre com os comprimentos porque eles se referem
a grandezas contínuas.
Suponhamos que se queira medir com muita exatidão o com-
primento do quadro de giz. No caso de se dispor de uma trena onde
somente estão marcados os metros, será possível, por exemplo, afirmar:
o quadro tem “mais ou menos 2 metros”, ou “um pouco mais que 2
metros”, ou “menos de 3 metros”, ou “entre 2 e 3 metros”.
No caso de se dispor de uma trena onde estão marcados os decí-
metros, será possível afirmar: o quadro tem “mais ou menos 21 decíme-
tros”, ou “um pouco mais que 21 decímetros”, ou “um pouco menos
que 22 decímetros”, ou “entre 21 e 22 decímetros”.
A notar que os números expressos no primeiro caso (2 e 3) e no
segundo (22 e 23) não são de mesma ordem e este fato traz um incon-
veniente grave.
Já no caso de se dispor de uma trena onde estão marcados os cen-
tímetros, será possível empregar números ainda diferentes (respectiva-
mente 213 e 214, por exemplo). Com milímetros, 2.134 e 2.135, etc.
Em que ponto parar?
Certamente, decidir-se-á parar: no caso do quadro de giz, por
exemplo, a parada será nos centímetros ou nos milímetros. Em outros
casos, vai-se muito mais longe, até mícrons, quem sabe, além.

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A criança, a matemática e a realidade

Teoricamente não há fim! Portanto, se há um fim para a medida


dos conjuntos de objetos isoláveis, não há fim para a medida dos com-
primentos. Esse fato se deve ao caráter contínuo dos comprimentos, o
que vimos no capítulo anterior e, sobretudo, ao fato de que entre dois
comprimentos sempre se pode encontrar deles um intermediário.
- A primeira consequência é que a medida dos comprimentos leva
necessariamente à introdução de uma nova categoria de números, os
números decimais ou números com vírgula.
Na verdade, seria aberrante mudar a unidade de comprimento
em função da aproximação desejada e, como se fez no exemplo prece-
dente, de expressar-se em metros quando há um dígito significativo, em
decímetros quando há dois, em centímetros quando há três, etc.
A vírgula permite, entre outras coisas, acrescentar dígitos signifi-
cativos e melhorar a aproximação de uma medida sem mudar de unida-
de. Dessa forma, ela permite suprimir o inconveniente que ocorreria se
houvessem números de uma ordem de grandeza diferente conforme a
acuidade da medida escolhida. No exemplo precedente, evidentemente
as aproximações sucessivas serão assim escritas
2 - 2,1 - 2,13 - 2,134
ou, mais exatamente, designando x a medida do comprimento do qua-
dro de giz
2 < x < 3
2,1 < x < 2,2
2,13 < x < 2,14
2,134 < x < 2,135
- Isto tudo nos conduz à segunda consequência do caráter apro-
ximado da medida dos comprimentos e de outras grandezas contínuas,
a saber, a necessidade do enquadramento.
Se algum número, mesmo decimal, não expressa exatamente a
medida de um comprimento, é prudente adotar, ao mesmo tempo, o
número que se encontra certamente acima e aquele que se encontra
certamente abaixo. O exemplo da medida dos comprimentos, com as
diferentes possibilidades de aproximação que ela oferece, é um bom
exemplo desse fato; o da medida das superfícies é de um outro, ainda
mais eloquente.

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Gérard Vergnaud

• A MEDIDA DIRETA DAS SUPERFÍCIES E A NOÇÃO DE


ENQUADRAMENTO
Suponhamos que se queira estimar a medida de uma superfície
como esta

referência
e que para tanto se dispõem de várias grades de papel transparente cujas
subdivisões são de base quatro: um quadrado grande preenche quatro
quadrados médios, um quadrado médio, preenche quatro quadrados
pequenos20.
Para simplificar as coisas utilizaremos a mesma referência para a
aplicação das três grades.
Primeira grade

O leitor pode, antes, recorrer ao capítulo sobre a numeração se


20

tiver dificuldade em compreender o que segue.

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A criança, a matemática e a realidade

Segunda grade

Terceira grade

Peçamos a uma criança para aplicar a primeira grade e verificar o


número de quadrados que ficam inteiros ali dentro, e o número dos que
são suficientes para recobrir completamente a superfície. Evidentemen-
te, a área está compreendida entre esses dois números.
Vamos expressar esses números em base dez e, também, em base
quatro
base dez base quatro
7 < x < 24 13 < x < 123
Façamos a mesma coisa com a segunda grade
42 < x < 79 222 < x < 1.030

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Gérard Vergnaud

e com a terceira grade


209 < x < 271 3.101< x < 10.033
Que podemos notar?
1º. Que o enquadramento da medida de superfície é feito, para
cada grade, de forma mais complexa do que para a medida do compri-
mento do quadro de giz.
- Os números entre os quais a medida está compreendida não são
números imediatamente vizinhos um do outro como era o caso para o
comprimento do quadro de giz (entre 2 e 3 metros, entre 21 e 22 decí-
metros, entre 213 e 214 centímetros).
- A utilização de um ponto de referência faz pensar que uma
variação sensível dos números encontrados pode interferir segundo o
ponto de referência escolhido. É assim que se pode experimentar deixar
as crianças de uma turma escolher individualmente a disposição de sua
grade. Elas obterão, então, certamente, uma variedade de resultados
que bem ilustram os problemas colocados pela aproximação.
2º. Se considerados os números expressos em base quatro, vê-se
então, de uma forma menos trivial do que no caso do comprimento,
como funciona uma aproximação por enquadramentos sucessivos mais
e mais precisos.
Primeira grade 13 < x < 123

Segunda grade 222 < x < 1.030

Terceira grade 3.101 < x < 10.033


Façamos com que estes números façam referência à mesma unidade:
unidade: quadrado pequeno unidade: quadrado grande

1.300 < x < 12.300 13 < x < 123

2.220 < x < 10.300 22,2 < x < 100,33

3.101 < x < 10.033 31,01 < x < 100,33

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A criança, a matemática e a realidade

Pode-se bem notar, de uma linha à seguinte, como a margem de


incerteza se reduz progressivamente, sem que por isso seja anulada21.
• EXEMPLOS DE OUTRAS MEDIDAS DIRETAS
A medida direta das grandezas supõe que se disponha de um
meio “direto” de associar a um objeto um número que será sua medida
ou, ao menos, de atribuir-lhe uma aproximação, como acabamos de ver.
Muitas grandezas são suscetíveis de medida direta graças à existência de
um sistema de medidas completas que se prestam à aproximação direta.
É este exatamente o caso dos pesos.
As peças de peso que antigamente eram utilizadas, e que ainda
podem ser empregadas com proveito na escola, permitem, de fato e
sucessivamente, controlar a medida buscada em quilogramas, hecto-
gramas, decagramas, etc., por exemplo. As balanças modernas também
permitem ler diretamente o peso de um objeto, o que diminui o valor
do procedimento de enquadramento.
Esse é também o caso das capacidades: a capacidade de um re-
cipiente pode ser diretamente medida graças a um sistema de capaci-
dades calibradas (litros – decilitros – centilitros) cujo uso implica uma
atividade bastante laboriosa que tem seu interesse. Na verdade, o pro-
cedimento de aproximação se traduz então pelo fato de que é preciso
esvaziar completamente o recipiente entre duas aproximações de ordem
diferente. Vamos supor, por exemplo, que se está medindo a capacidade
de um vaso; fica estabelecido que esta capacidade esteja compreendida,
por exemplo, entre 2 e 3 litros se o enchimento do vaso acaba quando o
terceiro litro é despejado. É necessário então esvaziar o recipiente, enchê-
lo com 2 litros e prosseguir com os decilitros. Logo, estabelece-se que a
capacidade está compreendida entre 2 litros 8 decilitros e 2 litros 9 deci-
litros se o enchimento se completa quando o nono decilitro é despejado.
É preciso, então, esvaziar novamente o recipiente, etc.

Para os professores que não empregam a base quatro, é possível


21

naturalmente mostrar o que se passa em base dez, multiplicando por dezesseis


os números da primeira linha, e por quatro os da segunda, de modo a retornar
às unidades que são os quadrados pequenos. Mas a demonstração tem menos
beleza.
Primeira grade 112 < x < 432
Segunda grade 168 < x < 304
Terceira grade 209 < x < 271

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Gérard Vergnaud

• A DECOMPOSIÇÃO DO QUE É MEDIDO


Essas operações práticas de mensuração são importantes. Elas
permitem colocar em evidência, pela manipulação, o fato fundamental
de que uma medida é um número associado a um objeto.
Elas destacam também o fato de que é pela decomposição do
objeto medido, decomposição facilitada pela existência de um sistema
canônico de mensurantes (metros, decímetros, centímetros, etc.; litros,
decilitros, etc.; quilogramas, hectogramas, decagramas, gramas, etc.)
que se opera a medida direta das grandezas. Em outras palavras, é con-
tando elementos de ordem de grandezas diferentes, os quais compõem
o objeto medido, que se determina o número ao qual se pode associá-lo
e que será sua medida. Isso significa que é retornando ao procedimento
válido para a medida de conjuntos de objetos isoláveis (a contagem)
que se medem grandezas contínuas: contar os centímetros que formam
o comprimento do quadro de giz, contar os quadrados pequenos que
recobrem a superfície da forma antes aqui apresentada, contar os de-
cilitros ou os centilitros que podem ser colocados em um recipiente,
etc., e tantos outros exemplos que mostram que é retornando ao caso
“discreto” que se medem as grandezas “contínuas”; mais precisamente,
é enquadrando-os por um sistema de grandezas discretas. O sistema nu-
mérico decimal (ou todo outro sistema numérico com vírgula) traduz
no plano dos números essa necessidade de conter as grandezas contí-
nuas em um sistema de malhas cada vez mais finas, sem que qualquer
limite a esse afinamento seja a priori fixado.

AS MEDIDAS INDIRETAS E A NOÇÃO DE MEDIDA COM-


POSTA

Acabamos de examinar um meio direto de medir as superfícies


(as superfícies planas, ao menos, porque as coisas seriam menos simples
com superfícies curvas), ainda que, na verdade, não seja a esse meio que
se recorre habitualmente. Por exemplo, para medir a superfície de um
terreno para construção, não se esquadrilha o solo e este não é recoberto
por “metros quadrados” em cartolina.
O exemplo da área do retângulo é evidentemente o mais simples
para se fazer compreender como se procede indiretamente. Não é aqui
o lugar de desenvolver longamente as razões pelas quais a área de um

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A criança, a matemática e a realidade

retângulo é igual ao produto de seu comprimento por sua largura, mas


simplesmente de examinar o significado desse procedimento.
Este é um procedimento que evita o procedimento direto, o qual
poderia, em certos casos, revelar-se muito incômodo, tal como mostra o
exemplo do terreno para construção. Ele coloca bem em evidência que
a medida de uma superfície é o produto de um comprimento por uma
largura e que, então, trata-se de uma medida composta, redutível a uma
composição de medidas mais elementares.
Há muitas outras medidas compostas e nós a elas voltaremos no
capítulo sobre os problemas de tipo multiplicativo; mas é útil analisar
aqui, com algum detalhe, o caso da área do retângulo para compreender
que o meio assim acionado se vincula ao mecanismo geral do pensa-
mento que antes descrevemos a respeito da contagem e da adição, e que
vamos rever na conclusão.
Calculemos então a área do retângulo. Os meios utilizados são os
seguintes:
Primeiro método: medida direta pela aplicação de um quadri-
culado de unidades de área e contagem destas unidades: por exemplo,
189. Esse método esbarra em graves dificuldades quando o recobri-
mento não é exato, e é necessário então apelar para o procedimento de
aproximação antes examinado.
Segundo método: medida das duas dimensões do retângulo em
unidades de comprimento (evidentemente de mesma ordem que a uni-
dade de área com a qual se quer fazer a avaliação), e multiplicação desses
dois números.
Por exemplo: 9 x 21 = 189
A decomposição do objeto a ser medido não é mais aditiva, mas
multiplicativa.
Um retângulo não é outra coisa senão o resultado de uma certa
construção geométrica com quatro segmentos de reta e ângulos (a figura
é fechada e convexa, os ângulos são todos retos, os segmentos são iguais
dois a dois, e dois segmentos iguais estão em oposição um ao outro).
Em decorrência, a medida da superfície do retângulo deve ser
deduzida da medida dos objetos que serviram à sua construção. É o que
a fórmula traduz:

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Gérard Vergnaud

Medida de área = comprimento x largura


(a medida dos ângulos não intervém, neste caso, porque eles são retos;
mas ela intervém, por exemplo, na área do paralelepípedo).
Vamos resumir isto em um esquema:
objetos
construção

medidas 9 21 multiplicação 9 x 21 = 189

medida dos comprimentos


medida direta das superfícies
Reencontramos os dois planos característicos de todo homomor-
fismo, aquele dos objetos geométricos e aquele de suas medidas.
Há uma operação, no plano dos objetos, que é a construção do
retângulo; uma operação no plano numérico, que é a multiplicação das
medidas.
Há dois tipos de operações de medidas, um para os comprimen-
tos (flecha fina), o outro para as superfícies (flecha espessa). Os dois
meios diferenciados acima retornam:
- seja para construir primeiro o objeto e, depois, para tirar a me-
dida do objeto composto (medida direta);
- seja para, primeiro, tomar as medidas dos elementos e, depois,
para compor estas medidas (medida indireta). A decomposição do re-
tângulo em linhas e colunas de quadrados iguais, técnica normalmente
empregada para ensinar a fórmula da área do retângulo às crianças, serve
justamente para levá-las a compreender a equivalência desses dois meios.
*
Porém, outra observação se impõe; é que a noção de área não é
nada mais nada menos que o produto de dois comprimentos: de fato,
um “metro quadrado” não é apenas a área de um quadrado de um me-
tro de lado; é também o produto de um metro por um metro.

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A criança, a matemática e a realidade

Tomemos outro exemplo para tornar bem claro este ponto: “Se-
jam 3 moças e 4 moços que resolvem dançar. Cada moça que dançar
com cada um dos moços e reciprocamente. Quantos casais de dançari-
nos possíveis serão assim formados?”.
Resposta: 12 casais.
Que foi feito? Multiplicou-se o número de moças pelo número
de rapazes e obteve-se o número de casais.
A tabela cartesiana, abaixo, torna compreensível a analogia com
o problema da área do retângulo. A, B, C representam as moças; L, M,
N, O, os rapazes; os casais estão nas caselas.
L M N O
A AL AM AN AO
B BL BM BN BO
C CL CM CN CO
Assim sendo, o conjunto dos casais é o conjunto produto do con-
junto das moças e do conjunto dos rapazes (produto cartesiano) e o
número dos casais é o produto do número das moças pelo número de
rapazes.
Da mesma forma, a dimensão área é a dimensão produto da di-
mensão largura e da dimensão comprimento; e a área do retângulo é o
produto da medida da largura pela medida do comprimento. Portanto,
as medidas de superfície são expressas pelas unidades que são o produto
das unidades de comprimento:
Assim como 1 moça x 1 moço = 1 casal (aqui há, tão somente,
um abuso de linguagem)
1 metro x 1 metro = 1 metro quadrado.
As áreas não são as únicas medidas compostas: os volumes tam-
bém o são, e poderíamos repetir para a medida direta e para a indireta
dos volumes, o que acabamos de dizer para a medida direta e para a
indireta das superfícies. Isto não é indispensável. Recordemos simples-
mente uma dificuldade suplementar, que vem da existência de um du-
plo sistema de medidas para volumes comuns: aquele dos litros, deci-
litros, centilitros, decalitros, hectolitros, etc.; e o dos metros cúbicos,
decímetros cúbicos, centímetros cúbicos, etc. Somente o último sis-

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Gérard Vergnaud

tema mostra claramente que a dimensão volumétrica é o produto de


um comprimento, por um comprimento e por um comprimento, ou,
ainda, de uma área por um comprimento.
Existem outras tantas formas de composição multiplicativa das
medidas. A maior parte delas não são concernentes ao ensino básico, e
são encontradas, sobretudo no ensino da física. Sabe-se, por exemplo,
que a noção de trabalho é analisada como o produto de uma força por
um comprimento.
Aliás, os físicos imaginaram uma forma particular de cálculo para
esse problema da composição multiplicativa das medidas, a análise di-
mensional.
Não seria necessário falar desse assunto nesta obra se não encon-
trássemos no ensino básico problemas da mesma natureza. Acabamos
de ver o exemplo das áreas e dos volumes que são relativamente simples.
Há outros deles que o são menos, como das noções de velocidade, de
massa volumétrica, etc. O capítulo sobre os problemas de tipo multipli-
cativo nos permitirá voltar a esse assunto.

A ESTRUTURA ALGÉBRICA DAS MEDIDAS

O capítulo precedente e este destacam duas propriedades impor-


tantes das medidas: a de serem elas ordenáveis e a de poderem ser adi-
cionadas.
Estas propriedades das medidas apoiam-se essencialmente nas
propriedades homomorfas dos objetos, as quais podem ser resumidas
na forma seguinte:
Relação de ordem

objetos A B

medidas a = med (A) b = med (B)


Se A é maior que B, então a é maior que b e reciprocamente. O
que se pode escrever com mais rigor:
Quaisquer que sejam A e B, A > B ⇔ med (A) > med (B)

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A criança, a matemática e a realidade

Adição

objetos A B C

medidas a = med (A) b = med (B) c = med (C)


Se os objetos são mensuráveis, é possível compô-los de tal sorte
que, se C é o resultado da composição de A e de B, então c é a soma de
a e de b.
Se designar-se por ⊕ a operação de composição dos objetos entre
si, escreve-se então com mais rigor:
Quaisquer que sejam A, B, med (A B) = med (A) + med (B)
Na verdade, isto não é de qualquer forma suficiente para carac-
terizar a noção de medida e os matemáticos definiram duas outras pro-
priedades:
• a primeira é a de que as medidas são sempre positivas (ou nulas)
Este problema não se colocou para nós até agora, uma vez que
não nos havíamos defrontado com a questão dos números negativos.
Vamos abordá-la no capítulo IX. Mas parece bastante claro que não
saberíamos falar de um conjunto cujo cardinal seria negativo, de um fio
elétrico de comprimento negativo ou, ainda, de um peso negativo, etc.
Vamos, no entanto, escrever imediatamente essa exigência sob
uma forma mais rigorosa:
Qualquer que seja A, med (A) 0

• a segunda é a de que existe um objeto de medida nulo


Este problema não pode ser muito analisado em toda sua impor-
tância neste livro. Contentemo-nos em dizer que o conjunto teórico cha-
mado de conjunto vazio é um objeto cuja medida é 0, da mesma forma
que os objetos teóricos sem comprimento, sem superfície, sem peso, etc.,
têm como medida 0.
Esta exigência é assim escrita:
Existe E, med (E) = 0

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Gérard Vergnaud

Mas voltemos às duas primeiras propriedades: relação de ordem e


adição.
As propriedades da relação de ordem foram examinadas no capí-
tulo sobre as relações binárias e, assim, vamos nos contentar simples-
mente em recapitulá-las:
- antissimetria
- transitividade
- antirreflexividade22

Quanto às propriedades da adição das medidas, vamos expô-las


brevemente:
• comutatividade
Pode-se sempre calcular a soma das medidas de dois objetos A e
B, seja acrescentando a medida de B à de A, seja acrescentando a medi-
da de A à de B. O resultado é o mesmo.
Quaisquer que sejam A e B, med (A) + med (B) = med (B) + med (A)
• associatividade
Pode-se sempre calcular a soma das medidas de três objetos A, B
e C, seja acrescentando a medida de C à soma das medidas de A e de B,
seja acrescentando à medida de A a soma das medidas de B e de C. O
resultado é o mesmo.
Quaisquer que sejam A, B e C,
[med (A) + med (B)] + med (C) = med (A) = [med (B) + med (C)]

Não podemos esquecer que, neste livro, estamos considerando


22

como relação de ordem somente a relação de ordem estrita. A relação de or-


dem ampla, ao contrário, é reflexiva.

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A criança, a matemática e a realidade

• o elemento neutro
Existe um objeto E cuja medida é nula e a adição desta medida
nula à medida de um outro objeto A qualquer remete à medida deste
objeto A.
Qualquer que seja A, med (A) + med (E) = med (A)
Se os números que representam as medidas A, B e C forem repre-
sentados por a, b, c, as propriedades acima podem ser escritas de forma
mais simples, como segue
• comutatividade
Quaisquer que sejam a e b, a+b=b+a
• associatividade
Quaisquer que sejam a, b e c, (a + b) + c = a + (b + c)
• elementos neutro
Qualquer que seja a, a+0=a

Examinaremos a noção de grupo em um próximo capítulo. Des-


de já, entretanto, é possível notar que as medidas não constituem um
grupo. Isto se deve ao fato de que as medidas são positivas e, por causa
disso, não podem ter inverso.
Por outro lado, a adição reiterada de uma mesma medida permite
definir a multiplicação de uma medida por um número, como será vis-
to no capítulo sobre problemas de tipo multiplicativo e, assim, revelar
novas propriedades das medidas.

163

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CAPÍTULO VIII

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A NUMERAÇÃO E
AS QUATRO OPERAÇÕES

NÚMERO E ESCRITA DO NÚMERO

Não se deve confundir o número com sua representação escrita.


O número nove pode ser escrito de diversas maneiras: 9 em escrita ára-
be, IX em escrita romana, 21 em base quatro, etc. Todas estas diversas
escritas representam, em pé de igualdade, o mesmo número com todas
as suas propriedades (cardinal de conjuntos de nove elementos, número
ímpar, múltiplo de três, sucessor de oito, etc.). O número é um concei-
to do qual existem vários sistemas de escrita possíveis. A numeração de
posição de base dez é um desses sistemas.
Examinamos nos dois capítulos precedentes certas dificuldades
encontradas pelas crianças na aquisição da noção de número; elas se si-
tuam, essencialmente, no plano do conceito. Porém, elas se combinam
rapidamente com dificuldades próprias do sistema de numeração e com
as operações que o acompanham.
Ao contrário, o sistema de numeração é um suporte da conceitu-
alização, e seria, por exemplo, uma falta de bom senso falar dos grandes
números ou dos números decimais sem o amparo de sua representação
escrita. Mesmo durante os dois primeiro anos do ensino básico, quando
ocorrem as primeiras aquisições das estruturas numéricas, a escrita do
número é quase imediatamente associada ao próprio número, de tal
forma que, com frequência, um é confundido com o outro.
Não obstante, é preciso distingui-los com cuidado no caso de se
querer estudar com profundidade os diferentes obstáculos a serem ali
superados.
Para esclarecer esse aspecto, vamos analisar os diferentes planos
e as diferentes operações em jogo na aquisição da adição de números
inteiros.
Distinguiremos quatro planos:
1. O plano dos objetos.
2. O plano do conjunto dos objetos.

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Gérard Vergnaud

3. O plano dos cardinais de conjuntos.


4. O plano das representações escritas desses números.
Objetos materiais Conjuntos Cardinais Números escritos

A a an ao
B b bn bo

C=A B c=a+b cn + 1 cn c o=

a n ...a o b n ...bo

sinal de união de conjuntos


sinal de soma dos números

sinal de regra da adição de números


escritos em numeração de posição
No exemplo dado no início deste capítulo, o número nove situa-
se no plano dos cardinais, enquanto que a escrita 9 situa-se no plano das
representações escritas (ao = 9; an = 0, qualquer que seja n ≥ 1). Em base
quatro, o número nove seria escrito 21 (ao = 1, a1 = 2; an = 0, qualquer
que seja n ≥ 2).
É evidentemente no plano das representações escritas dos números
que se situa a regra da adição, a qual permite encontrar, a partir de dois
números escritos em numeração de posição e em base dez, o número
correspondente à sua soma (escrita igualmente em numeração de posição
e em base dez).
Por exemplo:
30.742
6.479
37.221
Porém, esta regra de adição (com a notação para distingui-
la da soma cuja notação é +) apoia-se em conceitos que se colocam em
outros planos.
Em cada um desses planos encontram-se não somente elemen-
tos (objetos, conjuntos, cardinais), mas também relações e operações
envolvendo esses elementos. Além disso, existem relações entre os di-
ferentes planos.

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A criança, a matemática e a realidade

Por seu lado, a regra da adição se apoia, ao mesmo tempo:


• em operações internas a cada uma dos planos identificados acima:
- ao plano dos cardinais, a soma
- ao plano dos conjuntos, a união disjunta (ou união dos conjun-
tos entre si)
• e em operações que permitem passar de um plano ao outro:
- do plano dos objetos àquele dos conjuntos, o agrupamento
- do plano dos conjuntos àquele dos cardinais, a medida ou a
contagem
- do plano dos cardinais àquele das representações escritas, a es-
crita.
As operações sobre os objetos consistem, em sua essência, em
agrupar os objetos em uma mesma região do espaço para formar uma
coleção, em colocá-las no interior de uma mesma fronteira fechada ou,
simplesmente, em considerá-los mentalmente como parte de um mes-
mo conjunto.
Elas consistem também em agrupar em uma única coleção (ou
único conjunto) os objetos de duas coleções (ou de dois conjuntos).
Logo, as operações são analisadas mais em termos de passagem do
plano dos objetos ao dos conjuntos, do que como operações internas ao
plano dos objetos.
Matematicamente, as duas categorias de operações que acabamos
de distinguir são, por um lado, “aplicações de um conjunto em outro”,
o que, em geral, se marca sob a forma funcional y = f(x) e, de outro, são
“leis de composições internas binárias a um conjunto”, o que se marca,
em geral, sob a forma a x b = c.
Na aprendizagem da regra da adição, três aplicações são, ao mes-
mo tempo, colocadas em jogo:
a (para agrupamento) que aplica o conjunto de objetos
no conjunto dos conjuntos
m (para medida) que aplica o conjunto dos conjuntos no
conjunto dos cardinais
e (para escrita) que aplica o conjunto dos cardinais no
conjunto dos números escritos

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Gérard Vergnaud

e três leis de composições binárias:


a união que compõe conjuntos entre si
a soma que compõe cardinais entre si

a regra da adição que compõe representações


escritas entre si
Já vimos, no capítulo sobre o número e a medida, que a aplicação
m é um homomorfismo do conjunto dos conjuntos no conjunto das
medidas:
Quaisquer que sejam A e B, desde que A e B sejam disjuntos,
m (A B) = (A) + m (B)
A aplicação e é igualmente um homomorfismo do conjunto dos
cardinais no conjunto das representações escritas:
Quaisquer que sejam a e b:
e (a + b) = e (a) e (b)
A regra da adição permite encontrar a representação escrita da
soma de dois números, quaisquer que sejam eles.
Designemos por n a aplicação composta dos dois homomorfis-
mos precedentes:
n=e m
ou ainda
n (x) = e (m (x))
É fácil mostrar que n é também um homomorfismo, sempre com
a restrição de que A e B sejam disjuntos. De fato, as duas igualdades
precedentes permitem, em se fazendo
a = m (A) e b = m(B)
obter
e (m (a B)) = (m (A)) e (m (B))
isto é
n (A B) = n (a) n (B)
O que se lê da maneira seguinte:
Quaisquer que sejam os conjuntos A e B, desde que sejam eles
disjuntos, a representação do cardinal da união é o resultado da com-

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A criança, a matemática e a realidade

posição, pela regra da adição, das representações dos cardinais dos con-
juntos A e B.
Por mais complexo que isto possa parecer ao leitor desavisado,
é esta aplicação composta n que é diretamente acionada quando da
aprendizagem do sistema de numeração, quando o reagrupamento dos
objetos em pacotes de dez, e dos pacotes de dez em pacotes de dez paco-
tes, etc., é colocado em paralelo com o código da numeração de posição
(coluna das unidades, coluna das dezenas, coluna das centenas, etc.). É
este homomorfismo composto que é utilizado quando a regra da adição
(juntam-se unidades a unidades, dezenas a dezenas, etc.; obtém-se um
resto se o número encontrado ultrapassa dez, etc.) é colocada em parale-
lo com as operações sobre os objetos, sobre os pacotes de objetos e sobre
os pacotes de pacotes, etc.
Eis um exemplo em base dez:
Conjuntos Representação escrita

dezenas unidades

3 2

x 1 9

O agrupamento pontilhado corresponde 2 + 9 = 11


à reserva de uma dezena. Uma unidade Ponho uma
fica de fora de qualquer agrupamento. unidade e
resta uma
dezena
Além dos quatro pacotes existentes, 1+4
há o pacote obtido pelo reagrupamento
das unidades (reserva). 5 1

171

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Gérard Vergnaud

E um exemplo em base três:


Conjuntos Representação escrita

pacotes de pacotes unidades


pacotes
1 0 2

2 2

O agrupamento pontilhado corresponde


2+2=1
à reserva de um pacote de três. Sobra uma
Ponho uma
unidade fora de qualquer agrupamento.
unidade e
resta um
Além dos dois pacotes existentes, há o pacote
2+1=10
correspondente à reserva. Isto permite fazer
Ponho 0
um pacote de pacotes (pontilhado ..................).
e resta
um
Além do pacote de pacotes existente, há o 1+1
pacote de pacotes correspondente à reserva.
2 0 1

O problema fundamental da aprendizagem da numeração e da


regra da adição reside justamente na relação entre o número escrito e
a quantidade que ele representa, e na relação entre a regra da adição e
as operações que ela representa sobre os cardinais e sobre os conjuntos.
As diversas técnicas de ensino da numeração devem então se propor a
fazer compreender esta relação entre as operações sobre os objetos e os
conjuntos, e as operações sobre os símbolos numéricos. É mérito da
numeração em bases diversas e, sobretudo, em bases pequenas (base
três, base quatro) o de fazer bem compreender o paralelismo entre os
objetos e o algarismo das unidades, entre os pacotes de primeira ordem

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A criança, a matemática e a realidade

e o primeiro algarismo à esquerda do algarismo das unidades, entre os


pacotes de segunda ordem e o algarismo seguinte à esquerda, etc.
Este paralelismo é ainda mais importante para a regra da adição,
em si.
As bases pequenas permitem bem compreender as operações em
jogo, sem que haja a interferência da dificuldade suplementar de lidar
com um número muito grande de objetos. A formação de agrupamentos
de segunda e de terceira ordem não acarreta qualquer dificuldade em base
dois, três ou quatro. Ela é impossível em base dez para a maior parte das
crianças do ciclo preparatório23 e do primeiro ano da escola elementar.
Por outro lado, o problema da tabuada da adição é inexistente
em bases pequenas; entretanto, ele não deve ser negligenciado em base
dez, para números superiores a quatro. É frequente que a ênfase seja
colocada mais sobre a própria tabuada em si e sobre a aprendizagem
decorada dessa tabuada do que sobre a própria regra da adição, a qual é,
entretanto, mais importante... e mais interessante para as crianças.
Uma outra vantagem da utilização de diversas bases para o ensino
da numeração e da adição está no fato de que as regras essenciais são as
mesmas em todas as bases; assim, elas aparecem, sobretudo, como re-
gras do sistema da numeração de posição, independentes do conteúdo
ao qual elas se aplicam. As únicas coisas que variam de uma base para
outra são a própria base e a tabuada da adição, a qual, é claro, jamais
deve ser ensinada às crianças como algo a decorar. Há sempre tempo,
quando a regra da adição é bem compreendida, de privilegiar a base
dez e de fazer, então, as crianças memorizarem, por meio de exercícios
diversos, a tabuada de adição correspondente.

