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A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL
AUTOR
HANS KELSEN

TRADUÇÀO E PREFÁCIO
JOÀO BAPTISTA MACHADO

EDITOR
LIVRARIA ALMEDINA - COIMBRA
www.almedina.net

LIVRARIAS
LIVRARIA ALMEDINA
Arco de Almedina, 15
3004-509 Coimbra - Portugal
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p ro d u c a o @ g T a fic a d e c o im b r a .p t

DEPÓSITO LEGAL: 165497/01


ISBN 972-40--153Ó-X
MAIO, 2001

© Copyright
Translated with friendly authorísation o f the Verlag Osterreich GmbH
and the Hans-Kelsen-Institute in Viena
NOTA P R E A M B U L A R

1 - No presente volume - que corresponde ao «Apêndice» da 2.8 edição


de 1960, da «Teoria Pura do Direito» - K e l s e n analisa com a sua
a le m ã ,
habitual lógica cortante a noção de Justiça e a doutrina do Direito Natural,
Afirma-se correntemente que a «Teoria Pura do Direito» não implica
0 repúdio de uma axiologia jurídica e, designadamente, de uma doutrina
jusnaturalista. Há, porém, um ponto de partida comum àqüela «Teoria»
e à posição assumida por KeLSEN, no presente trabalho, em relação a toda
e qualquer axiologia jurídica. Esse ponto de partida comum é o conceito
positivista de «ciência» e o preconceito, igualmente positivista, de que
todo e qualquer conhecimento se reconduz a um destes dois tipos: o
conhecimento empírico das ciências naturais e o conhecimento das ciên
cias form ais hipotético-dedutivas (a matemática e a lógica}. Vale ainda
dizer, com R e c a s é n s , que «o agnosticismo axiológico de K e l s e n é... uma
reelaboração positivante do kantismo».
Num primeiro momento, o positivismo havia conduzido à conclusão
de que a «autêntica» ciência jurídica era a sociologia do Direito, pois só
esta se legitimava como ciência na medida em que apenas ela se baseava
em factos (factos sociológicos) empiricamente verificáveis. A tradicional
mente cham ada ciência ju rídica mais não seria do que uma simples
técnica jurisprudencial ou uma teoria desta técnica. Contra esta atitude
reagiu K e l s e n . Impõe-se, segundo ele, autonomizar metodologicamente
a ciência do Direito, como ciência de normas, fa c e à sociologia e à
psicologia do Direito, como ciências de factos. Como ciência normativa,
a ciência jurídica não se ocuparia nem dos factos que põem as normas
nem da eficácia das mesmas normas, mas das próprias normas, isto é,
dos conteúdos de sentido dos fa cto s que as produzem e das conexões
entre esses conteúdos. Mas, se a ciência jurídica não pode ser uma ciência
de factos, uma ciência empírica, então só poderá ser uma ciência form al
hipotético-dedutiva. Tal a conclusão forçada da concepção positivista a
que K e l s e n se mantém rigorosamente fiel.

7
i" '■ | i ;:i;:'ii;ii iim n u im im i!n n u n in iin n im n n n n n n n u n »

A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL

De resto, que fazem os sequazes do positivismo sociológico e os da


chamada «escola realista», ao pretenderem partir dos factos sociais e
psicológicos e ao afirmarem a validade das normas a partir da sua eficá­
cia, senão pressupor, em último termo, a validade da norma ou normas
que prevêem esses factos e fundam a validade das normas consideradas?
Donde procede que, metodologicamente, há que partir das normas. Só
estas podem fazer com que algo seja jurídico, só uma norma pode fundar
a validade de outra. Todo o pensamento jurídico-positivo, quer disso
tenha consciência quer não, parte de uma norma que considera como
válida. E é esta consciência dos próprios pressupostos que a «Teoria
l'ura do Direito» vem trazer ao positivism o jurídico. Por isso é que o
positivismo kelseniano nos é também apresentado como um «positivismo
critico».
O sistema da «Teoria Pura do Direito» é um sistema hipotético-dedu-
tivo no sentido de que a Norma Fundamental tem de ser pressuposta para
poder sequer ser possível uma consideração científica (isto é, como
veremos, lógico-objectivante) do Direito. Tal pressuposição é condição
necessária para que possamos submeter o Direito ã perspectiva cien­
tífica - isto é, para que o possamos descrever através de proposições
exactas que se combinam num sistema unitário e são susceptíveis de um
cantrol lógico rigoroso. Sem ela, poderemos ter uma consideração teleo­
lógica - mas não uma consideração lógico-objectivante, científica.
Observemos desde já que, posto assim o problema, a «Teoria Pura do
Direito», é irrefutável - nas suas grandes linhas, pelo menos. Outra
questão será a de saber se este modo de consideração, esta perspectiva
lógico-objectivante, não deixa escapar certos aspectos relevantes do
jurídico que só numa outra perspectiva se discernem.

2 - Pode dizer-se que o colossal esforço de K e l s e n , trouxe ao pensa­


mento jurídico uma clarificação tal que é possível hoje determinar com
rigorosa precisão até onde pode ir a consideração lógico-objectivante e
quais os pontos de vista e os juízos que esta perspectiva já não acolhe
nem pode justificar. A «Teoria Pura do Direito» representa, na evolução
histórica do pensamento jurídico, o momento em que se põe a descober­
to a exacta linha de fronteira entre a esfera lógico-objectivante e a teleo­
lógica - assim como aquele em que se nos revelam o significado e o
alcance exactos do positivismo jurídico.
IIIIHIIII " " " . ' ! ' »

