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TRADUÇÀO E PREFÁCIO
JOÀO BAPTISTA MACHADO
EDITOR
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and the Hans-Kelsen-Institute in Viena
NOTA P R E A M B U L A R
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i" '■ | i ;:i;:'ii;ii iim n u im im i!n n u n in iin n im n n n n n n n u n »
n o t a p r e a m b u la r
D epois d e K e l s e n , o p ro b le m a q u e se p õ e ao p e n sa m e n to ju ríd ic o é o
mesmo que en fren ta o pen sa m en to hum ano em g e r a l ap ó s ter sido lev a d a
às suas ú ltim as c o n s e q ü ê n c ia s a c o rren te n o m in a lis ta q u e in fo rm o u o
espírito d e to da a é p o c a m o d ern a : até q u e pon to p o d e o hom em fir m a r
os in dicad ores d e rum o d a sua co nduta no terreno do pen sa m en to lógico-
-objectivante, com o e d e o n de d e r iv a r com v a lid a d e o b jec tiv a um a neces
sitas moralis.
Se é certo - muitos o afirmam - que a «crise» do Renascimento na
cultura europeia deve ser havida como o antecedente remoto da moderna
teoria dos valores, é também certo que o germe e agente principal dessa
crise de pensamento fo i o nominalismo, o qual conduziria, por neces
sidade própria, a uma separação entre o conhecer e o agir, entre a
filosofia teorética e a prática. A questão - como K a n t veio a mostrar mais
tarde - era a de saber que modo de acesso - se é que algum - nos permi
tiria este novo estilo de pensamento ao que hoje se chamaria o plano
ético-existencial. A experiência representada pelo sistema filosófico de
L ocke mostrou claramente que a perspectiva nominalista não poderia ser
aplicada aos dom ínios da filosofia prática, sob pena de contradições
insanáveis. Partindo de processos elementares rigorosamente definidos,
partindo atomisticamente das partículas isoladas pela análise ou dos
indivíduos, só através de uma infidelidade ao esquema, isto é saltando
fora do próprio sistema e operando uma mudança radical de perspectiva
se poderá lograr a visualização da unidade capaz de transcender as
partes e se lhes sobrepor - de outro modo, nada de verdadeiramente real
(objectivo) se poderá vislumbrar num todo complexo além das peças que
entraram na sua montagem. A lógica conseqüência da perspectiva
nominalista haveria de ser o cepticismo de de H u m e . São conhecidas
as frases com que este filósofo, em An Enquiry Concerning Human
Understanding, impressivamente sublinha a sua atitude antimetafísicci
e que tão fundam ente haveriam de impressionar K a n t : «Tomemos
qualquer volume, sobre a divindade ou sobre metafísica acadêmica, por
exemplo, e perguntemos: contém ele qualquer discurso abstracto relativo
à quantidade ou ao número? Não. Contém qualquer discurso experi
mental relativo a factos reais ou à existência? Não. Lancemo-lo então às
chamas, pois nada mais pode conter senão sofismas e confusão».
Surge então Kant que vai separar as águas, que vai decantar as
substâncias de dois tipos de pensamento que até aí impuramente se
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A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL
II
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nota pr ea m b u la r
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A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l . nota pr ea m b u la r
mos perspectiva lógico-objectivante, poderemos, pelo menos provisoria intervir sobre o processo histórico sem se deixar absorver por ele - sem
mente, partir de uma noção geral de positivismo como aquela doutrina se deixar transformar em «facto» inerte, arrastado como qualquer outro
que apenas admite como viável a perspectiva lógico-objectivante em evento pelo fluxo dos aconteceres. Surge, portanto, como intencionalidade
qualquer espécie de conhecimento. operatória. Ora tudo o que seja visualizar essa intencionalidade do
espírito sob uma perspectiva lógico-objectivante resulta em configurá-la
6 - Como já atrás dissemos, o problema é, pois, antes de mais, o de como «dado» ou estrutura apenas, já que aquela perspectiva, por
saber se a leitura estrutural (ou perspectiva lógico-objectivante) permite definição mesmo, não permite focalizar a actividade criadora do espírito
apreender todas as dimensões do jurídico. - não perm ite reconhecer a este o seu essencial p a p el de agente da
Logo uma prim eira consideração, de form ulação assaz difícil, nos história, de promotor do processo cultural-histórico. O jurídico perde o
inculca uma resposta negativa. seu significado próprio quando visto sob uma perspectiva em que a
A questão traz-nos à mente uma fra se de HEGEL: «Recht ist Geist sich actividade do espírito é posta entre parêntesis para só fic a r o surgir
wirklich machend». Este conceito fe liz logo nos recorda que, para definir necessário de certos resultados a partir de estruturas iniciais - em mero
o tipo específico do conhecimento da jurisprudência, se não pode deixar desenho de encaixe estrutural.
de atentar neste aspecto dinâmico da inserção no processo histórico das Ora, dado como assente que a tarefa da jurisprudência consiste em
intenções espirituais. É que a jurisprudência dogmática visa, como seu descortinar a norma válida para o caso concreto, ou seja, em realizar
termo perficiente, a aplicação do Direito ã realidade dos factos do «concretamente» o Direito, em fazê-lo «operar» sobre as situações da vida
processo histórico - e a factos de conduta, isto é, factos informados por histórica, ela não poderá deixar de visualizar o Direito também em
uma intencionalidade humana. termos de não pôr aquelas intenções espirituais entre parêntesis. Quer
Ora, sendo assim, tanto a leitura sociológica como a leitura lógica não isto dizer: a natureza do Direito, como produto do espírito, obriga-nos a
satisfazem à missão da jurisprudência. A primeira, porque relativa a ter sempre presente a intencionalidade operante, uma vez que ele
factos e a conexões causais entre factos - quando a jurisprudência visa pretende dirigir o curso dos aconteceres, m oldar a história.
realizar uma intencionalidade espiritual, um dever-ser. Valem aqui os Em suma: se uma instância humana quer intervir modeladoramente
argumentos contra ela aduzidos por K e l s e n . A segunda, porque só se - realizar uma certa «mundividência» - num processo de curso im pre
torna possível ex post facto, isto é, depois de definidas e transformadas visível, não pode prefixar um esquema de actuação rígido, mas tem de
em «estruturas» fixas, em «dados», as intenções e conteúdos espirituais consentir num constante afinamento da sua estratégia de acção. De outro
- quando a jurisprudência, porque vai endereçada toda ela à realização modo, os resultados não seriam os pretendidos, mas aqueles que porven
do Direito, fa z incidir a sua visualização sobre o momento em que se tura o acaso das situações históricas concretas, em combinação com tal
opera o trânsito para a vida concreta daqueles conteúdos ou intenções esquema rígido, viesse a engendrar - o que representaria uma alienação
espirituais que se enucleiam na mundividência reflectida pelo ordena do espírito, um abandono ao fluxo aleatório dos aconteceres, e, conse
mento jurídico. Por outras palavras: a jurisprudência tem por tarefa quentemente, um esvaziamento total do sentido dos esquemas norma
organizar (estrategicamente, isto é, com «prudência») a passagem de uma tivos. Por conseguinte, a jurisprudência não pode bastar-se com a
intencionalidade espiritual para o efectivo processo histórico, pelo que «leitura» estrutural do Direito, com a perspectiva lógico-objectivante -
pretende conhecer o Direito para o realizar - ou conhecer e realizar o pois que a esta escapa a dimensão vital do jurídico, o seu sentido
Direito - e não conhecer o «direito realizado», transformado em «facto» modelador da vida (cfr. infra, IV, 19).
ou «dado» inerte.
Por outro lado, o Direito não se realiza ou cumpre em normas, mas na 7 - Também uma análise rigorosa da prática jurídica nos revela,
sua aplicação aos casos da vida. Ele quer, como conteúdo espiritual, claramente a insuficiência da perspectiva lógico-objectivante.
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A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
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nota prea m bu la r
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A JU ST IÇ A E O DIREITO NATURAL
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NOTA PREAMBULAR
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III
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NOTA PREAM BULAR
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|!i|! I!!l|j||!lll!!!l!n
form as há-de aferir-se pelo confronto com uma praxis humana em que o
Primo conspectu, pois, a redução axiomática parece mais não fa z e r
«suposto cognoscente» intervém dinamicamente, pelo que a perspectiva teo-
do que d ar um ãcabam ento fo rm al a uma ciência já criada, represen
rética verdadeira e própria - e única que logra escapar ao idealismo hispos-
tando uma fa s e estéril do conhecimento. Todavia, se é verdade que a
tasiadór das form as - há-de ser a perspectiva que se ordena a essa praxis.
axiom atização visa constituir sistem as de pensam ento totalmente
dominados e fechados, importa não esquecer o seu aspecto dinâmico.
14 - Isto serve para mostrar que, em último termo, a m ecanicidade
Desde logo, ela im pede o espírito de repousar nas noções do senso
do discurso das ciências exactas, a concludência necessitante que,
comum, incitando-o à busca de um conhecimento activo, combinatório,
nesse discurso, afasta toda a participação dinam ica do suppositum
aberto. Ela m arca o perfeito domínio exercido pelo pensamento fo rm al
cognoscens e cria a evidência plena, é provisória, relativa a um certo
sobre um sector da objectividade, na m edida em que o pensamento só
momento ou estádio da organização da praxis, já que aquilo que nos
possui plenamente o seu objecto numa axiomática fechada. Mas, prestes
poderiam p a recer estruturas transcendentais a priori são criação do
a atingir este «ideal», dá-se conta da sua insuficiência e de que a reali
espírito em contacto operatório com a realidade através de uma praxis
dade lhe escapará se aquela axiomática se não define por form a a de
que historicamente evoluciona. Se aquele mesmo tipo de evidência se não
quada a novas estruturas e problem áticas. Tem, pois, também um
encontra nas ciências humanas, se nestas se requer a dinâm ica inter
carácter heurístico, na m edida em que perm ite por novos problem as e
venção de uma consciência em acto para colher a «evidência», isso
determinar rigorosamente as aptidões operatórias das estruturas axioma-
significa tão-só que, aqui, o momento dinâmico do espírito permaneceu
tizadas. De sorte que a tendência axiomatizante, longe de ser um factor
presente, não fo i neutralizado pela formalização, que a própria consciên
de im obilização do saber, deve antes ser havida como um dos pólos
cia cognoscente se situa ao nível do horizonte da consciência form ali-
motores de uma dialéctica do progresso científico.
zante, como factor permanente e vivo da sua dialectização - que a con
Nas ciências humanas a axiomatização apenas pode ter um carácter
sciência do suppositum cognoscens está, por assim dizer, em curto
local e parcelar. A s axiom atizações locais parecem ser a í as únicas
-circuito. Nisto reside a origin alidade epistem ológica das ciências
eficazes. Neste terreno, a axiomatização não passa.de um tenteio prévio
humanas —entre as quais se situa a jurisprudência —, e d a í procede
para a preparação de um campo operatório. Não deixa a axiomática,
também uma tal ou qual am bigüidade das mesmas ciências, em que a
porem, de tam bém aqui realizar as suas fu n çõ es: experim entação
form alização alterna constantemente com o recurso, em regra implícito,
a uma imaginação evocadora do concreto. explícita de variações eidéticas, operando sobre noções informes de que
destaca os elementos mínimos de coerência e eficácia (Granger), fo rn e
cimento de um quadro de referências indispensável a toda a tentativa de
15 - Complementar da estruturação do fenôm eno é a axiomatização
planificação da conduta, acesso a um conhecim ento activo e com bi
das estruturas. Axiomatizar é pôr os princípios capazes de constituírem
notório pela eliminação do impreciso das noções da experiência ingênua
uma base coerente e suficiente de dedução para todas as proposições de
do senso comum e pela neutralização dos aspectos concretos, redundan
uma teoria - de tal sorte que toda a proposição correctamente form ulada
tes e «acidentais» do objecto.
possa ser demonstrável ou refutável a partir dos axiomas. A axiomatiza
A x io m a tiz a r é, p o is , tra n sp o r p a r a u m a lin g u a g e m a d e q u a d a e rigo
ção é também um modo de definição rigorosa dos conceitos e cria um
rosa u m a estru tu ra la te n te e d a r u m a fo r m a d e e q u ilíb r io p ro v isó rio aos
vínculo argumentativo unívoco, isto é, um sistema dedutivo. Ela elimina
c o n c eito s - in te g ra n d o -o s num s is te m a c o e re n te d e c o m b in a ç õ e s ou de
os conteúdos incontroláveis das noções de origem empírica, neutraliza
o p o siçõ es. S u b lin h e-se, to d a via, o c a rá c te r provisório d e s s e e q u ilíb rio , ja
os aspectos concretos do objecto, organiza uma estruturação explícita
q u e um p r o b le m a novo, se b e m q u e lig a d o a um c a m p o d e estru tu ra s
cujos elementos são abstractos e perm ite a passagem de uma prática
p r é v ia s q u e o «m o tiv a m » e em fu n ç ã o d o q u a l e le se fo rm u la , su sc ita a
vulgar e imediata a uma prática mediata, elaborada.
e la b o ra ç ã o d e n o va s e stru tu ra s e a r e d e fin iç ã o d o sistem a a n te rio r - ao
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NOTA PREAMBULAR
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IV
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nota prea m bu la r
desse fundam ento brota. Diríamos que a solução correcta para a inte
gração da lei resulta da soma total e convergente do jogo dos reflexos das
valorações legais - e um tal resultado ou solução se, por um lado, pode
ser ainda considerado como influído pelas normas postas, por outro lado,
é produto da estrutura fundam ental e fundante do meio reflector: do
Direito puro e simples. É de recordar aqui a opinião de M e s s n e r segun
do a qual os princípios suprapositivos a que o jurista se vê forçado a
recorrer em caso de lacuna não são defacto transcendentes mas imanen-
tes ao Direito - a todo o Direito.