OS EXERCÍCIOS E OS MATERIAIS EMPREGADOS NA


APRENDIZAGEM DA NUMERAÇÃO

Diante do grande número de materiais existentes para a apren-


dizagem da numeração, se é muitas vezes tentado a fazer a pergunta:
qual é o melhor? A análise anterior nos leva a dizer que é no plano das

No sistema de ensino francês, o curso preparatório (CP) atende


23

regularmente crianças de 6 anos de idade aproximadamente, antecedendo a


entrada no primeiro ano da escola elementar. N. T.

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Gérard Vergnaud

estruturas que se situa o problema essencial; em consequência, é no


plano dos homomorfismos que ocorre a analogia das estruturas entre
diferentes materiais.
Nada é mais fecundo, no plano pedagógico, do que exercícios
de passagem de um material a outro, ou de uma representação à outra.
Passar de um material ao número escrito correspondente e, reciproca-
mente, passar de um desenho de um conjunto a um material A, de um
material A a um material B, de um material B ao número escrito, e do
número escrito a um desenho de um conjunto é um meio seguro de
fazer as crianças compreenderem, sem dificuldade, o sistema de nume-
ração. Especialmente, é um meio de ultrapassar o limite aberrante dos
números com dois algarismos, o que constitui mais um entrave do que
uma ajuda à compreensão do princípio fundamental da numeração:
isto é, que um mesmo algarismo representa um número n vezes maior,
em base n, se ele estiver colocado na segunda coluna à esquerda, do que
o colocado na coluna das unidades; ainda, n vezes maior se estiver colo-
cado na terceira coluna, e assim por diante. O fato de que este princípio
se aplique a toda translação de uma posição em direção à esquerda não
pode ser explicado, a não ser no caso de números de dois algarismos.
O que acaba de ser dito para o sistema de numeração é igualmente
verdadeiro para a adição e, ainda, tem-se a vantagem, neste caso, de a adi-
ção “ser explicada” por exercícios paralelos com diferentes materiais.
Passemos em revista alguns materiais possíveis:
- objetos, pacotes, pacotes de pacotes, etc., ou ainda objetos, en-
velopes, caixas, caixas de papelão...;
- objetos amarrados com barbantes, assim formando agrupamen-
tos de primeira ordem, de segunda ordem, etc., e se for o caso,
com barbantes de cores diferentes para destacar as diferentes or-
dens dos agrupamentos;
- desenhos ou cruzes desenhadas e circundadas por linhas de cores
diferentes para destacar as diferentes ordens dos agrupamentos;
- material de encaixes, permitindo formar barras, placas, cubos,
etc.;
- material de bases múltiplas, pronto, indicando os desenhos das
unidades, barras, placas e cubos.

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A criança, a matemática e a realidade

O material de bases múltiplas tem a vantagem de permitir uma


denominação simples, isomorfa ao vocabulário da base dez:
barra de placa de cubo de
unidade barra placa cubo cubo cubo cubo etc.

unidade dezena centena milhar dezena de centena de milhar de etc.


milhar milhar milhar ou
milhão
O material de encaixes que, a partir das unidades, permite à crian-
ça construir diferentes ordens de grandeza (barra, placa, cubo), permite
também materializar a reserva. Contudo, ele se torna de manejo muito
difícil no caso dos números grandes e pode ser então substituído, com
vantagem, por um material de bases múltiplas pronto, mediante o qual
a troca de n unidades por uma barra, de n barras por uma placa, etc.,
substitui o agrupamento por encaixe.
Os exercícios de passagem de um material ou de uma representa-
ção a outra podem ser esquematizados da forma seguinte:
material de bases múltiplas

objetos e pacotes numeração de posição

desenhos e representações
de conjuntos

As flechas representam os possíveis exercícios de passagem.


Eis um exemplo de base três: pegar uma placa, duas barras e uma
unidade, escrever o número correspondente, pegar a quantidade de pa-
litos de fósforo correspondentes a esta quantidade, desenhar a repre-
sentação do conjunto correspondente, colocar esta representação em
relação com o material de bases múltiplas de partida.

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Gérard Vergnaud

c p b u

1 2 1

Pode-se também fazer com que seja estabelecida uma correspondên-


cia biunívoca entre um conjunto de objetos e um conjunto de unidades
do material de bases múltiplas; em seguida, separadamente, mas em uma
mesma base, fazer compor, de um lado, reagrupamentos de objetos em
saquinhos, caixas, etc., e, de outro, das unidades em barras, placas, etc.;
depois, fazer constatar a correspondência saquinho-barra, caixa-placa.
Todos esses exercícios são mais fáceis com bases pequenas, mas
fica evidente que eles também devem ser feitos com a base dez. De fato,
uma vez compreendido o princípio da numeração, é necessário organi-
zar um trabalho mais aprofundado com a base dez.
A leitura dos números escritos e o ditado de números são exercí-
cios de passagem de uma representação escrita para uma representação
fonética e, reciprocamente. Esses exercícios, que não têm qualquer sen-
tido para outras bases exceto para a base dez, são intermediados com
vantagem pelo uso do material de bases múltiplas, como vimos aci-
ma: (barra-dezena; placa-centena; cubo-milhar, barra de cubo-dezena
de milhar, etc.). Porém, isto não suprime outras tantas dificuldades do
vocabulário próprio aos números, como do 11 ao 19, dos números 70
a 9924, aos números que contêm zeros intercalados, etc. Para dar apenas
um exemplo, 1789 é lido freqüentemente como “dix sept cent quatre
vingt neuf ”.25 Esta leitura traduz o emprego de regras de leitura bastan-

O caso dos nomes dos números de 70 a 99 é típico da língua fran-


24

cesa, não da língua portuguesa. N. T.


25
Literalmente traduzido para o português como dezessete centos,
quatro (vezes) vinte, e nove. Optamos por conservar este exemplo em fran-
cês, lembrando que, em português, “setecentos” é o exemplo correspondente.
Também, na sequência, foi feita a tradução literal dos exemplos para o portu-
guês para deixar mais claro ao leitor a argumentação do autor. N. T.

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A criança, a matemática e a realidade

te arbitrárias: algumas são aditivas – “dix-sept” (dez e sete) ou “quatre-


vingt-neuf ” (oitenta e nove); outras são multiplicativas – “dix sept-cents”
(dez e sete vezes cem) ou “quatre-vingts” (quatro vezes vinte). A mudança
arbitrária da regra constitui um obstáculo real para a criança.
A comparação dos números escritos pede, como a adição, exercí-
cios sistemáticos. Entre 13 e 31, qual é o número maior? E entre 21 e
13, ou, ainda, entre 102 e 31, 110 e 23, 103 e 110, etc.?
O fato de insistir, como acabamos de fazer, em exercícios de pas-
sagem de uma representação a outra não significa que se deva suprimir
exercícios internos a uma dada representação dos números: comparação
de números, adições e outras operações. Entretanto, com frequência, é
dada uma ênfase excessiva a esses exercícios, o que impede, às vezes, as
crianças a deles conservar sua significação útil.

ADIÇÃO E SUBTRAÇÃO

A adição e a subtração não seriam bem ensinadas se não fosse


feita uma referência frequente a situações implicando essas operações.
Além da situação aditiva fundamental, que expusemos no início deste
capítulo, existem outras numerosas situações que são analisadas em de-
talhe no capítulo sobre os problemas de tipo aditivo. Da mesma forma,
existem dispositivos materiais que dão um sentido muito simples às
operações aditivas +1, -1, -n, +10, -10. São, especialmente, as réguas
graduadas ou as tabelas de números e os deslocamentos nestes disposi-
tivos. Eis dois exemplos:
régua graduada (base cinco):
0 1 2 3 4 10 11 12 13 14 20 21 22 23 24 30 ...

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Gérard Vergnaud

tabela (base dez)


1 2 3 4 5 6 7 8 9

10 11 12 13 14 15 16 17 18 19

20 21 22 23 24 25 26 27 28 29

30 31 32 33 34 35 36 37 38 39

40 41 42 43 44 45 46 47 48 49

50 51 52 53 54 55 56 57 58 59

60 61 62 63 64 65 66 67 68 69

70 71 72 73 74 75 76 77 78 79

80 81 82 83 84 85 86 87 88 89

90 91 92 93 94 95 96 97 98 99
Tomemos o exemplo da tabela: a operação +1 corresponde a um
deslocamento de uma casela à direita quando este deslocamento é pos-
sível sem que se saia da tabela, a operação -1, a um deslocamento de
uma casela à esquerda. Quando tais deslocamentos não são possíveis, é
preciso evidentemente recorrer a mudanças de linha cuja significação
deve ser explicada à criança.
As operações +10 e -10 correspondem também a deslocamentos
respectivos de uma casela para baixo e de uma casela para cima.
Vamos simbolizar essas operações pelas flechas:
+1

-1
+10

-10

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A criança, a matemática e a realidade

uma sequência de flechas (deslocamentos) corresponde a uma sequên-


cia de operações numéricas, por exemplo:

+11

+21

-2
Pode-se assim organizar com números pequenos (particularmente
no CE126) toda uma série de jogos com deslocamentos sobre a tábua:
- dada a casela de partida, assim como a sequência dos desloca-
mentos, encontrar a casela de chegada;
- dadas as caselas de partida e de chegada, encontrar a sequência
dos deslocamentos e interpretá-la em termos numéricos;
- dadas a casela de chegada e a sequência dos deslocamentos, en-
contrar a casela de partida;
- dada a sequência dos deslocamentos, encontrar uma sequência
equivalente. Encontrar a mais curta;
- mostrar que a composição dos deslocamentos é comutativa, as-
sociativa, que há um elemento neutro (“ficar no lugar”) e que todo des-
locamento tem um inverso, chegando a uma interpretação adequada;
- interpretar numericamente uma sequência de deslocamentos e
reciprocamente; mostrar também as propriedades de grupo das opera-
ções aditivas (ver o capítulo XI sobre o grupo).
Entretanto, esses exercícios com um apoio espacial (régua, tabela
e deslocamentos) ficariam formais se não fossem eles próprios postos
em relação com situações de tipo aditivo. Mesmo com crianças das sé-
ries inicias do ensino básico é possível e necessário abordar várias classes
das situações expostas no próximo capítulo.
Veremos, por exemplo, que, em certos casos, a subtração corres-
ponde a operações tão naturais quanto a adição (tirar, perder, sair...).
Isto não significa, no entanto, que a regra operatória da subtração seja
tão fácil quanto a da adição, mesmo quando se procede, para as reser-
vas, de uma forma exatamente inversa à da adição: para ter unidades

No sistema escolar francês, o CE1 (curso elementar 1) atende


26

crianças de 7 anos aproximadamente. N. T.

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Gérard Vergnaud

suficientes, desfaz-se um grupo (ou se quebra uma barra do material de


bases múltiplas), etc. Mais adiante, voltaremos a esse procedimento.
A hierarquia das dificuldades é bastante conhecida: ausência de
reserva, reserva em uma coluna isolada, reserva em duas colunas suces-
sivas, reserva com zero na coluna da reserva, etc.
Para superar estas diferentes dificuldades, a ajuda do material de
bases múltiplas, mais precisamente de pequenas bases, é de grande valia.
Uma única tabuada é necessária para as adições e subtrações, uma
para cada base naturalmente, sob a forma de uma tabela cartesiana,
como nos dois exemplos abaixo:
base 3 base 10

+ 0 1 2 + 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9
0 0 1 2 0 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9
1 1 2 10 1 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
2 2 10 11 2 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
3 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
4 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
5 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14
6 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
7 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
8 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17
9 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18
Essas tabuadas, que podem ser construídas facilmente pelas pró-
prias crianças, não devem jamais ser aprendidas de cor, com exceção da
tabuada de base dez. Porém, esta memorização deve ser organizada por
exercícios apropriados e somente quando o professor assim o julgar. O
melhor é pendurar essas tabuadas na sala de aula, de forma bem visível,
para que as crianças possam a elas se reportar; ou, ainda, que cada crian-

180

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A criança, a matemática e a realidade

ça disponha permanentemente de suas próprias tabuadas. É evidente


que somente a de base dez é útil ao final, mas é fecundo para as crianças
trabalhar, no início, com uma ou duas bases pequenas (base três e base
quatro, por exemplo).

• A SUBTRAÇÃO
Uma explicação suplementar é necessária para a regra da subtração.
A forma corrente de operar é a de acrescentar a reserva ao algaris-
mo a subtrair no passo seguinte, como no exemplo a seguir:
62
-38
24
“Tirar oito de dois não dá, eu faço oito menos doze, acho quatro
e sobra um. Um com três é quatro. Tiro quatro de seis, e acho dois.”
A regra que consiste em acrescentar a reserva ao algarismo das
dezenas do número a ser subtraído é incompreensível para a grande
maioria das crianças pequenas. Proceder desse modo significa renunciar
a fazê-las “compreender” a regra da subtração.
Explicá-la pressuporia que se demonstre que tirar 1 do operando
6 e acrescentar 1 ao operador 3 resulta no mesmo, o que jamais é feito
na escola. Em todo o caso, é uma explicação que está fora do campo de
compreensão das crianças às quais as bases da subtração são ensinadas.
É preciso então proceder de outra forma.
A mais simples é fazer como para a adição, mas com um proce-
dimento inverso, trocando uma barra ou um grupo de primeira ordem
pelas unidades, uma placa ou um grupo de segunda ordem pelas barras
ou por grupos de primeira ordem, etc., o que resulta nas seguintes es-
critas sucessivas:

181

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Gérard Vergnaud

barras unidades
1. 6 2
-3 8

6 Eu quebro uma barra, me sobram


2. 5 12 cinco, e daí fico com doze unidades
-3 8
doze menos oito
2 4 igual a quatro
oito tirado de doze

cinco menos três


igual a dois
três tirado de cinco

Este é um método bastante pesado e que tem seus inconvenien-


tes, sobretudo quando há reservas sucessivas. Porém, é o método mais
significativo para as crianças, o que remete a operações materiais as mais
simples. É, de longe, o preferido quando comparado com o método
habitual inventado para os adultos calcularem e que é muito sofisticado
para as crianças que iniciam a escola básica.
Mesmo sob essa forma, esse método ocasiona dificuldades que
podem persistir em certas crianças até as outras séries da escola básica,
e mesmo adiante.
Alguns pedagogos preconizam a substituição da subtração pela
adição com vazios, isto é, por uma operação arranjada como uma adi-
ção onde constam o operando e o resultado:
38
+. .
62
Essa forma tem vantagens e permite exercícios úteis, mas ela su-
bordina totalmente a subtração à adição, minimizando assim o fato de
que existe também uma subtração sui generis. Sendo assim, ela pode
perturbar a codificação operatória de certas classes de problemas.

182

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A criança, a matemática e a realidade

De nossa parte, propomo-nos a manter o ensino da operação de


subtração, o que em nada impede, aliás, de realizar “adições com va-
zios”, particularmente em certas situações que a isto bem se prestam,
como na ação de dar troco:
39,25
+....
50,00

MULTIPLICAÇÃO E DIVISÃO

O que é verdadeiro para a adição e a subtração, a saber, que as


operações sobre as representações escritas dos números são diferentes
das operações sobre os próprios números, embora nelas se apoiem, é
evidentemente verdadeiro para a multiplicação e a divisão.
Partir de um material concreto para ensinar a multiplicação leva
obrigatoriamente a introduzir a multiplicação como adição reiterada de
uma mesma quantidade e, em consequência, a fazer do multiplicando
uma medida, e do multiplicador um simples operador sem dimensão fí-
sica.
3 doces
3 doces
+ 3 doces quatro vezes 3
+ 3 doces x4 x4
+ 3 doces 12
12 doces
12 doces
3 representa uma medida
4 representa um número sem dimensão
Essa falta de simetria entre multiplicando e multiplicador faz
com que os números que podem ser colocados no multiplicando e no
multiplicador não sejam os mesmos nas diversas etapas do ensino da
multiplicação. Embora se possa colocar de pronto números de muitos
algarismos no multiplicando, não se pode usar no multiplicador senão
operadores simples, de um algarismo. Também, quando a criança já
trabalha com números com vírgula, a presença destes no multiplicando
não traz qualquer problema, mas traz ao multiplicador. Uma dessimetria

183

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Gérard Vergnaud

análoga ocorre, na divisão, para o dividendo, o divisor e o quociente: o


dividendo e o quociente representam, a maior parte das vezes, medidas,
o divisor um operador sem dimensão. Essa questão será esclarecida no
capítulo XI sobre os problemas de tipo multiplicativo.
No entanto, a comutatividade da multiplicação no plano numé-
rico permite realmente inverter o papel do multiplicador e o do multi-
plicando. Mas são necessárias certas precauções pedagógicas para que as
crianças aceitem essa comutatividade porque lhes é preciso, na verdade,
fazer a abstração do que esses números representam.
Por outro lado, a distributividade da multiplicação em relação
à adição é necessária desde que se introduza a multiplicação por um
número de dois algarismos.
43
x 12 (12 = 10 + 2)
86 (43 x 2)
+ 430 (43 x 10)
516
algebricamente:
43 x (10 + 2) = (43 x 10) + (43 x 2)
Essa propriedade deve necessariamente ser explicada às crianças,
no caso de se querer que elas compreendam a regra operatória da mul-
tiplicação. Ao contrário do que se poderia pensar, isto não está fora do
alcance das crianças (CE2 – CM127), mas é regra que também pede
certas precauções pedagógicas. A dificuldade principal reside menos na
propriedade da distributividade em si do que no fato de que é o multi-
plicador que é decomposto aditivamente e não o multiplicando.
(12 vezes = 10 vezes + 2 vezes)
Em suma, os cuidados a tomar são numerosos. O esquema do iso-
morfismo da medida, utilizado com as quantidades presentes, particular-
mente com material de base múltipla, é, sem dúvida, o meio mais eficaz para
simular materialmente as regras operatórias da multiplicação e da divisão.

No sistema de ensino francês, o curso elementar 2 (CE2) atende


27

crianças de 8 anos de idade, e o curso médio 1 (CM1) atende crianças de 9


anos de idade. N. T.

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A criança, a matemática e a realidade

Eis um exemplo relativamente complexo em base quatro para a


multiplicação:
material de bases
crianças
múltiplas

1 102
x13 x13
13
c p b u c p b u
cubos placas barras unidades cubos placas barras unidades

1 0 2
x3

3 1 2

x10
1 0 2 0

1 3 3 2 1 3 3 2

As multiplicações mais simples são naturalmente aquelas cujo


multiplicador tem somente um algarismo, e que não implicam reserva.
Mas, desde os inícios da aprendizagem da multiplicação, o problema da
reserva inevitavelmente aparece.
Se as crianças ainda têm dificuldades com a reserva da adição,
podem-se esperar fracassos piores com a multiplicação. Existe um ar-
ranjo espacial, experimentado pelos pesquisadores do I.R.E.M.28 de
Bordeaux, que permite superar certos insucessos: vamos apresentá-lo
um pouco mais adiante.

Na França, I. R. E. M. “Institut de Recherche pour l’Enseignement


28

des Mathématiques” (Instituto de Pesquisa para o Ensino da Matemática).


N.T.

185

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Gérard Vergnaud

A segunda grande dificuldade é a da multiplicação pela base (por


dez em base dez, por três em base três, etc.); o material de bases múlti-
plas é então uma ajuda poderosa porque permite colocar bem em evi-
dência o fato fundamental de que multiplicar pela base remete a trocar
a ordem da grandeza em uma posição para a esquerda: as unidades
tornam-se barras, as barras, placas, as placas, cubos, os cubos, barras de
cubos, etc.
A terceira dificuldade é a da decomposição aditiva do multiplica-
dor e a da distributividade da multiplicação em relação à adição. Esta
dificuldade, que foi aqui antes examinada, sem dúvida é a maior de to-
das, mas ela não está além das capacidades das crianças do segundo ano
do curso elementar29. A decomposição aditiva do multiplicador é de tão
fácil compreensão pelas crianças que ela não interfere na decomposição
multiplicativa: por exemplo,
n x 116 = (n x 100) + (n x 10) + (n x 6)
Porém, a multiplicação por um número de muitos algarismos,
que tenha ao menos um algarismo à esquerda do algarismo das unida-
des diferente de 1, implica uma dupla decomposição, aditiva e multi-
plicativa.
36 = 30 + 6 (decomposição aditiva)
36 = (3 x 10) + 6 (decomposição multiplicativa)
Na verdade, na operação de multiplicação, a multiplicação por
30 é realizada por duas multiplicações sucessivas, por 10 e por 3:
- a multiplicação por 10 traduz-se pela escrita de um zero na
coluna das unidades (ou pelo deslocamento de uma posição para a es-
querda) e a multiplicação por 3, pela sequência do procedimento. Em
resumo, pode-se escrever o procedimento da multiplicação por um nú-
mero inteiro da forma seguinte (exemplo da multiplicação por 36):

No sistema de ensino francês, o CE2 tem como alunos crianças de


29

8 anos de idade, aproximadamente.

186

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A criança, a matemática e a realidade

n
x 36

c p b u

nx6
n x 10 x 3
n x 36
A utilização do quadro (cubos, placas, barras, unidades) é um fator
de organização, que dificilmente as crianças menores podem dispensar
sob pena de perderem-se rapidamente. É preciso, assim, conservá-lo por
muito tempo. Do mesmo modo, a escrita do zero ou dos zeros necessá-
rios é uma garantia mais concreta e maior do que a régua de intervalos.
Os zeros intercalares ao multiplicador são armadilhas nas quais se cai
facilmente a menos que se siga usando a régua de deslocamentos.
Os zeros intercalares do multiplicando são uma fonte menor de
dificuldades.
Do mesmo modo, a presença de uma vírgula no multiplicando
não traz qualquer problema, enquanto ela o traz ao multiplicador por
duas razões fundamentais:
1. Multiplicar um número com vírgula, então não um número de
vezes não inteiro, supõe que se esteja diante de um caso de problema mul-
tiplicativo bastante complexo (isomorfismo de medidas contínuo-contí-
nuo, por exemplo).
2. A regra operatória da multiplicação por um número com vír-
gula supõe um encadeamento de transformações multiplicativas que
não são necessariamente bem compreendidas pela criança, mesmo ao
final do ensino elementar!30

No sistema do ensino francês, os alunos de final de ensino elemen-


30

tar têm aproximadamente 10 anos de idade. N. T.

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Gérard Vergnaud

Suponhamos que se queira multiplicar por 3,62. Que é que se


faz? Multiplica-se por 362 e divide-se, em seguida, por 100. Isto supõe
que a criança compreenda a equivalência das seguintes cadeias de trans-
formação:

x 3,62
n
x 3,62 x 100 : 100
n
x 362 : 100
n

• A DIVISÃO
Com a divisão, são reencontrados problemas análogos aos que
acabam de ser expostos, se é que não são eles amplificados por causa da
complexidade da regra operatória da divisão.
Mais ainda que para a multiplicação, é importante sublinhar a
necessidade de empregar um procedimento e uma disposição espacial
que permitam à criança encontrar sem hesitação o ponto em que ela se
encontra:
- quadro quadriculado para o dividendo e para o quociente;
- escrita completa das subtrações necessárias;
- indicação eventual dos cálculos acessórios para buscar o algaris-
mo que convém ao quociente; para esta busca, uma ajuda pode-
rosa consiste em dispor previamente a tabuada dos produtos do
divisor pelos números de 1 a 9. Eis um exemplo em base dez, para
uma divisão por 17.

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A criança, a matemática e a realidade

c p b u
17 x 1 = 17
2 4 5 3, 6 1 7
x2= 34
-1 7 c p b u
x3= 51
0 7 5 1 4 4, 3 x4= 68
-6 8
x5= 85
0 7 3
x6= 102
-6 8
x7= 119
0 5 6
x8= 136
-5 1
x9= 153
0 5

Também é possível contentar-se em fazer as multiplicações ane-


xadas na margem.
Como para a multiplicação, as dificuldades principais não vêm
do dividendo, mas do divisor (número com muitos dígitos, número
com vírgula). Desde o início, praticamente podem-se utilizar quaisquer
números no dividendo. Especialmente, não há qualquer necessidade
de buscar divisões que sejam exatas: a existência de um resto, depois de
repartida uma quantidade dada, não traz qualquer problema nocional.
Além das dificuldades que já vimos no caso da multiplicação, há
uma que se constitui em um obstáculo incontestável para as crianças; é
o caso em que o divisor, tendo n algarismos, os n primeiros algarismos
do dividendo formam um número inferior ao divisor.
exemplos:

285 4 1542 225

Qualquer disposição que permita marcar as ordens de grandeza e,


em particular, o enquadramento utilizado – barras – placas, ... favorece
a compreensão das operações em jogo
exemplo
pbu
285 4
pbu

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Gérard Vergnaud

2 placas não podem ser distribuídas para 4 pessoas de modo que


fiquem elas com partes iguais. É preciso então transformá-las em barras.
Isto resulta em 20 barras mais as 8 que sobram, 28 dividido por 4 dá 7.
Descobre-se assim, de pronto, que o primeiro algarismo do quociente é
aquele das barras (dezenas). O que se segue não traz problema.
pbu
285 4
-2 8 pbu
005 07

A divisão é uma operação complexa. Há para isto várias razões:


algumas são de ordem conceitual, outras são ligadas à complexidade das
regras operatórias implicadas pela divisão.
Em um plano conceitual, enquanto a adição, a subtração e a
multiplicação são sempre exatas, no sentido de que o resultado resulta
efetivamente da aplicação do operador ao operando, a divisão, por sua
vez, não é sempre exata e o quociente não é, por si só, o resultado da
aplicação do operador ao operando. O verdadeiro resultado é o par
(quociente, resto), podendo o resto ser nulo. Disto decorre que a di-
visão, como regra operatória, não seja exatamente o inverso da multi-
plicação, exceto se incluídas ali as relações complexas que, de todas as
formas, ultrapassam as capacidades das crianças. Enquanto no plano
dos números e dos operadores numéricos as transformações xn e ÷n são
inversas uma da outra, a operação de divisão por n não é o inverso da
multiplicação por n.
No plano das regras operatórias propriamente ditas, a divisão evi-
dentemente é a mais complexa das quatro operações porque implica,
ao mesmo tempo, a subtração, a multiplicação e a busca por tateio ou
enquadramento dos algarismos do quociente. Não é surpreendente se
inúmeras crianças a dominam mal, no final do ensino elementar. A di-
visão por um número com vírgula, por exemplo, parece fora do alcance
da maioria das crianças de 10 ou 11 anos.