n o t a p r e a m b u la r

D epois d e K e l s e n , o p ro b le m a q u e se p õ e ao p e n sa m e n to ju ríd ic o é o
mesmo que en fren ta o pen sa m en to hum ano em g e r a l ap ó s ter sido lev a d a
às suas ú ltim as c o n s e q ü ê n c ia s a c o rren te n o m in a lis ta q u e in fo rm o u o
espírito d e to da a é p o c a m o d ern a : até q u e pon to p o d e o hom em fir m a r
os in dicad ores d e rum o d a sua co nduta no terreno do pen sa m en to lógico-
-objectivante, com o e d e o n de d e r iv a r com v a lid a d e o b jec tiv a um a neces­
sitas moralis.
Se é certo - muitos o afirmam - que a «crise» do Renascimento na
cultura europeia deve ser havida como o antecedente remoto da moderna
teoria dos valores, é também certo que o germe e agente principal dessa
crise de pensamento fo i o nominalismo, o qual conduziria, por neces­
sidade própria, a uma separação entre o conhecer e o agir, entre a
filosofia teorética e a prática. A questão - como K a n t veio a mostrar mais
tarde - era a de saber que modo de acesso - se é que algum - nos permi­
tiria este novo estilo de pensamento ao que hoje se chamaria o plano
ético-existencial. A experiência representada pelo sistema filosófico de
L ocke mostrou claramente que a perspectiva nominalista não poderia ser
aplicada aos dom ínios da filosofia prática, sob pena de contradições
insanáveis. Partindo de processos elementares rigorosamente definidos,
partindo atomisticamente das partículas isoladas pela análise ou dos
indivíduos, só através de uma infidelidade ao esquema, isto é saltando
fora do próprio sistema e operando uma mudança radical de perspectiva
se poderá lograr a visualização da unidade capaz de transcender as
partes e se lhes sobrepor - de outro modo, nada de verdadeiramente real
(objectivo) se poderá vislumbrar num todo complexo além das peças que
entraram na sua montagem. A lógica conseqüência da perspectiva
nominalista haveria de ser o cepticismo de de H u m e . São conhecidas
as frases com que este filósofo, em An Enquiry Concerning Human
Understanding, impressivamente sublinha a sua atitude antimetafísicci
e que tão fundam ente haveriam de impressionar K a n t : «Tomemos
qualquer volume, sobre a divindade ou sobre metafísica acadêmica, por
exemplo, e perguntemos: contém ele qualquer discurso abstracto relativo
à quantidade ou ao número? Não. Contém qualquer discurso experi­
mental relativo a factos reais ou à existência? Não. Lancemo-lo então às
chamas, pois nada mais pode conter senão sofismas e confusão».
Surge então Kant que vai separar as águas, que vai decantar as
substâncias de dois tipos de pensamento que até aí impuramente se

9
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL

m istu ra va m no tu rb ilh o n a r co n fu so d o s siste m a s d e id e ia s a n te rio re s


- e vai, ao m esm o tem po, fix a r -lh e s os resp e c tivo s lim ites. H a v e ria um a
ra z ã o te o ré tic a e u m a ra z ã o p rá tic a , c a d a q u a l co m o se u c a m p o d e
actu ação próprio. B em a certa d a nos p a r e c e a afirm a çã o d e ÉMILE BRÉHIER
s eg u n d o a qual, d e s d e co m eço s do s é c u lo XVIII, o p ro b le m a do s e r e do
v a lo r a g u a rd a v a u m a solu ção e q u e esta - ta l com o s e a lb e rg a v a j á nos
p ró d ro m o s do esp írito m odern o - se in ic io u com o kan tism o que, d e fro n ­
ta ndo o cep ticism o d e H um e , se p ô s a q u estã o d e s a b e r com o é p o s sív e l
o v a lo r d a m oral. C o nh ece-se a resposta. D esd e K a n t , a s e p a ra ç ã o en tre
a filo s o fia teo rética e a p rá tica , en tre a te o ria do co n h ecim en to com o
fu n d a m e n ta ç ã o d a c iên cia e a ética com o q u estão so b re as n o rm a s d a
recta co n d u ta - entre o ser e o dever-ser, en tre o c o n h ec er e o a g ir - radi-
cou-se e tornou-se um lu g ar com um . N a a ctu a lid a d e, assiste-se à tentativa
d e resta u ra r a u n id a d e (p e rd id a d e s d e os tem pos d a v e lh a m eta física )
d estes p ro b lem as, e isto ex p lic a q u e o a c tu a l m om ento filo s ó fic o eu ro p eu
s e ja c a ra c te riz a d o p e lo encontro (que n em se m p re é um diá lo g o - h a ja
v ista ao q u e se tem p a ssa d o nos co n g resso s d e filo s o fia , d e sig n a d a m e n te
no d e B ru x e la s d e 19 5 3 ) e n tre as f ilo s o fia s d a c o rre n te c ritic is ta e as
filo s o fia s do ser.
De K a n t aproveitou o positivismo a Lógica Transcendental d a Crítica
da Razão Pura, mas rejeitou a Crítica da Razão Prática e as suas doutri­
nas éticas. Para a concepção positivista, só têm sentido os juízos
sintéticos a posteriori (juízos empíricos) e os juízos analíticos. Logo, todo
o conhecimento válido, toda e qualquer ciência só poderá ser constituída
através de um sistema coerente de proposições empíricas ou analíticas
- só há verdades em píricas e verdades de definição. Toda e qualquer
proposição de outro tipo não tem sentido - é produto de uma mentali­
dade prelógica, de uma metafísica.
Aplicado este ponto de vista ao domínio do Direito, não admira que 0
resultado fosse a tentativa de construir a ciência jurídica como ciência de
factos sociais - uma ciência expressa, portanto, através de um sistema de
proposições empíricas, uma sociologia do Direito. Sabemos qual fo i a
réplica de K e l se n , assim como sabemos que ela, afinal, se veio a traduzir
em afirmar uma específica ciência do Direito como um sistema de propo­
sições analíticas decorrentes de um axioma fundamental, a Grundnorm.
K e l s e n , com efeito , e m p re e n d e u u m a v e z m a is s u p e r a r o velh o
c o m p lex o d e in fe r io r id a d e d a c iê n c ia ju r íd ic a , f u n d a r o seu c a rá c te r
nota prea m bu la r