É como se o Direito positivo, dirigido ã realização de certa mundi
vidência no processo histórico concreto através de actuaçôes humanas
informadas por opções axiológicas, não pudesse ele próprio subtrair-se
a certas regras estratégicas que o condicionam e o limitam - como se
uma certa «justiça» lhe fo sse necessariamente imanente para ele poder
ter «vigência» e ser Direito. Cabe aqui aceitar o ponto de vista de WELZEI.
quando afirma que há um limite imanente ao Direito, de carácter abso
luto, e conclui: «o Direito, por sua própria essência, só pode ser recto -
mesmo o Direito positivo».
É essa mesma circunstância de o Direito positivo se ter de comportar,
na realização da mundividência que o motiva, como «investigação opera
cional», como esquema de actuação estratégica destinada a inserir-se
eficazmente num processo histórico concreto de curso aleatório, que
explica a chamada «unidade objectiva» (ou axiológica) do ordenamento
jurídico - unidade esta que não é a unidade lógicoform al do sistema
conceitual-abstracto, mas aquela unidade «dinâmica» que se revela ao
pensamento jurídico enquanto este olha o ordenamento na perspectiva
de uma praxis bem como o não poder ser o Direito positivo de uma
época um sistema fechado sobre si e isento de lacunas, mas um sistema
sempre aberto a novas significações, lacunoso e necessitado de complc
mentação.
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nota pr ea m b u la r
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nota prea m bu la r
O Tradutor
r
I. A S N O R M A S DA JU S T IÇ A
NoçAo DE j u s t i ç a *
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.n u u iu m u m u jj iltüíiii'1 iii
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A JUSTIÇA E o DIREITO NATURAL
O b je c t o d o ju íz o d e v a l o r f u n d a d o n a ju s t iç a . I n d e p e n d ê n c ia d a v a l i
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AS n o r m a s d a ju s t iç a
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A n o r m a e o c o n c e it o
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AS NORMAS da fUSTIÇA
S il o g is m o n o r m a t iv o e s il o g is m o t e o r é t ic o
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........................................................................... mil
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL
C o n c l u d ê n c ia n o r m o l ó g ic a e f u n d a m e n t a ç ã o d a v a l id a d e
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a s n o r m a s d a ju s t iç a
mente pelo facto de legitimar o sentido subjectivo do acto que põe esta
norma como seu sentido objectivo, isto é, como norma objectivamenlc
válida.
O processo da fundamentação normativa da validade conduz, porém,
necessariamente, a um ponto final: a uma norma suprema, generalís
sima, que já não é fundamentável, à chamada norma fundamental, cuja
validade objectiva é pressuposta sempre que o dever-ser que constitui
o sentido subjectivo de quaisquer actos é legitimado como sentido
objectivo de tais actos. Se fosse de outra maneira, se o processo da
fundamentação normativa da validade, tal como o processo da expli
cação causai - que, de acordo com o conceito de causalidade, não pode
levar a qualquer termo, a qualquer causa ú ltim a -, fosse sem fim, .1
pergunta de como devemos actuar permaneceria sem resposta, sei ia
irrespondível. Consideramos um determinado tratamento de um
indivíduo por parte de outro indivíduo como justo quando este
tratamento corresponde a uma norma por nós havida como justa.
A questão de saber por que é que nós consideramos esta norma comn
justa conduz, em último termo, a uma norma fundamental por nos
pressuposta que constitui o valor justiça.
Ta r e f a d a c iê n c ia p e r a n t e a s n o r m a s d e ju s t iç a
justiça ('). Este, porém, será - como veremos - o conceito de uma nor
ma essencialmente geral que, sob determinados pressupostos, prescreve
um determinado tratamento dos homens sem afirm ar algo sobre a
natureza e o modo deste tratamento - pelo que, sob este aspecto, se
revela completamente vazia de conteúdo.
T ipo s d e n o r m a s d e j u s t i ç a : N o r m a s d e j u s t i ç a d e t i p o m e t a f í s ic o e
n o r m a s d e ju s t iç a d e t ip o r a c io n a l
(■) P erelm an dá-nos u m a excelente an álise dos «mais correntes» conceitos de justiça
e p ro cu ra d e fin ir u m co n ceito « fo rm al» ou «abstracto» de ju stiç a que co n ten h a o
elem ento comum a todos os conceitos «concretos» de justiça. Diz ele, ob. cit. p. 2 2 : «Pour
q u ’u n e a n aly se lo g iq u e de la n o tio n de la ju stice p u isse c o n stitu er u m p ro grès
incon testable dans 1'éclairc issem en t de cette idée con fu se, il fa u t q u ’elle p a rv ie n n e à
décrire d'une fa ço n p récise ce q u ’il y a de co m m u n d ans les d iffére n te s fo rm u les de la
ju stice et à m o n trer les p o in ts p a r le sq u e ls e lles d iffè re n t» . P ara u m a d e fin iç ã o do
conceito «form al» de ju stiça, cfr. infra.
r AS NORMAS DA JUSTIÇA
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A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
que lhe deve ser dado. A aplicação desta norma de justiça pressupõe a
validade de uma ordem normativa que determine o que é para cada um
o «seu», quer dizer, o que é que lhe é devido, a que é que ele tem direito
- por os demais, segundo a mesma ordem normativa, terem um dever
correspondente.
Isto significa, porém, que, qualquer que seja essa ordem normativa,
quaisquer que sejam os deveres e direitos que ela estatua, particular
mente, qualquer que seja a ordem jurídica positiva, ela corresponde à
norma de justiça do suum cuique e, consequentemente, pode ser estima
da como justa. Nesta função conservadora reside a sua significação
histórica. O valor justiça que esta norma constitui identifica-se com o
valor ou valores que são constituídos através das normas do ordena
mento - do ordenamento jurídico, em particular - que é pressuposto no
momento da sua aplicação.
A r e g r a d e o ir o
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a s n o r m a s da (USTIÇA
a moral prescreve que não mintamos. Todavia, alguém pode não fazer
caso de que os outros lhe mintam, porque se considera esperto bastante
para descobrir as suas mentiras e suficientemente forte para se prote
ger contra as conseqüências desvantajosas delas. Se também neste caso
é aplicada a regra de oiro, pode esse alguém, através dela, justificar as
mentiras que diz aos outros, pois está pronto a deixar que os outros lhe
mintam. Na grande maioria, os homens amam a sua vida e desejam,
portanto, que lhes não seja exigida uma conduta que os exponha ao risco
de a perderem. Todavia, quando lhes é feita uma tão indesejável exigên
cia, eles satisfazem-na superando o medo. Segundo a regra de oiro,
quando entendida ao pé da letra, não seria lícito ao legislador, que não
é, ele próprio, mais intemerato que a maioria dos homens, pôr qualquer
norma moral ou jurídica que obrigue a uma tão indesejável (e indese
jada) conduta.
Quando a regra de oiro postula que qualquer um de nós trate os
outros como subjectivamente deseja ser por eles tratado, pressupõe-se
evidentemente que também os outros assim desejam ser tratados. Mas
tal é evidente e compreende-se de per si - pensa-se - pois todos desejam
sem dúvida ser bem tratados. Se a regra de oiro fosse observada, have
ria concordância entre os homens quanto à sua conduta recíproca e não
existiriam, portanto, quaisquer conflitos - alcançar-se-ia a harmonia
social. Isto, porém, é uma ilusão, pois que os homens de forma alguma
coincidem no seu juízo sobre aquilo que é subjectivamente bom, ou seja,
afinal, naquilo que desejam. O que alguém considera ser um bom trata
mento, a ponto de desejar ser tratado dessa maneira, e de, consequen
temente, segundo a regra de oiro, tratar outrem da mesma forma, pode
este outrem considerar subjectivamente como um mau tratamento, o
que significa que ele não quer ser tratado dessa maneira. Para um,
podem a lisonja e a mentira ser desejáveis, para o outro, porém, podem
ser indesejáveis. Ora, neste caso, há um conflito entre os dois.
Se a regra de oiro é tomada à letra, se cada pessoa deve tratar as
outras da forma, e apenas da forma, como deseja ser tratada, quer dizei,
se para a justificação de uma ordem social é decisivo um critério
subjectivo, então não é possível moral nem ordem jurídica. Se a r e g r a
de oiro, de conformidade com a sua intenção, deve funcionar como
norma fundamental de uma ordem social, então tem sem dúvida de sei
entendida como a norma que manda tratar os outros, não como efecli
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
vãmente queremos nós próprios ser tratados, mas como devemos querer
nós próprios ser tratados, quer dizer: como devemos ser tratados,
segundo uma norma geral aplicável não só a nós próprios como também
a todos os demais. Mas, como é que devemos ser tratados? Qual é o
conteúdo desta norma geral? A esta questão, que é a decisiva, não dá a
regra de oiro qualquer resposta, tal como a fórmula do suum cuique não
dá qualquer resposta à questão de saber o que é o «seu» de cada um.
Aquela pressupõe, como esta, uma ordem norm ativa que fixe as
determinações (regulamentações) decisivas, que prescreva como é que
devemos ser tratados. Tal como acontece com a fórmula do suum cuique,
lambém com a regra de oiro se harmoniza toda e qualquer ordem social,
especialmente, toda e qualquer ordem jurídica positiva.
O im p e r a t iv o c a t e g ó r ic o d e K a n t : s u a a n á lis e
(') K a n t , Grundlegung zur M etaphysik der Sitten. K ant’s gesam m elte Schriften,
editados pelo Kõniglichen Preussischen Akademie der W issenschaften, Bd. iv, p. 421.
Os escritos de K a n t citados de ora em diante sê-lo-ão segundo esta edição.
(*) K a n t , na sua ética, não se ocupou mais detalhadamente do princípio da justiça
como um princípio especial da moral. Diz incidentalmente (Die Metaphysik der Sitten, IV,
p. 490): «O conceito da justiça não necessita de qualquer definição mais precisa». Na
Kritik der reinen Vernunft (m, pp. 372/3) encontra-se mesmo um a observação que pode
ser entendida no sentido de que K a n t , na sua ética, parte do pressuposto de que a
imputação moral só é possível se 0 homem é livre, quer dizer, se a sua vontade não é
causalmente determinada. Todavia, como K a n t tem de conceder que o homem empírico,
o homem no mundo dos sentidos, e a sua vontade são, como tudo neste mundo, causal
mente determinados, apenas lhe resta a possibilidade de salvar a liberdade referindo-a
ao hom em como coisa em si (Ding an sichj, ao homem in teligível. Como, porém, é
precisamente ao homem empírico que é feita a imputação moral e K a n t expressamente
declara: «pelo que toca a este carácter empírico não há, portanto, qualquer liberdade», o
mesmo K a n t é obrigado a confessar: « A autêntica m oralidade das acções (mérito e
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r AS n o r m a s da ju st iç a
máxima da qual possas querer que ela se transforme numa lei universal.
Aqui «máxima» é a regra segundo a qual o homem quer efectivamente
agir, segundo a qual se propõe ou se predispõe a agir, é a «lei universal»,
a norma geral segundo a qual ele deve agir (*). Se efectivamente, como
parece ser o caso, segundo a fórmula acabada de citar, se tratasse de
saber se nós podemos querer que aquilo que nos propomos a nós pró
prios como regra do nosso agir se transforme numa lei universal, então
o imperativo categórico não conduziria necessariamente a uma actuação
moralmente boa. Com efeito, um homem pode de facto querer de toda
e qualquer máxima que ela se transforme numa lei universal.
