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História

canto dada
vida
depressão: no
Em 2.500 anos de história, a melancolia inspirou grandes obras da arte e
da ciência – e é um dos maiores problemas que a humanidade precisa
enfrentar

No mundo ocidental, quem primeiro notou características depressivas e as


sistematizou em torno de um nome foi Hipócrates, considerado o pai da
medicina, no século 4 a.C. Ele cunhou o nome melancolia a partir de duas
outras palavras: mêlas = negro e kholê = bile. Melankholia significa portanto
“bile negra”, segundo ele, um dos 4 humores que constituem o corpo humano
– os outros seriam a bile amarela, o sangue e a fleuma. No texto intitulado Da
Natureza do Homem, Hipócrates (ou seu genro Polibeu, não se sabe ao certo)
estabelece uma correspondência entre os 4 humores, as 4 estações do ano e as
4 características fundamentais da matéria (quente, fria, seca e úmida). A cada
um dos humores ele relacionou um sintoma psicológico. Em seu estado
normal, o homem teria os 4 bem equilibrados. O problema se daria em casos
de excesso de um ou de outro. Bile amarela demais causaria um
temperamento raivoso, da mesma maneira que a bile negra em abundância
provocaria a depressão. “Se a tristeza e a angústia não passam, o estado é
melancólico”, disse Hipócrates em seus Aforismas.
No mesmo século, o filósofo grego Aristóteles, em uma obra conhecida como
Problema 30, reparou em uma estranha coincidência: “Por que razão todos os
homens de exceção na filosofia, na política, na poesia ou nas artes são
manifestamente melancólicos?” Não foi o único a perceber isso. A
propaganda do Prozac, o mais popular dos antidepressivos, enumera uma lista
de “homens de exceção” acometidos pela doença: os americanos Abraham
Lincoln e Theodore Roosevelt, o pintor holandês Vincent van Gogh, os
escritores Mark Twain e Ernest Hemingway, o inglês Winston Churchill, a
atriz Marilyn Monroe e o bailarino Vaslov Nijinsky são alguns deles. A
diferença é que, enquanto a indústria farmacêutica busca encorajar os doentes
a se tratar, Aristóteles via na melancolia um atributo essencial da genialidade.
Para ele, era um estado ao mesmo tempo patológico e desejável.

Podemos imaginar uma balança para medir como a humanidade encarou a


melancolia em diferentes períodos e lugares. Na Grécia antiga, a balança
estaria equilibrada – o peso do lado positivo é igual ao do lado negativo. Já na
Idade Média, a balança pesaria de maneira extremada para o lado negativo.
Não se falava em melancolia, mas em acédia. A palavra saiu de uso tanto no
português como em outras línguas latinas, mas continua presente no
dicionário. De acordo com o Houaiss, significa enfraquecimento da vontade,
inércia, preguiça ou desordem mental, caracterizada por apatia, melancolia e
descuido. Pois não é que a acédia entrou para o temido rol dos 7 pecados
capitais? Isso mesmo, junto com a gula, a avareza e o orgulho, por exemplo.

A história é a seguinte: no início do século 4, centenas de monges


estabeleceram alguns dos primeiros grandes monastérios católicos nos
desertos da Síria e do Egito (nos dois retiros mais importantes, a sudoeste de
Alexandria, viviam 5.600). Esses monges, chamados de anacoretas,
pretendiam se isolar do mundo para, assim, fugir de toda e qualquer tentação.
Só que, mesmo distante de tudo, restava ainda um demônio: a acédia. Evágrio
Pôntico, antigo diácono de Constantinopla que se retirou no deserto em 383,
descreveu assim a tentação, também chamada de “demônio do meio-dia”:
“Ele força o monge a manter os olhos fixos na janela, fora de sua célula,
observando o sol para ver se ele está longe da 9a hora. Ele inspira a aversão
pelo lugar onde o monge se encontra, por seu próprio modo de vida e pelo
trabalho manual. Além disso, provoca a idéia de que a caridade desapareceu e
que ninguém poderá consolar-lhe. O demônio da acédia usa todas suas forças
para que o monge abandone sua célula e fuja”.
É assim, com essa roupagem de tentação que leva ao pecado, que a acédia
chega à Idade Média. Em todo o ocidente medieval, a definição que impera é
a do frade dominicano são Tomás de Aquino (1227-1274), grande filósofo do
cristianismo. Para ele, trata-se de “uma tristeza devastadora, que produz no
espírito do homem uma depressão tal que ele não tem mais vontade de fazer
nada. A acédia é um desgosto pela ação”. Uma nova etimologia da palavra
melancolia é forjada, o que contribui para aumentar a carga negativa: melan
agora é ligada ao termo latino malus, que vale tanto para mal como para
malsão, ou doente. Diante de definições tão desprezíveis, o que poderia fazer
o homem medieval ao se sentir melancólico? Ora, não haviam muitas opções.
Ou escondia o pecado, ou rezava para tentar banir o abominado sentimento de
sua alma.