científico, determ inando-lhe um objecto: as normas jurídicas e as


conexões «de validade» entre elas, e fixando-lhe um método específico:
o método normológico, que se caracteriza por fa z e r abstracção do
substrato sociológico do Direito - dos conteúdos ético-jurídicos, político-
sociais ou político-econômicos e dos fin s dos preceitos jurídicos - limi­
tando a incidência da sua visualização àquelas conexões «de validade»
e às relações lógicas entre conceitos fundam entais de natureza formal.
Assim constituída, a ciência ju ríd ica satisfaz aos postulados da cientifi-
cidade, já que opera tão-somente com conceitos rigorosamente definidos
a partir de alguns axiomas fundamentais, utilizando o instrumento da
lógica formal, e exclui por completo todos os conceitos indeterminados
(isto é, insusceptíveis de definição precisa nos quadros de uma axiomá-
tica), assim como todos os juízos de valor.
Esta pureza metodológica torna-se absolutamente indispensável para
qarantir a cientificidade da jurisprudência e a sua autonomia em fa ce
da sociologia e da política do Direito. Deixar que outros critérios, além
dos puramente formais, informem o processo mental do jurista é cair no
«sincretismo metodológico» da jurisprudência tradicional que, por isso
mesmo, não satisfaz aos requisitos da cientificidade.
Com a «Teoria Pura do Direito» continuamos, pois, no terreno do
positivismo jurídico. Só que este positivism o - a que se tem chamado
lógico sendo um positivism o autoconsciente, consciente dos seus
próprios fundamentos e limites, não nega a legitim idade do problema
axiológico, mas limita-se a verificar a impossibilidade do seu tratamento
científico. Por isso mesmo, a validade a que a teoria kelseniana se refere
não pode ser mais que uma validade de definição (simples noção
operacional), uma validade fo rm al que decorre, em último termo, da
proposição fundante de todo este sistema axiomático: a que se traduz
Grundnorm.

II

3 - Qual a posição da dogmática jurídica? Entre o normativismo


kelseniano e o sociologismo, entre uma ciência analítica e uma ciência
empírica do Direito não haverá lugar para um conhecimento jurídico
objectivamente controlável, «científico»?
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL

Ê evidente que, para K e ls e n , além da «Teoria Pura do Direito» e do


sociotogismo jurídico, não pode haver qualquer outra form a de conheci­
mento *científico» do Direito. Logo, também para ele, como para os
stquazes da escola sociológica, a dogmática tradicional mais não poderá
*>r do que uma arte ou técnica sem valor científico. A refutação deste
ponto de vista exigirá a prova da «cientificidade» de outros modos
possíveis de conhecimento além do das ciências exactas - ou a refutação
do conceito de «ciência» em que ele se funda.
Quando se pergunta se, para além do normativismo e do sociolo-
glsmo, é possível um conhecimento jurídico objectivam ente válido,
pretende-se indagar, pois, da viab ilid ad e científica da tradicional
dogmática jurídica. Mas esta, que fa z incidir a sua visualização sobre
um ordenamento jurídico concreto, não pode deform a alguma abstrair
dos fin s das normas e dos conteúdos ético-políticos destas. Pelo con­
trário, esses fin s e conteúdos constituem justamente o objecto da sua
principal preocupação. Ela não se ocupa tão-só das conexões lógicas
entre os conceitos e das conexões «de validade» entre as normas, mas
tem também por tarefa - e principalm ente - dilucidar a significação
prática das normas em ordem à sua aplicação às situações concretas da
vida.

4 - Antes do mais, o problema é claramente o de saber se um conh


cimento que se processe apenas na perspectiva lógico-objectivante se dá
conta de todas as dimensões do fenôm eno jurídico. Por outras palavras:
trata-se de d ecidir prim eiram ente se a jurisprudência, atenta a sua
missão, se pode contentar com uma ciência jurídica normológica ou com
uma sociologia do Direito. Só depois de termos dado a esta questão uma
resposta negativa, verificando a necessidade de uma terceira form a de
conhecimento ou «ciência» do Direito, a dogmática jurídica, é que se porá
a questão de saber se estoutro tipo de conhecimento jurídico merece o
qualificativo de «científico».
Intentaremos mostrar que a «ciência» do Direito, sob a form a de
dogmática jurídica, não pode limitar-se à por nós chamada perspectiva
lógico-objectivante. Fá-lo-emos com base em duas ordens de considera­
ções: uma consideração de ordem geral - a necessidade que o Espírito
e o seu Direito têm de se reservarem o pa pel de agentes na história - e
uma consideração ligada mais de perto à prática jurídica.

12
nota pr ea m b u la r

Mas, primeiramente, intercalaremos um parêntesis explicativo, que


nos vai permitir aclarar o sentido daquilo que chamamos a «perspectiva
lógico-objectivante».

5 _ O fenôm eno jurídico, como todo o fenômeno cultural, é susceptí­


vel de duas leituras: uma leitura «estrutural-formal» (sociológico-estru-
tural e lógico-estrutural) e uma leitura «dinamológico-intencional». A pri­
meira coloca entre parêntesis a actividade espiritual do homem, isto é,
abstrai do acto de invenção que promove o movimento cultural-histórico,
para não considerar senão o encadeamento das produções do espírito por
transformações sucessivas, para olhar apenas ao surgir «necessário» de
uma estrutura a partir de outra - ou, seja, para ver apenas a articulação
das estruturas. A segunda procura perscrutar as próprias intencionali-
dades espirituais que estão na gênese das mesmas estruturas culturais-
-históricas e não visa estas senão enquanto elas são interrogadas pelo
espírito. Nesta segunda perspectiva, o processo cultural aparece-nos
como um diálogo aberto do espírito (das intencionalidades espirituais)
com as estruturas, mantendo aquele o seu papel de agente da história.
Estrutura é toda a organização com que deve - e pode - contar a
actividade operatória do espírito. Mas o seu conceito é eminentemente
relativo: por um lado, a própria «operação» do espírito, se passa a ser
visada por uma intencionalidade operatória do mesmo espírito, trans-
forma-se, para estoutra intencionalidade, numa «estrutura»; e, pelo outro,
toda a «estrutura» de que o espírito (como suppositum cognoscens) toma
consciência pode exprimir-se, enquanto aquele se lhe dirige interrogati­
vamente - isto é, problematizando-a - em termos de intenções ou mesmo
operações espirituais. Ora é esta interconvertibilidade das noções de
«estrutura» e «operação» que motiva - como diz B oirel - leituras radi­
calmente opostas do desenvolvimento cultural.
Por estrutura entenderemos aqui, pois, tanto uma estrutura real como
uma estrutura simplesmente form al (lógica). É «estrutura» tudo o que
resiste e serve de apoio, tudo o que nas operações mentais do supposi­
tum cognoscens, agente da cultura, funciona como «dado». Isto nos
permite reconduzir a um denominador comum o positivismo sociológico
e o positivismo lógico de K e l s e n : tanto um como outro apenas visam o
Direito no seu aspecto «estrutural», no seu aspecto de «dado». Donde
procede que, visto a leitura estrutural corresponder ao que atrás chamá-