Isso pode em muitos casos - do ponto de vista de uma moral já pres
suposta - ser censurável; todavia, não é im possível. K ant crê poder
demonstrar que não podemos querer que muitas máximas se trans
formem em lei universal, procurando mostrar que a vontade de elevar
a uma lei universal uma máxima imoral, ou seja, uma máxima que K ant
de antemão pressupõe como imoral, ou a lei a que esta m áxima é
elevada, «se contradiria a si própria» (2). Assim, diz ele da máxima que
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A JU STIÇA E O DIREITO NATURAL
conduz a pôr termo à vida pelo suicídio quando aquela promete mais
sofrimentos do que prazeres: - que não poderíamos querer que uma tal
norma se transformasse numa lei universal da natureza, porque «uma
natureza cuja lei fosse destruir a própria vida através do mesmo senti
mento cuja finalidade é incitar à promoção da vida seria contraditória
consigo mesma e, portanto, não poderia subsistir como natureza, pelo
que, consequentemente, aquela máxima não poderia ter lugar como lei
universal da natureza e, logo, seria contrária ao supremo princípio de
todo o dever» (isto é, ao imperativo categórico) (').
Não pode seriamente pôr-se em dúvida que um homem pode de facto
querer que a máxima que manda pôr termo à própria vida quando ela
é insuportável se torne numa lei universal. Se uma tal lei é válida, então
a validade da lei segundo a qual a vida deve ser conservada é restrin
gida por aquela. De form a alguma existe aqui necessariamente uma
contradição. Uma tal contradição apenas existe entre aquela m áxim a e
uma lei moral pressuposta por K a n t segundo a qual o suicídio é proi
bido em todas e quaisquer circunstâncias e por força da qual não deve
querer-se da máxima em questão - se bem que tal possa ser querido -
que ela se transforme numa lei universal.
Uma outra máxima cuja compatibilidade com o imperativo categó
rico é analisada por K a n t é a que se exprime em fazer uma promessa
com a intenção de a não cumprir. Imediatamente intuímos, diz K a n t ,
que não poderíamos querer desta máxima que ela se transforme numa
lei universal, «pois segundo uma tal lei não haveria qualquer pro
messa» (2). Mas por que haveria um homem mau de não poder querer
uma tal situação? Se ele quer que a sua máxima seja uma lei universal,
pode a sua vontade ser julgada como má desde que pressuponhamos a
norma moral que diz que devemos cumprir as nossas promessas, mas
não pode ser considerada como impossível. Quem não quer cumprir a
sua promessa e está de acordo com que ninguém deve (tem o dever de)
cumprir a sua promessa, quer algo de mau, isto é, algo que não deve
querer, mas não algo que ele não possa querer.
De forma alguma a sua máxima, tornada numa lei universal, tem de,
como K a n t diz, «destruir-se a si própria», na medida em que com o
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AS NORMAS DA JUSTIÇA
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A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
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AS NORMAS DA JUSTIÇA
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A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
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AS NORMAS DA JUSTIÇA
Outra f ó r m u l a v a z ia d e c o n t e ú d o
(1 ) T o m ás DE AQUINO, Summa theologica, i-il, Art. 2: «Hoc est ergo p rim u m prae-
ceptum legis, qu o d b o n u m est fa c ie n d u m e p ro se q u e n d u m , et m alu m v ita n d u m ; et
super hoc fu n d an tu r o m n ia alia p raecep ta legis natu rae». Cfr. tam b ém li-Ll, 79, A n . 1.
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL
O MIÍIO t e r m o a r is t o t é l ic o
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A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL
O p r in c íp io r e t r ib u t iv o c o m o p r in c íp io d e ju s t iç a
(') Cfr. a propósito o meu estudo: «Aristóteles, Doctrine o f Justice» no meu livro:
What is Justice? Califórnia U niversity Press, Berkeley, 1954, pp. 1 1 0 e ss.
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AS n o r m a s d a ju s t iç a
(') Quando J e s u s diz a P i l a t o s : « E u vim para dar testemunho da verdade» quer diz
er: dar testemunho da justiça.
P) Referindo-se à frase d e PLATÃO segundo a qual a fronte (o olho) é o órgão da per
cepção mais semelhante ao sol {Politeia, vi, 508), diz P l o t in o (1. Enneade, B. 6, c. 9): «Ja
mais teriam os olhos visto o sol se eles próprios não fossem da natureza do sol - do mes
mo modo, a alma que não é bela não pode ver a beleza.»
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A JUSTIÇA E o DIREITO NATURAL
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AS NORMAS DA JUSTIÇA
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A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
AS NORMAS DA ju s t iç a
p p S íilil
Por outras palavras: porque o prejuízo que o homicídio causa à socie
dade é mais fortemente sentido do que o prejuízo que o furto provoca,
porque a segurança da vida é ainda mais desejada do que a segurança
da propriedade. Igualmente, a pena de morte é uma pena mais grave do
que a de prisão porque a vida representa um valor subjectivo maior do
que a liberdade (1).
Proporcionalidade no estrito sentido da palavra só existe, então, entre “ " ° ' ma em qUeStá° é por ve2es formulada da seguinte
os valores em sentido subjectivo que a acção e a reacção do princípio re e b e r 0 ; af e mc P ' e S ,a
" a b a lh ° " '^ r c a d o r i a 8 d e v e
retributivo representam, quando a relação entre as duas é estabelecida í o saiano correspondente ao valor do ■ ‘
(’ ) Cfr. Teoria Pura do Direito, vol. i, pp. 39 e ss. orero i . ° Prestação deve determii o salário ou o
P eço. Isto pressupõe a concepção jusnaturalista de que o valor objec-
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A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL
P r o p o r c io n a l id a d e e n t r e p r e s t a ç ã o e c o n t r a p r e s t a ç ã o e c ô m p u t o do
s a l á r io
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AS NORMAS DA JUSTIÇA
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A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
a s n o r m a s d a ju s t iç a
A n á lis e d o p r in c íp io d e ju s t i ç a c o m u n is t a f o r m u la d o p o r M a r x
Como na realidade nunca dois objectos são completamente iguais
isto e, iguais sob todos os aspectos, eles apenas poderão ser iguais sob
19. Na sua crítica da ordem social capitalista afirma K A R L M A R X ( ') certos aspectos, quer dizer: se ignorarmos a sua desigualdade sob outros
que o princípio de justiça que está na base desta ordem social é o aspectos. A crítica de M a r x à ordem econômica capitalista reconduz-se
postulado: a igual prestação de trabalho cabe igual salário, isto é, cabe ao postulado de que não devemos ignorar, ao pagar o salário do trabalho
igual participação no produto do trabalho. Este seria o pretenso «direito certas desigualdades, a saber, a desigualdade das capacidades e neces
igual» deste sistema econômico. Seria na verdade, porém, um direito sidades dos diferentes indivíduos em singular, desigualdades essas que
desigual, pois não toma em consideração as desigualdades entre os são ignoradas no sistema de salário da ordem econômica capitalista.
indivíduos no que toca à sua capacidade de trabalho - pelo que não sena Cumpre-nos concordar com ele em que este sistema não representa um
um direito justo, mas um direito injusto. Com efeito, o quantum igual direito igual, não, porém, pela razão de que trata igualmente o que é
de trabalho, medido pelo tempo ou pelo produto (resultado) do trabalho desigual, mas porque trata desigualmente o que é desigual, porque, de
prestado ou realizado por um indivíduo mais forte e mais dotado e por conformidade com o principio da prestação que lhe está na base, alguém
um indivíduo mais fraco e menos dotado, só aparentemente é igual. Por que trabalhe durante mais tempo ou produza mais unidades recebe um
isso, se ambos recebem pelo seu trabalho a mesma participação no salário maior do que aquele que trabalhe menos tempo ou produza
produto do trabalho, caber4 hes-á igual por desigual. A verdadeira menos unidades. Também o princípio de justiça da economia comu
igualdade e, portanto, a verdadeira - e não apenas aparente - justiça msta, formulado por M a r x , não corresponde de forma alguma - como
apenas poderia ser realizada na economia comunista do futuro em que ele, identificando justiça e igualdade, parece pressupor - ao princípio da
valerá a regra: Cada um segundo as suas capacidades, a cada um igualdade, quer dizer, à exigência ou postulado que manda tratar a todos
segundo as suas necessidades (2). igualmente, mas - precisamente ao contrário - à exigência ou postulado
Çue manda tratar desigualmente o que é desigual.
a) A fórmula: - Cada um segundo a sua capacidade, a cada um
(') «Zur K ritik des sozialdemokratischen Parteiprogramms». Aus dem Nachlass von
segundo a sua necessidade - consta de duas exigências que podem sei
K a r l M a r x . Neue Zeit, IX. Jahrgang, 1. Bd. (18 90-18 91), pp. 5 6 1 e ss.
(2) Na parábola dos trabalhadores da vinha (Mateus, XX, 1-16), na qual Jesus compara entendidas com o sentido de que, a primeira, postula um dever do
o Reino de Deus a um pai de fam ília que contrata trabalhadores para a sua vinha, diz-se indivíduo: o dever ou obrigação de produzir segundo as suas capaci
que o pai de fam ília deu àqueles que trabalharam doze horas na vinha o mesmo salário dades; e a segunda postula um direito do indivíduo: o direito à satisfaçao
- a saber, um a moeda - que àqueles que trabalharam apenas nove, seis, duas horas ou das suas necessidades. Ambas vão dirigidas à estruturação de uma
mesmo uma hora. Como os primeiros m urmurassem contra isso, Jesus põe na boca do ordem social.
patrão estas palavras: «Meu amigo, eu não te faço injustiça. Não combinaste tu comigo
uma moeda? Toma o que te pertence (o que é teu) e vai-te. Eu quero, porém, dar a estes
A ptim eira identifica-se, no essencial, com o princípio que P l a t a o
últimos 0 mesmo que a ti. Ora não poderei eu fazer o que quero com aquilo que é meu? estabelece ao descrever a constituição do seu Estado Ideal no diálogo
Vês tu com maus olhos o facto de eu ser tão bondoso? Pois os últimos serão os primeiros Politeia (1): Que cada indivíduo apenas deva produzir o que é conforme
e os primeiros serão os últimos...» Os que haviam trabalhado doze horas estão descon com a sua natureza, ou seja, afinal, o que corresponde às suas capaei
tentes, pois pressupõem uma norma geral por força da qual a cada hora de trabalho deve
corresponder uma moeda de salário. Só que o patrão - tal é o sentido que Jesus dá às
suas palavras - nega a validade de uma tal norma. Ele remete os descontentes para a nor norma de justiça do amor, que Jesus opõe à norma de justiça vigente na sociedade de.su>
ma individual que, estabelecida através do contrato com cada um deles celebrado, estatui mundo - segundo a qual a cada um deve pagar-se conform e a sua prestação - com..
o salário de um a moeda para doze horas de trabalho. O facto de àqueles que trabalham principio revolucionário de justiça do vindoiro Reino de Deus, no qual os últimos será»
menos ser atribuído salário igual não é injusto, pois não viola qualquer norma os primeiros e os primeiros serão os últimos. Cfr. a propósito, infra.
pressuposta como válida. É justo, pois é conform e ao princípio da bondade, isto é, à (') P l a t á o , Politeia, li, 374, iv, 433, v, 453 e s.
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AS NORMAS DA JUSTIÇA
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(') O argumento de P e r e lm a n [op. cit., pp. 5 8 e s.), que afirm a que o preceito do
amor do próximo se opõe directamente ao princípio da justiça («La charité est la vertu
la plus directement opposée à la justice»), que a justiça é uma regra ao passo que o amor
do próximo não é determ inado através de regras, não colhe em qualquer dos casos.
() preceito do amor do próxim o é a regra, quer dizer, a norm a geral segundo a qual,
quando alguém sofre, devemos prestar-lhe auxílio. O próprio P e re lm a n caracteriza 0
amor do próximo dizendo: «Des hommes souffrent, il faut les aider». Segundo Leibnitz,
a justiça é o amor do próximo dos prudentes. Diz ele: «Um homem bom ama todos os
homens na medida em que a razão o permite. Por conseguinte, nós definiremos a justiça,
que é a virtude directriz deste im pulso e que em grego se chama amor dos homens,
com o amor dos prudentes (sábios)...» G o t t f r i e d W ilh e lm L eib n itz , Gott Geist Güte.
líine Auswahl aus seinen Werken, Gütersloh, 1947, p. 2 14.