A melancolia só daria a volta por cima no século 19. Na Inglaterra dessa


época, o prato mais pesado da balança é o da visão positiva: a moda
elizabetana manda vestir preto e o spleen é um atributo essencial do
romantismo. Órgão que se acreditava secretar a bile negra, o baço (ou spleen,
em inglês), virou sinônimo de angústia, mau humor e depressão. As mulheres
inglesas que andavam de cara amarrada por volta de 1800 diziam ter sido
atingidas pelos vapores do spleen. Nada mais glamouroso, na época. Apesar
de sofrido e devastador, o sentimento borocoxô é cultuadíssimo pelos
românticos. Famoso poeta do período, o inglês George Gordon (1788-1824),
mais conhecido como Lord Byron, influenciou escritores de diversos países.
Os seguidores do chamado byronismo tinham em comum um sentimento de
mal-estar, desajuste, solidão, desencanto e tédio, características resumidas na
expressão mal du siècle (“o mal do século”, em francês). O tuberculoso e
taciturno Álvares de Azevedo (183-1852), autor de A Lira dos Vinte Anos, é o
escritor brasileiro que melhor incorpora a linha. Na França, o poeta Charles
Baudelaire (1821-1867) representa bem o espírito nos versos de “A Morte dos
Pobres”:
A Morte é que consola e nos faz viver;

É o alvo desta vida e a única esperança

Que, como um elixir, nos dá fé e confiança,

E forças para andar até o anoitecer.

Em meio à tempestade e à neve a se desfazer,

É a luz que em nosso lívido

horizonte avança

É a pousada que um livro diz


como se alcança,

E onde se pode descansar e adormecer.

É um Arcanjo que tem nos dedos imantados

O sono eterno e o dom dos

extasiados,

E arruma o leito para os nus e os desvalidos;

É dos Deuses a glória e o místico celeiro,

É a sacola do pobre e o seu lar verdadeiro,

O pórtico que se abre aos

Céus desconhecidos!

Hoje em dia não se fala tanto de melancolia. A palavra ainda é usada para
casos profundos de depressão, esse sim, o termo médico em voga. Mas qual é
a diferença entre tristeza, melancolia e depressão? Bom, as fronteiras não são
bem claras. De uma maneira geral, pode-se dizer que o termo depressão
herdou boa parte dos atributos da melancolia do passado. Diferente dos
gregos, no entanto, o mundo de hoje vê a depressão como uma doença sem
qualquer implicação positiva. “A tristeza é uma emoção universal e tem o seu
valor: leva à introspecção, ajuda a elaborar a frustração e contribui para o
amadurecimento”, diz o médico Teng Chei Tung, do Instituto de Psiquiatria
do Hospital das Clínicas, em São Paulo. “Do ponto de vista clínico, a
depressão é uma doença incapacitante e, diferente da tristeza, não pode ser
controlada pelo paciente sozinho.” Ou seja, a balança agora está no lado
negativo.

Mal dos macambúzios


Como foi que a melancolia se transformou em doença, entrou na seara da
psiquiatria e passou a ser combatida com uma intensidade semelhante à da
Idade Média? É verdade que os gregos já viam o lado patológico da
melancolia. Mas nada comparado ao problema de saúde pública de nossos
dias. A partir do século 18, os médicos começaram a se interessar pelas
doenças mentais. Eram os chamados alienistas, que consideravam a
melancolia como um tipo de loucura ou como uma mania. O fundador da
psiquiatria na França Philippe Pinel (1745-1826) – aquele que deu origem à
expressão “ficar pinel” – e, mais tarde, seu aluno Jean-Etienne Esquirol
(1772- 1840) estão entre os mais notáveis estudiosos da área. Em 1915, Freud
comparou a melancolia ao luto. Segundo ele, “ambos provocam uma
depressão profundamente dolorosa, uma suspensão do interesse pelo mundo
exterior, a perda da capacidade de amar e a inibição de toda a atividade”. A
diferença seria que, enquanto o luto é a dor pela perda de alguém ou algo, o
melancólico se ressente da perda do “eu”, o que também traria uma
diminuição da auto-estima.