13
r
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l . nota pr ea m b u la r

mos perspectiva lógico-objectivante, poderemos, pelo menos provisoria­ intervir sobre o processo histórico sem se deixar absorver por ele - sem
mente, partir de uma noção geral de positivismo como aquela doutrina se deixar transformar em «facto» inerte, arrastado como qualquer outro
que apenas admite como viável a perspectiva lógico-objectivante em evento pelo fluxo dos aconteceres. Surge, portanto, como intencionalidade
qualquer espécie de conhecimento. operatória. Ora tudo o que seja visualizar essa intencionalidade do
espírito sob uma perspectiva lógico-objectivante resulta em configurá-la
6 - Como já atrás dissemos, o problema é, pois, antes de mais, o de como «dado» ou estrutura apenas, já que aquela perspectiva, por
saber se a leitura estrutural (ou perspectiva lógico-objectivante) permite definição mesmo, não permite focalizar a actividade criadora do espírito
apreender todas as dimensões do jurídico. - não perm ite reconhecer a este o seu essencial p a p el de agente da
Logo uma prim eira consideração, de form ulação assaz difícil, nos história, de promotor do processo cultural-histórico. O jurídico perde o
inculca uma resposta negativa. seu significado próprio quando visto sob uma perspectiva em que a
A questão traz-nos à mente uma fra se de HEGEL: «Recht ist Geist sich actividade do espírito é posta entre parêntesis para só fic a r o surgir
wirklich machend». Este conceito fe liz logo nos recorda que, para definir necessário de certos resultados a partir de estruturas iniciais - em mero
o tipo específico do conhecimento da jurisprudência, se não pode deixar desenho de encaixe estrutural.
de atentar neste aspecto dinâmico da inserção no processo histórico das Ora, dado como assente que a tarefa da jurisprudência consiste em
intenções espirituais. É que a jurisprudência dogmática visa, como seu descortinar a norma válida para o caso concreto, ou seja, em realizar
termo perficiente, a aplicação do Direito ã realidade dos factos do «concretamente» o Direito, em fazê-lo «operar» sobre as situações da vida
processo histórico - e a factos de conduta, isto é, factos informados por histórica, ela não poderá deixar de visualizar o Direito também em
uma intencionalidade humana. termos de não pôr aquelas intenções espirituais entre parêntesis. Quer
Ora, sendo assim, tanto a leitura sociológica como a leitura lógica não isto dizer: a natureza do Direito, como produto do espírito, obriga-nos a
satisfazem à missão da jurisprudência. A primeira, porque relativa a ter sempre presente a intencionalidade operante, uma vez que ele
factos e a conexões causais entre factos - quando a jurisprudência visa pretende dirigir o curso dos aconteceres, m oldar a história.
realizar uma intencionalidade espiritual, um dever-ser. Valem aqui os Em suma: se uma instância humana quer intervir modeladoramente
argumentos contra ela aduzidos por K e l s e n . A segunda, porque só se - realizar uma certa «mundividência» - num processo de curso im pre­
torna possível ex post facto, isto é, depois de definidas e transformadas visível, não pode prefixar um esquema de actuação rígido, mas tem de
em «estruturas» fixas, em «dados», as intenções e conteúdos espirituais consentir num constante afinamento da sua estratégia de acção. De outro
- quando a jurisprudência, porque vai endereçada toda ela à realização modo, os resultados não seriam os pretendidos, mas aqueles que porven­
do Direito, fa z incidir a sua visualização sobre o momento em que se tura o acaso das situações históricas concretas, em combinação com tal
opera o trânsito para a vida concreta daqueles conteúdos ou intenções esquema rígido, viesse a engendrar - o que representaria uma alienação
espirituais que se enucleiam na mundividência reflectida pelo ordena­ do espírito, um abandono ao fluxo aleatório dos aconteceres, e, conse­
mento jurídico. Por outras palavras: a jurisprudência tem por tarefa quentemente, um esvaziamento total do sentido dos esquemas norma­
organizar (estrategicamente, isto é, com «prudência») a passagem de uma tivos. Por conseguinte, a jurisprudência não pode bastar-se com a
intencionalidade espiritual para o efectivo processo histórico, pelo que «leitura» estrutural do Direito, com a perspectiva lógico-objectivante -
pretende conhecer o Direito para o realizar - ou conhecer e realizar o pois que a esta escapa a dimensão vital do jurídico, o seu sentido
Direito - e não conhecer o «direito realizado», transformado em «facto» modelador da vida (cfr. infra, IV, 19).
ou «dado» inerte.
Por outro lado, o Direito não se realiza ou cumpre em normas, mas na 7 - Também uma análise rigorosa da prática jurídica nos revela,
sua aplicação aos casos da vida. Ele quer, como conteúdo espiritual, claramente a insuficiência da perspectiva lógico-objectivante.

14 15
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

Com efeito, uma óptica do Direito restrita ao aspecto form al das


normas permite, na verdade, axiomatizá-lo de um golpe, ou seja, afinal,
constituí-lo em sistema, por form a a fa z e r eqüivaler o conceito de «ver­
dadeiro» (ou de «válido») e o de «formalmente concluível a partir dos
axiomas». Mas esta perspectiva, este nível de form alização ou este plano
de corte, não perm ite problem atizar certos temas que, todavia,
constituem problemas para a aplicação do Direito - não permite uma
passagem do esquema ao tema, justamente por ser uma hipostasiação
daquele.
Ora um problema que logo defronta o órgão aplicador do Direito, ou
o jurista, é o de reconduzir as situações concretas da vida aos conceitos
utilizados pelas normas. Na verdade, se partirmos de uma situação de
vida em si, neutra, desprovida de qualquer qualificação jurídica, precisa­
mos de abstrair de todas as particularidades «irrelevantes» da mesma e
progredir, de abstracção em abstracção, até ficarm os reduzidos aos
supostos defacto contidos na hipótese legal de uma norma. Este processo
abstractivo, porém, não pode ter sentido senão por via de referência às
normas eventualmente aplicáveis. Mas o certo é que, por outro lado, a
eleição das normas potencialmente aplicáveis só é possível por via de
referência ã «situação» enquanto submetida àquele processo abstractivo.
Ora esta aproximação dialéctica entre hipótese legal e situação de vida
não é rigorosamente «controlável» - como bem acentua T h e o d o r
H E LLE R - por meios lógicos. Torna-se necessário «intercalar» a í uma
terceira instância - a instância da praxis - operando uma integração
dos *dados» em presença na experiência espiritual vivida do suppositum
cognoscens. Significa isto que a «subsunção» jurídica não é de form a
alguma traduzível por uma dedução silogística, que o enquadramento da
situação concreta na hipótese legal - se bem que obedecendo também às
leis lógicas - é em primeira linha uma questão de valoração jurídica que
não pode ser exaurientemente decidida com meios de pura lógica.
E, na verdade, no chamado silogismo normativo, o termo médio não
pode ser determinado senão mediante referência ao sentido (normativo)
da norma descrita pela premissa maior - dado que a própria hipótese
legal é já resultado de valorações jurídicas, dado que o seu conceito é
função da intencionalidade normativa do preceito. Ora, se assim é, a
perspicientia nexus não resulta - ou não resulta apenas - de uma
subsunção lógica e a concludência do silogismo não é imposta com a vis