(J ) M a t e u s , x v iii , 4, xix, 30, xx, 16, 26; M a r c o s , ix , 35, x, 44; L u c a s , xm, 30.
(-1) Lu c a s , v i, 2 1 , 24, 25.
(*) JoAo, ix, 39.
(s) L u c a s , v i, 2 1 , 25.
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AS n o r m a s d a ju s t iç a
A id e ia d e l ib e r d a d e c o m o f u n d a m e n t o d a ju s t iç a
(') A m etam orfose da ideia de liberdade foi por mim desenvolvida no trabalho: Vom
Wesen und Wert d er Demokratie, 2.a ed., Tübingen, 1929. Na sua M etaphysik der Sitten
(vi, pp. 230 e ss.) form ula K a n t , sob o nome de «princípio universal do direito» a
seguinte regra: «É justa toda e qualquer acção segundo cuja maxima a liberdade do
arbítrio de cada um se pode conciliar com a liberdade de todos os outros segundo um a
lei universal». A ssim limitado, o princípio da liberdade torna-se, de um ideal associai,
num ideal social, mas, em si, não é conciliável com o direito positivo como ordem de
coacção. Com efeito, a liberdade de um apenas é conciliável com a liberdade de todos
os outros se a ninguém é lícito em pregar a coacção contra os demais. Ora o direito
positivo prescreve a coacção do hom em pelo homem.
Dado que K a n t tenta apresentar a ordem de coacção do direito positivo como
conciliável com o ideal da liberdade e, assim, justificá-la com base nele, ele interpreta o
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
seu princípio do direito pela seguinte forma: «Logo, a lei jurídica universal: actua exter
namente de tal forma que o livre uso do teu arbítrio possa conciliar-se com a liberdade
de todos os outros segundo uma lei universal, é na verdade uma lei que me impõe uma
vinculação, mas de forma alguma espera nem muito menos exige que eu próprio deva,
inteiramente em razão desta vinculação, lim itar a minha liberdade por aquelas
condições, pois a razão apenas diz que ela, na sua ideia, está por elas lim itada e pode
também, licitamente, ser de facto compelida pelos demais a confinar-se àqueles limites; e
isto ela o diz como um postulado que não é capaz de qualquer outra demonstração».
Quer dizer: do princípio do direito por ele formulado não se segue - o que realmente re
sulta, no entanto, de seu teor verbal - que o indivíduo não possa exercer qualquer
coacção contra um outro. Contra aquele que pratica o ilícito é permitido, deve-se mesmo
- segundo o direito positivo - exercer coacção.
A fim de tornar também com patível com o princípio da liberdade esta limitação,
tem K a n t de interpretar todo o ilícito como «obstáculo à liberdade» e a coacção dirigida
contra o autor do ilícito como conciliável com a liberdade - o que recorda a fórm ula
altamente contraditória de R o u s s e a u segundo a qual os hom ens poderiam ser com
pelidos a ser livres (Contrat social, livre I, chap. 7). «O direito está ligado ao poder de
coagir. A resistência que é oposta ao impedimento de um resultado é uma promoção
deste mesmo resultado e concilia-se com ele. Ora tudo o que é injusto é um impedimen
to da liberdade segundo leis universais. A coacção, por seu turno, é um impedimento ou
oposição que acontece à liberdade. Consequentemente: quando um certo uso da própria
liberdade é um obstáculo à liberdade segundo leis universais (quer dizer, é injusto), a
coacção que a tal uso é oposta concilia-se, como im pedim ento de um obstáculo à
liberdade, com a liberdade segundo leis universais, isto é, é justa. Por conseguinte, ao
direito está ao mesmo tempo ligado, segundo 0 princípio da contradição, um poder de
coagir quem o viole».
E assim a coacção se torna conciliável com a liberdade, que é o seu oposto. «O direito
estrito («aquele ao qual nenhum elemento ético se mistura») pode também ser confi
gurado como a possibilidade de uma coacção recíproca universal que se concilia com a
liberdade de cada um segundo leis gerais». K a n t parte da norma de justiça da liberdade,
mas, no intento de justificar através dela a ordem coactiva do direito positivo, chega
- nem outra coisa seria de form a alguma possível - à sua anulação.
82
AS NORMAS DA JUSTIÇA
O «c o n t r a t o s o c ia l » e o id e a l d e ju s t iç a d a d e m o c r a c ia l ib e r a l
tal que a liberdade individual das pessoas sujeitas a esta ordem seja
restringida o menos possível. É este o ideal de justiça da democracia
liberal que garante a liberdade da economia, a liberdade de crença, a
liberdade da ciência.
J ustiça e ig u a ld a d e . A ig u a ld a d e c o m o c o n s e q ü ê n c ia ló g i c a d a g e n e
ralidade d a n o r m a . A ig u a ld a d e p e r a n te a le i
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A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
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a s n o r m a s d a ju s t iç a
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A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
este o caso, que de facto apenas um único indivíduo possua estas quali
dades e que, portanto, um tratamento igual de dois ou mais indivíduos
não possa de forma alguma ter lugar, que, da norma em vigor segundo
a qual o. que é igual deve ser tratado igualmente e o que é desigual
desigualmente, a primeira parte, que exige um tratamento igual, não
possa de modo algum ter ocasião de aplicar-se. Também daqui resulta
que é desacertado considerar a regra que manda tratar os que são iguais
por forma igual como aplicação do princípio de justiça da igualdade.
A única norma que pode valer como princípio de justiça da igualdade
6 a norma segundo a qual todos os homens devem ser igualmente
tratados, segundo a qual nenhuma das desigualdades que efectivamente
entre eles existem deve ser tomada em consideração.
c) Se analisarmos as coisas mais de perto, verificamos que a regra
segundo a qual os que são iguais devem ser tratados por forma igual e
os que são desiguais devem ser tratados por forma desigual não é sequer
uma exigência da justiça mas uma exigência da lógica. Com efeito, ela
é apenas a lógica conseqüência do carácter geral de toda a norma que
prescreva que determinados indivíduos, sob determinadas circunstân
cias, devem ser tratados de determinada maneira, ou, formulada de
um modo mais genérico, que prescreva que sob um determinado pres
suposto se deve verificar uma determinada conseqüência, especial
mente, um determinado tratamento.
O carácter geral de uma norma que prescreve que, dado um deter
minado pressuposto, deve verificar-se uma determinada conseqüência,
consiste - como já foi notado - no facto de esta norma, de acordo com
a sua própria intenção, dever ser aplicada, não apenas num único caso,
mas num número de casos indeterminado. O seu sentido é: sempre
que se apresente o pressuposto por ela fixado, deve sempre, também,
verificar-se a conseqüência por ela estabelecida.
Partindo do suposto de que a justiça apenas importa nas relações
entre homens, de que as normas de justiça apenas são aplicáveis a seres
humanos, normas de justiça são normas que prescrevem que os homens,
sob determinadas condições, devem ser tratados de certa maneira. O seu
carácter geral reside no facto de prescreverem: Sempre que um ser é
homem e outras condições fixadas pela norma estejam presentes, deve
verificar-se o tratamento estabelecido pela norma. Se uma norma por
forma geral prescreve que dado um determinado pressuposto se deve
a s n o r m a s d a ju s t iç a
(') Quando se afirm a que toda a norma de justiça é aplicação do princípio da igual
dade na m edida em que apenas se refere a seres da m esm a espécie - por exem plo,
apenas a hom ens - , também esta igualdade, a igualdade dos seres aos quais a norm a
de justiça se aplica, é tão-só uma conseqüência lógica do carácter geral da norma. A natu
reza do ser ao qual a norma de justiça é aplicável é um a das condições ou pressupos
tos do tratamento prescrito como conseqüência: Quando um ser é um homem (ou tem
uma alma) e quando... deve esse ser ser tratado de determ inada maneira. A afirm ação
de que os indivíduos aos quais um a norm a de justiça se refere devem ser iguais, não
pode, no entanto, ser fundam entada no facto de o problem a da justiça apenas se pôr
nas relações entre os homens e já não nas relações entre hom ens e animais ou entre
homens e plantas. Com efeito, na sociedade prim itiva, em que ainda dom inavam
concepções anim istas, as norm as da ordem social tidas com o justas tam bém tinham
aplicação a seres não humanos. Assim , o princípio retributivo aplicava-se tam bém aos
animais. Cfr. Teoria Pura do Direito, vol. I, pp. 6o e ss.
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
90
AS n o r m a s d a ju s t iç a
de prisão, e opera tal ligação por via geral. Se a norma que liga ao furto
a pena de prisão é considerada como constitutiva de um valor justiça
por ser havida como aplicação do princípio retributivo, e se um juiz num
caso de furto aplica a pena de prisão e num outro a pena de morte ou
uma pena pecuniária, a sua sentença é contrária ao direito (ilegal) e isso
quer dizer, neste contexto, também injusta não por ele ter aplicado em
dois casos em que se verifica uma falta igual penas desiguais, mas
porque agiu contrariamente a uma norma constitutiva de um valor
justiça que liga ao furto a pena de prisão e não a pena de morte ou uma
pena pecuniária. Só uma das duas sentenças por ele proferidas é injusta:
aquela, a saber, em que ele, violando a norma que devera aplicar, aplica
ao furto a pena de morte ou uma pena pecuniária, e não a outra, na qual
ele aplica ao furto, de acordo com a norma aplicada, a pena de prisão.
Se a injustiça residisse no facto de o juiz não aplicar nos dois casos a
mesma pena, também a sentença na qual ele aplica ao furto a pena de
prisão houvera de ser injusta; pois também neste caso a pena não é
igual, quer dizer, não é a mesma pena que ele aplica no outro caso de
furto. Todavia, a sentença na qual ele, de harmonia com a norma justa
a aplicar, aplica a pena de prisão, não é injusta, mas justa, embora - em
confronto com a sentença injusta - seja desigual.
Aquilo que vale da norma retributiva que prescreve para uma deter
minada falta uma determinada pena, vale também de forma análoga
pelo que respeita à norma retributiva que prescreve para um determi
nado merecimento uma determinada recompensa, assim como para a
norma de justiça que prescreve para uma determinada prestação uma
determinada contraprestação; sim, para todas as normas de justiça que
prescrevam que os homens, sob determinadas condições, devem ser
tratados de determinada maneira. Quando a regra de que os que são
iguais devem ser tratados por forma igual é apresentada como uma
aplicação do princípio da igualdade, a «igualdade» de que aqui se trata
é aquela «igualdade» que, no uso corrente da linguagem jurídica, se
designa por igualdade perante a lei, para a distinguir da igualdade na
lei - entendendo-se por «lei» uma norma geral, para a distinguir da
norma individual que consiste na decisão do órgão aplicador do direito.
A igualdade perante a lei pode existir mesmo quando não exista
qualquer igualdade na lei, quer dizer, quando a lei não prescreva
qualquer tratamento igualitário. Se a lei apenas aos homens, e não às
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
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AS NORMAS DA JUSTIÇA
93
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL
N o r m a s d e ju s t iç a d o t ip o m e t a f ís ic o : a I d e ia d e J u s t iç a e m P l a t ã o
ser tratados por fo rm a igual é o p rin c ip io geral da ju stiça. M as a sua afirm ação de que
este prin cíp io exp rim e a id eia de igu a ld a d e não é exacta, pois q u e o p rin c íp io segundo
0 qual os seres da m esm a catego ria d evem ser tratados por fo rm a ig u a l não p o de ser
separado do p rin c íp io segu ndo o q u al os seres que não são da m esm a catego ria devem
ser tratados de m an eira d esigu al - p elo qu e o p rin cíp io em q u estã o p o stu la não só um
tratam ento igual m as tam bém um tratam en to desigual.
De resto P e r e lm a n (pp. 54 e s.) - em contradição com a sua afirm ação de que o
conceito de justiça implica a ideia de igualdade - concede «que 1’égalité de traitement
dans la justiceform elle, n est rien d'autre que 1'application correcte d'une règle de justice
concrète...»; «que, contrairement à 1’opinion courante, ce n'est pas la notion d'égalité qui
constitue de fondement de la justice, même formelle». «L'égalité du traitement n’est
qu'une conséquence logique du fait que l'o n se tient à la règle».