Um grande avanço veio com a descoberta – por acaso – dos antidepressivos.


Na década de 1950, percebeu-se que a isoniazida, enzima usada para tratar
tuberculosos, produzia nos doentes uma inesperada sensação de ânimo e bem-
estar. Uma reação similar foi notada com a inipramina, um antialérgico.
Usadas para tratar depressivos, no entanto, essas substâncias provocavam
muitos efeitos colaterais, já que não haviam sido criadas com esse fim
específico. Os antidepressivos agem sobre algumas substâncias que regulam a
transmissão de impulsos nervosos, os neurotransmissores – em especial sobre
a serotonina, que além de influenciar o temperamento, controla a liberação de
hormônios que regulam estados como o sono e a fome. Deprimidos
apresentam distúrbios na regulação de serotonina, mas comece a brincar com
essa substância e você corre o risco de desregular o organismo inteiro.

A primeira droga capaz de agir sobre a serotonina sem tantos efeitos colaterais
foi o Prozac, que começou a ser vendido nos Estados Unidos em 1988. Graças
a ele, os antidepressivos se tornaram populares. “O remédio é tão seguro que
dá a impressão de que qualquer médico pode tratar a depressão”, afirma Tung,
do Hospital das Clínicas. “Mas hoje em dia a medicação é acompanhada com
mais cuidado. A associação dele com outros medicamentos pode gerar
intoxicação. Estudos sugerem até que tratamentos com antidepressivos podem
agravar a depressão ou levar ao suicídio.”

Mesmo com remédios, as estatísticas atuais sobre a depressão são alarmantes.


Além dos 340 milhões de pessoas com a doença, estima-se que em 2020 ela
será a 2a principal causa de incapacidade no mundo, atrás apenas de doenças
cardíacas (hoje, ela ocupa a 4a posição desse ranking). Não é à toa que, entre
as medicações só comercializadas com receita médica, os antidepressivos são
os campeões de venda. Por outro lado, nunca a depressão foi tão estudada
quanto hoje, o que abre a perspectiva de melhores remédios.
Mas será que estamos no caminho certo? “Não acredito que nós hoje
compreendemos melhor a melancolia do que os gregos”, diz o historiador da
arte Jean Clair, curador da exposição Melancolia, que estudou as abordagens
artísticas da depressão por mais de 10 anos. “Nossa época a nega. É preciso
ser feliz, engraçado, divertido, positivo e, nesse contexto, a melancolia é
proibida. Se você se sente melancólico, toma um Prozac. O ideal do homem
hoje em dia é se manter constante o tempo todo, sem alterações de humor,
como as frutas e os legumes do supermercado, que têm sempre a mesma cor, o
mesmo tamanho e o mesmo gosto.” A mostra reúne 250 obras, entre telas,
desenhos, gravuras e esculturas, todas com o tema da melancolia. “O público
se dá conta de que a melancolia faz parte da nossa cultura e não é apenas uma
doença. Além do mais, é reconfortante saber que o que sentimos se inscreve
na história e foi responsável por algumas das mais importantes obras de arte”,
diz Jean Clair. Na França, a mostra atraiu 330 mil pessoas em 3 meses. Na
esteira do seu sucesso, foram lançados mais de 10 livros sobre o tema. “O
sofrimento da melancolia constitui o homem, da mesma maneira que os peixes
têm espinha”, diz o professor Jackie Pigeaud, da Universidade de Nantes,
França, conhecido por seus estudos sobre a história do pensamento médico.
Pacientes com depressão clínica devem buscar ajuda e procurar se tratar, mas
ficar triste ou ter alterações de humor não deve ser motivo de vergonha. Como
diz Pigeaud: “Anormal é não sofrer nunca e estar sempre contente”.

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