16
nota prea m bu la r

necessitante da evidência plena, mas antes requerem, uma e outra, uma


integração axiológica. Donde procede que a aplicação de uma norma a
um caso concreto resulta de uma combinação de subsunção lógica e
integração axiológica na experiência espiritual vivida do sujeito cognos-
cente - integração esta organizada de molde a fa z e r com que uma
consciência em acto (emocionalmente sensibilizada) intua o valor jurí­
dico e a sua tradução no caso sub judice. Se a perspicientia nexus exige,
neste caso, na fa lta de vínculo lógico absolutam ente necessitante, a
intervenção de um certo elemento dinâmico de um sujeito cognoscente,
e da experiência espiritual deste, o assensus não é aqui «necessitado»,
mas persuadido, não é «coagido», mas, por assim dizer, «seduzido».
O mesmo é dizer, com um eminente filósofo italiano, que «as portas do
espírito só abrem por dentro». A necessitas ou nexus moralis só é aces­
sível a uma consciência em acto.
O Direito, para a sua apreensão e realização, tem de contar com a
intervenção de uma consciência cognoscente capaz de emergir acima do
plano dos factos históricos, para, assim, apreender intencionalidades e
conteúdos espirituais (supra-históricos) intraduzíveis em termos de estru­
turas lógicas rigorosas. Nesta medida, o conhecimento do Direito fa z
apelo à experiência espiritual vivida, ã participação do todo humano do
suppositum cognoscens, e seria absolutamente inacessível a um intelecto
transcendental desincarnado.
Sendo assim, uma análise da norma jurídica do ponto de vista da pura
lógica deixa necessariamente escapar o que a norma tem de especifi-
cadamente jurídico, pois este não pode ser entendido a partir da estru­
tura form al mas apenas a partir do sentido social da normação das situa­
ções de vida - isto é, na perspectiva de uma praxis. Na fórm ula do
perspicaz jusfilósofo brasileiro M ig u e l R e a l e , o juízo lógico-normativo
nada mais é senão o «suporte ideal» da norma jurídica. E o mesmo
jusfilósofo acrescenta: «A lógica jurídico-formal... não envolve, nem podia
envolver, o momento da normatividade, que é o da sua actualização como
conduta, isto é, comportamento do juiz, do administrador, dos indivíduos
e dos grupos a que ela se destina». São ainda do mesmo Autor as seguin­
tes palavras, que fazem os nossas: «A norma jurídica não pode ser
considerada pelo intérprete como um modelo definitivo; é um modelo
sujeito à prudência determ inada pelo conjunto das circunstâncias
fáctico-axiológicas em que se encontra situado o administrador ou o juiz».

17
A JU ST IÇ A E O DIREITO NATURAL

Depreende-se destas palavras que MIGUEL R e a l e opõe à óptica


formalista uma óptica operacional, ordenada a uma praxis (cfr. infra, III,
13). 0 corte form alista da «Teoria Pura» revelaria a estruturação cien­
tífica ideal do D ireito se a técnica normativa fo sse susceptível de
alcançar uma expressão matemática, se a form ulação da lei não fo sse
produto de uma sim ples «pesqu isa operacional» que tem de ser
continuada pela dogmática jurídica. 0 «projecto» normativo, 0 modelo
de decisão, tem de ser manobrado segundo uma técnica e uma estratégia
(prudência) próprias.
Uma vez que 0 legislador endereça o seu esquem a de actuação a
factos humanos imersos num processo histórico aleatório, o entendimento
desse esquema só é possível como plano de uma «pesquisa operacional»
- como mapa estratégico (cfr. infra, III, 23 e 17 ).
Seria errôneo, pois, procurar a valoração normativa (o momento
normatividade) apenas ou prim ariam ente na relação entre uma hipótese
abstracta e uma estatuição igualm ente abstracta. D ecisiva não é a
questão de saber se uma conseqüência jurídica é justa ou adequada para
a hipótese abstracta a que a norma se refere, mas a de saber se a sua
imputação a situações concretas da vida, certas e determinadas, pode
valer como justa. Deste ponto de vista, a hipótese legal não é propria­
mente 0 ponto de partida, mas, como bem acentua ThEODOR H e l l e r , é já
o resultado de valorações jurídicas - e 0 resultado de uma «investigação
operacional» do legislador. Ao jurista compete continuar essa pesquisa
operacional, tomando em conta as variações estratégicas determ inadas
pelas situações concretas da vida.

8 - Também certas noções que o pensamento jurídico correntemente


utiliza nos mostram a insuficiência da perspectiva lógico-formal. Se, na
linguagem jurídica, hão-de ter algum sentido expressões como a de
frau de à lei, lacuna, abuso do direito, ordem pública, etc., será porque o
pensamento ju rídico se organiza segundo m oldes inventivos que
permitem o trânsito para «conclusões», que se não contem analiticamente
num esquema lógico pre-estabelecido, que se não extraem por simples
dedução «linear» (lógico-sistemática) de um esquem a estrutural p re­
fixado. Achada a solução, então sim, é que será possível a sua integração
num esquema estrutural, num sistema - de onde depois poderá ser
retirada por via de lógica conclusão.