O que P e r e lm a n designa com o «justice form elle» é a cham ad a «igualdade» perante a
lei, isto é, a ap licação lo g ica m en te co rrecta de u m a n o rm a g eral. D iz ele: «La ju stice
fo rm elle se ram èn e donc sim p le m e n t à l’ap p lica tio n co rrecte d ’u n e règle» (p. 56) e
acentua acertad am en te que esta c o rrecç ão é de n a tu re za ló g ic a : «ou v o ít en qu oi la
justice fo rm elle est liée à la lo giq u e: en effet, il faut que l'a p p lica tio n de la règle soit
correcte, logiquem ent irréprochable, il fau t que 1’acte juste soit co n fo rm e à la conclusion
d’un syllogism e particulier que nous appellerons de syü ogism e im pératif, parce que sa
m ajeur et sa con clusion ont u n e fo rm e im pérative» (p. 57). Se, com o P e r e lm a n aqui
afirm a, o p rin cíp io do igual tratam en to daqueles que pertencem à m esm a categoria é um
p o stu lad o d a ló g ica , ele não é u m p rin c íp io da ju stiça, n em m esm o de um a ju stiça
formal.
- Tam bém o im perativo categórico de K a n t pode ser en ten dido com o um a tentativa
de fo rm u lação de u m p rin c íp io g eral da m o ralidad e (Sittlic.hkeit) ab arcan d o todas as
norm as m o rais particu lares. É s ig n ific a tiv o que K a n t a firm e d este p rin c íp io qu e ele
não exp rim e outra coisa senão a «generalidade de um a lei tran scen den tal». Cfr. supra,
pp. 3 1 e ss.
(’ ) Cfr. o m eu estudo: «Die Plato n isch e G erechtigkeit», K an tstu d ien , Bd. 38, 19 5 3,
pp. 9 1 e ss.
94
AS n o r m a s d a ju s t iç a
J u s t iç a e a m o r de D eu s: a J u s t iç a d iv in a
os irmãos, a mulher e os filhos ('). Sim, quem não odeia o seu pai, mãe,
mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a sua própria vida, não pode ser discí
pulo de J e s u s (2). O amor que JE SU S ensina não é o amor do homem. É o
amor através do qual o homem deve tornar-se tão perfeito como o Seu Pai
no céu, o qual manda o sol levantar-se sobre os maus e sobre os bons e
manda chover sobre justos e injustos (3). É o amor de Deus - e como tal,
completamente diferente do amor do próximo, que é inteiramente
humano. O mais estranho neste amor de Deus é que o temos de aceitar
como compatível com a pena cruel, eterna mesmo, que será aplicada ao
pecador no Juízo Final; e, portanto, como conciliável como o temor mais
profundo de que o homem é capaz, o temor de Deus.
Esta e muitas outras contradições não procurou JE S U S esclarecê-las.
Pois que, com efeito, ela apenas é contradição para a razão humana limi
tada, não para a razão absoluta de Deus, que é inacessível ao homem.
Por isso ensina PA U LO , o primeiro teólogo da religião cristã, que a
sabedoria deste mundo é insensatez em face de Deus (4), que a filoso
fia, que é conhecimento lógico racional, não é via de acesso à justiça
divina que está encerrada na insondável sabedoria de Deus (5), que esta
justiça apenas nos é revelada por Deus através da fé (6), da fé que actua
através do amor (?). PAULO conserva-se fiel à doutrina de JE SU S da nova
justiça, do amor de Deus (8). Mas reconhece que o amor que J e s u s en
sina está para além do conhecimento da razão (9). Ele é um segredo, um
dos muitos mistérios da fé (IO).
97
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
J u s t iç a e f e l ic id a d e
27. PLATÃO ensina que o justo, e apenas o justo, é feliz; ou que temos
de conduzir os homens a crer em tal. E, de facto, o problema da justiça
tem uma importância tão fundamental para a vida social dos homens,
a aspiração à justiça está tão profundam ente enraizada nos seus
corações porque, no fundo, em ana da sua indestrutível aspiração à
felicidade.
Nenhuma justiça simplesmente relativa, apreensível pela razão
humana, pode atingir este fim. Uma tal justiça relativa apenas conduz
a uma satisfação muito parcial. A justiça pela qual o mundo clama, «a»
justiça por excelência é, pois, a justiça absoluta. Esta é um ideal irracio
nal. Com efeito, ela só pode emanar de uma autoridade transcendente,
só pode emanar de Deus. Por isso, a fonte da justiça e, juntamente com
ela, também a realização da justiça, têm de ser relegadas do Aquém para
o Além - temos de nos contentar na terra com uma justiça simples
mente relativa, que pode ser vislum brada em cada ordem jurídica
positiva e na situação de paz e segurança por esta mais ou menos
assegurada. Em vez da felicidade terrena por amor da qual a justiça é
tão apaixonadamente exigida, mas que qualquer justiça terrena relativa
não pode garantir, surge a bem-aventurança supraterrena que promete
a justiça absoluta de Deus àqueles que nele crêem e que, consequente
mente, acreditam nela. Tal é o engodo desta eterna ilusão.
II. A D O U TR IN A DO D IREITO N A T U R A L
D ir e it o e ju s t iç a . A t e o r ia id e a l is t a d o d ir e it o é uma t e o r ia d u a l is t a
99
A JU S T IÇ A E O D IR EIT O N A T U R A L
101
r
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
P r im e ir a n o ç ã o do ju s n a t u r a l is m o
102
A D O U TRIN A DO D IREITO N A T U R A L
Fund am en to m e t a f í s i c o -r e l ig io s o d a d o u t r in a d o d ir e it o natural
10 3
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
104
A D O U TR IN A DO D IREITO NA TU R AL
(') CÍCERO, De R epublica, in, XXII, 33: «Est quídem vera lex recta ratio, naturae
congruens, diffusa in omnes, constans, sempiterna... huic legi nec abrogari fas est, neque
derogari ex hac aliquid licet, neque tota abrogari potest; nec vero aut per senatum aut
per populum solvi hac lege possumos, neque est quaerendus explanator aut interpres
eius alius, nec erit alia lex Romae, alia Athenis, alia nunc, alia posthac, sed et omnes
gentes et om ni tem pore una lex et sem piterna et im mutabilis continebit, unusque erit
communis quasi m agister et im perator omnium deus; ille legis huius inventor, disce-
pator, lator; cui qui non parebit, ipse se fugiet ac naturam hominis aspernatus hoc ipso
luet m axim as poenas, etiamsi cetera supplicia, quae putantur, effugerit».
(2) A g o s t in h o , Contra Faustum Manich. Lib. 22, C. 27: «Lex vero aeterna est ratio
divina vel voluntas Dei ordinem naturalem conservari iubens et perturbari vetans».
(3 ) AGOSTINHO, De serm Dei in monte 11, c. 9, n. 32: «Quis enim scripsit in cordibus
hominum naturalem legem nisi Deus? Cfr. A lo is S c h u h e rt, Augustins Lex-Aeterna-Lehre
nach Inhalt und Quellen. Beitráge zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters. Bd.
xxiv, Heft 2, 1924, pp. 5, 12.
(4) Isidori Hispaniensis Episcopi Etymologiarum Libri XX. Liber V, Cap. II: «Omnes
autem leges aut divinae sunt, aut humanae. Divinae natura: humanae moribus constant,
ideoque hae discrepant, quoniam aliae aliis gentibus placent».
(5 ) Decretum Gratiani. Prima Pars, Distinctio V, I. Pars: «Naturale jus inter omnia
primatum obtinet et tempore et dignitate. Caepit enim ab exordio rationalis creaturae,
nec variatur tempore, sed immutabile permanet». Prim a Pars, Distinctio vin, II. Pars:
«Dignitate vero jus naturale sim pliciter praevalet consuetudini et constitutioní.
Quaecunque enim vel moribus recepta sunt, vel rescriptis comprehensa, si naturali juri
fuerint adversa, vana et irrita sunt habenda».
(6) Cfr. A. P. D’E n t iiè v e s , Natural Law, London, 1955, pp. 34 e s.
105
A JU S T IÇ A e o d i r e i t o n a t u r a l
pela Providência divina, isto é, pela razão divina, que esta regência
divina é a lei eterna, qüe as criaturas de Deus dotadas de razão
participam na razão divina e, portanto na Lei Eterna, na medida em que
recebem desta certas tendências naturais para acções e fins que
correspondem à mesma Lei Eterna. «Esta participação das criaturas
racionais na Lei Eterna chama-se direito natural» (’ ). O direito dedutível
das tendências naturais por Deús implantadas nos homens é o direito
natural. Este é de origem divina. E apenas porque é de origem divina
ele é absolutamente válido e, portanto, imutável. Esta validade absoluta
e imutável é um elemento essencial do direito natural. Ela é, tal como
a sua imanência na natureza, conseqüência apenas da sua origem
divina.
No entanto, houve quem, dentro da doutrina jusnaturalista, fizesse
a tentativa de tornar a validade do direito natural independente da
vontade de Deus. GRÓCIO (2) declara que o direito natural por ele descrito
valeria mesmo que se admitisse não haver Deus - acrescentando, porém,
que tal não poderia ser admitido sem incorrer no mais grave pecado.
Pois ele era um cristão e um crente, como aliás o eram todos os
representantes da doutrina clássica do direito natural, se bem que, ao
(') T o m á s d e A q u in o , Summa theologica, 1-n 9 1, Art. 1: «nihil est aliud lex, quam
quoddam dictamen practicae rationis in príncipe qui gubernat aliquam communitatem
perfectam. M anifestum est autem, supposito quod mundus divina providentia regatur,
ut in I. babitum est (q. 22, Art. 1 et 2) quod tota communitas universi gubernatur ratione
divina; et ideo ipsa ratio gubernationis rerum in Deo sicut in príncipe universitatis
existens, legis habet rationem; et quia divina ratio nihil concipit ex tempore, sed habet
aeternum conceptum, ut dicitur Proverb S, inde est, quod hujusrnodi legem oportet
dicere aeternam».
I II 9 1, Art. 2: «...omnia participant aliqualiter legem aeternam; inquantum scilicet
ex impressione eius habent inclination.es in proprios actus et fines. Inter caetera autem
rationalis creatura excellentiori quodam modo divinae providentiae subjacet, in
quantum et ipsa fit providentiae particeps, sibi ipsi et aliis providens: unde et in ipsa
participatur ratio aeterna, per quam habet naturalem inclinationem ad debitum actum
et finem; et talis participatio legis aeternae in rationali creatura iex naturalis dicitur...
Unde patet quod lex naturalis nihil aliud est quam participatio legis aeternae in rationali
creatura».
(2) G r ô c ío , De Jure Belli ac Pacis, Prolegom ena § 1 1 : «Et haec quidem quae iam
dixim us locum aliquem haberent etiam si daremus, quod sine sum m o scelere dari
nequit, non esse Deum, aut non curari ab eo negotia humana...».
106
A d o u t r in a do d ir e it o n a t u r a l
que parece, não tivesse consciência de que, sem a crença numa natureza
criada por um Deus justo, a aceitação de um direito justo imanente a
esta mesma natureza não seria possível nem coerente.
De resto, a crença numa natureza criada por um Deus justo não
implica necessariam ente a admissão de que o direito imanente à
natureza seja estabelecido ou posto pela vontade de Deus. Já T o m á s d l
A QUINO (l) ensinou que também o direito divino, isto é, o direito que
procede de Deus, ou é direito natural ou direito instituído (legislado).
Também no direito divino se prescreveriam muitas acções por serem
boas e proibiriam outras por serem más, enquanto acções há que são
boas por serem prescritas e outras que são más por serem proibidas.
Quer dizer: há normas de origem divina que prescrevem uma determi
nada conduta humana porque ela é em si boa ou má, normas, portanto,
cuja validade é independente da vontade de Deus. O valor de justiça que
elas constituem deve, segundo uma teologia orientada por esta doutrina
de Tomás, ser pensado como dado com a própria existência de Deus.
Segundo esta teologia (2), esse valor - como o próprio Deus - não é
criado - nem mesmo por Deus mas incriado.
Estas normas são direito natural na medidã em que são imanentes
à natureza de Deus, o qual, por sua própria natureza, é um Deus justo.
Como não são postas pela vontade de Deus, também não podem ser
modificadas pela vontade do mesmo Deus. São eternas, imutáveis.
Assim como um Deus, ao qual a justiça é imanente, não pode modificar
as normas da justiça, também não pode esse mesmo Deus criar uma
natureza que não seja justa. Se a esta natureza são imanentes as normas
da conduta justa, isso é assim apenas porque ela foi criada por um Deus
ao qual a justiça é imanente.