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A criança, a matemática e a realidade

Da mesma maneira que uma tabuada apenas, na forma de tabela


cartesiana, é suficiente para a adição e a subtração, uma só tabuada é
suficiente para a multiplicação e a divisão, uma por base naturalmente.
Pode-se fazer com que as próprias crianças as componham, e delas fa-
çam uso tanto quanto lhes for necessário, inclusive no caso da base dez.
O conhecimento decorado da tabuada de base dez torna-se rapidamen-
te indispensável. Mais ainda, este conhecimento deve ser adquirido não
por uma aprendizagem e uma recitação decoradas, mas por exercícios
de cálculo rápido, os quais permitam às crianças captar o interesse que
efetivamente há em se conhecer de cor certos resultados. Em nenhum
caso, é necessário subordinar a aprendizagem dos algoritmos operató-
rios ao conhecimento da tabuada. O inverso é que é verdadeiro: os
resultados decorados parecem tanto mais indispensáveis na medida em
que os algoritmos são mais bem assimilados.
Como para a adição e a subtração, é indispensável ensinar a mul-
tiplicação e a divisão em outras bases, afora a base dez e, particularmen-
te, em bases pequenas. As razões são as mesmas: a identidade das regras
nas diferentes bases permite melhor compreendê-las; sem colocar em
jogo quantidades muito grandes, as pequenas bases permitem manipu-
lar números muito longos de forma que a regra seja aplicada de maneira
repetitiva.
Contudo, não se deve abusar com exercícios em outras bases que
não a base dez, caindo em exercícios gratuitos de cálculo. A base dez
deve ser privilegiada; o cálculo em outras bases tem virtudes para a
iniciação e a explicação, nada além disto. A divisão em uma ou duas
bases, afora a de base dez, é amplamente suficiente às necessidades pe-
dagógicas. Eis, a título de exemplo, as tabuadas de multiplicação em
base quatro e em base dez.
base quatro
x 1 2 3
1 1 2 3
2 2 10 12
3 3 12 21

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Gérard Vergnaud

base dez
x 1 2 3 4 5 6 7 8 9
1 1 2 3 4 5 6 7 8 9
2 2 4 6 8 10 12 14 16 18
3 3 6 9 12 15 18 21 24 27
4 4 8 12 16 20 24 28 32 36
5 5 10 15 20 25 30 35 40 45
6 6 12 18 24 30 36 42 48 54
7 7 14 21 28 35 42 49 56 63
8 8 16 24 32 40 28 56 64 72
9 9 18 27 36 45 54 63 72 81

O estudo das propriedades dessas tabuadas, as simetrias, as repe-


tições, as leis das séries, ocasiona exercícios interessantes.
• UMA DISPOSIÇÃO INTERESSANTE DA MULTIPLICAÇÃO
Para encerrar, eis uma disposição e um método para a multipli-
cação, os quais permitem evitar certos insucessos das crianças com os
problemas da reserva. Ilustramos esse método com um exemplo que
emprega números inteiros, mas ele funciona muito bem também com
números decimais.
Seja a multiplicação 2.847 x 423. O método consiste em dispor a
multiplicação em uma tabela cartesiana e escrever em cada casela o resulta-
do da multiplicação do algarismo da coluna pelo algarismo da linha.
2 8 4 7

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A criança, a matemática e a realidade

Esse resultado comporta um ou dois algarismos: escreve-se então


o algarismo das unidades na parte diagonal direita inferior, e o algaris-
mo das dezenas na parte diagonal esquerda superior. Decorre que sobre
uma mesma diagonal, os algarismos representam uma grandeza de mes-
ma ordem (unidades, dezenas, centenas, etc.).
2 8 4 7
3 1 2
4 2.847 x 400
8 2 6 8
1 1 2 2.847 x 20
4 6 8 4
2 1 2 3 2.847 x 3
6 4 2 1

1 2 0 4 2 8 1
A somatória em diagonal permite encontrar o resultado buscado.
A vantagem desse método é, evidentemente, a de que as reservas que
intervêm na fase da multiplicação estão todas escritas. Somente as re-
servas da adição final são mentais. Esse método foi experimentado com
sucesso pelos pesquisadores do I.R.E.M. de Bordeaux (equipe de Guy
Brousseau).

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CAPÍTULO IX

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OS PROBLEMAS DE TIPO ADITIVO

Vimos, nos capítulos precedentes, que a possibilidade das me-


didas serem adicionadas é sua propriedade mais importante, a que dá
à noção de número sua originalidade e sua força em comparação às
noções que a precedem. Vamos ver, neste capítulo, que existem vários
tipos de relações aditivas e, em decorrência, vários tipos de adições e
subtrações.
Os matemáticos, a justo título, consideram a subtração e a adição
como operações matemáticas estreitamente aparentadas uma da outra.
Neste capítulo, de nossa parte, seremos levados a estudá-las em conjun-
to. Logo, é necessário tomar o título deste capítulo em seu sentido mais
amplo. Por “problemas de tipo aditivo”, estamos entendendo todos
aqueles cuja solução exige tão somente adições ou subtrações, do mes-
mo modo pelo qual entendemos por “estruturas aditivas” as estruturas
em que as relações em jogo são formadas exclusivamente por adições ou
subtrações.

MEDIDAS E TRANSFORMAÇÕES

Acabamos de ver, no capítulo anterior, que era possível reunir duas


medidas, uma com a outra, para obter como resultado uma medida.
Exemplos:
- Se Paulo tem 6 bolinhas de gude de vidro no seu bolso direito
e 8 bolinhas de metal no seu bolso esquerdo, ele tem em tudo 14
bolinhas.
6 é a medida do conjunto de bolinhas em vidro;
8 é a medida do conjunto de bolinhas em metal;
14 é a medida do conjunto-união dos dois primeiros.
- Se eu quero colocar ao longo da parede da minha cozinha uma
mesa de 1,55 metros e uma máquina de lavar louça de 0,60 me-
tros de comprimento, é preciso que eu disponha de um compri-
mento total igual a 2,15 metros, pelo menos.

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Gérard Vergnaud

1,55; 0,60 e 2,15 são, de fato, medidas da mesa, da máquina de


lavar e da “saturação” total do espaço.
Isto define uma primeira forma de relações aditivas nas quais dois
números de mesma natureza, uma vez que representam, ambos, duas
medidas, são reunidos um ao outro e dão como resultado um número
da mesma natureza, uma medida, também. No primeiro exemplo, os
números representam cardinais, no segundo, comprimentos.
Porém, já encontramos, no capítulo sobre as relações ternárias,
uma forma diferente de relações aditivas, quando apresentamos o mo-
delo estado-transformação-estado.
Exemplos:
- Se Paulo tem 7 moedas de 1 real, se perder 3 delas, ele vai ficar
com 4.
7 é uma medida;
4 é uma medida;
mas -3, que representa a perda de 3 moedas, não é uma medida,
é uma transformação.
- Se eu pesava 64,600 kg antes de sair de férias e peso 69,350 kg
ao voltar, é que engordei 4,750 kg.
64,600 e 69,350 são medidas;
mas + 4,750 kg é uma transformação.
Esta diferença entre medidas-estado e transformações vai nos le-
var a distinguir diversos tipos de números.
• NÚMEROS NATURAIS E NÚMEROS RELATIVOS
Os números mais simples são os que correspondem às medidas
dos conjuntos de objetos isoláveis, aos cardinais: 1, 2, 3, 4, 5, ... etc.
Os matemáticos chamam esses números de “números naturais”, a
eles acrescentando o número 0, que corresponde à medida do conjunto
vazio. Eles designam N o conjunto de números naturais:

N = 0, 1, 2, 3, ... n, ...

Nesta obra, não vamos nos estender a respeito das propriedades


matemáticas desse conjunto. Vamos nos contentar em salientar que os
números naturais não são nem positivos nem negativos, uma vez que
correspondem a medidas e não a transformações. Os números naturais
são números sem sinal.

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A criança, a matemática e a realidade

Se os números naturais são números sem sinal, eles não podem


representar transformações posto que estas sejam necessariamente po-
sitivas ou negativas. É preciso então introduzir um outro conjunto de
números, dotados de sinais, os “números relativos”. Estes números re-
presentam adequadamente as transformações aditivas (adições e subtra-
ções) que podem ser aplicadas à medida de um conjunto de objetos iso-
láveis, acrescentando elementos a este conjunto ou deles os retirando.
Vamos designar por Ζ este conjunto de números relativos

Z = ... -n, ..., -5, -4, -3, -2, -1, 0, +1, +2, +3, ..., +n ...

Os números naturais representam medidas dos conjuntos de ob-


jetos isoláveis. Os números relativos representam as transformações que
essas medidas sofrem.
• NÚMEROS INTEIROS E NÚMEROS DECIMAIS
Se nos limitarmos às medidas dos conjuntos de objetos isoláveis,
obtemos como medidas e como transformações somente números intei-
ros. Quando focalizamos medidas de grandezas contínuas (comprimen-
tos, áreas, massas, volumes...), obtemos como medidas, não mais núme-
ros inteiros, mas números aos quais tentamos abordar como números
com vírgula, isto é, em base dez, números decimais. Nos exemplos ante-
riores, 1,55 (metros) e 79,350 (quilogramas) são números decimais.
A distinção, antes apontada, entre números naturais e números
relativos, é válida para os números com vírgula; mas os matemáticos
não inventaram termos particulares para essa distinção. Poder-se-ia fa-
lar em “números com vírgula naturais” para representar as medidas, e
de “números com vírgula relativos” para representar as transformações.
No entanto, é necessário saber que essa denominação é um abuso de
linguagem: os naturais e os relativos são, em matemática, inteiros e não
decimais. Não vamos nos estender longamente sobre essa questão dos
números decimais nesta obra. Entretanto, ela é uma questão importan-
te e difícil, mas o autor não a estudou suficientemente.

AS SEIS GRANDES CATEGORIAS DE RELAÇÕES ADITIVAS


Vamos mostrar agora que existem vários tipos de relações aditivas
e, consequentemente, vários tipos de adições e subtrações. Essas dife-

199

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Gérard Vergnaud

renças não são habitualmente feitas no ensino básico, nem mesmo no


segundo ciclo31. Porém, elas são importantes porque a dificuldade dos
diferentes casos que vamos focalizar é muito diferente. Essas distinções
são igualmente justificadas do ponto de vista matemático.
As relações aditivas são relações ternárias que podem ser encade-
adas de diversas maneiras e resultar em uma grande variedade de estru-
turas aditivas; delas daremos alguns exemplos adiante. Mas na análise
essencial que segue, vamos nos ater a seis esquemas ternários funda-
mentais.
Primeira categoria: duas medidas se compõem para resultar
em uma terceira.
Segunda categoria: uma transformação opera sobre uma medida
para resultar em outra medida.
Terceira categoria: uma relação liga duas medidas.
Quarta categoria: duas transformações se compõem para
resultar em uma transformação.
Quinta categoria: uma transformação opera sobre um estado
relativo (uma relação) para resultar em um
estado relativo.
Sexta categoria: dois estados relativos (relações) se compõem
para resultar em um estado relativo.

Para ajudar a compreender essas distinções, o mais simples é dar


exemplos no interior de um mesmo domínio de referência, escrever
o esquema relacional correspondente e analisar as equações numéricas
equivalentes a esse esquema.
Vamos ver que a representação da equação provoca grandes difi-
culdades e é uma fonte considerável de confusão para as crianças. Aliás,
é por causa disso que ela somente é estudada de maneira aprofundada
nas primeiras séries do nível secundário32. Porém, inúmeros professores
do ensino elementar são tentados a utilizar-se das equações. Isto vem da

31
O “segundo ciclo” (CM) do sistema de ensino básico francês aten-
de aproximadamente crianças da faixa etária de 9 a 10 anos. N. T.
32
Recordamos, o nível secundário do sistema de ensino francês em
suas primeiras séries atende, aproximadamente, alunos de 11 a 13 anos de
idade. N. T.

200

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A criança, a matemática e a realidade

tradição e, também do sentimento de que a representação em equações


é, por excelência, a representação matemática. De nossa parte, estima-
mos que no ensino elementar não se deva empregar equações; se, apesar
disso, deve-se empregá-las, que se o faça ao menos com conhecimentos
das dificuldades que elas suscitam.
A fim de concentrar toda a atenção do leitor apenas sobre a ques-
tão das relações em jogo, voluntariamente vamos limitar os exemplos
seguintes a um só domínio de referência e a números pequenos inteiros.
Numerosos pontos serão esclarecidos à medida que estudarmos, na se-
quência, as diferentes classes de problemas possíveis para cada categoria
de relações.
O código utilizado nos diversos esquemas e nas diferentes equa-
ções não pede comentários longos. É preciso compreendê-lo da maneira
seguinte:
Esquemas
representa

o retângulo um número natural

o círculo um número relativo

a chave vertical a composição de elementos


de mesma natureza
a chave horizontal

a flecha horizontal uma transformação ou


uma relação, quer dizer,
a flecha vertical a composição de elementos
de natureza diferente

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Gérard Vergnaud

Equações
n um número natural
(+ n) ou (- n) um número relativo
a adição de dois números
naturais
a adição de um número
natural e de um número
relativo
a adição de dois números
relativos
Primeira categoria: duas medidas se compõem para resultar em
uma medida.
- Paulo tem 6 bolinhas de gude de vidro e 8 bolinas de gude de
metal. Ele tem em tudo 14 bolinhas.
6, 8, 14 são números naturais.
Esquema correspondente:

14

Equação correspondente: 6 + 8 =14


+ é a lei de composição que corresponde à adição de duas medi-
das, isto é, de dois números naturais.

Segunda categoria: uma transformação opera sobre uma medida


para resultar em uma medida.
Primeiro exemplo
- Paulo tinha 7 bolinhas de gude antes de jogar. Ganhou 4 boli-
nhas. Ele agora tem 11.
7 e 11 são números naturais; + 4 é um número relativo.
Esquema correspondente:

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A criança, a matemática e a realidade

+4

7 11

Equação correspondente: 7 (+4) = 11


é a lei de composição que corresponde à aplicação de uma
transformação sobre uma medida, isto é, a adição de um número
natural (7) a um número relativo (+4)33.
Segundo exemplo:
- Paulo tinha 7 bolinhas de gude antes de jogar. Perdeu 4 boli-
nhas. Ele tem agora 3.
Esquema correspondente:

-4

7 3

Equação correspondente: 7 (- 4) = 3
Terceira categoria: uma relação liga duas medidas.
- Paulo tem 8 bolinhas de gude. Tiago tem 5 menos que Paulo.
Então, Tiago tem 3.
Esquema correspondente:

-5

Poder-se-ia escrever mais exatamente essa equação com o modelo


33

funcional seguinte: T (i) = f (a transformação T opera sobre o estado inicial i


para resultar no estado final f ). Isto levaria aqui a: + 4 (7) = 11, mas esta é
uma escrita muito rara para que a abordemos.

203

A criança, a matemática e a realidade.indd 203 15/12/2009 13:58:01


Gérard Vergnaud

Equação correspondente: 8 (- 5) = 3
A notar que este exemplo corresponde a uma relação estática en-
quanto os dois precedentes correspondem a transformações.
Quarta categoria: duas transformações se compõem para resultar
em uma transformação.
- Paulo ganhou ontem 6 bolinhas de gude e hoje perdeu 9 boli-
nhas. Em tudo, ele perdeu 3.
+ 6, − 9, − 3 são números relativos.
Esquema correspondente:

+6 -9

-3

Equação correspondente: (+ 6) (- 9) = (-3)


é a lei de composição que corresponde à adição de duas trans-
formações, quer dizer, de dois números relativos.
Quinta categoria: uma transformação opera sobre um estado re-
lativo (uma relação) para resultar em um estado relativo.
- Paulo devia 6 bolinhas de gude para Henrique. Ele devolveu 4.
Agora, ele lhe deve somente 2 bolinhas.
Esquema correspondente:

+4

-6 -2

Equação correspondente: (- 6) (+ 4) = (- 2)
é aqui a lei de composição que corresponde à operação de
uma transformação sobre um estado relativo. Então, ela é, rigo-

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A criança, a matemática e a realidade

rosamente falando, diferente da adição de duas transformações


que acabamos de ver sob a quarta categoria. Mas como um es-
tado relativo e uma transformação são ambos representados por
números relativos, esta lei de composição corresponde à adição
de dois números relativos. Logo, não há como empregar um sím-
bolo diferente.
Sexta categoria: dois estados relativos (relações) se compõem para
resultar em um estado relativo.
Primeiro exemplo
- Paulo deve 6 bolinhas de gude a Henrique, mas Henrique lhe
deve 4. Então, Paulo deve 2 bolinhas a Henrique.
- 6, + 4, -2 são números relativos.
Esquema correspondente:

-6

-2

+4

Equação correspondente: (- 6) (+4) = (- 2)


Esta categoria é naturalmente próxima da quarta categoria: em
lugar de transformações, são as relações-estado que são compostas
entre si. Porém, a diferença entre estado e transformação justifica,
em nosso entender, que se tenha uma categoria à parte. Em par-
ticular, não há qualquer ordem temporal entre dois estados relati-
vos e eles são necessariamente considerados como contemporâne-
os quando são compostos; este não é o caso das transformações.
é aqui a lei de composição que corresponde à adição de dois
estados relativos, isto é, de dois números relativos. É por essa ra-
zão que utilizamos o mesmo símbolo para as duas categorias pre-
cedentes, embora, rigorosamente falando, trate-se de uma forma
de composição diferente.
Segundo exemplo

205

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Gérard Vergnaud

- Paulo deve 6 bolinhas de gude a Henrique e 4 bolinhas a Anto-


nio. Ao todo, ele deve 10 bolinhas.
Esquema correspondente:

-6

- 10

-4

Equação correspondente: (- 6) (- 4) = (- 10)


Deve ser sublinhado que este exemplo corresponde à composi-
ção de relações entre pessoas diferentes, Paulo e Henrique, de um
lado, Paulo e Antonio, de outro, enquanto o primeiro exemplo
correspondia à composição de relações entre as mesmas pessoas.

DIVERSIDADE E DIFICULDADE DESIGUAL DOS PROBLE-


MAS DE TIPO ADITIVO

Antes de abordar o estudo dos problemas que colocam em pauta


diversas relações aditivas, nos é necessário desenvolver nossa análise.
Na verdade, a complexidade dos problemas de tipo aditivo varia não
apenas em função das diferentes categorias de relações numéricas que
acabamos de examinar, mas também em função das diferentes classes de
problemas que podem ser formulados para cada categoria. Comecemos
pela segunda categoria.

206

A criança, a matemática e a realidade.indd 206 15/12/2009 13:58:04


A criança, a matemática e a realidade

• ANÁLISE DETALHADA DOS PROBLEMAS REFERENTES À


SEGUNDA CATEGORIA DE RELAÇÕES ADITIVAS
Recordemos o esquema referente:

a c

Distinguiremos, primeiro, seis grandes classes de problemas:


- conforme seja a transformação b positiva ou negativa;
- conforme seja a pergunta concernente ao estado final c (co-
nhecendo-se a e b), à transformação b (conhecendo-se a e c), ao
estado inicial (conhecendo-se b e c).
a questão se refere a

c b a

b>0 exemplo 1 exemplo 2 exemplo 3

b<0 exemplo 4 exemplo 5 exemplo 6

Exemplo 1
“Havia 17 pessoas dentro de um ônibus, subiram 4. Quantas pes-
soas estão ali dentro, agora?”

+4

17 x

207

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Gérard Vergnaud

Exemplo 2
“Um paulistano viaja de carro em férias. Ao sair de São Paulo seu
velocímetro marca 63.809 km; na volta marca 67.351 km. Quantos
quilômetros ele percorreu durante as férias?”

63.809 67.351

Exemplo 3
“Henrique acaba de achar R$ 2,60 na calçada. Ele os colocou no
seu moedeiro. Ele tem agora, em tudo R$ 3,90. Quanto dinheiro ele
tinha em seu moedeiro antes do achado?”
+2,60

x 3,90

Exemplo 4
“João tem 9 balas. Ele deu 4 para sua irmãzinha. Com quantas
ele ficou?”

-4

9 x

Exemplo 5
“Paulo acabou agora um jogo de bolinha de gude. Ele tinha 41
bolinhas antes de jogar. E agora ele tem 29. Quantas bolinhas ele per-
deu?”

41 29

208

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A criança, a matemática e a realidade

Exemplo 6
“Em 1974, a população de Paris era de 2.844.000 habitantes.
Em cinco anos a cidade havia perdido 187.000 habitantes. Quantos
habitantes Paris tinha em 1969?”
- 187.000

x 2.844.000

Afora as seis principais classes de problemas definidos da tabela


acima, estes exemplos ilustram outras diferenças que levamos em conta
nos parágrafos que seguem: maior ou menor facilidade do cálculo ne-
cessário (grandeza dos números, caráter decimal...), ordem e apresenta-
ção das informações, tipo de conteúdo e de relação focalizados...
Primeiramente, vamos tentar precisar a significação dessa classifi-
cação dos problemas possíveis em seis classes.
O cálculo relacional que implica a solução dos problemas 1 e
4 é o mais simples que se possa imaginar porque é suficiente aplicar
uma transformação direta ao estado inicial. Entretanto, na classe 1, a
transformação direta é uma adição e sua aplicação é sempre possível; já
na classe 4, a transformação direta é uma subtração e sua aplicação não
é possível, a menos que o valor do estado inicial seja suficientemente
grande. Esta é uma eventual fonte de dificuldades para as crianças me-
nores, a respeito da qual é necessário clareza: por exemplo, não se pode
dar 4 balinhas se somente se tem 3 balinhas.
Por outro lado, é preciso salientar que a subtração aparece neste
esquema como uma operação sui generis, que não supõe, de forma al-
guma, a introdução prévia da adição. Dar, perder, descer, diminuir, etc.
são transformações que têm uma significação própria. Evidentemente,
elas vão de par com as transformações opostas, receber, ganhar, subir,
aumentar, etc., mas elas não lhe são, de modo algum, subordinadas. A
subtração não precisa ser definida como a inversa da adição, ela tem
uma significação própria; e o problema que se impõe ao professor é o
de mostrar o caráter oposto ou recíproco da adição e da subtração, não
da segunda em relação à primeira.
O cálculo relacional que implica a solução dos problemas das clas-
ses 2 e 5 já é mais complexo e ocasiona insucessos mais tardios. Mesmo
com números pequenos, pode-se abordar este tipo de problemas antes

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Gérard Vergnaud

do fim do CP ou no CE134, enquanto os problemas das classes 1 e 4 po-


dem ser abordados mais cedo. Há dois principais procedimentos para
o sucesso nesse tipo de problema, o procedimento de “complemento”
e o procedimento de “diferença”. O procedimento de “complemento”
consiste em buscar, sem fazer a subtração, o que é preciso acrescentar
(ou retirar) ao estado inicial para chegar ao estado final. Ele só é possível
com números pequenos ou com números que se prestam a um cálculo
mental. Mas não pede um cálculo relacional complexo e é utilizado
muito precocemente.
O procedimento de “diferença” consiste em buscar, pela subtração
entre os estados final e inicial, o valor da transformação. Ele é utilizável
com todos os números, quaisquer sejam eles, porém supõe um cálculo
relacional mais elaborado que o procedimento de “complemento”: se b
faz passar de a para c, então b é igual à diferença entre c e a.
Este modesto cálculo relacional está acima do alcance da maioria
das crianças do CP, na medida em que o valor absoluto da transforma-
ção não é obtido da mesma maneira conforme seja ela positiva (classe
2) ou negativa (classe 5):
classe 2, b = c - a classe 5, b = a - c
O procedimento de “complemento” não obriga a criança a racio-
cinar sobre a transformação de outro modo, senão no sentido direto:
partir do estado inicial, aplicar a transformação, chegar ao estado final.
Se a criança não consegue encontrar imediatamente o complemento, ela
pode mesmo fazer tentativas e corrigir-se em função do resultado obtido:
no exemplo 5, a criança pode, assim aplicar ao 41 a transformação -10, o
que dá 31; depois, -11, o que dá 30, enfim, -12, o que dá 29, o resultado
buscado. Donde a conclusão de que Paulo perdeu 12 bolinhas.
O procedimento da “diferença”, ao contrário, obriga a criança a ra-
ciocinar de pronto sobre a transformação, nas relações que a unem ao esta-
do final e ao inicial, e a calcular diretamente a subtração 
b  = c - a: no exemplo 5 em que a transformação é negativa, isto resulta
em  b  = a - c = 41 - 29 = 12.

Recordando, no sistema de ensino francês, o ciclo preparatório


34

(CP) atende regularmente crianças de 6 anos de idade, e antecede o CE1,


primeiro ano da escola elementar. N. T.

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A criança, a matemática e a realidade.indd 210 15/12/2009 13:58:07


A criança, a matemática e a realidade

O cálculo relacional que implica a solução dos problemas das classes


3 e 6 é ainda mais complexo porque a solução canônica (válida em todos
os casos) implica a inversão da transformação direta e o cálculo do estado
inicial pela aplicação ao estado final desta transformação inversa: se b faz
passar de a para c, então – b faz passar de c para a, e é preciso aplicar – b
a c para encontrar a. As classes de problemas 3 e 6 são sensivelmente mais
difíceis que os das classes 2 e 5, e muito mais difíceis que os das classes 1
e 4, mesmo com números menores que dez. Pode-se encontrar a respeito
vários procedimentos alternativos à solução canônica:
- O procedimento de “complemento”, que consiste em buscar
diretamente o que é preciso acrescentar a b para encontrar c, somente é
válido quando a transformação é positiva e quando os números em jogo
se prestam ao cálculo mental.
- O procedimento de “estado inicial hipotético”, que consiste em
formular uma hipótese sobre certo estado inicial, em aplicar-lhe a trans-
formação direta, a encontrar um estado final, e a corrigir a hipótese de
partida em função do resultado obtido (comparação do estado final
assim encontrado e do estado final dado no problema). Os exemplos
3 e 6 prestam-se mal à ilustração desse procedimento, mas o exemplo
seguinte se presta muito melhor:
“Roberto distribui uma bala a cada um de seus 7 colegas. Assim,
ele distribui 7 balas. Sobram-lhe então 4. Quantas balas ele tinha
antes da distribuição?”
Algumas crianças raciocinam então da forma que o exemplo se-
guinte ilustra:
“Se Roberto tem 10 balas e dá 7 balas, sobram 3 para ele. Não é
isto, é preciso mais. Se Roberto tem 11 balas e dá 7, ele fica com
4. É isto... ele tinha 11 balas”.
Lembremos que a solução canônica consiste em aplicar a trans-
formação +7 (oposta da transformação −7 ) ao estado final 4 e,
assim, encontrar 11.
Portanto, as seis classes de problemas identificadas acima não for-
mam um conjunto tão homogêneo quanto se poderia imaginar porque
os cálculos relacionais necessários não são da mesma complexidade,
longe disso. Não é de espantar nessas condições que as crianças recor-
ram a procedimentos não canônicos. Estes procedimentos revelam, às

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Gérard Vergnaud

vezes, como é o caso do procedimento do estado hipotético, uma boa


compreensão da situação e, desse modo, preparam a descoberta de so-
luções canônicas.
Por conseguinte, o professor deve estar atento ao interpretar as
condutas das crianças e a não rejeitar como errados os caminhos não clás-
sicos que ela pode empregar. Mesmo diante dos insucessos das crianças,
sobre os quais não temos mesmo aqui a possibilidade de nos estender,
frequentemente existem elementos que permitem ver o que a criança
compreendeu e o que ela não compreendeu, e de, assim sendo, apoiar-se
nos próprios insucessos para fornecer as explicações necessárias.
Contudo, a diversidade e a dificuldade desigual dos problemas
não se devem apenas ao fato de pertencerem eles a uma ou outra das seis
classes antes definidas. Outros fatores também ali intervêm.
• A facilidade maior ou menor do cálculo numérico necessário
Trata-se evidentemente de um fator importante de complexida-
de que vêm somar-se ao fator puramente relacional que acabamos de
examinar. É assim que a subtração 67.351 - 63.809 do exemplo 2 pode
tornar este problema mais difícil que o do exemplo 5, o qual pede uma
subtração mais fácil (41- 29). Entretanto, de um ponto de vista estrita-
mente relacional, a classe 5 é mais difícil que a classe 2.
De um modo geral, a complexidade cresce, no interior de uma
mesma classe de problemas, com a dificuldade do cálculo necessário. Os
números grandes ocasionam mais dificuldades que os números peque-
nos, os números decimais, mais dificuldades que os números inteiros,
exceto quando a operação necessária se reduz a uma composição de
números pequenos ou a operações mentais simples; exemplos:
4.000 + 9.000, 666 - 555, etc.
Sobretudo, é preciso notar que certos números impedem a utili-
zação de certos procedimentos porque eles não se prestam a um cálculo
muito simples. É necessário, assim, recorrer à solução canônica que,
em geral, supõe um cálculo relacional mais elaborado. Logo, a maior
dificuldade dos problemas que obrigam a “escrever uma operação” vem,
em grande parte, do fato de que os procedimentos de solução mais ime-
diatos são, então, inoperantes.

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A criança, a matemática e a realidade

É assim que, no exemplo 2, a natureza dos números em jogo


(63.809 e 67.351) não permite recorrer ao procedimento de “comple-
mento” e torna obrigatório colocar em ação o procedimento da “dife-
rença”, claramente mais complexo do ponto de vista relacional tal como
vimos antes.
Suponhamos que, em lugar de 63.809 e de 67.351, o velocíme-
tro indicasse respectivamente 15.000 km e 17.000 km, a solução do
problema seria muito mais facilitada, não somente porque a subtração
17.000 - 15.000 é mais simples do que a subtração 67.351 - 63.809,
mas ainda e principalmente porque o procedimento de “complemento”
(é preciso 2.000 para ir de 15.000 a 17.000) é então possível, enquanto
que ele não o é com os números 63.809 e 67.351.
• A ordem e a apresentação das informações
As informações pertinentes à solução de um problema podem ser
dadas de muitas maneiras:
- submersas entre outras em um texto, ou apresentadas de tal for-
ma que a criança reconhece implicitamente que ela tem diante de
si as informações necessárias e suficientes para a solução;
- ordenadas segundo o desenrolar temporal dos fatos relatados
ou, ao contrário, fornecidas em desordem ou em ordem inversa.
A forma pela qual as informações são apresentadas tem, natural-
mente, um papel na complexidade dos problemas. Se há o hábito, na
escola elementar, de fornecer enunciados que não contêm outra coisa
senão as informações necessárias e suficientes, o que é o caso, aliás, dos 6
exemplos dados antes, é também necessário habituar a criança a receber
enunciados onde constam informações inúteis, as quais, consequente-
mente, ela deverá deixar de lado, assim como enunciados em que cer-
tas informações necessárias estão ausentes. Retornaremos a esse assunto
quando falarmos sobre os problemas que comportam várias relações,
porque somente então essa questão assumirá toda a sua importância.
No entanto, sublinhemos desde já que a análise de uma situação
real, na qual as informações não são verbalizadas, pede sempre a busca
das informações necessárias e a filtragem das informações suficientes:
de fato, uma situação real comporta, em geral, a par de informações
suficientes, informações inúteis, por vezes prejudiciais, que devem ser
descartadas, e informações que, embora necessárias, não são expressas e
pedem uma busca específica.