18
NOTA PREAMBULAR

Claro que, configurado o Direito a partir do resultado, as noções acima


referidas deixarão de ter sentido: o Direito é insusceptível de fraude, não
hálacunas, o direito (subjectivo) termina onde começa o abuso, etc. Mas
o problema que se põe ao pensamento jurídico é justam ente o de saber
como se processa a própria colheita dos «dados» para a sistematização
lógica - a tarefa que enfrenta a ciência da dogm ática jurídica é a de
conhecer e aplicar o Direito, vendo este tal como ele imediatamente se
nos apresenta antes de coltnatadas as lacunas, de definidas as hipóteses
de frau de à lei ou de abuso do direito, etc.
Uma tal fu n ção da dogmática jurídica é que parece não ir sem uma
integração daquilo que primeiro se apresenta como «dado» na experiên­
cia espiritual do suppositum cognoscens - integração esta que, note-se
de passagem , parece ser necessária não só p a ra a com preensão do
«dado» e para a progressão inventiva (i. é «produtiva») do pensamento
jurídico, como ainda para ajuizar da validade (normativa) de generali­
zações operadas por via indutiva.
Vê-se, pois, que o Direito tem de transcender a sua fórm ula. Na
verdade, se o Direito fosse redutível à sua estrutura form al, como «dado»
- tal como postularia aquele tipo de visualização científica responsável
pela construção da imagem técnica do mundo -, ou seja, se ele fo sse
adequadam ente pensável independentem ente da sua intencionalidade
operatória, seria legítimo encará-lo como objecto ou instrumento de uma
outra intenção que não a sua própria. Mas não terá o Direito de sobre­
por-se às m anipulações dos seus destinatários - tal como tem de se so­
brepor ao aleatório do fluxo dos aconteceres do processo histórico não
tem ele que se erguer para além do alcance das possíveis m anobras
combinatórias dos indivíduos que «tecnicamente» o procuram afeiçoar
aos seus desígnios, se quer reservar-se o p a p el de agente, o lugar de
comando?
Noção reveladora é, a este propósito, a de fraude à lei. Ela só terá
autonomia dogm ática na m edida em que se entenda que da própria
essência normativa do Direito decorre a necessidade de o proteger contra
a inteligente «instrumentalização» das suas normas por parte dos desti­
natários.
Logo - e de acordo com as considerações já atrás fe ita s - a própria
fórm ula (norma) que exprim e o Direito deve ser havida como uma
estrutura instrumental do mesmo Direito - e não como sendo o Direito

19
A JU STIÇA E O DIREITO NATURAL

mesmo. Este não suporta a visualização que o reduza a um papel passivo,


pois que é por definição «agente», enquanto regra m odeladora do
acontecer (cfr. infra, iv, 19).
Também aqueles problem as da dogmática jurídica que, como 0 do
abuso do direito, põem ao vivo a questão do valor dos conceitos jurídicos,
ou da medida em que a realidade jurídica pode ser fixa d a em conceitos,
não tem sentido senão à luz de uma doutrina que distinga o Direito da
f órmula que o exprime (L. H usson) - ou seja uma doutrina que, como a
que adiante (III) será sufragada, considere os conceitos jurídicos como
conceitos de corte operacional, ordenados a uma praxis.
Por último, ocorre lembrar que um certo Direito pode, por vezes, ser
assumido como «facto», como «dado» - como resultado - para efeitos de
aplicação de um outro Direito. Em tal hipótese, está na lógica do exposto
que 0 «direito-facto» perca a sua faculdade de adaptação, a sua capaci­
dade de jogo estratégico. Ora é justamente o que sucede, como bem nota
jochen Schróder, relativamente a um Direito estrangeiro: a adaptação
(expediente jurídico) só pode incidir sobre tal Direito na m edida em que
ele seja manuseado enquanto Direito - e já não naquelas hipóteses em
que ele é visado como facto (como resultado).

III

9 - Estamos perante o seguinte dilema: Por um lado, uma «teoria» que


se subtraia a todo o control científico não pode oferecer à dogmática
jurídica a base gnoseológica necessária para que esta possa ser havida
como ciência - ou possa ter sequer aquele mínimo de segurança e objec-
tividade que é pressuposto de toda a disciplina do pensamento com
qualquer incidência útil. Por outro lado, não se com preende nem tem
senlido útil uma teoria jurídica que não seja orientada para a dogmática,
que se mantenha isolada desta - pois que lhe faltaria o sentido da pro-
blematicidade da realidade a explorar e a teorizar, o contacto com a
realidade prática, indispensável também para lhe conferir o cunho da
autenticidade científica.
Mas não será que as características por nós atribuídas nos números
anteriores ao pensamento jurídico dogmático devam excluir justamente
0 carácter científico deste pensamento? Tudo vai do que se entenda por

20
nota prea m bu la r

científico, tudo depende do conceito que se deva ter de


p en sa m en to
«ciência». Eis a questão que tendem a dilucidar as considerações subse­
quentes.
Por elas se verá, an tes d e tudo, q u e não têm ju s tific a ç ã o as e x ig ê n c ia s
tran scen d entais e id ea lista s-ra cio n a lista s p o sta s p o r K e l s e n ao m éto do
cie n tífic o e q u e a re d u ç ã o ou fo r m a liz a ç ã o c o n c e itu a i a q u e s e m p re
recorre o p en sa m en to c ien tífico não exclui, m as a p e n a s n eutraliza (como
que p ro v isó ria e d ia lec tic a m en te) os asp ecto s co n creto s do seu objecto.

10 - Mostrou-se acima (I, 2) como o nominalismo do espírito moderno


veio a estabelecer um dualismo irredutível do conhecer e do agir, do ser
e do dever-ser. Diremos agora que a ratio desse mesmo espírito moderno,
isolada das suas bases ontológicas, trazia em germe a imagem técnica
do mundo. Como acertadam ente sublinhou M ax SCHELLER, o conceito
corrente de «ciência» nada mais retém do que os elementos dos fe n ô ­
menos naturais relevantes para o domínio técnico do mundo. O lema é:
a ciência fa rá do homem «maitre et possesseur de la nature» (D e s c a r t e s ).
Autores como G eh len , L a n d g r e b e , G r a n g e r , W ie n e r e tantos outros,
todos eles frisam a inseparabilidade do moderno conceito de ciência da
intenção de domínio técnico do mundo. O conhecer e o fazer solidarizam-
s e de tal modo que - como nota W ien e r - só conhecemos bem aquilo de
que conseguimos construir um modelo técnico. A imagem técnica do
mundo torna-se absorvente, a ponto de excluir outras form as de pensa­
mento. Sucede, porém, que, ao estender-se uma tal visualização às ciên­
cias do homem, ela conduz sempre a um resultado niilista, esvaziando
de conteúdo e de sentido todas as proposições que sobre as respectivas
matérias se formulem. Eis o momento em que surgem as antinomias que
hoje dominam o mundo do pensamento.
Esta ratio desontologificada procurou K a n t «neutralizá-la», ou melhor,
frená-la, ao delim itar o seu campo de operações, na Crítica da Razão
Pura. Mas pensadores subsequentes ir-lhe-iam abrir as comportas e é bem
conhecido o séquito de conseqüências negativistas que traria a sua
investida no domínio das ciências humanas. O niilismo europeu, anun­
ciado por N ie t z s c h e , é o legítimo descendente do espírito moderno e
irmão gém eo da visão técnica do mundo - ou seja, daquele esquema
mecânico-formal da natureza que possibilita o seu domínio científico-
-técnico.
$