10 7
A fU S T IÇ A E O D IR E IT O N A T U R A L
109
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
(') Tomás d e Aquino, Summa theologica, Ii-ll 64, 5: «seipsum occidere est omnino
illicitum, triplici ratione: primo quidem, quia naturaliter quaelibet res seipsam amat;
et ad hoc pertinet quod quaelibet res naturaliter conservat se in esse et corrumpentibus
resistit quantum potest. Et ideo quod aliquis seipsum occidat est contra inclinationem
naturalem, et contra caritatem qua quilibet debet seipsum diligere. Et ideo occisio sui
ipsius seraper est peccatm mortale, utpote contra naturalem legem, et contra caritatem
existens».
110
A d o u t r in a d o d ir e it o n a t u r a l
D iv e r s id a d e dos im p u l s o s ou t e n d ê n c ia s do h o m em e co n seq ü en te
im p o s s ib il id a d e d e n e l e s f u n d a r u m a d o u t r in a c o e r e n t e do d ir e it o
natural
112
A d o u t r in a d o d ir e it o n a t u r a l
«n o r m a l » p o s t u l a u m a f u n d a m e n t a ç ã o t e o l ó g ic a
1x3
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
(') Cfr. a exposição de U tz, op. cit., p. 437, o qual diz que o direito natural é uma
ordem dos «homens que vivem em sociedade segundo padrões médios» um a ordem «da
maioria no sentido democrático formal».
114
A d o u t r in a do d ir e it o n a t u r a l
115
A ju s t iç a e o d ir eit o n a t u r a l
0 D l H M ir o n a t u r a l c o m o d i r e i t o r a c i o n a l
( í ONTR a d i t o r i e d a d e d o c o n c e it o d e r a z ã o p r á t ic a . S u a o r ig e m t e o l ó -
u i c o -r e l i g i o s a
116
A d o u t r in a d o d ir e it o n a t u r a l
O c o n c e it o d e r a z ã o p r á t ic a e m Tomás de A q u in o
(1) C íc e ro , De Legibus, 1, xil, 33: «quibus e n im ratio .a n a tu ra data est, isd em etiam
recta ratio data est; ergo et lex, q u ae est recta ratio in iu b en d o et vetando; si lex, ius
quoque. Et o m n ib u s ratio; ius igitu r datu m est om nibu s».
(2) C íc e ro , De Republica, in, x x i i , 3 3 . Cfr. supra, p. 98, nota 1.
(3) C íc e ro , ibidem.
(4) T o m ás de A q u in o , Summa theologica, 1-11, 90. Art. x.
117
i m u iu ii i ii u ii i ii ii i ii i ii i íi i ii i ii u ii u ú u i i ii i ii u ii i ii i ii i ii ii
A JU S T IÇ A e o d i r e i t o n a t u r a l
(*) Summa theologica, ril, 17, Art. 1: «imperare est actus rationis, praeposito tamen
actus voluntatis». h i, 90, Art. 1: «Unde relinquitur quod lex sit aliquid pertinens ad
rationem».
(2) Summa theologica, 1-11, 90, Art. 1: «lex quaedam regula est et m ensura actuum,
secundum quam inducitur aliquis ad agendum, vel ab agendo retrahitur... Regula autem
et m ensura hum anorum actuum est ratio; quae est principiu m prim um actuum
humanorum... rationis enim est ordinare at finem , qui est prim um principium in
agendis...».
p) Summa theologica, 1-11, 9 1, Art. 3: «ratio hum ana secundum se non est regula
rerum; sed principia ei naturaliter indita, sunt regulae quaedam generales et mensurae
omnium eorum quae sunt per hom inem agenda...».
(+) Cfr. lugares citados na nota 1, p. 109.
(5 ) Summa theologica, 1-11, 95, 2: «In rebus autem hum anis dicitur esse aliquod
justum ex eo quod est rectum secundum regulam rationis: rationis autem prim a regula
est lex naturae».
(6) U t z , no seu comentário a Tomás, a pp. 444, acentua o «poder de criar direito da
razão prática do homem». Diz ele: «A doutrina do direito natural de S. Tomás vê na
sentença ou voz natural da razão prática o legislador segundo (mais próxim o a nós) dos
direitos humanos, o qual, por seu turno, nos reenvia para 0 Legislador Eterno que está
acima deste mundo». Se a razão prática do hom em é um legislador que está submetido
a um legislador mais alto, isto é, a Deus como legislador do mundo, a legislação operada
pela razão prática do homem só pode ser uma legislação delegada por Deus, quer dizer,
118
A d o u t r in a d o d ir e it o n a t u r a l
apenas pode ser, em últim a análise, uma legislação através da razão divina, pelo que,
consequentemente, a razão do hom em só pode ser «prática», òu seja, legisladora, na
medida em que participe da razão divina, na medida em que seja a razão divina no
homem.
(') T o m á s d e A q u in o , Summa theologica, m i, 93, A rt. 4: «cum v o lu n tas Dei ipsa
essentia eius, n o n su b d itu r gu b ern atio n i divin ae, neque legi aeternae, sed idem est quod
lex aetern a. ...A lioquin , ratio n e su i ipsius, m ag is est d icen d o ip sa ratio».
A ideia em si contraditória de que a razão prática do homem desempenha ao mesmo
tempo um a função vo lu n tária e um a função cognoscitiva, aparece nas seguintes
passagens de T o m á s de A q u in o : Summa theologica, 11-11, 58, Art. 4, onde T o m a s
distingue entre ratio como potentia cognoscitiva e voluntas como vis appetitiva. Contra
a concepção de que «justitia non est in voluntate sicut in subjecto», sed «in rationc>\
diz ele: «Justitia autem non ordinatur ad dirigendum aliquem actum cognoscitivum: non
enim dicim ur justi ex hoc quod recte aliquid cognoscimus. Et ideo subjectum jusiitiar
non est intellectus vel ratio, quae est potentia cognoscitiva. Sed quia justi dicimui in
hoc quod recte aliquid agim us; proxim um autem principiüm actus est vis appetitiva;
necesse est quod justitia sit in aliqua vi appetitiva sicut in subjecto». T o m á s distingue
então a vontade, voluntas, enquanto appetitus rationalis, do appetitus sensitivus; afirma
da vontade que ela está «na razão»: «voluntas, quae est in ratione», e fala muiio
vagam ente da «propinquitas [voluntatis] ad rationem ». Se a ratio é um a potcnlin
cognoscitiva e a voluntas um a v is appetitiva, a voluntas não pode estar «in ratione»
O conceito de ratio pratica, porém , funda-se na im anência da voluntas na ratio.
Ver ainda Summa theologica, 1-11, 90, Art. 1: «in operibus rationis, est consideraic
ipsum actum rationis, qui est intelligere et ratiocinari; et aliquid per huiusmodi actum
constitutum. Quod quidem, in speculativa ratione, primo quidem est definitio; secundo,
enuntiatio; tertio vero, syllogism us vel argumentatio. Et quia ratio etiam practica ulilui
quodam syllogism o in operabilibus, ut supra (q. 13 a. 3) habitum est, secundum quod
Philosophus docet in Ethic. (lect. m): ideo est invenire aliquid, in ratione practic a, quod
ita se habeat ad operationes, sicut se habet propositio, in ratione speculativa, ail
conclusiones. Et huiusm odi propositiones universales rationis practicae ordinatae ad
actiones habent rationem legis. Quae quidem propositiones aliquando actualilri
considerantur, aliquando vero habitualiter a ratione tenentur». «Ratio habet vim
m ovendi a voluntate; ut supra (q. 17 a. 1) dictum est. E x hoc enim quod aliquis vull
finem, ratio im perat de his quae sunt ad finem. Sed voluntas de his quae im peranlui,
ad hoc quod legis rationem habeat, oportet quod sit aliqua ratione regulata. Et hoc modo
intelligitur quod voluntas principis habet vigorem legis; alioquin voluntas prínripis
magis esset iniquitas quam lex».
I-II, 9 1, Art. 3: «lex est quoddam dictamen practicae rationis. Similis autem processos
esse invenitur rationis practicae et speculativae: utraque enim ex quibusdam principii.s
ad quasdam conclusiones procedit, ut superius (Ibid.) habitum est. Secundum hoc, ergo,
119
m n n m i iii m n n m n n ii u iii iiu i iin im in n n m n i i i n n i
41, Se a razão da qual a teoria do direito natural crê deduzir as suas Deus, que nos proporciona 0 conhecimento do bem e do mal(>)
lionnas justas é a razão divina no homem e não a razão empírica deste, A serpente diz à mulher: «Deus sabe que, quando vós comerdes deste
umti tal teoria não pode ser designada como racionalista. A doutrina do fruto, os vossos olhos se abrirão e vós sereis como Deus e sabereis 0 que
direito natural afirma descobrir estas normas - que não são criadas pelo é 0 bem e 0 que é 0 mal» (2). A essência de Deus reside em que ele sabe
h om em m as dadas na razão - através de uma análise da razão do 0 que é 0 bem e 0 que é 0 mal. E, por isso mesmo que 0 sabe, quer
hom em . Se esta razão fosse a razão humana empírica, 0 conhecim ento também que se faça 0 bem e evite 0 mal. O seu saber é 0 seu querer.
do direito natural teria de ser autoconhecimento do homem. Somente A sua razão é uma razão prática. É desta razão divina que 0 homem
Plltfto esta teoria teria carácter racionalista. - na queda original - se apropria.
Mas a doutrina do direito natural orientada pela teologia de T o m á s
DU AuiJlNO somente é coerente quando afirma que 0 direito natural
0 qual, embora não criado por Deus, pertence todavia à essência de A POSIÇÃO RACIO NALISTA DE GRÓCIO
Deus, (' imanente à razão divina - é conhecido ou descoberto por
Intermédio de um processo que ela designa como «autoconhecimento 42. O facto de a especulação ética se agarrar tão pertinazmente ao
de l)(‘iis» (') - pelo que tal doutrina ocupa uma posição estritamente conceito logicamente insustentável de razão prática não se explica só
metafísica. Se é a razão cognoscente que põe as normas que constituem pela influência que sobre ela exercem as representações teológico-
0 vnlor do bem e, consequentemente, 0 desvalor do mal, então a -religiosas.
distinção entre bom e mau é uma função do conhecimento (normador), Se as normas que constituem os valores morais, e especialmente 0
da razâo prática. valor justiça, defluem da razão e não de uma faculdade do homem
Na faculdade de distinguir 0 bem do mal se vê frequentemente a distinta da razão, da sua vontade, se numa norma moral, que liga a um
essência da razão prática. Nesta versão, 0 conceito remonta já ao mito determinado pressuposto uma determinada conduta como devida
da árvore da ciência. É 0 saborear 0 fruto desta árvore, proibido por (devendo ser), essa ligação se não opera através de um acto da vontade
dlcendum est quod, sicut, in ratione speculativa, ex principiis indemonstrabilibus
humana e, portanto - neste sentido -, não é arbitrária mas é tão inde
lUtliraliter cognitis producuntur condusiones diversarura scientiarum, quarum cognitio pendente da vontade humana como a ligação entre causa e efeito na lei
non est nobis naturaliter indita, sed per industriam rationis inventa; ita etiam, ex natural, então não existe, sob este aspecto, qualquer distinção entre uma
prapeeptis legis naturalis, quasi ex quibusdam principiis communibus et indemonstra- lei física ou matemática e uma lei moral, então pode afirmar-se de uma
billbus, necesse est quod ratio humana procedat ad aliqua magis particulariter dispo- norma de justiça que se pretenda encontrar na razão que ela é tão
lienda, Et istae particulares dispositiones, adinventae secundum rationem humanam,
indiscutível como 0 enunciado segundo 0 qual 0 calor dilata os corpos
dlcuntur legis humanae, servatis aliis conditionibus quae pertinent ad rationem legis...».
Se a função da razão prática é a mesma que a da razão teorética, a saber, tirar metálicos ou 0 enunciado segundo 0 qual duas vezes dois são quatro.
conclusões do geral para 0 particular, então ela é uma função cognoscitiva e não uma 0 que pietende GRÓCIO com a sua afirmação de que as normas do
função volitiva. Se a razão prática'tem de, através de conclusões silogísticas, derivar direito natural seriam validas ainda que se pudesse dizer - 0 que, efecti-
normas particulares das normas do direito natural que lhe são dadas e que a ela apenas vamente não pode ser dito - que Deus não existe, é que a validade destas
cumpre conhecer, não poderá ser designada como uma razão legisladora, não poderá
normas é tão objectiva, isto é, que essas normas escapam tanto a toda
dizer-se dela: «imperare est actus rationis».