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Gérard Vergnaud

No que concerne à ordem das informações, pode-se ver com o


exemplo 6, o qual fornece os dados na ordem inversa da ordem tem-
poral, que essa questão da ordem das informações já está presente no
caso da relação aditiva estado-transformação-estado. De um modo geral,
pode-se complicar seriamente o problema se a ordem das informações
pertinentes for invertida ou se estas informações forem dadas em desor-
dem e, mais ainda, se fornecidas submersas entre outras informações.
• O tipo de conteúdo e de relação focalizada
O conteúdo dos problemas, o domínio de relações ao qual eles
fazem referência, podem exercer igualmente um papel importante.
Bolinhas de gude ganhas ou perdidas, somas de dinheiro gastas
ou ganhas, quilômetros percorridos, quantidades físicas consumidas ou
produzidas não podem ser colocadas no mesmo plano no ensino ele-
mentar, pela justa razão de que as noções às quais elas fazem referência
não são de mesmo nível. Já vimos, no capítulo anterior, a diferença que
existe entre as quantidades discretas e as quantidades contínuas, mas há
também diferenças entre as quantidades contínuas; comprimento, área,
volume, massa, energia elétrica ou calórica, etc., não podem ser coloca-
das no mesmo plano. Contudo, pode-se propor problemas análogos a
respeito de uma conta de eletricidade ou de uma distância percorrida.
Existem igualmente diferenças entre quantidades discretas: o aumento
(ou a diminuição) de uma população não compreendido tão facilmente
quanto o ganho (ou a perda) de bolinhas de gude, se não o fosse pela
referência desigual assim feita à vida cotidiana da criança.
Nessas condições, não é inútil, no decorrer do estudo de uma
mesma relação aditiva, diversificar os conteúdos, e mostrar que, sob
estes contínuos diferentes, uma estrutura idêntica é encontrada.
De outro lado, a própria forma da relação pode exercer um papel.
Não é necessariamente equivalente para a criança pequena dizer que
“ganhou 12 bolinhas” ou que “tem mais 12 bolinhas”.
Enfim, ainda que relações ternárias estáticas e transformações
possam se colocar sob uma mesma forma sagital ou algébrica, a criança
não capta da mesma forma uma relação estática entre dois elementos:
“Pedro tem 6 reais a menos que João”
e uma transformação
“Pedro perdeu 6 reais”.

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A criança, a matemática e a realidade

Existem, assim, fontes múltiplas da diversidade e da complexida-


de dos problemas no interior de uma mesma categoria estado-transfor-
mação-estado. Porém, a fonte principal, aquela que, aliás, torna claras
todas as outras, prende-se à existência de seis classes de problemas e de
seis formas de cálculos relacionais de dificuldade desigual. Ora, focali-
zamos, até esse momento, somente uma categoria de relações aditivas.
Vamos, agora, estudar as demais, de forma mais breve.
• ANÁLISE DOS PROBLEMAS REFERENTES ÀS OUTRAS
CATEGORIAS DE RELAÇÕES ADITIVAS

• A primeira categoria de relações aditivas, nas quais duas medidas


se compõem para resultar em uma medida, dá lugar apenas a duas
grandes classes de problemas.
1. Conhecendo-se duas medidas elementares, encontrar a com-
posta.
2. Conhecendo-se a composta e uma das elementares, encontrar a
outra.
Pode-se representá-las da seguinte forma:

a a

1. x 2. c

b x

Dois exemplos podem ilustrar estas duas classes:


1. Tem 4 meninas e 5 meninos sentados à mesa. Quantas crianças
têm ao todo?
2. Um agricultor tem 56 ha de terras dos quais 17 ha em floresta
e capoeira; o resto é cultivável. Qual a área cultivável que ele tem
disponível?
A primeira classe de problemas se resolve por uma adição, cuja difi-
culdade pode variar, como vimos antes, em função dos números dados, do
conteúdo e da forma das informações. A segunda classe de problemas se
resolve normalmente por uma subtração, mas ela pode também ser resolvi-
da igualmente pelo procedimento chamado de complemento, exceto se os

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Gérard Vergnaud

números em jogo se prestem a este procedimento. A dificuldade varia, nesse


caso ainda, em função dos fatores habituais.
Essa não é a ocasião para desenvolver longamente a análise desta
classe de problemas, se não, ao menos, para destacar que a subtração x
= b - a é necessariamente aqui entendida como a operação inversa da
adição a + x = b, e que isto já constitui uma forma de cálculo relacional.
Mas é porque esta forma de subtração é um pouco mais complexa que
a subtração sui generis examinada quando da segunda categoria de rela-
ções aditivas e que correspondia a uma transformação negativa operan-
do sobre uma medida inicial (perder, tirar, dar, diminuir, etc.).
Seria um erro considerar a subtração como uma operação sempre
subordinada e secundária em relação à adição. Na categoria das relações
numéricas que estamos examinando, ela é efetivamente subordinada,
porque a busca do complemento entre uma medida elementar e uma
medida composta não tem sentido a menos que primeiramente se atri-
bua um sentido à composição de duas medidas elementares. Mas na
segunda categoria de relações aditivas vimos que um dos casos de sub-
tração tem sentido sempre; é aquele em que se retira uma quantidade
dada de uma quantidade inicial igualmente dada. A criança compreen-
de sem dificuldade esta transformação negativa, e pode-se, dessa forma,
mostrar-lhe, mais facilmente, o caráter oposto de ambas, a adição e a
subtração sem subordinação de uma à outra.
• A quarta categoria de relações aditivas, aquela em que duas transfor-
mações se compõem para resultar em uma transformação, exige uma
análise um pouco mais longa.
Não vamos nos estender sobre os fatores relativamente secundá-
rios que identificamos antes (natureza dos números em jogo, forma e
conteúdo das informações dadas, etc. ...), mas somente sobre os as-
pectos fundamentalmente relacionais. Existem, como para a primeira
categoria de relações aditivas, duas grandes classes de problemas.
1. Conhecendo-se as duas transformações elementares, encontrar
a composta.
2. Conhecendo-se a composta e uma das elementares, encontrar
a outra.
A diversificação em subclasses, neste caso, é muito importante e
exige comentários.

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A criança, a matemática e a realidade

Como se trata da composição de transformações, as quais podem


ser positivas ou negativas, a situação está longe de ser a mesma confor-
me os diversos casos considerados.
Tomemos, de início, a primeira classe de problemas “conhecendo-
se as elementares, encontrar a composta”; a dificuldade não seria a mes-
ma se fosse o caso de compor duas transformações positivas, duas trans-
formações negativas ou duas transformações de sinal contrário. Neste
último caso, as crianças defrontam-se também com dificuldades diferen-
tes segundo a grandeza relativa dos valores absolutos das transformações
elementares. O quadro abaixo resume os diversos casos possíveis.
T1 e T2 são, respectivamente, a primeira e a segunda transforma-
ção elementar. T3 é a transformação composta:
T1 > 0 T1 < 0 T1 > 0 T1 < 0

T2 > 0 T2 < 0 T2 < 0 T2 > 0

T1 > T2 T3 > 0 T3 < 0 T3 > 0 T3 < 0


exemplo 1 exemplo 2

T1 < T2 T3 > 0 T3 < 0 T3 < 0 T3 > 0


exemplo 3

Sem pretender ilustrar todos os casos possíveis, daremos três


exemplos cuja dificuldade desigual o leitor poderá facilmente verificar.
Exemplo 1
“João jogou duas partidas de bolinha de gude. Na primeira par-
tida ele ganhou 16 bolinhas. Na segunda partida ganhou 9. Ao
final, o que aconteceu?”
Exemplo 2
“João jogou duas partidas de bolinha de gude. Na primeira parti-
da ele ganhou 16 bolinhas. Na segunda perdeu 9. Ao final, o que
aconteceu?”
Exemplo 3
“João jogou duas partidas de bolinha de gude. Na primeira par-
tida ele ganhou 9 bolinhas. Na segunda partida perdeu 16. Ao
final, o que aconteceu?”

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Gérard Vergnaud

No exemplo 1 é preciso juntar dois números positivos, o que não


traz qualquer dificuldade.
No exemplo 2 é preciso juntar dois números de sinais contrá-
rios, o que, de fato, traduz-se por uma subtração bastante natural: na
verdade, retira-se do valor absoluto da primeira transformação o valor
absoluto da segunda transformação, que é menor.
Enfim, no exemplo 3 é preciso ainda juntar dois números de si-
nais contrários; mas é necessário então subtrair o valor absoluto da pri-
meira transformação, que, entretanto, é positiva, do valor absoluto da
segunda. Não é de surpreender que este problema seja mais difícil que
os precedentes.
Tomemos, agora, a segunda classe de problemas: “Conhecendo-
se uma das transformações elementares e a composta, encontrar a outra
transformação elementar”.
De um modo geral, sua dificuldade é maior que a dos problemas
da primeira classe: sua solução pede efetivamente uma operação inver-
sa da composição. A qual se traduz por uma “subtração” de números
relativos. Porém, esses problemas não são também entre si igualmente
difíceis e é necessário identificar suas várias subclasses, conforme o si-
nal respectivo das transformações dadas, as compostas e a elementar, e
conforme a grandeza relativa de seus valores absolutos. O quadro que
segue indica as subclasses de problemas no caso em que uma vez dadas
T1 e T3, é preciso encontrar T2. Um quadro semelhante poderia ser feito
para o caso em que é preciso encontrar T1.
T1 > 0 T1 < 0 T1 > 0 T1 < 0

T3 > 0 T3 < 0 T3 < 0 T3 > 0

T1 < T3 T2 > 0 T2 < 0 T2 < 0 T2 > 0


exemplo 1

T1 > T3 T2 < 0 T2 > 0 T2 < 0 T2 > 0


exemplo 2 exemplo 3

218

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A criança, a matemática e a realidade

Vamos nos limitar aqui ainda a três exemplos:


Exemplo 1
“Em uma cidade, o excedente de nascimentos em relação aos óbi-
tos foi de 1.293 pessoas entre 1980 e 1990 e de 4.084 entre 1980
e 2000. O que aconteceu entre 1990 e 2000?”

Exemplo 2
“A reserva de ouro de um banco baixou em 642 lingotes durante
todo o ano de 1993. Durante o primeiro semestre do mesmo
ano, ela tinha baixado em 1.031 lingotes. Que ocorreu durante o
segundo semestre?”

Exemplo 3
“Pedro jogou duas partidas de bolinha de gude. Durante a pri-
meira partida, ele ganhou 7 bolinhas. Ele jogou a segunda parti-
da. Fazendo as contas para as duas partidas, ele viu que perdeu ao
todo 2 bolinhas. Que ocorreu na segunda partida?”

Estes três problemas não são igualmente fáceis. O leitor ficará,


sem dúvida, espantado ao saber que o terceiro é resolvido com suces-
so somente por uma pequena proporção das crianças do CM2 e das
de sexto ano35 (aproximadamente 25%), embora a operação numérica
necessária seja, contudo, uma adição muito simples (7 + 2). Evidente-
mente, é no cálculo relacional que é necessário buscar as razões dessa
dificuldade.
Vamos tentar representar por um esquema analítico os aspectos
desse cálculo relacional:

Lembrando, no sistema escolar francês, o CM2 (“curso médio 2”)


35

atende alunos de 10 anos de idade, aproximadamente. E a chamada sexta série


(“sixième”) atende alunos de 11 anos de idade, na passagem do ensino elemen-
tar ou básico ao secundário. N. T.

219

A criança, a matemática e a realidade.indd 219 15/12/2009 13:58:09


Gérard Vergnaud

Dados:

+7 x

-2

Primeiro aspecto do raciocínio:

-7 +7 x

anulação pela transformação - 7 do que foi ganho na primeira


partida
Segundo aspecto do raciocínio:

-7 +7 x

-7 -2

-9
composição de -7 e de -2 para encontrar o valor de x
De fato, o primeiro aspecto do raciocínio leva a escrever a se-
quência
(- 7) (+7) x

220

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A criança, a matemática e a realidade

e o segundo aspecto, a escrever a sequência


(- 7) (- 2).
A igualdade dessas duas sequências:
(- 7) (+7) x = (- 7) (- 2)
permite escrever, por simplificação da primeira sequência
x = (- 7) (- 2) = (- 9)
A maioria das crianças não é ainda capaz de assimilar este racio-
cínio antes da quinta série36. Assim, não é preciso hesitar em explicar-
lhes esse caso com numerosos exemplos. Ou seja, é raciocínio que está
muito acima do nível da escola elementar e que somente uma minoria
de crianças do CM pode alcançá-lo.
Por que então os problemas 1 e 2, que parecem, no entanto, evo-
car um raciocínio idêntico, são mais bem resolvidos? É que ali, ainda,
há vários procedimentos para resolver estes problemas; também, a par
do procedimento canônico ilustrado pelo esquema anterior, existe um
procedimento de “complemento” que funciona de forma eficaz quando
as transformações T1 e T3 têm o mesmo sinal, como nos exemplos 1 e 2.
(Naturalmente, esse procedimento é inoperante quando as transforma-
ções T1 e T3 têm sinal contrário, como no exemplo 3).
Esse procedimento de “complemento” está evidente no exemplo 1,
posto que é necessário então buscar o que é preciso acrescentar à elemen-
tar T1, para encontrar a composta T3. Embora os números sejam bastante
complicados para que o complemento seja buscado diretamente sem ope-
ração, as crianças do CM, e mesmo as do CE237, imaginam com bastante
facilidade que é preciso fazer uma subtração: 4.084 - 1.293.
Já é menos natural aplicar esse procedimento no exemplo 2 em
que a composta T3, tendo o mesmo sinal que a elementar T1, é menor
em valor absoluto. Logo, é necessário buscar o que é preciso acrescentar

O que aqui é traduzido como “quinta série” refere-se à “cinquiè-


36

me”, série do ensino secundário francês que segue à chamada “sexta” (“sixiè-
me). A “cinquième” atende alunos de 12 anos de idade. N. T.
37
Recordando, no sistema de ensino francês, o CM atende alunos da
faixa etária de 9 a 10 anos. E o CE é anterior, tendo alunos de 7 e 8 anos. N.
T.

221

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Gérard Vergnaud

à T3 para encontrar T1 e considerar que se trata de uma transformação


de sinal oposto: se a reserva de lingotes baixou muito mais durante o
primeiro semestre do que no ano inteiro, então ela aumentou durante o
segundo semestre. Não é de espantar, nessas condições, que este proble-
ma seja ainda difícil para algumas crianças durante o CM.
Apesar dessas dificuldades, porém, não é incorreto fazer, desde
os anos da escola elementar, exercícios sobre a composição e a decom-
posição das transformações e desenvolver, nesta ocasião, explicações de
um nível difícil como o esquema examinado acima. As crianças tirarão
proveito dessas explicações, ao menos parcialmente, e isto as preparará
para receber nas séries mais adiantadas o ensino dos números relativos.
Entretanto, é necessário não alimentar a ilusão de que elas estão prontas
para assimilá-los completamente.
Seria fácil descrever as classes de problemas referentes às duas úl-
timas categorias de relações aditivas que podem ser propostas. Nós não
o faremos aqui, ainda que certas classes de problemas possam ser apre-
sentadas sem inconvenientes desde os anos da escola elementar. O leitor
reconstituirá facilmente, com a ajuda da análise anterior, as principais
classes de problemas.
Para a quinta categoria, na qual uma transformação opera sobre
um estado relativo, serão reencontradas as classes estudadas no caso da
segunda categoria (busca do estado final, da transformação, do estado
inicial) com subclasses mais numerosas, levando em conta as várias pos-
sibilidades que existem para o sinal e o valor absoluto.
Para a sexta categoria, em que dois estados relativos se compõem
em um estado relativo, serão reencontradas, com subclasses igualmente
mais numerosas, as classes estudadas no caso da primeira categoria.

222

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CAPÍTULO X

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A NOÇÃO DE GRUPO

Vimos, no capítulo precedente que, para lidar com os problemas


de tipo aditivo, é necessário fazer a distinção entre duas espécies de
números, os números naturais e os números relativos, os quais corres-
pondem, de fato, a noções, elas próprias diferentes: elemento e relação,
estado e transformação, medida e operador aditivo.
O estudo da quarta categoria de relações aditivas nos fez falar da
adição de números relativos, que apareceu como operação correspon-
dente à composição das transformações.
A composição de duas transformações em uma terceira é uma
relação ternária que pode ser adequadamente representada por uma lei
de composição binária. O mesmo ocorre para a adição de números re-
lativos.
Escreva-se: T1 ° T2 = T3 a composição das transformações, e r1 +
r2 = r3 a adição dos números relativos correspondentes; é evidente que
as propriedades da adição dos relativos são as mesmas que aquelas da
composição das transformações. Explicitemos essas propriedades.

PROPRIEDADES DO GRUPO

• Comutatividade
T1 ° T2 = T2 ° T1 quaisquer que sejam T1 e T2.
O resultado da composição das duas transformações T1 e T2 é o
mesmo, não importa a ordem dessas transformações. Por exemplo, é a
mesma coisa, do ponto de vista dos ganhos e das perdas, ter perdido
7 bolinhas de gude na primeira partida e ganho 3 na segunda, ou ter
ganhado 3 na primeira partida e perdido 7 na segunda.

225

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Gérard Vergnaud

• Associatividade
(T1 ° T2) ° T3 = T1 ° (T2 ° T3) quaisquer que sejam T1, T2 e T3.
O resultado da composição de três transformações T1, T2 e T3 é o
mesmo, quer se componha primeiro as duas primeiras e, em seguida, o
resultado assim encontrado com a terceira; ou se componha primeiro as
duas últimas e, depois, a primeira, com o resultado assim encontrado.
Por exemplo, quando se perde 7 bolinhas de gude, depois se ganha 3,
depois se perde 5, é o mesmo que obter o resultado parcial das duas
primeiras partidas (“perder 7” e “ganhar 3” resulta em “perder 4”) e,
depois, o resultado total (“perder 4” e “perder 5” resulta em “perder 9”);
ou obter, primeiro, o resultado parcial das duas últimas partidas (“ga-
nhar 3” e “perder 5” resulta em “perder 2”) e, em seguida, o resultado
total (“perder 7” e “perder 2” resulta em “perder 9”).
• Elemento neutro
Há uma transformação tal que T1 ° I = I ° T1 = T1 qualquer que
seja T1.
Seja I a transformação idêntica, a qual consiste em não alterar
as situações existentes, a composição de I com não importa qual outra
transformação T1, intervenha esta antes ou depois, dá de novo eviden-
temente a transformação T1. Por exemplo, a parte nula que consiste
em nada ganhar nem perder no transcorrer de uma partida, pode ser
composta com uma outra partida, e o resultado final é, naturalmente, o
mesmo que aquele dessa outra partida38.

Terminologia:
38

Em lugar da transformação idêntica, pode-se ainda dizer trans-


formação nula, que nada faz, que nada muda, etc.; da mesma forma, em lu-
gar da transformação inversa, pode-se dizer transformação oposta, recíproca,
contrária, etc. A escola elementar se adapta muito bem a uma linguagem não
dogmaticamente fixada. O professor deve somente saber do que se fala e do
que a criança fala.

226

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A criança, a matemática e a realidade

• Inversa
Qualquer que seja T1, existe ~T1 tal que T1 ° ~T1 = ~T1 ° T1 = I.
Para toda transformação T1 pode-se encontrar uma transforma-
ção ~T1 que, intervindo antes ou depois, anula seu efeito: o resultado da
composição de T1 e de ~T1 não é outro senão a transformação idêntica
I. Por exemplo, resulta no mesmo empate ter ganho 7 bolinhas de gude
na primeira partida e perdido 7 na segunda; ou ter perdido 7 bolinhas
de gude na primeira partida e ter ganho 7 na segunda. “Perder 7” é a
transformação inversa de “ganhar 7” e reciprocamente.
Para a adição de números relativos, as propriedades que acabamos
de examinar são escritas com muita facilidade.
• Comutatividade
r1 + r2 = r2 + r1 quaisquer que sejam r1 e r2.
• Associatividade
(r1 + r2) + r3 = r1 + (r2 + r3) quaisquer que sejam r1, r2 e r3.
• Elemento neutro 0
r1 + 0 = 0 + r1 = r1 qualquer que seja r1.
• Inversa
Qualquer que seja r1 existe ~r1 (oposto de r1) tal que r1 + ~r1 = 0.
As três últimas propriedades (associatividade, elemento neutro,
inversa) caracterizam uma estrutura algébrica que os matemáticos cha-
maram de “grupo”. A primeira propriedade (comutatividade), embora
verdadeira para numerosos grupos, não necessariamente caracteriza a
noção de grupo; deve-se distinguir então os grupos comutativos dos
grupos não comutativos.
O conjunto dos números inteiros relativos

-n, ..., -3, -2, -1, 0, +1, +2, +3, ..., +n

é um grupo comutativo para a adição. O mesmo ocorre no caso do


conjunto de números decimais relativos. Veremos adiante que, ao con-
trário, o conjunto dos inteiros naturais não forma um grupo.

227

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Gérard Vergnaud

EXEMPLOS DE GRUPOS FINITOS

• O grupo de Klein
Sejam os quatro vértices de um retângulo A, B, C, D.
A B

D C
e os quatro “deslocamentos” seguintes:

H deslocamento horizontal: de A para B, de B para A, de C para


D ou de D para C.
V deslocamento vertical: de A para D, de D para A, de B para
C ou de C para B.
D deslocamento diagonal: de A para C, de C para A, de B para
D ou de D para B.
I deslocamento idêntico: de A para A, de B para B, de C para
C, de D para D.

Suponhamos que sejam sucessivamente efetuados os deslocamen-


tos seguintes partindo do ponto C.
H, V, D, I, D, V, H, H, V.
É fácil verificar que se chega então ao vértice A e que a cadeia de
deslocamentos equivale ao deslocamento D. Esta equivalência é ver-
dadeira, qualquer que seja o ponto de partida; e, tomando-se somente
como referência os pontos de partida e o de chegada, pode-se ainda
escrever a igualdade seguinte:
H ° V ° D ° I ° D ° V° H° H° V = D
Vamos mostrar que o conjunto H, V, D, I munido da lei de com-
posição ° forma um grupo. Na verdade, formemos a tabela de composi-
ção dos deslocamentos dois a dois:

228

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A criança, a matemática e a realidade

I H V D
I I H V D
H H I D V
V V D I H
D D V H I
Pode-se verificar:
a comutatividade
H I = I H V I = I V
H V = V H H D = D H
V D = D V D I = I D
a associatividade
seria cansativo escrever todo os casos possíveis, mas é claro que
(x ° y) ° z = x ° (y ° z) quaisquer que sejam x, y e z pertencendo ao
conjunto dos quatro deslocamentos. Por exemplo:
(H V) H = H (V H) (H V) D = H (V D)
a existência de um elemento neutro I
H I = I H = H
V I = I V = V
D I = I D = D
I I = I
a existência de um inverso para todo deslocamento
H H = I V V = I D D = I I I = I
Cada deslocamento é em si seu próprio inverso.
O grupo dos quatro deslocamentos H, V, D, I é um grupo finito
comutativo que é chamado de grupo de Klein. É uma estrutura muito
geral que é encontrada em numerosos casos. Citemos outro exemplo,
emprestado da lógica.
Sejam os enunciados simples do tipo seguinte:
- o objeto x é a e b (por exemplo: o objeto x é redondo e azul);
- o objeto x não é a e b;
- o objeto x é a ou b;
- o objeto x não é a ou b

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Gérard Vergnaud

e as quatro transformações seguintes:


E troca do conectivo lógico e/ou (substituição de e por
ou e reciprocamente).
C contradição: é/não é (substituição de é por não é e
reciprocamente).
D conjunção das duas transformações E e C.
I transformação idêntica.
Pode-se verificar facilmente que essas quatro transformações for-
mam um grupo comutativo de quatro elementos cuja tabela de compo-
sição é a seguinte:
I E C D
I I E C D
E E I D C
C C D I E
D D C E I
trata-se exatamente da mesma tabela encontrada para o grupo dos quatro
deslocamentos vistos antes (é suficiente substituir H por E e V por C).
• O grupo cíclico
Existe outro grupo de quatro elementos que é diferente do grupo
de Klein e que é designado como “grupo cíclico”.
Sejam quatro conjuntos de crianças dispostos da forma seguinte
em um pátio de escola:
conjunto A

conjunto D conjunto B

conjunto C

230

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A criança, a matemática e a realidade

Consideremos as relações seguintes:


F x F y: a criança x está no conjunto em frente ao
conjunto em que se encontra y.
E x E y: a criança x está no conjunto que está à esquerda
do conjunto onde se encontra y.
D x D y: a criança x está no conjunto que se encontra
à direita do conjunto em que se encontra y.
I x I y: a criança x está no mesmo conjunto que y.
Coloca-se o problema da composição das relações F E D e I, isto
é, o problema de saber que relação há entre x e z quando as relações de
x com um outro intermediário y e de y com z são conhecidas.
x R y, y R’ z
esquematicamente
que relação y há entre x e z?
Por exemplo, se x F y e y E z então necessariamente x D z.
Logo, pode-se escrever:
F E = D
Do mesmo modo, se x E y e y E z, então necessariamente x F
z e pode-se escrever
E E = F
a composição de duas relações quaisquer F, E, D e I tem um sentido e o
leitor pode verificar que essa composição corresponde à tabela seguinte
(fazer esta verificação a título de exercício):
I F E D
I I F E D
F F I D E
E E D F I
D D E I F

231

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Gérard Vergnaud

Pode-se igualmente verificar:


a comutatividade
F I = I F E I = I E
D I = I D F E = E F
F D = D F E D = D E

a associatividade
(I F) E = I (F E)

ou ainda
(F E) D = F (E D)
e de uma maneira geral
(R R’) R” = R (R’ R”)
quaisquer que seja, R, R’, R’’ como pertencentes ao conjunto das qua-
tro relações.
a existência de um elemento neutro I
F I = I F = F
E I = I E = E
D I = I D = D
I I = I
a existência de uma inversa para toda relação
D E = E D = I E é a inversa de D e
reciprocamente.
F F = I
I I = I F e I são respectivamente
suas próprias inversas.
enquanto no grupo de Klein todo elemento do grupo era em si seu pró-
prio inverso, esse não é o caso no grupo das quatro relações I, F, E e D,
uma vez que E tem como inversa D e reciprocamente.
Eis uma ilustração dessa forma de grupo, um pouco inesperada
para o leitor não prevenido, mas que pode ocasionar exercícios interes-
santes ao final do ensino básico39, o grupo dos inteiros módulo 4.

Lembrando, o ensino básico no sistema francês atende alunos da


39

faixa etária de 6 a 10 anos. N. T.

232

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A criança, a matemática e a realidade

Sejam as quatro classes dos números seguintes:


- aqueles cuja divisão por 4 tem como resto 0: 0, 4, 8 ... 4p ...
- aqueles cuja divisão por 4 tem como resto 1: 1, 5, 9 ... 4p + 1
- aqueles cuja divisão por 4 tem como resto 2: 2, 6, 10 ... 4p + 2
- aqueles cuja divisão por 4 tem como resto 3: 3, 7, 11 ... 4p +3
Levanta-se o problema de saber, conhecendo a classe de x e de y, a
qual classe x + y pertencem. Simbolicamente, vamos designar as quatro
classes por caracteres em negrito indicando o primeiro de seus elemen-
tos. Pode-se, por exemplo, colocar-se a questão seguinte:
x 2 y 3 a qual classe x + y pertencem?
A resposta é simples:
- se a divisão de x por 4 tem como resto 2 e aquela de y por 4 tem
como resto 3, a divisão de x + y por 4 terá como resto 1.
De fato:
x = 4p + 2
y = 4p’ + 3
x + y = 4 (p + p’) + 5 = 4p” + 4 + 1
= 4 (p” + 1) + 1 = 4p”’ + 1
A tabela de composição é a seguinte:
0 1 2 3
0 0 1 2 3
1 1 2 3 0
2 2 3 0 1
3 3 0 1 2
Ela é idêntica à tabela de composição das relações F, E, D e I do
exemplo precedente: basta substituir I por 0, F por 2, E por 1 e D por
3; é a tabela do grupo cíclico de quatro elementos.
Desse modo, existem vários grupos finitos (de dois elementos, de
seis elementos, etc.) e infinitos. Sua estrutura é sempre idêntica e respei-
ta as três propriedades fundamentais (associatividade, elemento neutro,
inversa) que definem a estrutura de grupo. Além disso, os grupos são
frequentemente comutativos, mas nem sempre.

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Gérard Vergnaud

A maior parte dos exemplos concretos de grupos que se pode


imaginar são, de fato, grupos de transformações ou de relações. Isso
se deve ao fato de que a propriedade da inversa é uma propriedade
das transformações e relações e não dos objetos elementares. É assim
que as medidas não formam um grupo porque se a adição das medidas
respeita plenamente as propriedades da associatividade e a do elemento
neutro, ela não respeita a propriedade da inversa: as medidas não têm
inversas, porque não há medidas negativas (apenas a medida 0 é, em si,
sua própria inversa).
Do mesmo modo, os conjuntos, munidos das leis de composição
que vimos (união, intersecção) não formam um grupo.
Examinemos rapidamente suas propriedades.
Seja E o conjunto de referência (ou parte cheia), e ∅ o conjunto
vazio (ou parte vazia), A, B e C as partes do conjunto de referência, A’
o complemento de A em E. Quaisquer que sejam A, B e C, pode-se
sempre escrever:
união intersecção
A B = B A A B = B A
(A B) C = A (B C) (A B) C = A (B C)
A = A = A A E = E A = A
A união e a intersecção são, portanto, comutativas, associativas e
admitem um elemento neutro: ∅ para a união, E para a intersecção.
Porém, olhemos a inversa:
Certamente, obtêm-se equações interessantes
A A’ = E A A’ =
mas E é o elemento neutro da intersecção, não da união; e ∅ é o ele-
mento neutro da união, não da intersecção.
Em geral, não há conjunto que, composto pela união com A
resulte no elemento neutro da união; também não há conjunto que,
composto pela intersecção com A, resulte no elemento neutro da in-
tersecção.
A união e a intersecção não são leis de grupo.