A JU STIÇA E O DIREITO NATURAL

Hoje, a tin g id o o extrem o lim ite d e um b ec o sem s a íd a , exo rciz a -se d e


quando em v ez o d em ô n io d a té c n ic a - e ssa «abstracção » q u e o h om em
im p la n to u no m u n d o e q u e, c re s c e n d o e m u ltip lic a n d o -s e , a m e a ç a o
p ró p rio h o m em - e este, num a con ju n tu ra d e crise, im p e lid o p e lo esta d o
d e n ec essid a d e, p õ e-se com um a p re m ê n c ia a g u d a o p ro b le m a d e reco n s­
truir a u n id a d e p e r d id a d a s q u estõ es do s e r e d o dever-ser, d o c o n h e c e r
e do agir. M as, com o a c en tu a La n d g r e b e , a su p e ra ç ã o d a c rise p o stu la
um a n ova d e te rm in a ç ã o d o sen tid o do c o n h ecim en to c ie n tífic o e filo s ó ­
fic o e d a s su a s rela ç õ es com o agir.
Uma form a de conhecer dirigida toda ela à dominação da res cognita,
que tem na posse manipuladora do objecto o seu termo perficiente, sem
dúvida que não tem aptidão para apreender obediencialm ente - não
dominativamente - as regras do recto agir. Daí que o genuíno problema
posto pelas regras e princípios orientadores da conduta humana tenha
deixado de ser um problema teorético (La n d g r e b e ). Mas o caso é que, se
se pretende alcançar dessas regras normativas e dos ordenamentos posi­
tivos em que se articulam um conhecimento informado pelo intento de
os observar e aplicar - e não de os «dominar», e manipular - aspira-se
em todo o caso a um conhecimento certo, cientificamente seguro. Ora
como conseguir o certo da ciência sem o necessário do seu suporte
teorético-racionai?
Se a cientificidade do conhecimento científico se prende com o
carácter necessário e absoluto de determinadas form as a priori, e se estas
form as são aquelas que funcionam como alça de mira da dominação
científico-técnica, certo que não poderemos alcançar um conhecimento
científico do normativo. Mas se, como cremos, essas supostas fo rm as
necessárias a priori não têm um carácter absoluto, por se prenderem com
um certo estádio de organização da experiência humana, e a cientifi­
cidade do conhecimento se há-de a ferir antes por um certo modo ou
método de elaborar racionalmente os dados, já será possível o conheci­
mento científico do normativo - sem que seja, todavia, um conhecimento
informado pela intenção de domínio.
Ora, o prim eiro óbice que nos impede de ligar o conhecimento a uma
praxis é o transcendentalismo kantiano. A sua superação deverá consti­
tuir, pois, o prim eiro passo para uma concepção dinamológica da ciên­
cia, e para reintegrar esta form a do conhecer - que o nominalismo e o
racionalismo do espírito moderno hipertrofiaram e hipostasiaram como

22
NOTA PREAM BULAR

única form a do conhecimento válido - na unidade do espírito, reivindi­


cando para este a sua em ergência própria.

1 1 - 0 transcendentalism o de K a n t , propugnador de um a priori


estático, assenta, afinal, sobre este postulado: porque temos uma estru­
tura, porque estamos equipados de uma certa maneira, essa nossa
estrutura, esse nosso equipam ento humano, esconde-nos a realidade
ontológica. Por outras palavras, a autonomia do Ego transcendental em
face do mundo implica um isolamento radical.
Ora não será antes verdade que é justamente essa nossa estrutura ou
equipamento humano que, representando a nossa maneira de entrar em
contacto com a realidade ontológica, longe de nos mascarar essa mesma
realidade, nos relaciona dinamicamente com ela, permitindo-nos a sua
penetração e «manipulação»? Assim o cremos: o homem está em contacto
operatório com o mundo e o seu conhecimento deste é, por isso, fu n da ­
mentalmente de tipo operatório.
Mas, sendo assim, o único a priori adm issível é um a priori náo
estático - como o das categorias kantianas - mas essencialmente dinâ­
mico: constituído pelas intenções espirituais que estão na origem da
inventiva humana e «cuja unidade viva», no dizer de B o ir e l , «forma o Ego
transcendental autêntico». Aderimos, pois, ao ponto de vista do que
alguns chamam um «transcendentalismo aberto», elemento motor e
constituinte de uma «aprendizagem » no decurso da qual ele próprio
evoluciona e se redefine.
Daqui resultará um significado novo - um significado transitivo,
dinâmico - para as categorias científicas. Estas, se não são achadas na
realidade empírica, também não são form as a priori da razão, neces
sárias e im utáveis. Em último termo, as estruturas conceituais nem
mesmo são esquemas do objecto, mas esquemas operatórios, instrumentos
de acção sobre o mundo. Têm, pois, um significado eminentemente
transitivo.
Também para o filó so fo da Crítica o critério de autenticidade do
espírito científico parece residir no conseguimento de uma sistematiza
ção acabada. Hoje, todavia, dá-se como assente que esse elemento - o
carácter rematado e fech ad o de uma sistemática - não é de exigir para
reconhecer a «via segura da ciência». De resto, o movimento evolutivo da
própria ciência, a invenção, nunca se deixa apreender nos quadros
A JU STIÇA E o DIREITO NATURAL

prefixados de um sistema anterior. Se bem que a form a de operar do


pensamento científico consista sempre em opor aos dados informes um
processo de estruturação, deverá dizer-se mesmo que esse movimento se
não autentica como científico senão na medida em que é susceptível de
ablvar numa prática. E as contradições e problemas levantados por esta
obrigam a cada momento a dialectizar e a refazer o sistema.