(') UTZ, op. cit., p. 403 e s, depois de acentuar que, segundo a teologia de S. T o m á s ,
a aibitrariedade e, portanto, são tão indiscutíveis como os enunciados
0 direito natural não é criado por Deus mas é fundado na própria essência de Deus, da matemática: «Por mais ilimitado que seja 0 poder de Deus, há no
esclarece finalmente: «No Ser divino e no autoconhecimento de Deus é que se
fundamenta em último termo a racionalidade do direito natural». Esta é, porém - olhada (') Genesis, 11, 9 .16 , 17.
do ponto de vista da razão empírica -, uma racionalidade altamente irracional, (2) Genesis, in, 4. 5.
120
121
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
entanto certas coisas às quais se não estende tal poder... Assim como
Deus não pode fazer com que duas vezes dois não sejam quatro, também
não pode fazer com que o que é essencialmente [quer dizer por
natureza] mau não seja mau» (*).
A razão p r á t ic a em K ant
(') G r ô CIO, De Jure Belli ac Pacis, Lib. 1, Cap. I, Par. x, 5: «Est autem ius naturale adeo
im m utabile, ut ne a Deo quídem m utari queat. Q uam quam enim im m ensa est Dei
potentia, dici tam en quaedam possunt ad quae se illa non extendit, quia quae ita
dicuntur, dicuntur tantum, sensum autem qui rern exprimat nullum habent; sed sibi
ipsis repugnant: sicut ergo ut bis duo non sint quatuor ne a Deo quidem potest effici,
ita ne hoc quidem , ut quod intrínseca ratione malum est, m alum non sit».
(■“) K A N T , Krítik der reinen Vernunt, III, p. 3 3 1: «Se entretanto se vier porventura a
consentir num a faculdade transcendental de liberdade que dê começo às modificações
do mundo, esta faculdade terá de, pelo menos, estar fora do mundo (muito embora fique
sempre um a tem erária pretensão de, para além do conjunto de todas as intuiçôes
possíveis, se admitir ainda um objecto que não pode ser dado em qualquer percepção
possível). No próprio mundo é que jam ais será lícito atribuir às substâncias uma tal
faculdade, pois que então desapareceria em larguíssima medida a conexão (interligação)
segundo leis gerais dos fenôm enos que uns aos outros necessitantem ente se
determinam e a que chamamos natureza e com ela a característica da verdade empírica
que distingue a experiência do sonho». Cfr. também Grundlegung zur M etaphysik der
Sitten, iv, p. 448.
122
A d o u t r in a do d ir e it o n a t u r a l
(1) K a n t , Grundlegung zur M etaphysik der Sitten, iv, p. 448. - K ritik der reinen
Vernunft, 111, p. 5 2 1: «Mas a questão de saber se a própria razão, nesta actividade através
da qual prescreve leis [práticas - que dizem o que deve acontecer], não será por seu
turno determinada por outras influências e se aquilo que, por referência aos estím ulos
(impulsos) sensitivos, se chama liberdade, não poderá ser também natureza com relação
a causas eficientes mais altas e mais distantes, não interessa sob o ponto de vista prático,
pois nós apenas começamos por perguntar à razão pelo preceito da conduta; antes é uma
questão simplesmente especulativa que nós, na medida em que a nossa intenção se dirija
a um fazer ou a um não fazer (omissão), podemos pôr de lado. Nós reconhecem os,
portanto, a liberdade prática através da experiência como um a das causas naturais, a
saber, como uma causalidade da razão na determ inação da vontade, ao passo que a
liberdade transcendental exige a independência desta própria razão (com vista à sua
causalidade para dar começo a um a série de fenôm enos) de todas as causas determi
nantes do mundo dos sentidos e, nessa medida, parece ser contrária à lei natural e logo
à experiência possível». Quer dizer: a razão é, na verdade, causa de efeitos, m as ela
própria não é o efeito de um a causa. A razão é livre.
12 3
niIIIIk-,.
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A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
124
A d o u t r in a d o d ir e it o n a t u r a l
de Deus como o suprem o legislador moral. Na sua Kritik der Urteilskraft (v, p. 444) diz:
«Ora, como não consideram os o homem como fim da criação senão enquanto ele é um
ser moral, temos... para referir os fins naturais a uma causa inteligente do mundo, tal
como é postulado pela estrutura da nossa razão, um princípio que nos permite pensar
a natureza e atributos desta primeira causa como último fundamento, no reino dos fins...
A partir deste princípio, assaz determinado, da causalidade do prim eiro Ser, teremos de
0 pensar não só como inteligência e legislador da natureza mas também como legislador
em geral num reino moral dos fins».
Não é, portanto, a inteligência do homem como vontade, ou a vontade humana como
inteligência, mas a inteligência de Deus como vontade, ou a vontade de Deus como
inteligência, donde, em último termo, em ana a lei moral; não é o homem, mas Deus, o
Primeiro Ser, que é o legislador moral.
Na Grundlegung zur M etaphysih d er Sitten (iv, p. 455) diz-se: «O dever-ser moral é,
portanto, um querer próprio e necessário [do homem] como membro de um mundo
inteligível, e apenas é pensado por este como dever-ser enquanto ele se considera
simultaneamente como um membro do mundo dos sentidos». Para o homem enquanto
ser inteligível não há qualquer dever-ser, não valem (vigoram ), portanto, quaisquer
imperativos, pois o querer identifica-se com o dever-ser. Mas, um tal ser inteligível, cujo
querer é um dever-ser para o ser empírico, apenas pode ser Deus.
K a nt diz tam bém (op. cit., p. 414 ): «Portanto, para uma vontade divina e, em geral,
para uma vontade sagrada (santa) não vigoram quaisquer imperativos; o dever-ser está
aqui deslocado, pois o querer já por si mesmo é necessariamente conforme à lei» [isto é,
ao dever-ser]. Segundo a Kritik der Urteilskraft (v, p. 444), temos de pensar Deus, este
Primeiro Ser, «como omnisciente», «como omnipotente», «como sumamente bom e justo».
Se temos de aceitar Deus como o supremo legislador moral, então os deveres morais não
podem ser caracterizados ou, pelo menos, não podem ser suficientemente caracterizados
como comandos que emanam da razão própria do homem, mas têm de ser considerados
como comandos de Deus ou, pelo menos, também como comandos de Deus.
Na verdade, diz K a n t na M etaphysih d er Sitten, VI, p. 4 9 1, «que na ética, como pura
filosofia prática da legislação interior, apenas são concebíveis as relações morais do
homem em face do homem: que espécie de relações, porém, intercedem entre Deus e o
homem, isso supera inteiram ente os lim ites da m esma ética e é-nos absolutamente
incom preensível». Mas em Religion innerhalb der Grenzen d er blossen Vernunft, vi,
p. 6, diz: «A moral, portanto, conduz inevitavelm ente à religião, através da qual aquela
se estende à ideia de um legislador m oral poderoso fora do honem »; e, a pp. 15 3 :
«A religião é (subjectivamente considerada) o conhecimento de todos os nossos deveres
como ordens divinas». E ém Kants Opus posthumurn (apresentado e prefaciado por Erich
Adickes, Kant-Studien, N.Q 50, 1920, p. 802) encontra-se esta frase: «Na razão prática
moral reside o im perativo categórico segundo o qual devem os considerar todos os
deveres humanos como ordens divinas».
(') K a n t , M etaphysik der Sitten, iv , p. 226.
125
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
126
A d o u t r in a d o d ir e it o n a t u r a l
( ') K a n t , op. cit., p. 39 1. Se, como afirm a K a n t , a razão teorética e a razão prática
são uma e a m esma razão e ambas são faculdades do conhecimento, então não é possível
considerar algo como verdadeiro ou afirmá-lo como existente do ponto de vista da razão
prática que não seja lícito considerar como verdadeiro ou afirm ar como existente do
ponto de vista da razão teorética - como a existência de Deus, a imortalidade da alma
e, sobretudo, a liberdade da vontade.
K a n t diz (Kritik der Urteilskraft, v, p. 456): «A realidade de um Suprem o Autor da
lei moral é, portanto, suficientem ente dem onstrada apenas para efeitos do uso prático
da nossa razão, sem que algo seja teoreticamente definido quanto à existência (Dasein)
do mesmo Suprem o Autor». Quer dizer: a afirmação de que Deus existe e dá a lei moral
apenas é verdadeira do ponto de vista da razão prática, m as não do ponto de vista da
razão teorética.
K a n t distingue expressam ente (op. cit., p. 461 e ss.) duas espécies de «convicções
de verdade» («Fürwahrhaltens»): temos por verdadeiro aquilo que é demonstrado, mas
para toda e qualquer dem onstração exige-se «que ela não persuada mas convença».
«Uma dem onstração que se destine a convencer pode... ser de duas espécies... No
prim eiro caso, é fundada sobre princípios suficientes para o juízo determ inante
(definidor); no segundo, em princípios suficientes sim plesm ente para o juízo reflexivo.
No último caso, ela nunca pode, fundando-se sim plesm ente em princípios teoréticos,
agir sobre o convencimento; mas já se toma por base um princípio prático da razão (que
tèm uma validade geral e necessária), pode seguramente aspirar (ter pretensões) a um
convencim ento bastante para fin s m eram ente práticos, isto é, a um convencim ento
moral» - o que quer dizer: pode ser.havida por verdadeira.
«Relativamente à existência do Prim eiro Ser como Deus, ou da alma como espírito
imortal, não é possível à razão hum ana qualquer dem onstração de intenção (natureza)
teorética, ainda que para operar tão-só um grau mínimo de convicção» (Fürwahrhaltens)
(op. cit., p. 466). «Pelo contrário, o fim suprem o a realizar por nós, aquilo através de que
e através de que somente, podemos alcançar a dignidade de sermos nós próprios o fim
de uma criação, é um a ideia que tem para nós, para efeitos práticos, realidade objectiva,
e é um facto (Sache); mas, porque não podemos atribuir realidade a este conceito no
plano teorético, ele é. sim ples m atéria de fé para a razão pura e com ele são-no
igualm ente Deus e a im ortalidade como pressupostos sob os quais, e sob os quais
somente, nós podem os, segundo a estrutura da nossa (humana) razão, pensar a
possibilidade daquele efeito do uso conform e à lei da nossa liberdade. Ora a convicção
(Fürwabrhalten) em assuntos de fé é uma convicção com um intuito meramente prático,
quer dizer, é crença moral, que nada dem onstra para o conhecimento teorético, mas
apenas dem onstra para efeitos do conhecim ento puro prático, dirigido à observância
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
dos deveres...» «A fé (como habitus, não como actus) é a form a moral de pensar da razão
no ter por verdadeiro aquilo que é inacessível à razão teorética» {op. cit., p. 471).
•Assim , a distinção de K a n t entre razão teorética e razão prática revela-se, em
última análise, como sendo uma variante da teoria da dupla verdade, que na filosofia
(la idade Média desempenhou um importante papel- a teoria de que algo que é falso
secundum fid em et theologiam pode ser verdadeiro secundum rationem et philosophiarn.
Fista teoria foi propugnada essencialmente com o fim de defender a filosofia contra os
ataques da teologia. Em K a n t ela tem função inversa: a de defender a teologia contra
a filosofia.
j 1) K a n t , Grundlegung zur M etaphysik d er Sitten, IV, p. 389.
(2) K a n t , M etaphysik der Sitten, v i , p. 2 2 9 .
128
A DOUTRINA do DIREITO NATURAL
O s e n t im e n t o ju r íd ic o c o m o f u n d a m e n t o e f o n t e d o d ir e it o NATURAL
129
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL
(J) COING, op. cit., p. 22, 23. Diz o autor a pp. 2 1 : o sentim ento jurídico «quer» ver
o ideal realizado; e, a pp. 24: o sentim ento jurídico «exige» tratamento igual.
(2) L a R o c h e f o u c a u l d , M aximes, 1665, N.Q78.
130
A DOUTRINA do DIREITO NATURAL
(') COiNG diz a pp. 24: o sentim ento jurídico «exige tratam ento igual. Só onde
reconhece diferenças é que ele permite um tratamento tam bém diferente e reconhece
o princípio: «a cada um o seu». Pondo inteiramente de parte o facto de este princípio
apenas ser um dos muitos princípios da justiça que resultam dos diferentes sentimentos
jurídicos, o certo é que os diversos sentimentos de justiça, ou seja, as normas de justiça
deles decorrentes, reconhecem diferenças muito diversas como essenciais. Somente um
sentimento jurídico postula tratamento igual: o sentimento jurídico do indivíduo que
pressuponha a norm a de justiça segundo a qual todas ns pessoas devem ser tratadas por
igual em todas as circunstâncias. Todos os outros sentimentos jurídicos postulam trata
mento desigual. Mas sem dúvida que a custo se encontrará alguém cujo sentimento
jurídico não perm ita tomar em conta uma qualquer espécie de desigualdade.