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A criança, a matemática e a realidade

LEI DE COMPOSIÇÃO INTERNA E LEI DE COMPOSIÇÃO


EXTERNA: OS TRÊS TIPOS DE ADIÇÕES

Não se fala de grupo a não ser que a composição de dois ele-


mentos quaisquer de um conjunto resulte em um elemento do mesmo
conjunto; diz-se então que a lei de composição é interna.
Fizemos a distinção, no capítulo anterior, entre três espécies de adi-
ções:
1. A adição de dois números naturais 8 + 6 = 14
(anotada com +)

2. A operação de um número relativo sobre 8 (+6) = 14


um número natural (anotada com ) 8 (- 6) = 2

3. A adição de dois números relativos (+8) (+6) = (+14)


(anotada com )
Pode-se colocar a questão de saber se esses diferentes tipos de adi-
ções formam um grupo, ao menos em relação ao primeiro e ao terceiro.
Com efeito, o segundo tipo não se constitui em uma lei de composi-
ção interna porque os elementos compostos não pertencem aos mesmos
conjuntos; diz-se então que a adição constitui-se em uma lei de com-
posição externa entre naturais e relativos, ou, ainda, que o conjunto dos
relativos opera pela lei sobre o conjunto dos naturais. Desenvolvere-
mos adiante, com a multiplicação, a noção de composição externa, mas
deve ficar claro que o problema da composição de elementos heterogê-
neos (naturais e relativos) aparece já com a adição. É somente no ensino
secundário que se identifica o conjunto dos naturais com o conjunto
dos números relativos, e essa identificação não se faz sem dificuldades
conceituais: não se pode, assim, pretender que ocorra essa identificação
no ensino básico; a forma mais corrente de adição encontrada nesse
nível de ensino permanece, então, como uma adição externa.
Quanto às duas outras espécies de adições, uma apenas dentre elas, a
adição de números relativos, possui propriedades características do grupo.
A adição de números naturais respeita plenamente as propriedades da as-
sociatividade e a do elemento neutro, mas não a da inversa, porque os nú-
meros naturais, como as medidas, não têm inversos. Portanto, os números
naturais não formam um grupo: a adição em N não é uma lei de grupo.

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Gérard Vergnaud

Das três espécies de adição que distinguimos, somente a terceira


permite, então, que se fale de grupo.
É somente na escola secundária, e os programas atuais o tomam
como objetivo das séries de sexta e quinta40, que a estrutura de grupo e,
notadamente, a do grupo dos inteiros relativos é estudada. Entretanto,
nada há contra a ideia de que exercícios sobre o grupo sejam feitos no
ensino básico. O estudo das transformações espaciais, das transforma-
ções das propriedades, das transformações gramaticais, das transforma-
ções aritméticas pede necessariamente o estudo do grupo.
Pode-se levar esse estudo sem dificuldade com as crianças, mesmo
nas séries dos cursos elementares41, mas sob a condição de que sejam es-
colhidos exemplos simples, que apelem a noções facilmente compreen-
didas pela criança, e desde que não se force em demasia o formalismo,
o que somente é possível na escola secundária.
No entanto, pode-se com facilidade fazer com as crianças a tabela
de composição de certos grupos de transformações, fazê-las calcular a
composta de uma sequência de transformações elementares, ou uma
transformação elementar ausente em uma sequência da qual se conheça
a composta. Com os menores, pode-se ter como limite problemas mais
simples que consistem em buscar o estado final, conhecendo-se o estado
inicial e a transformação, em buscar a transformação conhecendo-se o
estado inicial e o estado final, e em buscar o estado inicial conhecendo-
se a transformação e o estado final. Porém, esses problemas não impli-
cam qualquer cálculo no grupo porque o grupo não assume sentido
senão com a composição das transformações.

A recordar: o ensino ou nível secundário no sistema de ensino fran-


40

cês atende alunos da faixa etária de 11 a 14 anos, aproximadamente. E nesse


nível as séries “sixième” e “cinquième” têm, respectivamente, alunos de 11 e 12
anos de idade. N. T.
41
Como antes indicado, no sistema de ensino francês, o CE1 e o
CE2, do início da escolaridade básica, têm alunos da faixa etária de 7 e 8 anos
de idade. N. T.

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CAPÍTULO XI

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OS PROBLEMAS DE TIPO
MULTIPLICATIVO

Podem-se distinguir duas grandes categorias de relações multi-


plicativas, assim designando-se as relações que comportam seja uma
multiplicação seja uma divisão. A mais importante dentre elas, que é
utilizada para introduzir a multiplicação no ensino básico e que for-
ma o tecido da grande maioria dos problemas multiplicativos, é uma
relação quaternária e não uma relação ternária: por esse fato, ela não é
adequadamente representada pela escrita habitual da multiplicação: a x
b = c, pois que essa escrita comporta tão somente três termos. Somos
então levados, neste capítulo, a reexaminar completamente a noção de
multiplicação.

ISOMORFISMO DE MEDIDAS

A primeira grande forma de relação multiplicativa é uma relação


quaternária entre quatro quantidades: duas quantidades são medidas
de certo tipo e as duas outras medidas, de outro tipo. Eis alguns exem-
plos:
Exemplo 1
“Tenho 3 pacotes de iogurte. Há 4 iogurtes em cada pacote.
Quantos iogurtes eu tenho?”
Exemplo 2
“Minha mãe quer comprar tecido a R$ 24,80 o metro para fazer
um vestido e um paletó. Ela necessita de 3,50 metros de tecido.
Quanto ela deverá gastar?”
Exemplo 3
“Paguei R$ 12,00 por 3 garrafas de vinho. Quanto custa cada gar-
rafa?”

239

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Gérard Vergnaud

Exemplo 4
“Pedro tem R$ 12,00 e quer comprar pacotes de bala a R$ 4,00
o pacote. Quantos pacotes ele pode comprar?”
Exemplo 5
“Uma corrida de automóveis tem 247,760 km de percurso. Um
carro consome 6,785 litros a cada 100 quilômetros. Quanto ele
consumirá durante essa corrida?”
Exemplo 6
“Vou comprar 12 garrafas de vinho a R$ 19,50 por três garrafas.
Quanto vou gastar?”
Exemplo 7
“3 novelos de lã pesam 200 gramas. São necessários 8 para fazer
um pulôver. Qual vai ser o peso do pulôver?”

Esses exemplos são de dificuldades diferentes por razões que ana-


lisaremos adiante; mas todos eles podem ser representados por um es-
quema análogo, que não traz qualquer espécie de dificuldade para as
crianças e que mostra bem a relação existente entre as quatro quantida-
des: x designa a quantidade buscada.
exemplo 1 exemplo 2 exemplo 3 exemplo 4
pacotes iogurtes metros reais garrafas reais pacotes reais
1 4 1 24,80 1 x 1 4
3 x 3,50 x 3 12 x 12

exemplo 5 exemplo 6 exemplo 7


quilômetros litros garrafas reais novelos gramas
100 6,785 3 12,50 3 200
247,760 x 12 x 8 x

O esquema utilizado em todos esses exemplos não é nada mais


que um quadro de correspondência entre duas espécies de quantida-
des (os pacotes de iogurte e os iogurtes, os metros de tecido e o preço
pago, etc.). Ele isola quatro quantidades particulares em um quadro

240

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A criança, a matemática e a realidade

mais completo que representaria essa correspondência: dessa forma,


no exemplo 1, retêm-se do quadro completo abaixo somente as quatro
quantidades colocadas nos quadrados:
pacotes iogurtes
1 4
2 8
3 12
4 16
5 20
6 24
etc.
Esse quadro de correspondência traduz o isomorfismo de dois
tipos de medidas (número de pacotes e número de iogurtes). Será ainda
necessário precisar mais adiante em que consiste esse isomorfismo.
Nos exemplos anteriores são novamente encontrados problemas
que podem ser resolvidos em princípio sem levar em conta procedimen-
tos não canônicos empregáveis em certos casos:
- por uma multiplicação (exemplos 1 e 2);
- por uma divisão (exemplos 3 e 4);
- por uma regra de três (exemplos 5, 6 e 7).
Entretanto, a dificuldade respectiva dos exemplos 1 e 2, dos
exemplos 3 e 4, dos exemplos 5, 6 e 7 não é a mesma.
Entre o exemplo 1 e o exemplo 2 é reencontrada a diferença en-
tre números inteiros e números decimais, entre grandezas discretas e
grandezas contínuas. Não vamos insistir ainda mais a respeito, mas é
evidente que a introdução da multiplicação como adição reiterada (3
pacotes de 4 iogurtes é 4 iogurtes mais 4 iogurtes mais 4 iogurtes) faz-se
com maior facilidade com grandezas discretas e números inteiros. São
necessárias explicações suplementares para fazer a criança compreender
que o preço de 3,50 metros é o preço de 1 metro, mais o preço de 1 me-
tro, mais o preço de 1 metro, mais o preço de 0,50 metros; e que isto é
o mesmo que multiplicar o preço de 1 metro por 3,50.
Entre o exemplo 3 e o exemplo 4, a diferença é de outra natureza:
no exemplo 3 é preciso encontrar o valor unitário, conhecendo-se o
elo de correspondência entre duas grandezas de natureza diferente; no

241

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Gérard Vergnaud

exemplo 4, o valor unitário é dado e é preciso encontrar o número de


unidades da primeira espécie correspondente a uma grandeza dada de
outra espécie.
Embora a operação que permite resolver esses problemas seja, em
ambos os casos, uma divisão, esse fato não coloca em jogo as mesmas
noções, tal como mostram os esquemas antes apresentados.
No exemplo 3 divide-se R$ 12,00 por 3 para encontrar x reais,
tal como o representa a relação vertical de baixo para cima. O operador
÷3 é um operador sem dimensão (um escalar como veremos adiante)
que apenas reproduz na coluna da direita o que se passa na coluna da
esquerda, e que exprime a passagem de 3 garrafas para 1 garrafa. O ope-
rador ÷3 é, desse modo, o operador inverso do operador x 3 que se
faz passar de 1 garrafa para 3 garrafas.
Exemplo 3
garrafas reais

1 x

x3 3 3

3 12

No exemplo 4, divide-se R$ 12,00 por 4 para se obter x pa-


cotes tal como o representa a relação horizontal da direita para a es-
querda. Essa operação ÷ 4 é uma função inversa da função direta
x R$ 4,00/pacotes que permite a passagem para a linha de cima, de um
pacote ao preço de um pacote, quer dizer, da unidade ao valor unitário.

242

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A criança, a matemática e a realidade

Exemplo 4
pacotes reais

reais/pacote
x4

1 4

x 12

As duas divisões dos exemplos 3 e 4 não colocam em jogo os


mesmos cálculos relacionais, e a última representa, aliás, um caso mais
delicado que a primeira.
• ANÁLISE DETALHADA DE UM EXEMPLO SIMPLES42
A análise precedente vale para a multiplicação simples: retome-
mos o exemplo 1 e analisemos em detalhe o conjunto de relações nele
presentes.
pacotes iogurtes

1 4
iogurtes/pacote
x4
x3 x3

3 x
iogurtes/pacote
x4

Essa análise e as demais que constam deste capítulo são, evidente-


42

mente, destinadas aos professores, não aos alunos.

243

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Gérard Vergnaud

1 e 3 são números que representam as quantidades de pacotes.


Eles são medidas.
4 e x são números que representam as quantidades de iogurtes.
Eles também são medidas, mas de outra natureza. Os operadores ver-
ticais x 3 são operadores sem dimensão, ou escalares, que permitem
passar de uma linha à outra na mesma categoria de medidas.
Os operadores horizontais x 4 representam funções e expressam
a passagem de uma categoria de medidas à outra, de onde o emprego de
uma forma verbal que expressa uma relação:
iogurte por pacote = iogurte/pacote.
Existem, de fato, duas formas de encontrar x. A primeira consiste
em aplicar o operador sem dimensão x 3 à quantidade 4 iogurtes. A
segunda, em aplicar a função
iogurtes/pacote

x4 à quantidade 3 pacotes

primeira forma 4 iogurtes

x3

segunda forma

iogurtes/pacote
x4
3 pacotes x iogurtes

Essas duas formas são equivalentes, mas também distintas, e o


exemplo dos dois tipos de divisão, visto antes, mostra que não se deve
confundi-las.
De qualquer modo, somente essa análise permite compreender
que, efetuando-se 4 x 3 (ou 3 x 4), não se multiplica iogurtes por pa-
cotes ou pacotes por iogurtes (por que resultariam então iogurtes e não
pacotes?).

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A criança, a matemática e a realidade

É possível, aliás, verificar o quanto é bem fundamentada a análise


precedente utilizando-se outra análise, aquela da própria relação quater-
nária. Essa relação pode, com efeito, ser formulada de duas maneiras:

Primeira formulação:
x iogurtes estão para 4 iogurtes, assim como 3 pacotes estão para
1 pacote.
Segunda formulação:
x iogurtes estão para 3 pacotes, assim como 4 iogurtes estão para
1 pacote.
Vamos escrever isso na forma de proporções e transformemos as
equações assim obtidas. Trata-se de “equações de dimensões”.
Primeira formulação:
x iogurtes 3 pacotes

4 iogurtes 1 pacote
Multipliquemos os dois termos da equação por “4 iogurtes”.
3 pacotes x 4 iogurtes
x iogurtes
1 pacote
Observa-se assim uma forma simplificada (denominador igual a
1) da regra de três que mostra que a multiplicação em pauta não consti-
tui uma lei da composição binária, mas uma relação mais complexa.
Simplifiquemos as dimensões do segundo termo
3 pacotes x 4 iogurtes 3 x 4 iogurtes
x iogurtes
1 pacote 1
e eliminemos o denominador (igual a 1)
x iogurtes 3 x 4 iogurtes
assim sendo, reencontramos a primeira forma empregada para ob-
ter x.
Segunda formulação:
x iogurtes 4 iogurtes

3 pacotes 1 pacote

245

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Gérard Vergnaud

Multipliquemos os dois termos da equação por “3 pacotes”.


x iogurtes = 3 pacotes x 4 iogurtes 3 pacotes x 4 iogurtes/pacote
=
1 pacote

Essa forma intermediária permite voltar à segunda forma empre-


gada para calcular x; mas a operação pode, naturalmente, ser transfor-
mada de maneira análoga ao que foi feito acima.
3 pacotes x 4 iogurtes
x iogurtes
1 pacote

x iogurtes 3 x 4 iogurtes

Essa última análise é bastante conhecida em física sob o nome


de análise dimensional. Não é possível praticá-la, dessa forma, com as
crianças do ensino básico, uma vez que a noção de proporção está no
limite da capacidade dos melhores alunos ao final da escola elementar.
Porém, ela permite elucidar completamente as relações presentes em
uma multiplicação e mostrar, desse modo, que a multiplicação a mais
simples coloca, de fato, em jogo um cálculo relacional que envolve qua-
tro quantidades e vários tipos de operações.
Os exemplos 5, 6 e 7 constituem ilustrações mais complexas da
mesma relação quaternária.
Pode-se, de fato, ver que, nesses exemplos, reencontra-se o mes-
mo esquema fundamental de correspondência observado nos quatro
primeiros exemplos. Contudo, o fato novo está em que nenhuma das
quatro quantidades é a unidade e que a regra de três a que se chega,
nesse caso, é uma regra de três não deturpada (denominador diferente
de 1). Isso não quer dizer, porém, que cada um dos exemplos 5, 6 e 7
seja igualmente difícil: a regra de três teórica à qual se chega traz, com
efeito, dificuldades distintas e em diferentes graus conforme seja o de-
nominador igual a 100 (exemplo 5), conforme se possa fazer a passagem
de uma linha à outra por meio de um operador multiplicativo simples
não fracionário (exemplo 6); ou conforme seja a regra de três irredutível
(exemplo 7).

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A criança, a matemática e a realidade

Analisemos esse último exemplo e tentemos dele retirar todas


as noções nele presentes, o que não significa de qualquer modo que a
criança deva possuir todas essas noções para resolver o problema.

ANÁLISE VERTICAL (ESCALAR)

novelos gramas

1 v

3 3

x8 3 200 x8

x x
8/3 8/3

8 x
Essa análise vertical está centrada na noção operador-escalar (sem
dimensão), a qual permite passar de uma linha à outra em uma mesma
categoria de medidas.
Primeira etapa
Da mesma maneira pela qual se passa de 3 novelos a 1 novelo
(dividindo-se por 3), passa-se do peso de 3 novelos (200) ao peso
de um novelo (v, valor unitário).
Segunda etapa:
Da mesma maneira que se passa de um novelo a 8 novelos (mul-
tiplicando-se por 8), passa-se do peso de um novelo (v) ao peso
de 8 novelos (x).
Síntese:
Pode-se também dizer que se passa diretamente de 3 novelos a 8
novelos, multiplicando-se pelo operador fracionário x 8/3 , o
que não é nada mais que a aplicação sucessiva dos dois operado-

247

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Gérard Vergnaud

res ÷3 e x 8 . O mesmo operador fracionário permite também


passar do peso de 3 novelos (200) ao peso de 8 novelos (x).
A noção de fração é aqui introduzida a partir da noção de ope-
rador, e corresponde à composição de dois operadores multiplicativos
simples, uma divisão e uma multiplicação. O operador fracionário ob-
tido nesse exemplo é uma fração complexa, mas ele existe em casos
onde o operador resultante da composição é um operador simples: é o
caso do exemplo 6 onde a composição de ÷3 e de x12 resulta no
operador simples x 4 .
Os operadores multiplicativos são componíveis entre si, tal como
o mostram os exemplos que seguem.
A aplicação do operador x 12
x4 x3 x 12 equivale à aplicação sucessiva
dos operadores x 4 e x 3 .

x4 2 x2

4 5 20
Exemplos complexos que não
x 2/3 x3 x2
dizem respeito ao ensino básico.

x 2/3 x 5/4 x 5/6

Sabe-se43 que essa composição de operadores multiplicativos,


como a composição das transformações aditivas, é uma lei do grupo
cumulativo (comutatividade, associatividade, elemento neutro, inver-
so). A comutatividade permite inverter a ordem da aplicação dos ope-
radores elementares e efetuar, por exemplo, a multiplicação x 8 antes
da divisão ÷3 .
Logo, o operador fracionário x 8/3 representa, de forma sin-
tética, a aplicação sucessiva de dois operadores multiplicativos (uma
divisão ÷3 e uma multiplicação x 8 , começando-se seja pela divisão, seja
pela multiplicação).

43
O adulto que conhece matemática, não a criança.

248

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A criança, a matemática e a realidade

Pode-se também considerar que o operador fracionário x 8/3


representa a multiplicação pela relação
ponto de chegada
ponto de partida
ou, ainda, que o problema coloca em jogo uma proporção (igualdade
de duas relações).
8 novelos peso de 8 novelos x gramas
= =
3 novelos peso de 3 novelos 200 gramas
A noção de relação, a de relação-operador e a de proporção são
difíceis e não são compreendidas pela maior parte das crianças do curso
médio44. Porém, não se deve daí concluir que o professor não deva in-
troduzir situações e explicações que impliquem essas noções. Contudo,
ele deve fazê-lo com prudência, sem queimar etapas e apoiando-se, ao
máximo, nas noções mais claras para as crianças, como aquela de ope-
rador.
O quadro abaixo resume esquematicamente as diferentes análises
que estimamos necessário elucidar para o professor que quer compreen-
der o desenvolvimento das noções em jogo no isomorfismo de medidas
e nos problemas que envolvem essas estruturas. Essas “etapas” desenro-
lam-se por um longo período durante os dois últimos anos do ensino
básico e além deste, até as séries quarta e terceira45 ao menos. Logo, não
causam espanto as dificuldades encontradas ao final do ciclo elementar
com as noções de fração, de relação e de proporção.
novelos gramas
1 v
I. Busca da solução do 3 3
problema pela unidade e
o valor unitário v 3 200

x8 x8
8 x

Lembrando, no sistema de ensino francês, os cursos médios CM1


44

e CM2 atendem alunos da faixa etária de 9 e 10 anos, respectivamente, final


do ensino básico. N. T.
45
No sistema de ensino francês, séries do nível secundário (“quatriè-
me”, “troisième”) que atendem alunos da faixa etária de 13 a 14 anos. N. T.

249

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Gérard Vergnaud

novelos gramas

II. Aplicação sucessiva dos dois 3 200


operadores (primeiro, divisão)
3 3

x8 x8
8 x

III. Escrita do operador 3 200


fracionário (simples convenção
da escrita nesse nível)
x 8/3 x 8/3

8 x

IV. Aplicação sucessiva de


3 200
dois operadores (primeiro, x8 x8
multiplicação por
comutatividade)
3 3
8 x
V. Noção de relação e de relação- 8 novelos
operador 3 novelos
- relação de duas quantidades

a relação de duas quantidades é compreendida com mais facilidade com


relações inferiores a 1; por exemplo, 1/2, 1/3, 1/4 ... 2/3 ... 3/4
Em troca, a noção de porcentagem, que supõe a noção de relação, escla-
rece essa noção para as relações inferiores a 1.
8 (novelos)
- relação-operador x 8/3 3 novelos x = 8 novelos
3 (novelos)

ponto de chegada
ou multiplicação pela relação
ponto de partida

250

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A criança, a matemática e a realidade

VI. Proporção ou igualdade 8 novelos x gramas


=
de relações 3 novelos 200 gramas

VII. Igualdade de relações-operadores 8 x


x = x
3 200
VIII. Regra de três: análise da escrita
novelos
gramas gramas 8
x = 200 x novelos
3
gramas novelos
gramas 200 x8
x =
novelos
3

para os números para as dimensões


8 novelos
x = 200 x gramas = gramas x relação
3 novelos
200 x 8 gramas x novelos
x= gramas =
3 novelos
gramas x novelos
(simplificação) gramas =
novelos
A análise vertical que acabamos de fazer não é, então, simples.
Contudo, ela não esgota a questão do isomorfismo de medidas, uma
vez que é preciso completá-la por uma análise (horizontal) da noção de
função linear.
• ANÁLISE HORIZONTAL (FUNÇÃO)
Novelos Gramas
f
3 200
f
8 x
Essa análise horizontal é centrada na noção f de operador-função
que permite passar de uma categoria à outra.

251

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Gérard Vergnaud

Primeira etapa
O operador-função f que faz passar de 8 novelos a x gramas é o
mesmo que faz passar de 3 novelos a 200 gramas.
Segunda etapa
Esse operador-função não é nada mais que a multiplicação pela
relação
ponto de chegada
ponto de partida
Logo, é preciso encontrar esse operador sobre a linha de cima
onde é possível:
novelos gramas
x 200/3
3 200

200 gramas
3 novelos x = 200 gramas
3 novelos

e aplicá-lo, em seguida, a 8 novelos para encontrar:

200
x gramas = 8 novelos x gramas/novelos
3

Essa análise horizontal situa-se em um nível nocional muito ela-


borado e, aliás, está na raiz das dificuldades encontradas para fazer a
criança compreender a noção de função. Se a noção de correspondência
não apresenta qualquer dificuldade, nem a representação em tabela, a
análise dessa correspondência em termos de função, é por seu lado,
muito mais delicada porque implica não somente a noção de relação
numérica, mas também aquela de quociente de dimensões (no caso,
gramas/novelos).
A busca de f, operador que permite passar de 3 novelos a 200
gramas, é facilitada pela descoberta que é também a do operador que
faz passar de 1 novelo ao peso de um novelo e que f tem então o mesmo

252

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A criança, a matemática e a realidade

valor numérico que o peso unitário que é obtido aplicando-se a 200


gramas o operador ÷ 3 .
novelos gramas
f
1 v
3 3
f
3 200
f
8 x

Abordemos agora a segunda grande forma de relação multipli-


cativa.

PRODUTO DE MEDIDAS

Essa forma de relação consiste em uma relação ternária entre três


quantidades, das quais uma é o produto das duas outras ao mesmo
tempo no plano numérico e no plano dimensional.
Eis alguns exemplos:

Exemplo 1
“3 rapazes e 4 moças querem dançar. Cada rapaz que dançar com
cada moça e cada moça, com cada rapaz. Quantos seriam os casais
possíveis?”

Exemplo 2
“Quer-se fabricar bandeirolas com tecido de duas cores diferentes
(vermelho e azul). Fabricando-se bandeirolas de três faixas como
a que está abaixo, quantas bandeirolas diferentes podem ser fa-
bricadas?”

253

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Gérard Vergnaud

A análise desse exemplo mostrará que se trata de um produto de três


quantidades e não de duas (generalização a maior de duas dimensões).
Exemplo 3
“Uma sala retangular tem 4 m de comprimento e 3 m de largura.
Qual é sua área?”
Exemplo 4
“Trocando somente de pulôver e de cachecol, Ana pode ter 15
trajes diferentes. Ela tem três pulôveres; quantos cachecóis ela
tem?”
Exemplo 5
“Uma piscina tem uma superfície de 250 metros quadrados e são
necessários 625 metros cúbicos de água para enchê-la. Qual é a
profundidade média dela?”

O esquema mais natural para representar essa forma de relação é


aquele da tabela cartesiana porque, de fato, é a noção de produto carte-
siano de conjuntos que explica a estrutura do produto de medidas.
Vimos no capítulo referente às atividades classificatórias o que é
um produto cartesiano. Utilizemos essa noção para a análise dos exem-
plos que seguem.
• Análise do exemplo 1
Chamemos de R ={a, b, c} o conjunto dos rapazes e M = {f, g, h,
i} o conjunto das moças. O conjunto C dos casais possíveis é o produto
cartesiano do conjunto de rapazes pelo conjunto de moças,
C=RxM
assim como mostra a tabela cartesiana abaixo:
M
f g h i

a (a, f) (a, g) (a, h) (a, i)


R
b (b, f) (b, g) (b, h) (b, i)

c (c, f) (c, g) (c, h) (c, i)

254

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A criança, a matemática e a realidade

Um casal consiste na associação de um elemento do primeiro


conjunto com um elemento do segundo. O número de casais é igual ao
produto do número de rapazes pelo número de moças.
x casais = 3 rapazes x 3 moças

para os números para as dimensões46


x = 3 x 4 casais = rapazes x moças
• Analisemos, agora, o exemplo 3
Se o retângulo é decomposto em quadrados (linhas e colunas de
um metro de comprimento) como se costuma fazer, mostra-se que a
medida da superfície é o produto da medida da grande dimensão (com-
primento) pela medida da pequena dimensão (largura), tanto no plano
das dimensões como no plano numérico.

x metros quadrados = 3 metros x 4 metros

para os números para as dimensões


x=3x4 metros quadrados = metros x metros
A noção de metro quadrado tem, assim, dois sentidos complemen-
tares, aquele de quadrado de um metro de lado, e aquele de produto de
duas medidas de comprimento (metro x metro). Apenas o segundo sentido
permite estender às formas, que não se deixam decompor em quadrados
(triângulos, círculos, etc.), a relação fundamental que acabamos de ver.
comprimento x comprimento = comprimento ao quadrado
É essa relação que dá um sentido à escrita simbólica das unidades
de área: m2, cm2, km2, etc.

46 Desculpem-nos por esta escrita abusiva que tem a vantagem de


mostrar melhor a relação do produto de medida com o produto cartesiano.

255

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Gérard Vergnaud

• O exemplo 4 ilustra o fato de que existe uma forma de divisão espe-


cífica a essa forma de relação multiplicativa, a qual não poderia ser pura
e simplesmente confundida com as divisões que envolvem o isomorfis-
mo de medidas.
Para encontrar o número de cachecóis, é necessário dividir o nú-
mero de trajes possíveis pelo número de pulôveres em conformidade
com as relações seguintes:
15 trajes = 3 pulôveres x x cachecóis

para os números para as dimensões


15 = 3 x x trajes = pulôveres x cachecóis
Um traje possível não é nada mais que um par (pulôver possível,
cachecol possível).
• O exemplo 2 é um exemplo de produto cartesiano de três conjuntos.
O conjunto de cores possíveis para a primeira tira, o conjunto das cores
possíveis para a segunda, o conjunto das cores possíveis para a terceira.
Se esses conjuntos fossem distintos (chamemo-los de C1, C2 e C3) ter-
se-ia como conjunto B as bandeirolas possíveis
B = C1 C2 C 3
Como as cores possíveis são as mesmas para as três tiras:
C = (vermelho, branco)
tem-se
B=C C C
e a medida de B é igual ao cubo da medida de C
x bandeirolas = 2 cores x 2 cores x 2 cores

para os números para as dimensões


x = 2 x 2 x 2 = 23 bandeirolas = cores x cores x cores
= cores ao cubo

256

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A criança, a matemática e a realidade

Uma bandeirola é definida por um tripé de três cores, a da pri-


meira faixa, a da segunda e a da terceira, o que mostra o quanto é
bem fundamentada a análise acima. Esse exemplo ilustra a extensão a
três medidas da relação produto de medidas. Sua generalização não traz
qualquer problema.
• O exemplo 5 ilustra a noção de volume e permite ver que o volume é
o produto de uma área por um comprimento. Pode-se mesmo imaginar
uma representação plana desse problema que permite fazer aparecer o
mesmo esquema cartesiano tal como o empregado para os exemplos 1
e 3.

profundidade média
x 625 m 3
da água

250 m 3
superfície da piscina
Porém, pode-se também empregar, é claro, uma representação do
volume da piscina, sobretudo se o comprimento e a largura dela são
conhecidos.
A relação fundamental é, evidentemente:
625 metros cúbicos = 250 metors quadrados x x metros

para os números para as dimensões


625 = 250 x x metros cúbicos = metros quadrados x metros
x = 625 x em metros
250
Para forçar tanto quanto possível a perspectiva da análise dimen-
sional com esse exemplo, pode-se fazer duas observações finais:
1. O volume é o produto de uma área pelo comprimento, mas
como a área é ela mesma o produto de um comprimento por ou-
tro comprimento, o volume é um comprimento ao cubo, o que
dá sentido à escrita simbólica das unidades de volume: m3, dm3,
cm3, etc.