133
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL
(') Cfr. o meu estudo: «The Natural-Law Doctrine before the Tribunal of Science»
in: What is Justice, pp. 13 7 e ss.
134
A DOUTRINA DO DIREITO NATURAL
135
■Illll
nii In re/a humana invariável, enquanto factos, nenhuma norma pode ser
deduzida, que as regras variáveis do ser da conduta social do homem,
tlio pouco como as leis naturais invariáveis, podem ser transformadas
(«in regras de dever-ser. Se a natureza do homem não é invariável, se dela
uno podem ser deduzidas quaisquer normas invariáveis - ou até quais
quer normas, pura e simplesmente - sobre a conduta recta, não pode
lniver um direito natural que possa servir como critério de medida firme,
iibsoluto, para a apreciação ou valoração do direito positivo, mas terão
de existir diferentes direitos naturais, possivelmente contraditórios
entie si, ou seja, normas de justiça que apenas constituem valores
lelativos. Ora este é justamente o ponto de vista do positivismo relati-
ví.sla. A teoria de que não existe um direito natural imutável mas apenas
um diieilo natural variável não pode contrapor-se, como pretende, a este
positivismo relativista; pois, abandonando a ideia de justiça absoluta e,
<onsequentemente, negando-se a si própria enquanto doutrina do
diieilo natural, coloca-se no plano deste positivismo {l).
136
A D O U TRINA DO D IREITO N A T U R A L
A s s im U t z (*), p o r e x e m p lo , n a su a in te rp re ta ç ã o de T o m á s de
AQUINO, d istin g u e en tre u m a «natureza h u m an a geral, isto é, a essên cia
esp e cífic a do h om em », q u e é im u tável, e so b re a qual se co n stró i u m
«direito n atu ral en ten d id o no sentido gen érico», u m direito natural «em
si» - o d ireito n atu ral im u tá vel - e u m a n a tu re z a h u m an a «concreta»
que se tra n s fo rm a «de co n fo rm id ad e com a situ aç ão h istó rica» , q u er
dizer, com as circu n stân c ias p o líticas e ec o n ô m ica s em m utação, u m a
natureza h u m an a sobre a qual se constrói u m d ireito natural em sentido
co n creto. E ste se ria u m d ireito qu e h a v e ria de ser d e sco b erto «na
situação real (Sachbestand) concreta», que resu lta «hic et nunc da análise
do real» (2).
137
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL
ela não se refere de form a algum a ao caso de um homem que tem uma má natureza,
porque tem uma vontade má.
Se a natureza do hom em da qual devem ser deduzidas as norm as de um direito
natural é a boa naturera do homem, então o facto de esta boa natureza do homem se
poder transform ar em má não pode servir de argumento a favor de um direito natural
variável. Ao mesmo resultado se chega quando se não analise o exem plo apresentado
por T omás do ponto de vista da natureza do hom em a quem deve ser restituída a coisa
depositada. A norma segundo a qual o depósito deve ser restituído ao depositante é
tão-só a aplicação da norma geral segundo a qual devemos cumprir as nossas promessas,
pois uma coisa só está «em depósito» se o depositário da coisa promete restituí-la ao
depositante quando este o deseje.
A não aplicação desta norm a resulta da norm a segundo a qual ninguém deve
cooperar para um a má acção. U m a norm a lim ita a validade (Geltung) da outra. No
entanto, a inversa tam bém é possível: que a validade da norm a segundo a qual não
devemos ajudar alguém numa má acção seja limitada através da norm a segundo a qual
devemos cum prir as nossas promessas. Da natureza não é possível deduzir a qual das
duas possibilidades se deva dar a preferência. Se am bas as normas são pressupostas
como válidas, então a prim eira apenas pode valer dentro dos lim ites traçados pela
segunda, e isto logo desde o início, sem que tenha de se admitir qualquer modificação.
(') Cfr. supra, n.Q23, al. a).
138
A d o u t r in a d o d ir e it o n a t u r a l
(') Cfr. o estudo «Wandelbares Naturrecht» in: Orientierung. Katholische Blàtter fiir
weltanschauliche Inform ation, N.° 16, Zürich, Agosto 1956, pp. 1 7 1 e ss.
p) Feita em 1 3 de Outubro de 19 55 perante os membros do Centro Italiano di Studi
per la Ríconciliazione Internazionale. Citada apud Orientierung, 1956, N.B 15, p. 174.
139
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
T a m i i í .m não p o d e j u s t i f i c a r -s e a d o u t r in a ju s n a t u r a l is t a pela su a
I 1INÇÀO
(') D ENTRÉVES, op. cit., p. 46, diz: «O real significado da noção de direito natural
parece residir antes na sua função do que na própria doutrina». Cita M a in e que, na sua
obra Ancient Law (18 6 1), afirm a que o direito rom ano era superior ao direito hindu
porque aquele, e já não este, fora m odelado sob a influência da doutrina do direito
natural. «A teoria do direito natural havia-lhe dado um tipo de excelência diferente do
que é usual».
A DOUTRINA DO DIREITO NATURAL
Ca rá cter e m in e n t e m e n t e c o n s e r v a d o r d a s d o u t r in a s ju s n a t u r a l is t a s .
(') Cfr. os meus trabalhos: «Die Idee des Naturrechts», Zeitschrift fü r õffentliches
Recht, 7. Bd., 1927, pp. 2 2 1 e ss. e: «Naturrecht und Positives Recht. Eine Untersuchung
ihres gegenseitiges Verhãltnisses». Internationale Zeitschrift fü rT h eorie des Rechts, II.
Bd., 2. Heft, 1928, pp. 7 1 e ss.
(2) Muito digno de nota sob este aspecto é TOMÁS DE A q u in o , o qual, na Summa
theologica, responde decididam ente no sentido afirmativo à questão: «Utrum sit aliqua
lex humana» (i-ll, 9 1, Art. 3) e à questão: «Utrum fuerit utile aliquas leges poni ab
hominibus» (1-11, 95, Art. 1). Em relação à prim eira pergunta diz ele: «necesse est... quad
ratio humana procedat ad particulares quasdam legum sanctiones»; e em relação â
segunda pergunta: «Quia inveniuntur quidam protervi, et ad vitia proni, qui verbis de
facili moveri non possunt: necessarium fuit quod per vim vel metum cohiberentur a
maio, ut saltem sic m alefacere desistentes, et aliis quietam vitam redderent, et ipsi tan
dem, per huiusmodi assuetudinem, ad hoc perducerentur quod voluntarie facerent quae
prios metu implebant, et sic fierent virtuosi. Huiusmodi autem disciplina, cogens metu
poenae, est disciplina legum. Unde necessarium fuit ad pacem hominurn et virtutem,
quod leges ponerentur... Dicendum quod homines bene dispositi melius inducuntur ad
virtutem m onitionibus voluntariis quam coactione; sed quidam m ali dispositi non
ducuntur ad virtutem , nisi cogantur».
Cfr. também as passagens citadas no meu trabalho What is Justice?, p. 385, tiradas
de M e la n c h t h o n , Ethicae Doctrinae Elementorum Libri Duo, 1560.
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A DOUTRINA DO DIREITO NATURAL
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A JUSTIÇA E o DIREITO NATURAL
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....
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A DOUTRINA DO DIREITO NATURAL
(') H o b b e s , De Cíve, cap. XIV, sec. 10: É im possível «que qualquer lei civil [i. é,
positiva] que não tenda a um a reprovação por parte da Divindade... seja contra a lei da
natureza»; e L e v i a t h a n , Parte II, cap. XXVI: «A lei da natureza e a lei civil ji. é, o direito
natural e o direito positivo) contêm-se uma à outra e têm a m esma extensão... A lei da
natureza.:, é um a parte da lei civil em todos os Estados do mundo. Reciprocam ente,
portanto, a lei civil é uma parte dos ditames da natureza... todo o súbdito do Estado
concordou em obedecer à lei civil... e, portanto, a obediência à lei civil é tam bém parte
da lei da natureza». Cfr. tam bém o meu estudo «The Natural Law-Doctrine before the
Tribunal o f Science», publicado no meu trabalho: What is Justice?, pp. 14 4 e ss.
(2) Sic PUFENDORF; cfr. What is Justice?, pp. 14 5 e ss.
(3) Sic PUFENDORF; cfr. op. cit., p. 137 .
p) Tom ás d e A q u in o , Sum m a theologica, 11-11, 58, Art. 1 1 ; relativam ente a
PUFENDORF, cfr. «The Natural Law Doctrine before the Tribunal o f Science», op. cit.,
pp. 14 7 e ss.
147
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL
(") Sic H o b b e s e PUFENDORF, cfr. op. cit. pp. 146 e ss. T o m á s de AQUINO, Summa
theologica, i- ii , 96, Art. 6.°; IHI, 60, Art. 6.°.
p) Sic T o m á s de A q u in o , Summa theologica, IHI, 104, A rt. 6.°, cfr. também: 1-11, 96,
Art. 4.°; II-II, 12 , Art. 2,a.
(3 ) Cfr. «The Natural-Law Doctrine before The Tribunal of Science», op. cit., pp. 148
e ss.
p) É esta a doutrina jusnaturalista dos Reformadores segundo a interpretação feita
pelo teólogo protestante E m il B r u n n e r , Gerechtigkeit, eine Lehre vort den Grundgesetzen
der Cesellschaftsordnung, 1943, p. 1 1 0 . Cfr. o meu trabalho: «Die Idee der Gerechtigkeit
nach den Lehren der christlichen Thelogie», Studia Philosophica. Jahrbuch der
Schweizerischen Philosophischen Gesellschaft, vol. xm , 19 53, p. r99.
148
A D O U TRIN A DO D IR EITO N A T U R A L
150
A D O U T RIN A DO D IR EITO N A T U R A L
F un d am en tação d a v a l id a d e d o d ir e it o p o s it iv o seg u n d o a d o u t r in a
ju s n a t u r a l is t a e s e g u n d o a T e o r ia P u r a do D ir e it o
( ') D ’E n t r é v e s , op. cit., p, 1 0 8 , opina que a norm a fundam ental de Kelsen «nada
m ais é senão um a proposição de direito natural», pois que através dela se vem a
reconhecer «que o critério últim o da validade do direito se situa para além do m esmo
direito».
A JU S T IÇ A E o D IREITO NA TU RAL
(l) D 'E n tré v cs, op. cit., p. 107, observa: «...há, e tem de haver, um ponto no qual a
norma fundamental... é convertida num facto»; ela «apenas pode ter um sentido para
o jurista... na medida em que os comandos do soberano sejam de facto obedecidos». Esta
não é uma descrição correcta do significado que tem o momento da eficácia segundo a
teoria da norma fundam ental. A norma fundam ental não é de form a alguma transfor
mada em facto. Um facto não pode ser o fundam ento de validade de um a ordem
normativa. A norm a fundam ental refere-se apenas a um a ordem coactiva regular e
globalmente eficaz. Esta eficácia não é o seu fundamento de validade.
153
ÍNDICE
Nota Preambular 7
I. AS NORMAS DA JUSTIÇA
í. Noção de justiça 41
3. O juízo de valor não pode incidir sobre normas 42
4. Objecto do juízo de valor fundado na justiça. Validade da norma
positiva e norma de justiça 44
5. A norma e o conceito 48
6. Silogismo normativo e silogismo teorético 49
7. Concludência normológica e fundamentação da validade 50
8. Tarefa da ciência perante as normas de justiça 51
9. Tipos de normas de justiça 52
10. A fórm ula do «suum cuique» 53
1 1 . A regra de oiro 54
12. O imperativo categórico de Kant 56
13. Outra fórm ula vazia de conteúdo 63
14. O costume como constitutivo do valor justiça 63
15. O meio termo aristotélico 64
16 . O princípio retributivo como princípio de justiça 66
17. O princípio da equivalência entre prestação e contraprestação
como princípio de justiça 7i
18. Proporcionalidade entre prestação e contraprestação e cômputo
do sálãrio 72
19. Análise do princípio de justiça comunista formulado por Marx 74
20. O preceito do amor do próximo 78
22. A ideia de liberdade como fundamento da justiça 81
23. O «contrato social» e o ideal de justiça da democracia liberal 83
24. Justiça e igualdade. A igualdade como conseqüência lógica da
generalidade da norma 84
25. A Ideia de Justiça em Platão 94
26. Justiça e amor de Deus: a Justiça divina 96
27. Justiça e felicidade 98
155