257

A criança, a matemática e a realidade.indd 257 15/12/2009 13:58:35


Gérard Vergnaud

m3 = m2 x m = m x m x m
2. A possibilidade, por nós empregada no caso das proporções, de
simplificar uma relação de dimensões, suprimindo as dimensões
que não se encontram ao mesmo tempo no numerador e no de-
nominador, é igualmente utilizável aqui.
625 metros cúbicos = 250 metros quadrados x x metros
625 metros cúbicos
x metros =
250 metros quadrados
625 metros x metros x metros
simplificação: x metros =
250 metros x metros
Mais uma vez, a mesma dimensão de um e de outro lado do sinal
de igualdade é encontrada.

CONCLUSÃO SOBRE A NOÇÃO DE DIMENSÃO

As duas grandes formas de relações multiplicativas que acabamos


de descrever não deixam de ter relação entre si: a análise dimensional
permite mesmo estabelecer essa relação de modo muito simples. De fato,
a utilização de um operador-função para a solução dos problemas da
primeira forma (isomorfismo de medidas) permite encontrar a segunda
forma (produto de medidas).
Seja, por exemplo, o problema seguinte:
“Um avião voa durante 6 horas à velocidade de 650 quilômetros
por hora. Que distância ele percorre?”
Trata-se claramente de uma relação da primeira forma (isomor-
fismo de medidas).
Tempo em horas Distância em quilômetros
1 650
6 x
x 650

Mas um dos procedimentos utilizáveis consiste em multiplicar


a medida 6 horas pelo operador-função 650 quilômetros/hora, o qual
pode ser também considerado como uma medida de velocidade:

258

A criança, a matemática e a realidade.indd 258 15/12/2009 13:58:35


A criança, a matemática e a realidade

x km = 6 horas x 650 km/hora


medida da distância = medida do tempo x medida da velocidade
d=vxt
Esta última operação retoma a segunda forma de relação (produ-
to de medidas).
Inversamente, pode-se analisar o produto de medidas como um
duplo isomorfismo de medidas (dupla proporcionalidade).
Seja, por exemplo, o caso do número de casais: pode-se dizer que
ele é, ao mesmo tempo, proporcional ao número de rapazes (para um
número constante de moças) e ao número de moças (para um número
constante de rapazes).
Do mesmo modo, a área de um retângulo é, de um lado, pro-
porcional ao comprimento (quando a largura permanece constante) e à
largura (quando o comprimento permanece constante).
Pode-se mesmo considerar que o produto de medidas não é bem
compreendido pelas crianças a não ser quando elas o analisam como
uma dupla proporcionalidade. Em todo o caso, é esta dupla proporcio-
nalidade que justifica em física a identificação de uma dimensão a um
produto de dimensões mais simples. Ocorre da mesma forma para os
conceitos de superfície e de volume.
Existem então dimensões simples, dimensões-produto, dimensões-
quociente, e “equações de dimensões” podem ser escritas entre elas

comprimento, tempo, peso, custo ... são dimensões simples


área, volume ... são dimensões-produto
velocidade, densidade, valor unitário são dimensões-quociente.

As dimensões simples podem ser diretamente medidas. As di-


mensões-produto e as dimensões-quociente são, muitas vezes, medidas
de forma indireta, tendo como intermediárias as dimensões simples que
as compõem:

área = produto de um comprimento por uma largura


velocidade = quociente de uma distância por um tempo
etc.

259

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Gérard Vergnaud

mas elas podem também ser medidas diretamente:


revestimento de uma superfície por uma composição quadriculada
velocímetro
etc.
Acontece também de se poder medir indiretamente uma dimen-
são simples empregando-se uma outra medida simples e uma medida-
quociente, como no exemplo anterior do avião:
distância percorrida = tempo decorrido x velocidade
Em suma, as relações multiplicativas prestam-se tão somente a
um conjunto de composições numéricas (multiplicações, divisões, re-
gras de três simples e compostas, etc.), mas também a composições so-
bre as dimensões.
Acabamos de ver, neste capítulo, que as regras do cálculo dimen-
sional são análogas às regras do cálculo numérico referente à multiplica-
ção e à divisão. Essa análise, que é destinada aos professores, não pode
evidentemente ser reproduzida tal e qual para as crianças; entretanto,
pode-se nela inspirar-se. Sobretudo, essa análise é indispensável à com-
preensão das dificuldades reencontradas pelas crianças.

CLASSES DE PROBLEMAS DE TIPO MULTIPLICATIVO

Numerosas classes de problemas podem ser identificadas segundo


a forma da relação multiplicativa, segundo o caráter discreto ou contí-
nuo das quantidades em jogo, segundo as propriedades dos números
utilizados, etc.
Vamos nos contentar aqui em distinguir as principais classes de
problemas.
• ISOMORFISMOS DE MEDIDAS
O isomorfismo de medidas coloca em jogo quatro quantidades,
mas nos problemas mais simples, sabe-se que uma dessas quantidades
é igual a um. Logo, há três grandes classes de problemas conforme seja
a incógnita uma ou outras das três outras quantidades. Ilustremos essas
três classes por meio de esquemas (x representa a incógnita):

260

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A criança, a matemática e a realidade

Multiplicação
1 a
b x

Divisão: busca do valor unitário


1 x
b c

Divisão: busca da quantidade de unidades


1 a
x c
Cada uma dessas três classes subdivide-se em numerosas subclas-
ses. Tomemos o caso da multiplicação; eis vários exemplos que colocam
em evidência dificuldades muito desiguais:
números inteiros pequenos números inteiros grandes
1 3 1 42
2 x 183 x

valor unitário decimal números decimais


1 2,75 1 6,08
7 x 5,74 x

valor unitário inferior a 1 números de unidades inferior a 1


1 0,25 1 6,08
7 x 0,42 x

Algumas dessas subclasses são ainda difíceis para a maior parte


das crianças ao final da escola elementar, principalmente as que corres-
pondem aos três últimos exemplos.

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Gérard Vergnaud

Subclasses análogas podem ser identificadas para cada uma das


duas classes de problemas de divisão: o leitor pode reconstituí-las facil-
mente. Cada uma dentre elas merece uma atenção particular e é impor-
tante ilustrar uma mesma subclasse por exemplos emprestados de domí-
nios diferentes. É igualmente muito importante fazer com que as crianças
analisem sob o esquema único da relação quaternária as diferenças entre
classes e subclasses de problemas.
• CASO DE UM ÚNICO ESPAÇO DE MEDIDAS
A análise em termos de operadores-escalares é compreendida fa-
cilmente pelas crianças, mas ela implica uma distinção entre medida e
escalar que pede um aprofundamento. Vamos ver em um exemplo como
se pode provocar a reflexão de crianças desde o CE2 ou o CM147.
“São necessários 2 metros de tecido para se fazer uma saia. São
necessários três vezes mais para fazer um conjunto. São necessá-
rios então 6 metros para fazer um conjunto.”
metros

saia 2
x3
conjunto 6

Esse exemplo ilustra uma forma de relação multiplicativa que não


havíamos antes examinado explicitamente, e que coloca em jogo uma
correspondência sem ser, no entanto, um isomorfismo de medidas. Há,
com efeito, nesse exemplo, tão somente uma categoria de medidas, os
metros de tecido, e a correspondência é estabelecida não entre quatro
quantidades, mas entre duas quantidades, de um lado, e dois objetos
saia e conjunto, de outro.
O número 2 representa uma medida em metro assim como o
número 6, enquanto o número 3 representa um operador-escalar, ver-
balmente indicado pela palavra “vezes”.

Recordando, CE2 e CM1 são cursos da escola elementar francesa,


47

tendo como alunos crianças de 8 e 9 anos, respectivamente.

262

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A criança, a matemática e a realidade

As expressões linguísticas “três vezes mais”, “três vezes menos” es-


tão inevitavelmente presentes no enunciado dessa forma de relação. Elas
não são utilizadas evidentemente no estudo dos isomorfismos de medi-
das, exceto quando é explicitado o papel dos operadores-escalares.
- dir-se-á, por exemplo, que “três garrafas custam três vezes mais
que uma garrafa”.
O exemplo acima, como todo exemplo análogo, permite distin-
guir três classes de problemas – e notadamente dois tipos de divisão:
busca de uma medida e busca de um escalar.
Eis os três esquemas possíveis:
Multiplicação Divisão Divisão

busca de uma medida busca de um escalar


saia 2 saia x saia 2
x3 x3 xx
conjunto x conjunto 6 conjunto 6
e os enunciados correspondentes:

Multiplicação:
“São necessários 2 metros de tecido para fazer uma saia; são ne-
cessárias três vezes mais para fazer um conjunto. Quanto de teci-
do é necessário para fazer um conjunto?”

Divisão: busca de uma medida


“São necessárias três vezes mais de tecido para fazer um conjunto
do que uma saia. São necessários 6 metros para um conjunto.
Quanto de tecido é necessário para fazer uma saia?”

Divisão: busca de um escalar


“São necessários 2 metros de tecido para fazer uma saia, 6 metros
para um conjunto. Quantas vezes mais são necessárias para fazer
um conjunto (em relação a uma saia)?”

A forma verbal das perguntas “quanto de tecido” e “quantas ve-


zes mais” marca a diferença entre a noção de medida e a de escalar.
Essas observações seriam talvez inúteis se, na solução de problemas, as

263

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Gérard Vergnaud

crianças não fossem frequentemente levadas a descobrir e a explicitar os


operadores, e não apenas as medidas.
• PRODUTO DE MEDIDAS
Veremos no capítulo “Representação e solução de problemas
complexos” diferentes classes de problemas que colocam em jogo a re-
gra de três. Para encerrar este capítulo, vamos nos contentar em lembrar
que a segunda grande forma de relação multiplicativa, o produto de
medidas, permite distinguir duas classes de problemas:

Multiplicação: encontrar a medida-produto, conhecendo-se as


medidas elementares.

Divisão: encontrar as medidas elementares, conhecendo-se a ou-


tra e a medida produto.

Entretanto, ainda nesses casos numerosas subclasses devem ser


identificadas conforme as propriedades dos números empregados (intei-
ros, decimais, números grandes, números inferiores a 1) e conforme os
conceitos aos quais eles remetem. Tomemos o caso da divisão; eis dois
exemplos que ilustram as dificuldades específicas de certos conceitos:

Produto discreto-discreto
“Um comerciante quer colocar à disposição dos clientes 15 varie-
dades de sorvetes cobertos de chocolate. Ele dispõe de três varieda-
des de chocolate. Quantas variedades de sorvetes ele deve ter?”

Produto contínuo-contínuo
“Um retângulo tem uma superfície de 18,66 metros quadrados e
uma largura de 3,23 metros. Qual é seu comprimento?”

Produto contínuo-contínuo e noção de média


“Uma piscina tem uma área de 265,4 metros e são necessários
633,3 metros cúbicos de água para enchê-la. Qual é a profundi-
dade média da piscina?”

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A criança, a matemática e a realidade

Portanto, o estudo das relações multiplicativas mostra que há di-


versos tipos de multiplicação e de divisão, ou melhor, várias classes de
problemas cuja solução pede uma multiplicação ou uma divisão. A esse
respeito, porém, nós nos limitamos aos aspectos mais importantes.
A distinção dessas diferentes classes e sua análise devem ser cuida-
dosamente abordadas a fim de ajudar a criança a reconhecer a estrutura
dos problemas e a encontrar o procedimento que levará a sua solução.
Não se deve subestimar a dificuldade de certas noções como as de rela-
ção, de proporção, de fração e de função que exigem precauções didá-
ticas importantes bem depois do ensino elementar. Apesar disso, essas
noções devem ser tratadas desde o ensino elementar.

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CAPÍTULO XII

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REPRESENTAÇÃO E SOLUÇÃO DE
PROBLEMAS ARITMÉTICOS COMPLEXOS

As situações que podem ser vistas como problemas de aritmética


elementar não se reduzem em geral a uma relação apenas. A análise das
relações elementares que foi feita nos capítulos anteriores é, assim, in-
suficiente para dar uma imagem completa das questões que existem na
solução de problemas de aritmética. Agora, é necessário abordar proble-
mas mais complexos, nos quais várias relações e várias questões possíveis
estão em jogo.
O objetivo deste capítulo é o de mostrar, com a ajuda das distin-
ções feitas antes, como se podem representar os problemas complexos e
suas soluções e como se pode tratá-los no ensino elementar. A aquisição
de noções não é independente da solução de problemas que colocam
essas noções em ação. A solução de problemas é, ao mesmo tempo, um
meio e um critério da aquisição das noções.
Um meio porque a análise dos problemas, das soluções e dos er-
ros é pedagogicamente essencial para fazer as crianças compreenderem
quais relações são importantes e como elas podem ser tratadas.
Um critério porque o fracasso em transformar e em compor rela-
ções traduz lacunas ou desconhecimentos.
Não é possível elaborar uma classificação completa de problemas
complexos porque o número de possibilidades aumenta de forma expo-
nencial em relação ao número de relações elementares envolvidas. Neste
capítulo, vamos nos contentar em analisar três exemplos:

- O primeiro comporta somente relações aditivas.


- O segundo comporta somente relações multiplicativas.
- O terceiro é misto.

Para cada um desses exemplos, mostraremos como se pode fazer


trabalhar as crianças e tentaremos elucidar algumas questões psicopeda-
gógicas subjacentes.

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Gérard Vergnaud

Esses exemplos são relativamente complexos. Tais como são, po-


dem ser objeto de um trabalho coletivo, mas, de nenhuma forma, um
trabalho individual. Para um trabalho individual é necessário propor
problemas mais simples.

EXEMPLO DO TIPO ADITIVO PURO

“O Senhor Oliveira quer fazer uma instalação elétrica nova em


duas peças de sua casa. Ele estima que lhe sejam necessários 130
m de fio elétrico, 4 interruptores e 9 tomadas assim como bocais.
De uma instalação anterior lhe sobraram 37 metros de fio elétri-
co que ele quer usar. Logo, ele tem que comprar fio. Depois de
terminar sua instalação, ele vê que usou menos 4 metros de fio do
que o previsto e que lhe sobraram então 11 metros. Quanto de
fio elétrico ele comprou?”

• A primeira preocupação que a criança tem diante de um problema


como esse é a de saber quais informações são úteis e quais as inúteis.
Essa é uma preocupação que não acarreta os mesmos efeitos para as
diferentes categorias de informações.
Por exemplo, as crianças do curso médio48 julgam com muita fa-
cilidade que o número de interruptores e o número de tomadas devem
ser levados em conta. Mas o mesmo não acontece quanto ao número
de peças em que o Senhor Oliveira deve fazer a instalação, embora essa
informação seja igualmente inútil em relação ao problema colocado;
algumas crianças, de fato, se perguntam se são necessários 130 metros
de fio elétrico ao todo, ou por peça. O enunciado, aliás, não é explí-
cito a esse respeito, mas apenas implícito: 130 metros por peça seria
demais, assim como 4 interruptores por peça ou 9 tomadas. Enfim, a
pertinência de todas as informações relativas ao fio elétrico é igualmente
apreciada pelas crianças.

Lembrando, no sistema de ensino francês, as séries do chamado


48

curso médio (CM) são as finais da escola elementar. Atendem crianças da faixa
etária de 9 a 10 anos. N. T.

270

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A criança, a matemática e a realidade

Retomemos essas quatro informações.

O Senhor Oliveira estima que lhe sejam necessários 130 metros.


Sobraram 37 metros.
Ele usou menos 4 metros do que o previsto.
Sobraram 11 metros de fio.

Na verdade, várias crianças empregam tão somente as duas pri-


meiras informações, deixando assim de lado as duas últimas, cujo tra-
tamento é relativamente complexo: elas respondem então que o Senhor
Oliveira comprou 130 - 37 = 93 metros.
Certas crianças, incapazes de compreender que é preciso tirar “o
que sobra” de “o que é preciso”, contentam-se em responder que o Se-
nhor Oliveira comprou 130 metros.
Outras crianças, ainda, retêm em seus cálculos somente a segun-
da e a terceira informação: o Senhor Oliveira usou menos 4 metros que
o previsto, logo comprou 130 - 4 = 126 metros.
Entretanto, essas respostas erradas estão longe de ser aberrantes;
ao contrário, elas mostram que a criança trata corretamente as informa-
ções que retém, já que não pode reter todas as informações pertinentes.
Existem, aliás, outros sistemas de respostas além dos três sistemas que
acabamos de descrever.
Diversamente, são aberrantes respostas que consistem, por exem-
plo, em somar 37 com 130, ou 4 a 130, porque essas respostas não
traduzem qualquer aspecto pertinente às relações enunciadas.
Para dar uma resposta correta ao problema colocado, de fato é
necessário empregar as quatro informações. Elas são necessárias e sufi-
cientes. O melhor meio de fazer as crianças compreenderem este fato
é representar o problema por meio de um esquema estado-transforma-
ção-estado.
A prática pedagógica mostra que a criança não encontra dificul-
dades de princípio em traduzir um enunciado em tal esquema, as duas
tarefas que se lhe apresentam sendo, então, as seguintes:
- Onde colocar tal informação?
- Que informação colocar em que lugar?
Vamos mostrar com esse exemplo (embora não seja ele dos mais
simples) como se pode proceder.

271

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Gérard Vergnaud

Desenhemos primeiro uma sequência de estados e de transfor-


mações:

Em seguida, perguntemo-nos que informação vem na primeira


casela à esquerda (estado inicial) e se nós a conhecemos.
Resposta: é o que sobra de fio elétrico antes de começar, isto é,
37 metros.

37
Depois, perguntemo-nos quais as informações que ainda devem
ser colocadas.
Resposta: o que o Senhor Oliveira comprou depois, o que ele
usou e o que lhe sobrou ao final.
Trata-se de transformações ou de estados?
Resposta: o que sobra ao final é um estado, as quantidades com-
pradas e utilizadas são transformações:
compra utilização

37 11
estado inicial estado intermediário estado final
Pode-se preencher as caselas vazias? Pode-se colocar no esquema
a informação de que o Senhor Oliveira usou menos 4 metros do que o
previsto?, etc.
Resposta: não se pode colocar diretamente nesse esquema a infor-
mação que o Senhor Oliveira usou menos 4 metros do que o previsto.
Também não se pode colocar que ele fez a previsão de usar 130 metros.

272

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A criança, a matemática e a realidade

É preciso compor essas duas transformações fora do esquema para pre-


encher a casela correspondente à utilização.
Tudo isto nos leva a observar que há dois tipos de questões inter-
mediárias. Consideremos, com efeito, as duas questões seguintes:
1. Quanto de fio o Senhor Oliveira utilizou?
2. Quanto de fio ele tinha em tudo depois de ter comprado fio e
antes de começar sua instalação?
A primeira exige um cálculo relacional fora do esquema principal
e pede, eventualmente, um novo esquema:
quantidade diferença quantidade
prevista realmente
-4 utilizada

130
A segunda encontra sua resposta no próprio esquema principal
(desde que conhecida a quantidade utilizada).

- 126

----------------- 11

+126

Uma observação importante é que as questões intermediárias que


a criança é levada a colocar a si própria são de uma dificuldade desigual
conforme o modo pelo qual elas aparecem escritas na estrutura princi-
pal do problema a resolver. As questões do primeiro tipo, que pedem
uma análise fora do esquema, em geral trazem um obstáculo maior à
compreensão do problema do que as questões do segundo tipo.
De qualquer forma, é necessário romper com o hábito, predomi-
nante no ensino básico, de fornecer enunciados com uma sequência pré-
determinada de questões intermediárias. Isto, na verdade, não deixa qual-
quer lugar à livre análise das relações em jogo e à descoberta dos diversos
caminhos possíveis. Ao contrário, é, sobretudo interessante, quando as
crianças tenham atingido uma boa compreensão das relações elementares,
apresentar-lhes problemas mais complexos sem questão intermediária.

273

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Gérard Vergnaud

• Examinemos agora diferentes soluções corretas do problema focali-


zado.
Uma primeira solução consiste em calcular a quantidade de fio
efetivamente utilizada, depois somá-la ao estado final para encontrar o
estado intermediário. Em seguida, obtém-se a quantidade comprada
pela diferença entre o estado intermediário e o estado inicial.
Vamos retraçar essas etapas no esquema em relação ao cálculo
correspondente (em negrito as respostas obtidas; os retângulos isolam a
parte tratada do esquema).
Esquema Equação

-4
130 126
- 126
37 11 130 - 4 = 126

- 126
37 137 11 11 + 126 = 137
+126

+100 - 126
37 137 11 137 - 37 = 100
+126

Uma segunda solução consiste em calcular, de um lado a quan-


tidade de fio efetivamente empregada, de outro, a diferença entre o
estado inicial e o estado final e em estabelecer, depois por comparação e
diferença entre essas duas quantidades, a quantidade que foi comprada.

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A criança, a matemática e a realidade

Esquema Equação

-4
130 126 130 - 4 = 126
- 126
37 11

- 126
37 11 37 - 11 = 26
- 26
+100 - 126
37 11 126 - 26 = 100
- 26
É espantoso ver como os esquemas permitem uma análise muito
mais fina dos diferentes aspectos do raciocínio do que as equações:
- na primeira solução: cálculo anexo, busca do estado por inver-
são da transformação direta, busca da transformação pela diferen-
ça entre o estado final e o inicial;
- na segunda solução: cálculo anexo, busca do estado pela diferen-
ça entre o estado inicial e o estado final (transformação negativa),
busca da transformação por decomposição de uma transformação
composta em duas transformações elementares das quais uma é
conhecida.
As equações escritas à direita revelam apenas uma parte pouco
considerável desses raciocínios. Na verdade, elas representam tão so-
mente os cálculos numéricos.

275

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Gérard Vergnaud

Existem ainda outras soluções corretas. Dentre elas, uma con-


siste, por exemplo, em subtrair 4 do estado final 11, considerando a
hipótese de que o Senhor Oliveira teria, de fato, utilizado 130 metros,
e a proceder, em seguida, por uma das duas vias já descritas (busca do
estado intermediário ou busca da diferença entre o estado inicial e o
estado final).
Esquema Equação

-4 11 - 4 = 7
11 7

- 130
37 7

EXEMPLO DE TIPO MULTIPLICATIVO PURO

“Um criador de cabras recolhe em média 66 litros de leite de ca-


bra por dia. Ele necessita aproximadamente 5 litros de leite para
fazer 1 quilo de queijo. Os queijos que ele faz pesam 125 gramas
cada um. Ele os vende a R$ 30,00 a dúzia. Quanto ele ganha por
dia em média com seus queijos? Que outras perguntas pode-se
fazer sobre o assunto?”
• ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES E ALGUMAS PERGUNTAS
PLAUSÍVEIS
Diante de um exemplo tão complexo como o colocado, mas que,
no entanto, fornece tão somente todas as informações necessárias e sufi-
cientes para responder à pergunta colocada, é pedagogicamente útil levar
a criança a fazer, ela própria, outras perguntas possíveis. Um exercício
desse gênero favorece a busca de perguntas intermediárias e, de forma
mais geral, de perguntas que tenham sentido em relação ao enunciado:
seja porque as informações dadas permitam respostas a respeito, seja por-
que a pergunta final supostamente pode ser ali respondida.

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A criança, a matemática e a realidade

Eis alguns exemplos de perguntas:


A. Quanto de queijo ele faz por dia?
B. Qual é o peso de 12 queijos?
C. Quantos quilos de queijo ele faz com 66 litros de leite?
D. Quanto 1 litro de leite lhe rende por dia?
E. Quanto ele ganha com 10 quilos de queijo?
etc.
Existem também várias perguntas, das quais algumas não são ju-
diciosas para a solução do problema focalizado; mas a maioria delas são
perguntas intermediárias plausíveis.
No esquema abaixo, relativamente fácil de ser feito em colabora-
ção com as crianças, foram colocadas as informações dadas no enuncia-
do assim como a pergunta final (designada por P).
litros de leite kg de queijo queijos (unidades) reais

0,125 1

5 1 12 30

66 P

Esse esquema não é nada mais que uma tabela de correspondên-


cia entre quantidades de leite, de queijo (em peso e em unidades) e
de dinheiro. As informações são elos de correspondência de coluna a
coluna:
- 1 queijo pesa 125 gramas, isto é, 0,125 kg.
- são necessários 5 litros de leite para fazer 1 kg de queijo.
- 12 queijos valem R$ 30,00.
- Quanto de dinheiro vale 66 litros de leite? (Outra versão da
pergunta final).
As perguntas intermediárias possíveis são numerosas, muito mais
numerosas do que se poderia imaginar sem o apoio dessa tabela: todos
os cruzamentos sem informação, ali representados pelos retângulos, são
perguntas possíveis.

277

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Gérard Vergnaud

litros de leite kg de queijo queijos (unidades) reais

0,125 1

5 1

B 12 30

66 C A P

A localização respectiva das perguntas A, B e C foi indicada, mas


as perguntas D e E não ocupam de imediato um lugar nessa tabela para
o que linhas suplementares seriam então normalmente necessárias:
litros de leite kg de queijo queijos (unidades) reais

1 D

10 E

Deixemos de lado as perguntas D e E, que não são perguntas


intermediárias adequadas, e fixemo-nos nas outras perguntas.
A resposta à pergunta P não exige que se responda todas as per-
guntas intermediárias, mas apenas algumas dentre elas. Cada caminho
possível corresponde a um subconjunto de perguntas intermediárias.

• SOLUÇÕES
Vamos agora estudar três dos diferentes caminhos possíveis: cada
etapa não é analisada, mas simplesmente indicada e representada pela
relação quaternária empregada no decorrer da etapa.

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A criança, a matemática e a realidade.indd 278 15/12/2009 13:58:42


A criança, a matemática e a realidade

Nem os possíveis procedimentos de tratamento dessas relações


quaternárias, nem a questão da aproximação são abordados aqui. Os
três caminhos examinados são indicados no quadro abaixo em algaris-
mos romanos.
litros de leite kg de queijo queijos (unidades) reais

I 0,125 1 I
5 1
III III 12 30
II I II I II III
66 P

• Caminho I

- Cálculo da quantidade de leite necessária para fazer um queijo


litros de leite kg de queijo

0,125

5 1
Resposta: 0,625 litro.
- Cálculo do preço de um queijo
queijos (unidades) reais

12 30
Resposta: R$ 2,50.

279

A criança, a matemática e a realidade.indd 279 15/12/2009 13:58:43


Gérard Vergnaud

- Cálculo do número de queijos que podem ser feitos com 66


litros de leite
queijos (unidades) reais

0,625 1

66

Resposta: 105,6 unidades (admitindo-se que se faça uma aproxi-


mação além da unidade).

- Cálculo do preço destes queijos


queijos (unidades) reais

1 2,50

105,6

Resposta: R$ 264,00.

• Caminho II
- Cálculo em peso da quantidade de queijo que pode ser feita
com 66 litros de leite
litros de leite kg de queijo

5 1

66
Resposta: 13, 2 kg.

280

A criança, a matemática e a realidade.indd 280 15/12/2009 13:58:44


A criança, a matemática e a realidade

- Cálculo do número de queijos (em unidades) que podem ser


feitos com esta quantidade
kg de queijo queijos (unidades)

0,125 1

13,2

Resposta: 105,6 unidades (admitindo-se que se vá além da


unidade).

- Cálculo do preço destes queijos pela regra de três (ou eventual-


mente por decomposição em duas etapas e passagem pelo preço
unitário)
queijos (unidades) reais

12 30

105,6

Resposta: R$ 264,00.

• Caminho III
- Cálculo da quantidade de queijo necessária para fazer 12 queijos
kg de queijo queijos (unidades)

0,125 1

12

Resposta: 1,5 kg.

281

A criança, a matemática e a realidade.indd 281 15/12/2009 13:58:45


Gérard Vergnaud

- Cálculo da quantidade de leite necessária para fazer 12 queijos


litros de leite kg de queijo

5 1

1,5

Resposta: 7,5 litros.

- Cálculo do preço dos queijos correspondentes a 66 litros de leite


pela regra de três (ou eventualmente por decomposição em duas
etapas)
litros de leite reais

7,5 30

66
Resposta: R$ 264,00.

Naturalmente, vários outros caminhos são possíveis. É indispen-


sável fazer as crianças observarem essa pluralidade de caminhos para
evitar que elas imaginem haver uma, e somente uma solução.
A análise das relações empregadas em cada caminho e em cada
etapa é decisiva para fazer-lhes compreender como se pode abordar ra-
cionalmente um problema complexo. Seria de grande interesse mostrar
algebricamente a equivalência dos diferentes caminhos seguidos, mas
isto não seria possível no caso do problema apresentado antes do nível
secundário (classes de quarta ou de terceira)49. Veremos com o próximo
exemplo que é possível, desde a escola básica, introduzir, de uma forma
“inocente” certas equivalências algébricas.

No sistema de ensino francês, séries do nível secundário (“quatriè-


49

me” e “troisième”) com alunos da faixa etária de 13 a 14 anos. N. T.

282

A criança, a matemática e a realidade.indd 282 15/12/2009 13:58:45


A criança, a matemática e a realidade

Para que não persista qualquer ambiguidade, mais uma vez repe-
timos que um problema complexo, como o que acabamos de apresen-
tar, só pode ser estudado coletivamente com toda a classe ou em uma
sessão de trabalho em grupo. Pode-se mesmo acrescentar que os cami-
nhos descobertos pelas crianças sem dúvida não farão apelo à regra de
três, a qual, na maior parte dos casos, não pode ser estudada no ensino
elementar. Contentamo-nos então com a solução em duas etapas com
passagem pela unidade.

• TABELAS E CURVAS
Sem dúvida é mais importante agora identificar uma outra di-
reção pela qual o professor pode desenvolver a análise: é o estudo da
noção de função linear y = ax. A função y = ax é a função que, no tipo
de problema aqui examinado, permite passar de uma coluna à outra,
por exemplo, da quantidade de leite em litros à quantidade de queijos
em quilogramas. Assim sendo, dois exercícios podem ser apresentados
às crianças.

283

A criança, a matemática e a realidade.indd 283 15/12/2009 13:58:45


Gérard Vergnaud

• Primeiro exercício: Preencher as tabelas de correspondência


Tabela centrada nos litros Tabela centrada nas quantidades
de leite considerados de queijo (todos de 100 g)
como unidades

litros de leite kg de queijo litros de leite kg de queijo

1 0,100
2 0,200
3 0,300
4 0,400
5 1 0,500
6 0,600
7 0,700
8 0,800
9 0,900
10 5 1
. .
. .
20 .
. 2
. .
60 .
. .
. 5
65 .
66 .
. .
. 10
. .

284

A criança, a matemática e a realidade.indd 284 15/12/2009 13:58:46


A criança, a matemática e a realidade

Tabela de correspondência para quantidades quaisquer


litros de leite kg de queijo

0,125

5 1

1,5

66
A forma mais simples de preencher essas tabelas é, evidentemen-
te, descobrir a regra que permite passar de uma coluna à outra. No caso
aqui considerado, a regra é a que é preciso multiplicar por 5 a quantida-
de de queijo em kg para encontrar a quantidade de leite correspondente
em litros; ou reciprocamente, dividir por 5 a quantidade de leite em
litros para encontrar a quantidade de queijo correspondente em kg.
litros de leite kg de queijo
5

x y

x5
A dificuldade desse exemplo reside no fato de que a transforma-
ção natural (do leite em queijo) corresponde não a uma multiplicação,
mas a uma divisão. Ora, na equação y = ax, a significação mais imediata
ligada às variáveis x e y e ao parâmetro a é que x é a origem, y o ponto
de chegada e a um fator multiplicativo simples (x 2, x 3, ...).
Para conservar essa significação nesse exemplo, seria necessário ou
bem interpretar o fator a como um operador fracionário (x 1/5) o que
traz sérias dificuldades na escola elementar; ou, então, interpretar x e y
ao contrário da interpretação natural, o que traz dificuldades de outra
ordem, mas igualmente grandes.
litros de leite kg de queijo
x5

y x

285

A criança, a matemática e a realidade.indd 285 15/12/2009 13:58:46


Gérard Vergnaud

Logo, para a introdução da escrita y = ax é recomendável empre-


gar exemplos que menos firam a interpretação espontânea. Uma relação
contida no problema precedente presta-se muito bem a tanto:
kg de queijo queijos (unidades)
x8
x y

y=8x
Ela levanta outro tipo de dificuldade, atribuível ao caráter discre-
to do conjunto de chegada, ao que voltaremos adiante.
• Segundo exercício: Traçar uma curva ponto por ponto em coorde-
nadas cartesianas
Esse exercício, que necessariamente deve ser precedido por aquele
das tabelas de correspondência, permite aprofundar a noção de função
linear e uma análise mais fina das noções de quantidade contínua e de
quantidade discreta.
Exemplo contínuo-contínuo
Transformação do leite (litros) em queijo (kg)
y

1
0,8
0,6
0,4
0,2

0 1 2 3 4 5 x

286

A criança, a matemática e a realidade.indd 286 15/12/2009 13:58:47


A criança, a matemática e a realidade

x litros de leite dão y kg de queijo


5
x y
Tendo os primeiros pontos sido colocados para os números intei-
ros de litros, na sequência podem ser colocados pontos intermediários,
meio litro por meio litro, por exemplo.
y

1
0,8
0,6
0,4
0,2

1
0 2 1 112 2 2 12 3 3 12 4 412 5 x
Pode-se levar a criança a traçar uma reta que liga aqueles pontos e
que, de fato, é formada por todos os possíveis pontos de correspondên-
cia entre quantidades de leite e de queijo.
y

1
0,8
0,6
0,4
0,2

0 1 2 3 4 5 x

287

A criança, a matemática e a realidade.indd 287 15/12/2009 13:58:48


Gérard Vergnaud

Uma reta como essa representa, de modo aceitável, a correspon-


dência entre quantidade de leite e quantidades de queijo porque se trata
de quantidades contínuas. Porém, o mesmo não acontece no caso de
quantidades discretas e, por exemplo, pode-se chamar a atenção das
crianças para certas dificuldades, convidando-as a representar, de manei-
ra a mais exata possível, a correspondência entre kg e queijos-unidade.

Exemplo contínuo-discreto
As crianças devem se dar conta de que, se as quantidades de queijo
em kg variam de maneira contínua, as quantidades de queijo-unidade
variam, elas próprias, por “saltos bruscos” de uma unidade, o que ocorre
sempre a cada 125 gramas.
y

11
10
9
8
7
6
5
4
3
2
1
0
0,125 0,250 0,375 0,500 0,625 0,750 0,875 1 1,125 1,250
x
A reta (tracejado fino) representa, então, nada mais que uma apro-
ximação discutível ou, ainda, ela supõe que quantidades fracionárias de
queijo sejam aceitas como intermediários contínuos entre as unidades.

EXEMPLO MISTO (MULTIPLICATIVO E ADITIVO)

“Um comerciante de camisas compra 3 dúzias de camisas a R$


360,00 a dúzia e revende-as a R$ 40,00 à peça. Colocar as infor-
mações em uma tabela de correspondência fazendo a previsão
de uma coluna para os lucros. Encontrar todas as perguntas que
cabem nessa tabela e todos os caminhos que permitam encontrar
apenas o lucro total do comerciante de camisas.”

288

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A criança, a matemática e a realidade

Esse problema, relativamente simples, coloca em jogo relações


de tipo multiplicativo (correspondência entre quantidades de natureza
diferente) e relações de tipo aditivo (lucro = preço de venda - preço de
compra). Sua própria simplicidade vai nos permitir ir um pouco mais
longe na algebrização dos diferentes caminhos possíveis.
Primeiramente, façamos (com as crianças) uma representação
possível das informações e de todas as perguntas que cabem nessa re-
presentação.
dúzias de camisas preço de preço de lucro
camisas compra venda

1 B 40 F

1 12 360 D G

3 A C E H

A Número total de camisas


B Preço de compra de uma camisa
C Preço de compra de três dúzias de camisas
D Preço de venda de 12 camisas
E Preço de venda de 3 dúzias de camisas
F Lucro em 1 camisa
G Lucro em 12 camisas
H Lucro em 3 dúzias de camisas.

Uma vez estabelecida essa correspondência, é fácil identificar os


possíveis caminhos.

BFGH Cálculo do preço de compra (B) e do lucro (F) para uma camisa
camisa, cálculo do lucro para 12 camisas (G), depois para três
dúzias (H).
BFAH Cálculo do preço de compra (B) e do lucro (F) para 1 camisa,
cálculo do número total de camisas (A), depois do lucro para 3
dúzias (H).

289

A criança, a matemática e a realidade.indd 289 15/12/2009 13:58:49


Gérard Vergnaud

Outros caminhos análogos: ABFH, BAFH.


DGH Cálculo do preço de venda (D) e do lucro (G) para 12 cami-
sas,
cálculo do lucro para 3 dúzias (H).
DECH Cálculo do preço de venda de uma dúzia (D), depois de 3 dúzias
(E), cálculo do preço de compra (C), depois do lucro (H) para
3 dúzias.
Outros caminhos análogos: CDEH, DCEH.
ACEH Cálculo do número total de camisas (A), depois do preço de
compra (C), do preço de venda (E) e do lucro (H) correspon-
dentes.
Outros caminhos análogos: AECH, CAEH.
Vê-se que os caminhos são facilmente classificáveis conforme cal-
cule-se o lucro sobre a primeira, a segunda ou a terceira linha, e recorra-
se ou não ao cálculo de A.
Cálculo do lucro sobre a:

Primeira linha Segunda linha Terceira linha

BFAH ACEH
Inútil
Com cálculo de A e outros caminhos e outros caminhos
análogos análogos

Sem cálculo de A BFGH DGH DECH


e outros caminhos
análogos
Essa classificação não deve necessariamente ser estudada de forma
aprofundada com as crianças, mas é possível e frutífero estudar com elas
vários dos caminhos possíveis e fazê-las refletir sobre sua equivalência
(no segundo ano do curso médio)50.
Vamos nos contentar aqui em desenvolver a escrita algébrica de
dois caminhos e em analisar sua equivalência.

Recordando, no sistema de ensino francês, trata-se do CM2 – curso


50

médio 2 – parte da escola básica. Atende alunos de 10 anos de idade. N. T.

290

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A criança, a matemática e a realidade

Caminho DECH Caminho DGH

1. Cálculo de D 1. Cálculo de D

40 40

x 12 x 12

D D

2. Cálculo de E e C 2. Cálculo de G

360 D

x3 x3
G = D - 360
C E

3. Cálculo de H 3. Cálculo de H

G
H=E-C
x3

A primeira etapa é idêntica em ambos os caminhos. Quanto às


outras etapas, elas mostram que se pode:
- ou primeiro mudar de linha (multiplicação por 3) e, em segui-
da, obter-se a diferença entre colunas (preço de venda – preço de
compra);
- ou obter a diferença entre colunas antes e mudar de linha,
depois.
Essa equivalência se traduz, na representação algébrica (cuja in-
trodução pode ser feita ao final do ensino elementar), pela distributivi-
dade da multiplicação em relação à subtração.

291

A criança, a matemática e a realidade.indd 291 15/12/2009 13:58:49


Gérard Vergnaud

De fato, as duas primeiras etapas do caminho DGH são assim


escritas:
G = D - 360
H=Gx3
H = (D - 360) x 3
Essa última linha pode ser escrita a partir das duas primeiras gra-
ças à aplicação de uma regra e de uma precaução operatória, as quais
são facilmente compreendidas pelas crianças ao final das séries do curso
elementar (contrariamente a outras regras algébricas, as quais não de-
vem ser introduzidas nesse nível)51.
Regra de substituição: pode-se substituir uma sequência de sím-
bolos por um símbolo que representa a mesma quantidade (ou o
mesmo objeto) e reciprocamente.
Precaução operatória: para melhor reconhecer e melhor identificar
o que acima opera, é cômodo colocar a sequência de símbolos
entre parênteses.
Por outro lado, as duas últimas etapas do caminho DECH são
assim escritas:
C = 360 x 3
E=Dx3
H=E-C
H = (D x 3) - (360 x 3)
Dessa forma, chega-se à igualdade (D - 360) x 3 = (D x 3) - (360 x 3).
Essa igualdade permite levar à compreensão da distributividade da mul-
tiplicação em relação à subtração, ligando à equivalência os caminhos
percorridos. Naturalmente, isto não constitui uma demonstração, mas
permite simplesmente tornar mais significativa e mais evidente à crian-
ça uma regra que aparece, por vezes, como arbitrária, e mesmo como
destituída de sentido.
O próprio leitor imaginará facilmente exemplos que ilustram a
distributividade das operações de tipo multiplicativo (multiplicação e
divisão) em relação às operações de tipo aditivo (adição e subtração).

Novamente lembrando, no sistema de ensino francês, trata-se do


51

CE2, curso elementar 2, que atende crianças de 8 anos de idade. N. T.

292

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A criança, a matemática e a realidade

Este capítulo sobre a representação e a solução de problemas arit-


méticos complexos é breve. Para concluir, recordemos alguns princípios
que devem guiar a ação do professor nesse terreno.

- Fazer a própria criança formular as perguntas que tenham sen-


tido em relação ao enunciado, e em especial, perguntas interme-
diárias.
- Introduzir voluntariamente informações inúteis ou, ao contrá-
rio, mesmo omitir informações necessárias.
- Levar a criança a estabelecer uma ou várias representações ope-
ratórias das informações, das perguntas e dos caminhos a seguir
para respondê-las.
- Fazer o elo entre essas diversas representações (enunciado ver-
bal, cadeia ou tabela de operadores, equações algébricas), pedin-
do sistematicamente exercícios de “tradução”, como aquele que
consiste em colocar uma informação ou uma pergunta em um
esquema.
- Em caso de insucesso, recorrer a uma reconstrução material e
gesticulada da situação dada no enunciado e re-estabelecer os elos
entre a situação material e as representações que dela são feitas
(enunciado, esquema, ...).

Esses princípios são indispensáveis para orientar a criança na aná-


lise aprofundada das relações e transformações em jogo, análise essa sem
a qual o ensino somente resultará em treinamentos pouco eficazes.

293

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CONCLUSÃO

A criança, a matemática e a realidade.indd 295 15/12/2009 13:58:51


A criança, a matemática e a realidade.indd 296 15/12/2009 13:58:51
OS PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DO
ENSINO DA MATEMÁTICA

A NOÇÃO DE HOMOMORFISMO E O PAPEL DA REPRESEN-


TAÇÃO
A noção de homomorfismo permite colocar com clareza o pro-
blema do ensino da matemática e, de forma mais ampla, o de todo o
conhecimento objetivo. Logo, é em torno dessa noção que, neste capí-
tulo, serão organizadas todas as outras noções importantes.
Um homomorfismo é uma aplicação de um conjunto em um
outro que respeita certas estruturas relacionais do conjunto de partida e
do conjunto de chegada. Homomorfismo significa “mesma forma” ou
“mesma estrutura”.
Seja C o conjunto de partida munido da estrutura E, e F o con-
junto de chegada munido da estrutura E’. O paralelismo entre C e F do
ponto de vista de E e de E’ permite deduzir, a partir de certas conside-
rações em C, considerações pertinentes em F52.

52
Existem homomorfismos para as diferentes categorias de relações:
unárias, binária, ternárias...
A notação polonesa permite escrever de modo homogêneo os diferen-
tes homorfismos possíveis.
Sejam:
- x, y, z os elementos de C, o conjunto de partida;
- f um homomorfismo de C em F, o conjunto de chegada;
- P, R2, R3, aspectos relacionais em C (estrutura E), e P’, R’2, R”3,
aspectos relacionais em F (estrutura E’):
Homomorfismo de propriedade (relação unária)
 x 0 C, P (x) Y P’ (f (x))
Homomorfismo de relação binária
 x, y 0 C R2 (x, y) Y R’2 (f (x), f (y))
Homomorfismo de relação ternária
 x, y, z 0 C R3 (x, y, z) Y R’3 (f (x), f (y), f (z))
Caso particular: homomorfismo da lei de composição binária
 x, y, z 0 C x = y B z Y f (x) = f (y) B’ f (z)
ou, substituindo y B z por x na segunda igualdade
 y, z 0 C f ( y B z) = f (y) B’ f (z)

297

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Gérard Vergnaud

Isso significa especialmente que, para encontrar certos elementos


ou certas relações em F, pode-se proceder:
- seja primeiro operando em C com a ajuda da estrutura E e, em
seguida, levando as imagens em F (caminho de traços espessos);
- seja primeiro levando as imagens em F e, em seguida, operando
em F com a ajuda da estrutura E’ (caminhos de traços finos).
Operações em E

C elementos e relações em C Elemento ou relação em C

F elementos e relações em F Elemento ou relação em F


Operações em E’
Para ilustrar essa dualidade de caminhos possíveis, retomemos a
análise da contagem de conjuntos de objetos discretos, tropas de car-
neiros, por exemplo.
Suponhamos que se procura saber o número de carneiros que
pertencem indiferentemente à fazenda a ou à fazenda b; pode-se proce-
der de duas formas distintas:
1. Reunir as duas tropas ta e tb e contar os carneiros da nova tropa
tc assim formada;
2. Contar os carneiros de cada uma das duas tropas ta e tb e fazer
a soma.
Seja C o conjunto das tropas: C = {ta, tb, tc ...} organizado pela
estrutura de união (disjunta).
Seja F o conjunto de números naturais: Ν = {0, 1, 2, 3 ...) orga-
nizado pela estrutura da adição.
Seja f a aplicação de C em F que consiste em associar a uma tropa
o cardinal (número) correspondente. Quaisquer que sejam tx e ty, desde
que x e y não tenham parte em comum, então:
f (t x t y) = f (t x) + f(t y )

298

A criança, a matemática e a realidade.indd 298 15/12/2009 13:58:51


A criança, a matemática e a realidade

É um homomorfismo entre C munido da operação de união


(disjunta) e F munido da operação de adição.
união (disjunta)
C tx ty tx ty

adição
F f(tx ) f(t y ) f (tx) + f(t y ) = f (t x t y )

O primeiro método, em traços espessos, consiste em, primeiro,


operar sobre as tropas (união) e em, depois, contar; o segundo consiste
em, primeiro, contar e em operar, depois, sobre os números (adição).
Esse exemplo elementar permite compreender, ao mesmo tempo,
o interesse da noção de homomorfismo e a importância da descoberta
da adição na aquisição da noção de número.

A noção de homomorfismo primeiramente se aplica à função que


faz passar da realidade à representação. Na verdade, a representação não
pode ser operatória a não ser que reflita a realidade de forma pertinente
e homomorfa.
Isto não significa que a representação reflita toda a realidade, nem
que toda representação seja necessariamente homomorfa à realidade.
Contudo, não se compreenderia o papel da representação exceto se não
fosse ela vista como um reflexo da realidade, um instrumento de simu-
lação desta e, em consequência, um meio de prever os efeitos reais e de
“calcular” as ações a serem executadas, para provocá-las ou evitá-las.
aspectos da realidade transformações efeitos
REALIDADE ações
de diferentes níveis

conceitos, pré-conceitos regras


de diferentes níveis de ação
REPRESENTAÇÃO operações de
(elementos, propriedades,
pensamento
relações, classes, etc... ) previsões

299

A criança, a matemática e a realidade.indd 299 15/12/2009 13:58:52


Gérard Vergnaud

No entanto, esse esquema geral seria excessivamente simplista se


a ele não se acrescentasse, de imediato, as duas seguintes ideias:

1. Não existe uma representação, mas múltiplas representações,


de formas diferentes e de níveis diferentes.
2. Existem homomorfismos não somente entre a realidade, de um
lado, e as representações, de outro, mas também entre as dife-
rentes formas de representação (entre representação em imagem
e a linguagem, entre representação geométrica e representação
algébrica, etc.).

De modo mais preciso ainda, pode-se dizer que o pensamento


consiste, ao mesmo tempo, em operações conceituais e pré-conceituais
sobre os significados, e em operações simbólicas sobre os significantes,
significantes estes que formam vários sistemas simbólicos distintos, ten-
do elos entre si próprios e com o significado.
REALIDADE aspectos de diferentes níveis

SIGNIFICADO conceitos e pré-conceitos de diferentes níveis

REPRESENTAÇÃO

SIGNIFICANTES sistema I sistema III

sistema II

Portanto, o pensamento funciona de maneira excessivamente di-


ferenciada uma vez que trabalha em diferentes níveis ao mesmo tempo
(elementos, classes, relações..., relações de relações...) e com a ajuda de
diferentes sistemas simbólicos ao mesmo tempo (linguagem natural,
representações em imagens, esquemas, espaço, álgebra, etc.).
Constatou-se, por exemplo, no capítulo sobre a numeração e
as quatro operações, um exemplo de funcionamento simultâneo da
representação em vários planos ao mesmo tempo, aquele dos obje-
tos, aquele dos conjuntos, aquele dos cardinais e aquele da represen-
tação de cardinais.

300

A criança, a matemática e a realidade.indd 300 15/12/2009 13:58:53


A criança, a matemática e a realidade

Pode-se dar outro exemplo com a solução de problemas do tipo


aditivo.
Suponhamos que uma criança procure saber quanto de dinheiro
ela deve pedir à sua mãe para ir à casa de sua avó, sabendo que lhe são
necessários R$ 6,00 para o trem e R$ 2,50 para o ônibus, que sua avó
lhe prometeu R$ 5,00 e que lhe sobram R$ 1,40 em seu moedeiro.
A criança pode servir-se de, ao menos, três representações:
- Uma representação verbal que consiste em encadear em voz alta
ou de forma interiorizada enunciados verbais:
por exemplo: “preciso mais... pois então... eu somo... eu tiro
de... etc.”
- Uma representação do tipo “estados e transformações” que pode
também ser explicitada ou permanecer puramente mental:
por exemplo:
x -6 - 2,50 +5

1,40 resto > 0

- Uma representação algébrica, a qual pode ser igualmente expli-


citada ou permanecer mental:
por exemplo:
6 + 2,50 = 8,50
5 + 1,40 = 6,40
8,50 > 6,40
etc.
É com a ajuda simultânea dessas diferentes representações que a
criança raciocina, passando de um plano a outro em função de neces-
sidades e relações com as quais ela tem que tratar. Pensar consiste não
apenas em passar de uma situação real à representação, mas em passar
de uma representação à outra e a ela retornar.

Entretanto, a noção de homomorfismo não se refere somente às


relações entre realidade e representação ou entre diferentes formas de
representação. São encontrados homomorfismos entre conjuntos que,
mesmo sendo, sob certos aspectos, de natureza diversa, não deixam por
isso de se situar em um mesmo plano de representação.

301

A criança, a matemática e a realidade.indd 301 15/12/2009 13:58:54


Gérard Vergnaud

Por exemplo, a noção de velocidade uniforme, que é um homo-


morfismo do conjunto das medidas de tempo no conjunto das medidas
de distância, certamente coloca em jogo conjuntos distintos, mas nem por
isso deixa de se situar no interior de um mesmo plano, o das medidas.
tempo distância
t1 d1
t2 d2
t3 d3
etc... etc...
No capítulo sobre os problemas de tipo multiplicativo foi visto
como funciona o homomorfismo multiplicativo.
Seja x λ um operador escalar (vertical) que permite passar de
uma linha à outra, e f a função velocidade (horizontal) do conjunto dos
tempos no conjunto das distâncias. Se a velocidade é uniforme, quer
dizer, se as distâncias são proporcionais aos tempos, pode-se escrever:
quaisquer que sejam t e λ, f (λt) = λf (t)
O que corresponde à dualidade dos caminhos possíveis: primei-
ro, operar com o escalar e, em seguida, buscar o correspondente (traços
finos), ou buscar o correspondente e, em seguida, operar com o escalar
(traços espessos).
t f(t)

xλ xλ

λt f (λt) = λf (t)
Existe igualmente um homomorfismo aditivo:
quaisquer que sejam t1 e t 2, f (t1 + t2) = f (t1) + f (t2)

302

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A criança, a matemática e a realidade

t1 f(t 1 )

t2 f(t 2 )

t1 + t 2 f (t 1 + t 2 ) = f (t 1 ) + f (t 2 )

Os procedimentos utilizados pelas crianças pequenas para resol-


ver os problemas que se encaixam na categoria “isomorfismo de medi-
da” quase sempre fazem apelo a um ou outro desses homomorfismos e,
mais raramente, à propriedade que, contudo, é privilegiada no ensino
y = a x (aqui d = vt).

Em resumo, a noção de homomorfismo permite compreender as


equivalências entre procedimentos operatórios, ao mesmo tempo, do
ponto de vista das relações entre realidade e representação, do ponto de
vista das relações entre diferentes planos da representação, e do ponto
de vista das relações internas a um mesmo plano de representação. É a
noção mais poderosa que permite dar conta da natureza das operações
de pensamento.
No entanto, ela não responde sozinha todas as questões que po-
dem ser colocadas a respeito das condições de eficácia do pensamento e
a respeito de seu desenvolvimento.
Vamos abordar três outras noções particularmente importantes, as
noções de invariante operatório, de algoritmo e de complexidade lógica.

A NOÇÃO DE INVARIANTE OPERATÓRIO

A noção de invariante operatório aplica-se ao próprio problema


da função simbólica, isto é, a passagem da realidade à representação.
Não basta saber que os objetos, as classes de objetos, as relações, etc.,
se projetam, sob certas formas, nos diversos planos da representação;

303

A criança, a matemática e a realidade.indd 303 15/12/2009 13:58:55


Gérard Vergnaud

igualmente, é preciso interrogar-se sobre a forma pela qual essa projeção


ocorre e sobre as condições que a permitem.
Dissemos antes que a representação não podia ser funcional a não
ser que ela refletisse certos aspectos da realidade e se ela permitisse ao
pensamento operar sobre os significados e os significantes. Em outras
palavras, toda representação funcional deve responder a dois critérios:
- um critério de ordem semântica: ela deve refletir certos aspectos
da realidade;
- um critério de ordem sintática: ela deve prestar-se a operações,
isto é, ao que, no início deste livro chamamos de “cálculo rela-
cional”.
A expressão de “representação calculável” integra esses dois aspectos:
“calculável” remete ao aspecto sintático, “representação”, ao aspecto semânti-
co (quem diz “representação” diz necessariamente “representação de alguma
coisa”).
Porém, esses dois aspectos não são verdadeiramente indissociá-
veis. Que seria, por exemplo, de uma representação que se prestaria a
cálculos relacionais complexos, mas que, no decorrer desses cálculos,
perderia a qualidade fundamental de refletir a realidade? Logo, é indis-
pensável que, no decorrer desses cálculos relacionais, as diversas formas
simbólicas continuem a refletir os mesmos objetos reais. Em outros ter-
mos, o critério simbólico implica certas invariâncias no funcionamento
do pensamento, a saber, conceitos, imagens, signos; e, de modo geral,
todas as formas simbólicas remetem aos mesmos objetos. Isto se aplica
aos objetos de todos os níveis lógicos (elementos, relações, classes, ca-
racterísticas, transformações, funções, processos, etc.). Por exemplo, o
símbolo verbal “pai” não remete a um objeto apenas e se pode distinguir
dele alguns sentidos diferentes, os quais evidentemente não são adqui-
ridos ao mesmo tempo pela criança:
1. “Pai” no sentido de “o meu próprio pai, objeto único”.
2. “Pai” no sentido de relação “é o pai de”.
3. “Pai” no sentido de ser pai, característica da classe de “todos
os pais”.
4. “Pai” no sentido religioso do termo.
5. “Pai” no sentido metafórico de “é um verdadeiro pai para mim”.
etc.

304

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A criança, a matemática e a realidade

É claro que nenhuma troca relacional é possível com a criança se


a palavra “pai” é utilizada pelo adulto em um sentido que a criança não
compreende: por exemplo, a propriedade de ser uma relação assimétri-
ca, antirreflexiva e antitransitiva não é verdadeira, exceto no sentido 2.
A restrição a um determinado sentido frequentemente está im-
plícita no discurso, assim como no pensamento. Contudo, por mais
implícita que ela seja, essa restrição tem nada mais nada menos que o
papel de fixar certa invariância do sentido, invariância que torna possí-
vel o pensamento racional a comunicação.
Pode-se, no discurso, jogar com uma certa variação de sentido,
mas isto remete, então, a uma outra teoria que não a desenvolvida nesta
obra, uma teoria que, evidentemente, não pretende dar conta de todos
os aspectos do pensamento.
Um dos fatos melhor estabelecidos da psicologia cognitiva é o de
que o desenvolvimento do pensamento se faz em etapas e que certas gran-
des etapas são caracterizadas pela construção ou aquisição de novos inva-
riantes operatórios. Jean Piaget é quem fez as descobertas mais decisivas
sobre esse assunto.
• O OBJETO PERMANENTE
Segundo Jean Piaget, um objeto familiar como uma mamadeira,
uma bola, uma boneca e mesmo um personagem humano, não é consi-
derado pelo bebê como um só e mesmo objeto que permanece idêntico a
si mesmo sob os diversos aspectos pelos quais ele pode aparecer ao sujeito.
Para que assim ocorra, o bebê deve integrar uma sequência de informa-
ções visuais, sonoras e motoras que pedem uma longa experiência e uma
lenta maturação. É dessa forma que um objeto que sofre deslocamentos
por translações e rotações pode mudar de aspecto o bastante para ser con-
siderado diferente no transcorrer das etapas desses deslocamentos. Se ele
desaparece, o objeto cessa de existir.
Portanto, para o bebezinho, o objeto não tem nem unicidade,
nem permanência. É no decurso dos primeiros meses de vida que se
constroem as primeiras invariâncias do objeto e, sem dúvida, de modo
diferente conforme as diferentes categorias de objetos (vivos e inertes).
Segundo Piaget, é somente ao redor dos 18 meses que se completa a
elaboração do conceito de objeto.

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Gérard Vergnaud

O critério que Piaget fornece a respeito é a capacidade operatória


da criança de buscar um objeto desaparecido atrás de vários anteparos,
capacidade que se apoia na certeza que a criança então tem da perma-
nência desse objeto e, ao mesmo tempo, de sua unicidade.

É também nessa idade que a vida simbólica da criança se expan-


de: o rápido desenvolvimento da linguagem que então intervém, outras
atividades como a imitação e a evocação de objetos ausentes testemu-
nham o poder novo que a vida simbólica então adquire.
• INVARIANTES RELACIONAIS E CLASSIFICATÓRIOS
No decurso dos primeiros anos de sua vida, a criança adquire
numerosos “invariantes”, os quais lhe permitem organizar o mundo em
termos de objetos, de classes e de relações. Os psicólogos ainda não
estudaram sistematicamente as diferentes relações que a criança então
constrói. Notadamente, elas são relações espaciais, relações de parentes-
co, propriedades e relações classificatórias, noções de equivalência, de
ordem, de classe, etc.
Demos antes aqui o exemplo da noção de pai como relação entre
dois objetos. Explicitemos um pouco esse ponto: a noção de pai não
seria compreendida plenamente, exceto pelo fato de ela apoiar-se sobre
a relação de paternidade entre seres animados. Ora, a relação de paterni-
dade é uma relação que traz um problema para a criança pequena, posto
que ela é verdadeira não somente entre seu próprio pai e ela, criança,
mas também entre o pai de seu amigo André e André, entre seu avô
paterno e seu pai, e entre seu avô materno e sua mãe. Há muita coisa aí
para se ficar confuso!
Logo, a relação de paternidade é objeto de dificuldades que não
são superadas a não ser muito mais tarde. Compreendê-la como re-
lação única, verdadeira para pares tão diferentes uns dos outros, tais
como o são os dos exemplos citados acima, constitui uma elaboração
considerável para a criança. Como toda relação binária, a relação de
paternidade é a característica de uma classe de pares: a classe dos pares
para os quais a relação é verdadeira! Compreender uma relação é sempre
difícil, a fortiori, quando certas subclasses não fazem a relação aparecer
com evidência, como é o caso nesse exemplo. A relação de paternidade
é um exemplo de invariante relacional. A noção de pai é um exemplo
de invariante classificatório.

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A criança, a matemática e a realidade

Seria cansativo enumerar os invariantes que a criança deve ad-


quirir. É o caso das relações binárias “à esquerda de”, “no exterior de”,
“além de”, “no mesmo plano que”, “maior que”, etc., até relações mais
complexas como:
d = vt
a distância percorrida durante o tempo t é igual ao produto de t pela
velocidade.
Essa relação ternária entre números e entre dimensões não é ainda
compreendida pela maioria das crianças ao final da escola elementar53.

• INVARIANTES QUANTITATIVOS
Piaget mostrou que a noção de quantidade mensurável apoia-se
em invariantes que são evidentes para o adulto; mas numerosas expe-
riências a respeito mostram que, no caso das crianças pequenas, aquela
evidência é contrariada. O mesmo ocorre especialmente para a noção
de cardinal (medida dos conjuntos discretos), uma vez que é somente
ao redor de 6 ou 7 anos que as crianças consideram que uma coleção de
objetos não se altera em sua quantidade quando sua disposição espacial
é alterada: a experiência dos ovos e dos porta-ovos que é relatada no ca-
pítulo VI mostra, de fato que, para os pequenos, apenas o fato de espa-
lhar ou de juntar os objetos de uma coleção modifica-lhe a quantidade.
Como seria possível ensinar a noção de número às crianças se essa noção
não se apoiar explicitamente ou implicitamente no que Piaget chamou
de “conservação de quantidades discretas”? Uma condição necessária
(mas não suficiente) para que a noção de número seja compreendida,
é evidentemente que 6 representa o cardinal de um conjunto de 6 ob-
jetos, quer estejam estes reunidos em uma mesma região do espaço ou
afastados uns dos outros, e que 6 representa o cardinal de um conjunto
de 6 elefantes tal como um conjunto de 6 pérolas.

Lembrando, no sistema de ensino francês, o final da escola elemen-


53

tar (ou básica) ocorre com o CM2 cujos alunos têm aproximadamente 10 anos
de idade. N. T.

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Gérard Vergnaud

Problemas análogos aparecem para a “conservação das quantida-


des contínuas” e, particularmente, para os comprimentos, para os pe-
sos, para os volumes.
Falta espaço para aqui expor o que ocorre no caso dessas dife-
rentes noções. Apenas, será mencionado o exemplo da “conservação
de peso” de uma quantidade de matéria quando esta é subdividida em
pedaços pequenos. É somente ao redor de 8 anos em média que essa
conservação é adquirida e isto ocorre mais tarde, ainda, para algumas
crianças. Pode-se imaginar então os obstáculos nocionais com que se
esbarra se a medida de pesos é ensinada a crianças que ainda não atin-
giram o nível “da conservação de peso das quantidades subdivididas”,
mesmo porque a medida por pesos padronizados repousa justamente
sobre a composição aditiva das partes separadas.
• A NOÇÃO GERAL DE INVARIANTE OPERATÓRIO
Os objetos têm propriedades (relações “unárias”) qualitativas ou
quantitativas e mantêm relações (binárias, ternárias, etc.) com outros
objetos.
Ao mesmo tempo, eles sofrem transformações que são devidas a
processos naturais ou a operações do sujeito.
A análise relacional consiste sempre em definir rigorosamente as di-
ferentes classes de transformações e os invariantes qualitativos, quantitati-
vos e relacionais que estão associados a essas classes de transformações.
Toda a história das ciências é pautada por descobertas de novas
transformações e de novos invariantes. Pode-se dizer que a noção de
invariante é o núcleo mais sólido que se pode encontrar na análise da
noção de conceito. Epistemólogos cada vez mais numerosos o subli-
nham. Sem dúvida, é de Piaget o grande mérito de ter mostrado o papel
da noção de invariante na gênese da inteligência no bebê, na criança.
Entretanto, vamos insistir no fato, nem sempre bem visto por Piaget,
de que a elaboração de invariantes é instrumento decisivo na construção
da representação: são os invariantes que asseguram à representação sua
eficácia, permitindo-lhe preencher sua dupla função:
- de refletir a realidade;
- de prestar-se a um cálculo relacional.
São os invariantes que dão à representação seu caráter operatório.
Daí seu nome.

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A criança, a matemática e a realidade

A NOÇÃO DE ALGORITMO E SEUS DERIVADOS

Para ser operatória, a representação deve aplicar-se à realidade, e


isto é tão verdadeiro quanto o critério da prática é verdadeiro para as
representações da criança assim como para todo o saber. A verificação
do conhecimento está na ação, mais precisamente na ação para trans-
formar o mundo externo.
Os matemáticos inventaram uma noção que permite esclarecer os
elos entre conhecimento e ação; é a noção de algoritmo.
Contentemo-nos com uma definição ingênua a respeito: um al-
goritmo é uma regra (ou uma conjunção de regras) que permite, diante
de todo problema ou de uma classe dada de antemão, de conduzir à sua
solução, se dele existe uma, ou, em caso de insucesso, de mostrar que
não há uma solução.
É necessário destacar que não se pode falar de uma regra que
“conduz à uma solução”, exceto se ela leva a tal solução em um número
finito de etapas; se o número de etapas não é finito, a regra poderia ser
indefinidamente aplicada sem sucesso. Portanto, ela não seria “efetiva”
e isto não seria um algoritmo54.
• Primeiro exemplo
Classe de problemas: ordenar em ordem crescente, da esquerda
para a direita, um número finito de objetos de mesma forma e de pesos
diferentes, comparando-os dois a dois.
Algoritmo possível: pegar dois objetos e compará-los, colocar o
mais leve à esquerda e o mais pesado à direita, pegar um novo objeto,
compará-lo ao mais pesado da série já pesada. Se ele for mais pesado,
colocá-lo à direita. Do contrário, compará-lo ao seguinte. Se ele for
mais pesado, colocá-lo imediatamente à direita desse último. Se ele for
o mais leve da série, colocá-lo à esquerda de toda a série.
Pegar um novo elemento e proceder como antes, comparando-o
primeiro com o objeto da direita e decrescendo a série, passo a passo,
em direção à esquerda. Proceder assim até esgotar o conjunto de objetos
a seriar.

A efetividade de uma regra consiste exatamente em sua proprieda-


54

de de resultar em um número finito de aplicações da regra.

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Gérard Vergnaud

A sequência das ações a efetuar pode ser longa, mesmo se o nú-


mero de objetos não for grande. Nem por isso essa sequência é menos
finita e engendrada por um algoritmo relativamente simples.
Esse algoritmo coloca em ação conhecimentos muito mais ela-
borados do que possam parecer a um leitor não avisado. Na verdade,
ele supõe a transitividade da relação de ordem: quando se interrompe
a comparação porque o novo objeto xj é mais pesado que o objeto xi ao
qual se chegou na série, a regra de interrupção supõe que se xj > xi e xi
> xi + 1, então xj > xi + 1. Na impossibilidade de compreender plena-
mente a transitividade até 8 ou 9 anos as crianças ainda fracassam em
descobrir e mesmo em compreender o algoritmo, e consequentemente,
em seriar.
• Segundo exemplo
Classe de problema: de dois números inteiros quaisquer, escritos
em numeração de posição, encontrar a soma.
Algoritmo: dispor os dois números um abaixo do outro, o algaris-
mo das unidades do segundo número sob o algarismo das unidades do
primeiro, o algarismo das dezenas sob o algarismo das dezenas, e assim
por diante até que os dois números sejam escritos completamente.
Calcular a soma dos dois algarismos que se encontram na coluna
das unidades (olhando na tabuada da adição em caso de insucesso). Se
a soma for inferior a dez, escrever esse número como algarismo das uni-
dades do número a ser obtido. Se a soma for superior a dez, transportar
a reserva de uma dezena para a coluna das dezenas e escrever o resto
(inferior a dez) como algarismo das unidades do número a ser obtido.
Proceder da mesma maneira para a coluna das dezenas, não
esquecendo da reserva eventual, depois para a coluna das centenas.
E assim por diante até serem esgotados todos os algarismos dos nú-
meros de partida.
Também nesse exemplo, a sequência de ações a ser efetuada pode
ser bastante longa. As regras, por mais simples que sejam, arriscam-se a
não ser compreendidas exceto se apoiadas em uma compreensão clara
da adição de cardinais de conjuntos, compreensão que deve ser desen-
volvida por exercícios pedagógicos apropriados (agrupamentos de obje-
tos, material de bases múltiplas, etc.) tal como examinado no capítulo
sobre a numeração.

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A criança, a matemática e a realidade

• Terceiro exemplo
Classe de problema: em uma estrutura de isomorfismo de medi-
das, sabendo-se que a medida a do primeiro espaço de medidas corres-
ponde à medida b do segundo espaço de medidas, obter a medida do
segundo espaço correspondente à medida c do primeiro.
Algoritmo possível: buscar o operador fracionário que faz passar
de a à c e aplicá-lo à b para encontrar x.
Outro algoritmo possível: b x c (regra de três).
a
Outro algoritmo: buscar o valor unitário b/a, depois multiplicar
esse valor por c.
Existem, ainda, outros algoritmos.

A sequência de ações a efetuar é breve; entretanto, ela não seria


possível para a criança ou o adulto se ela não se apoiasse sobre o conhe-
cimento das relações em jogo em tal estrutura. Não se aplica a regra de
três sem compreendê-la, nem o terceiro algoritmo que vem a ser, no
entanto, o mais simples de todos.
Não é útil multiplicar os exemplos, mas se pode imaginar que a
noção de algoritmo aplica-se a domínios da vida muito diferentes. No
próprio interior do domínio da matemática, acabamos de ver que ela se
aplica à seriação de objetos, à técnica da adição e à solução de problemas
multiplicativos.
Em todos os casos para os quais se pode definir uma classe de
problemas, isto é, em todos os casos em que se pode caracterizar uma
classe como tal, tem-se o direito de buscar algoritmos. Isto concerne a
numerosos aspectos da vida: a procura da causa de uma pane de eletri-
cidade ou de uma pane de um automóvel, a gestão de um orçamento
familiar, a organização de uma agenda, a própria solução de certos pro-
blemas familiares.
Entretanto, isto não significa de forma alguma que se tenha su-
cesso nesta procura. Mesmo em matemática há classes de problemas
bem definidos para os quais não há algoritmo.
De qualquer modo, não se pode ter a expectativa de descobrir
algoritmos sem uma análise aprofundada das relações em jogo nos pro-
blemas considerados. Os algoritmos são, eles próprios, relações como
outras e, por causa disso, são calculáveis: uma grande parte das opera-

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Gérard Vergnaud

ções que se desenrolam no plano da representação tem, por objetivo,


encontrar algoritmos. É por isso que, se as ações se situam no plano da
realidade, os algoritmos, eles próprios, são do domínio da representa-
ção. Eles são regras de ação.
Porém, as regras de ação não são todas algorítmicas: na verdade,
os procedimentos empregados pelas crianças não levam necessariamen-
te à solução dos problemas abordados. Essas regras não algorítmicas não
deixam de ser, por causa disso, menos importantes para o psicólogo e
para o professor que procuram compreender o que a criança faz e onde
ela está em seu fazer. Frequentemente, os procedimentos utilizados pe-
las crianças respeitam tão somente uma parte das propriedades das rela-
ções em jogo. É assim interessante analisá-los desse ponto de vista, e não
deixá-los de lado como “erros” a rejeitar. É raro as crianças cometerem
erros grosseiros na utilização de informações presentes em uma dada
situação; o mais comum é elas ignorarem algumas dentre essas infor-
mações, elas não as captarem e evidentemente não as tratarem. Contu-
do, seus procedimentos, embora insuficientes, revelam-se à análise mais
inteligência e fecundidade do que se pode crer à primeira vista. Certos
psicólogos falam então de regras heurísticas, não algorítmicas, mas, no
entanto, fecundas por causa da direção na qual elas engajam a reflexão
do sujeito. Existem também, infelizmente, regras de ação pouco fecun-
das, que devem ser igualmente estudadas no caso de se querer produzir
uma imagem completa dos problemas do ensino.
Portanto, a noção de “regras de ação” é uma noção mais completa
que a noção de algoritmo, e deve dar conta do conjunto de comporta-
mentos que se pode observar. Os algoritmos são apenas algumas regras
de ação entre outras.
Isto pede uma segunda observação: todas as regras de ação não
se situam no nível da representação; algumas são objetos de simples
condicionamentos, nos quais a representação não intervém. Por exem-
plo, é pouco provável que o cachorro de Pavlov, que saliva escutando a
campainha tocar, faça uma representação calculável das relações entre
o som da campainha, a chegada da comida e a ação de salivar. Certos
psicólogos, aliás, desenvolveram teorias segundo as quais todas as ações
seriam engendradas por condicionamentos e associações. O que foi dito
sobre os algoritmos e as ligações que eles mantêm com as relações em

312

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A criança, a matemática e a realidade

jogo nos problemas aos quais eles se aplicam mostra que não é razoável
defender tal posição.
Para maior clareza, é preciso distinguir diferentes níveis de cons-
ciência das regras de ação, ou melhor, das “regras de produção das ações
do sujeito”, posto que se trata exatamente, de fato, do conjunto das
regras que engendram os comportamentos dos sujeitos em uma dada
situação.
Algumas dessas regras são conscientes, evidentemente. Mas elas
podem ser inconscientes de suas maneiras:
1. Ou porque elas implicam alguma consciência das relações a
tratar (simples condicionamento ou simples comportamento aleatório).
2. Ou porque elas estão em ligação com as relações a tratar, mas
sem que aquela ligação apareça de forma explícita aos olhos do sujeito.
Elas podem ser igualmente conscientes de várias maneiras:
3. Ou porque a ligação entre relações constatadas e regras é explí-
cita no nível da consciência do sujeito sem por isso estar logicamente
justificada.
4. Ou porque a referida ligação pode ser explicitada pelo sujeito.
Níveis mais sofisticados ainda poderiam ser identificados, parti-
cularmente no nível 4 com o problema da prova e da integração a um
sistema explicativo de conjunto.
A psicologia cognitiva não começa somente nos dois últimos níveis.
Desde o nível 2, há espaço para uma análise cognitiva dos comportamen-
tos do sujeito: o estudo dos comportamentos das crianças mostra, com
efeito, que muitos dentre eles se situam nesse nível, embora consistam de
uma grande parte de racionalidade e de compreensão das relações.
Logo, é tarefa do professor, e mesmo que ele não disponha de
qualquer outro testemunho se não aquele fornecido pela observação dos
comportamentos da criança, buscar a parte das relações que ela, criança,
bem compreendeu, a parte que ela compreendeu de modo confuso, e a
parte daquelas que ela ignora pura e simplesmente. Em todo o caso, é
um enorme erro pedagógico considerar, sob o pretexto de que o ensino
é necessariamente feito de demasiados exercícios de caráter repetitivo,
de que consista ele, ensino, na aquisição, por simples condicionamento,
de hábitos ou de procedimentos já prontos.
A criança não adquire hábitos, mas regras, as quais podem e devem
aplicar-se a problemas novos. Ela não as adquire solidamente, a menos

313

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Gérard Vergnaud

que as compreenda, quer dizer, perceba as ligações que as regras mantêm


com a estrutura relacional dos problemas aos quais se aplicam.

A NOÇÃO DE COMPLEXIDADE LÓGICA

Por várias vezes, viu-se que as relações podiam existir entre obje-
tos, pessoas, palavras, conjuntos, quantidades, números, propriedades,
relações, transformações, etc.
Diversas perguntas podem ser feitas ao psicólogo e ao pedagogo:
- Quais são as relações as mais simples para as crianças? As mais
complexas?
- Quais são as propriedades das relações que são compreendidas e
utilizadas com mais facilidade? E aquelas com mais dificuldade?
- Quais as formas de cálculo que a criança faz mais facilmente? E
menos facilmente?
Todas essas questões são tributárias da noção de complexidade
lógica, que não está clara para os matemáticos, nem para os psicólo-
gos. Ainda mais que as preocupações de uns e outros nem sempre são
convergentes porque o matemático busca o poder e a independência
dos axiomas ali onde o psicólogo se preocupa demasiadamente com a
evidência ingênua e com a ordem genética. Matemáticos e psicólogos
são facilmente tentados por uma teoria geral. Parece-nos preferível, no
estado atual dos conhecimentos, tornar disponíveis com maior certeza
teorias locais da complexidade para domínios relativamente limitados
da atividade mental. São teorias locais as que tentamos desenvolver nos
vários capítulos deste livro e, especialmente, nos que se referem à solu-
ção dos problemas da aritmética elementar.
Mas é preciso, entretanto, paralelamente, procurar ver quais po-
dem ser as articulações gerais da complexidade.
É o que vamos tentar nesta última parte deste capítulo, analisan-
do brevemente as diferentes hierarquias possíveis:

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A criança, a matemática e a realidade

I. Hierarquia dos diferentes “Objetos lógicos”55.


II. Hierarquia das diferentes propriedades desses “Objetos lógi-
cos”.
III. Hierarquia das diferentes classes de problemas nas quais es-
sas propriedades são empregadas.
• I. HIERARQUIA DOS DIFERENTES OBJETOS LÓGICOS
Vimos que o conhecimento consiste, em larga medida, em recor-
tar, na complexa sequência dos aspectos da realidade, invariantes que
assumem o status de “Objetos lógicos” e que, sob esse título, podem ser
integrados em uma representação calculável. Eis alguns exemplos:
- objeto particular: considerado como permanente, idêntico a si
próprio e único sob diversas transformações (deslocamentos, desapare-
cimentos, deformações...). A permanência de algumas dessas proprie-
dades é decisiva em comparação à modificação das outras;
- conjunto de objetos ou classes de objetos: objetos que têm em co-
mum certas propriedades consideradas como fazendo parte de uma mes-
ma classe e recebendo a mesma denominação apesar de suas diferenças.
- característica de uma classe: as propriedades necessárias e su-
ficientes que devem os objetos possuir para pertencerem a uma classe
formam a característica dessa classe;
- propriedade e relação estática: as propriedades e relações poderiam
ser consideradas como particulares e atreladas a objetos particulares:
“a manteiga é amarela”,
“a manteiga está em cima da mesa”,
mas desde que sejam elas separáveis dos objetos e que sejam elas consi-
deradas como propriedades ou relações:
“amarelo” “em cima de”

A maiúscula indica que falamos de “Objetos” em um sentido


55

muito amplo: classes, relações, propriedades, características, transformações,


invariantes quantitativos e relacionais, etc., são “Objetos lógicos”; a minús-
cula indica que falamos de objetos no sentido mais material do termo (uma
mamadeira, um copo, um prato, uma pessoa...). Um objeto material também
é um “Objeto lógico”, como Piaget mostrou em seus estudos sobre o objeto
permanente.

315

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Gérard Vergnaud

elas se tornam gerais e aplicáveis a uma classe indefinida de objetos. “Ama-


rela” é uma propriedade verdadeira da manteiga, mas também da omelete,
da cortina, etc.; “em cima de” é uma relação verdadeira do par (manteiga,
mesa), mas também de diversos outros pares (sal, mesa), (mesa, solo), (pás-
saro, ramo), etc.
Logo, uma propriedade é a característica da classe de todos os
objetos para os quais essa propriedade é verificada.
Uma relação binária é a característica da classe de todos os pares
para os quais essa relação é verificada.
Uma relação ternária é a característica de uma classe de triplos.
Etc.
A utilização de propriedades e de relações na linguagem falada
marca o início de sua constituição em “Objetos lógicos”.

Transformações e processos
As transformações e processos são relações entre estados sucessivos
da realidade (relações dinâmicas). Tudo o que acaba de ser dito sobre
propriedade e relações é verdadeiro para transformações e processos.

Conjunto de transformações
As transformações formam classes no interior das quais, em geral,
elas são componíveis entre si. Com maior frequência, tais conjuntos
têm uma estrutura algébrica de grupo, mas eles podem ter outras es-
truturas. Um conjunto de transformações é um “Objeto lógico”, do
mesmo modo que um conjunto de relações.

Invariantes qualitativos, quantitativos e relacionais


Nesses conjuntos complexos, propriedades qualitativas e quan-
titativas assim como relações são conservadas. Esses “invariantes” fun-
cionam, por sua vez, como características de classes de transformações
nas quais eles são efetivamente conservados. Trata-se igualmente de
“Objetos lógicos” cuja compreensão está longe de ser evidente para as
crianças, tal como vimos neste livro por várias ocasiões: número, peso,
volume, velocidade, etc.

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A criança, a matemática e a realidade

• II. HIERARQUIA DAS DIFERENTES PROPRIEDADES DES-


SES OBJETOS LÓGICOS
Um mesmo “Objeto lógico” pode ter várias propriedades, com-
preendidas pelas crianças em diferentes momentos do decurso de seu
desenvolvimento. Tomemos o exemplo da relação de ordem: a antissi-
metria (se A é maior que B, então B não é maior que A) é compreendida
muito mais cedo que a transitividade (se A é maior que B, e B é maior
que C, então A é maior que C), a qual traz dificuldades para várias
crianças até 7 ou 8 anos.
Da mesma forma, nas propriedades da estrutura algébrica de gru-
po, a existência do elemento neutro não traz problema enquanto que
a noção de inversa o traz muito mais. Mesmo no caso relativamente
simples das estruturas aditivas.
De uma forma geral, as diferentes propriedades das relações e das
estruturas são adquiridas pelas crianças em etapas diversas, de tal sorte
que é necessário acrescentar à hierarquia dos próprios “Objetos lógi-
cos”, uma hierarquia das propriedades desses Objetos.
• III. HIERARQUIA DAS DIFERENTES CLASSES DE
PROBLEMAS
No entanto, as fontes de dificuldades devem ainda ser mais bem
identificadas porque a mesma propriedade pode ser adquirida para cer-
tas classes de situações e não para outras.
É assim que a classe de problemas de tipo aditivo, que se refere à
busca do estado inicial conhecendo-se a transformação e o estado final,
deve ser subdividida em suas subclasses: aquelas dos problemas em que
a transformação é positiva e aquela dos problemas em que a transforma-
ção é negativa (nitidamente mais difícil).
Depois, ela deve ser subdividida em outras subclasses conforme a
grandeza e as propriedades dos números em jogo.
Do mesmo modo, nos problemas em que as transformações ele-
mentares formam uma transformação composta e em que é preciso en-
contrar uma das transformações elementares, conhecendo a composta
e a outra elementar, observam-se defasagens que podem ser de até três
anos entre a solução da classe de problemas a mais simples (todas as
transformações são positivas) e a classe mais difícil (a composta e a ele-
mentar são de sinais diferentes).

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Gérard Vergnaud

Em suma, a análise experimental das dificuldades encontradas pe-


las crianças na aquisição da matemática mostra que é necessário abordar
a noção de complexidade lógica segundo diversos pontos de vista, ao
mesmo tempo, e guardar-se de fazer qualquer generalização prematura.
À tripla hierarquia que acabamos de descrever, o estudo dos com-
portamentos das crianças em situação de solução de problemas permite
acrescentar dois outros tipos de hierarquias:
- a hierarquia entre procedimentos;
- a hierarquia entre representações simbólicas.
A hierarquia entre procedimentos refere-se à facilidade desigual
e à disponibilidade desigual dos diferentes procedimentos de solução a
uma mesma classe de problemas. Os problemas de tipo aditivo e de tipo
multiplicativo forneceram numerosos exemplos dessas desigualdades.
A hierarquia entre representações simbólicas refere-se à questão
de saber se diferentes sistemas de significantes são igualmente acessíveis
e utilizáveis pelos alunos, especialmente na comunicação das explica-
ções em sala de aula. A esse respeito, também os problemas de tipo
aditivo e de tipo multiplicativo forneceram vários exemplos. Fixemo-
nos em um deles somente para concluir: se a representação em tabela
dos problemas de tipo multiplicativo permite compreender melhor a
natureza das relações entre os dados, o sentido das perguntas feitas,
e as operações a efetuar, pode-se considerar que aquela representação
favorece mais a solução dos problemas pelos próprios alunos e a trans-
missão das explicações pertinentes do que a representação por meio de
equações numéricas. Colocar um problema dado em equação parece
excessivamente difícil ao final do ensino básico; colocá-lo em esquema
ou tabela, sem que, por causa disto, seja essa tarefa vista como trivial,
parece ser mais acessível.

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A criança, a matemática e a realidade

OBSERVAÇÃO FINAL

Muitas questões estão ausentes desta obra e que, entretanto, me-


recem ser abordadas desde o ensino elementar. Citemos, em primeiro
lugar, a combinatória, as estatísticas, as probabilidades. Citemos ain-
da a geometria, o cálculo aproximado, a estimativa. Mas seria vão, da
parte do autor, tentar ser exaustivo, na medida em que sua experiência
ocorreu principalmente com os aspectos que se constituem objeto dos
capítulos precedentes. É melhor assim tratar somente deles.
Além disso, as teses aqui expostas podem não ser todas segura-
mente necessárias, e o interesse desta obra reside tanto na problemática
que ela desenvolve quanto nas conclusões necessariamente provisórias,
que dela podem ser retiradas.
De qualquer forma, ela mostra que uma certa concepção moder-
na de ensino da matemática não se afasta do “cálculo” a não ser para
a ele melhor voltar, sob a forma do “cálculo relacional”, o qual está,
ao mesmo tempo, no centro do funcionamento da inteligência e do
conhecimento, e não é exclusivo da matemática. Mostra que a noção
de cálculo relacional conduz a analisar matematicamente muitos outros
domínios além do domínio numérico, e a distinguir, no interior do
domínio numérico, uma variedade de operações muito maior do que
aquela das quatro operações da aritmética elementar. Essa é, talvez, com
a teoria do homomorfismo, a principal tese desta obra.

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BIBLIOGRAFIA

A lista de obras que segue, deliberadamente arbitrária, fornece


indicações sobre leituras complementares suscetíveis de interessar os lei-
tores não especializados e que gostariam de completar suas informações.
Na verdade, ela não constitui uma lista de referências. Exceto em um
caso, ela contém somente obras escritas em francês ou traduzidas para
essa língua.

DIENES, Z. P. Comprendre la mathématique. Paris: O.C.D.L.,


1965.
______. Construction des mathématiques. Paris: P.U.F, 1966.
______. Les six étapes du processus d’apprentissage en mathémati-
ques. Paris: O.C.D.L., 1970.
FLETCHER, T. J. L’apprentissage de la mathématique aujourd’hui.
Paris: O.C.D.L., 1966.
FREUDENTHAL, H. Mathematics as an educational task. Dor-
drecht: D. Reidel, 1973.
INHELDER, B.; SINCLAIR, H.; BOVET, M. Apprentissage et
structures de la connaissance. Paris: P.U.F., 1974.
JAULIN-MANNONI, F. Le pourquoi en mathématiques. Paris:
E.S.F., 1975.
LURÇAT, L. L’enfant et l’espace. Paris: P.U.F., 1976.
MEJAC, C. Décrire, agir, compter. Paris: P.U.F., 1979.
PERRET-CLERMONT, A,-N. La construction de l’intelligence
dans l’interaction sociale. Berne: Peter Lang, 1979.
PICARD, N. Agir pour abstraire. Paris: O.C.D.L., 1976.
PIAGET, J. Épistemologie génétique. Tome I: La pensée mathéma-
tique. Paris: P.U.F., 1949.
______. La formation du symbole chez l’enfant. Neuchâtel: Dela-
chaux et Niestlé, 1946.
______. Psychologie et Pédagogie. Paris: Denoël, 1969.
PIAGET, J.; INHELDER, B. La genèse des structures logiques élé-

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Gérard Vergnaud

mentaires. Neuchâtel: Delachaux et Niestlé, 1959.


PIAGET, J.; SZEMINSKA, A. La genèse du nombre chez l’enfant.
Neuchâtel: Delachaux et Niestlé, 1941.

Coleção: Estudos de Epistemologia Genética


Volume XI: GRÉCO, P.; PAPERT, S.; GRIZE, J.-B.; PIAGET, J.
Problèmes de la construction du nombre. Paris: P.U.F., 1960.
Volume XIII: GRÉCO, P.; MORF, A. Structures numériques élé-
mentaires. Paris: P.U.F., 1962.

Várias fontes de informação podem ser consultadas com proveito.


Cahiers de l’I.R.E.M. de Bordeaux, sob a direção de Guy Brous-
seau, 351, Cours de la Libération, 33405 – Talence.
Grand, N. Bulletin de Mathématiques pour les Maîtres de
l’Enseignement Élementaire, CRDP, 11, av. Général Champon,
38031 – Grenoble Cedex.
Recherches en Didactiques des Mathématiques – revista editada
por André Rouchier, I.R.E.M. d’ Orléans, Domaine Universitai-
res de la Source, 45045 – Orléans Cedex.

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Este livro foi composto em Garamond 10/12/17,
impresso em off-set, em papel pólen soft 80 g/m2
para o miolo, e papel cartão supremo 250 g/m2
para a capa, pela Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo - São Paulo-SP para a Editora UFPR,
em novembro de 2009.

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