12 - Mas, se assim é, o que significará a form alização e a sistemati­


zação na ciência?
O nbjecto ou fen ô m e n o d a ex p eriên c ia im e d ia ta ou v u lg a r só se reve la
como v e rd a d e ir o o b jec to c ie n tífic o d e p o is d e a b a n d o n a d o o p la n o d a
*desordem» ou im p u rez a e in d eterm in ação s ig n ific a tiv a s dessa e x p e riê n ­
cia (da reine Mannigfaltigkeit d e q u e f a l a KANT), tran spondo-o p a r a um
outro plano: o d a estru tu ra çã o c ie n tífic a do fe n ô m e n o . É o q u e se p r o ­
cessa m ed ia n te a fo rm a liz a ç ã o .
Mas, o que se pretende com esta «mediação científica», ao voltar
costas às significações vivenciais imediatas da experiência vulgar?
Com a form alização pretende-se: transcender o plano do empirismo
vulgar, neutralizando a plurissignificatividade da vivência imediata, a
fim de obter esquematizações que permitam descrever encadeamentos
controláveis a um certo nível da experiência; transpor o conhecimento
dos fenômenos para uma linguagem rigorosa, explicitamente formulada,
capaz de facilitar a perspicientia nexus no discurso científico e a manip­
ulação mental dos dados - preparar um modelo dos fenômenos que plan-
ificará mais eficazmente uma prática concertada, organizada, racional.
Este processo de estruturação científica encontra-se, pois, ligado a uma
prática - pelo que os conceitos surgem, em derradeira análise, mais como
operadores estratégicos do que como explicações especulativas. São eles
concebidos e elaborados no contexto de uma praxis que os põe à prova
e exige constantemente a sua revisão.
Daqui parece resultar, como já dissemos, que a estrutura científica, em
último termo, não é tanto um esquema do objecto como antes um meio
de acção. O pensamento form al, a formalização, desempenha o papel,
não de um ideal do conhecimento, mas - como diz G r a n g e r - de um
instrumento dialéctico de oposição provisória ao «dado». Em último
termo, pois, as estruturas-conceitos da ciência têm um carácter opera-
tório (ou transitivo).
nota prea m bu la r

13 - Anote-se ainda que, desde o começo do presente século, os


epistemálogos se têm visto na necessidade de sublinhar a pluralidade de
níveis form ais do pensamento científico.
Há d iverso s p la n o s d e corte do o bjecto c ie n tífic o e en tre e le s im p o rta
d istin g u ir, com G r a n g e r , estes d o is : o «corte fo r m a lis ta » e o « corte
operacional». O p rim eiro , com o nota o m esm o Autor, v isa constru ir d e um
só g o lp e sistem a s a b stra c to s q u e estu d a p o r si m esm o s - as su a s estru ­
turas a p a re c e m im e d ia ta m e n te à raz ão com o e sq u e m a s do o bjecto e só
um a reflexã o teo rética , f e it a seg u n d o um outro p la n o d e corte, as reco ­
nhece com o instrum entos d e acção ao serviço d e u m a praxis. E este o tipo
de fo r m a liz a ç ã o d a s c iê n c ia s n atu rais e m a tem á tica s.
O «corte operacional» revela-se naqueles sectores (ciências humanas)
em que a form alização é directamente subordinada a uma perspectiva
de acção. As suas estruturas surgem directa e im ediatam ente como
factores estratégicos e propõem-se esquematizar um modelo de compor­
tamento cujo desenvolvimento é uma estratégia lograda, coroamento de
uma «aprendizagem».
Num e noutro caso está presente o pensamento form al, num e noutro
caso este desem penha o pa pel de instrumento dialéctico de oposição
provisória ao «dado», como elemento potencializador do saber.
E, na verdade, o problema clássico da «definição» pode ser encarado
de duas perspectivas diferentes: num conspecto axiomático e na perspec­
tiva de uma praxis. No primeiro cáso, o conceito definido vale im ediata­
mente e de per si como instrumento de trabalho. No segundo caso, ele
apenas vale como portador de um ponto de vista estratégico, como
definidor de uma atitude. Quer isto dizer que, neste segundo caso, a
objectividade dos conceitos se encontra mais directamente ligada e con­
dicionada á resultância do seu jogo estratégico; ao passo que, no primeiro
caso, em que há uma mediação maior, ela começa antes por ser condi­
cionada pela sua articulação com o resto do sistema (na perspectiva de
uma axiomática geral), razão porque é mais «rigorosamente» controlável.
Mas é de notar que, em último termo, também nas ciências exactas o
próprio control axiomático é insuficiente, pelo que também aí se impõe,
ao fim e ao cabo, um control efectuado a partir de uma praxis.
Tendo em mente o que atrás escrevemos (cfr. 11, j), observe-se que
qualquer dos cortes referidos pode ser aplicado às estruturas reveladas pelo
outro. Mas, em última linha - repetimos -, a autenticidade científica das

25
|!i|! I!!l|j||!lll!!!l!n

A JUSTIÇA E o DIREITO NATURAL


no ta p r e a m b u la r

form as há-de aferir-se pelo confronto com uma praxis humana em que o
Primo conspectu, pois, a redução axiomática parece mais não fa z e r
«suposto cognoscente» intervém dinamicamente, pelo que a perspectiva teo-
do que d ar um ãcabam ento fo rm al a uma ciência já criada, represen­
rética verdadeira e própria - e única que logra escapar ao idealismo hispos-
tando uma fa s e estéril do conhecimento. Todavia, se é verdade que a
tasiadór das form as - há-de ser a perspectiva que se ordena a essa praxis.
axiom atização visa constituir sistem as de pensam ento totalmente
dominados e fechados, importa não esquecer o seu aspecto dinâmico.
14 - Isto serve para mostrar que, em último termo, a m ecanicidade
Desde logo, ela im pede o espírito de repousar nas noções do senso
do discurso das ciências exactas, a concludência necessitante que,
comum, incitando-o à busca de um conhecimento activo, combinatório,
nesse discurso, afasta toda a participação dinam ica do suppositum
aberto. Ela m arca o perfeito domínio exercido pelo pensamento fo rm al
cognoscens e cria a evidência plena, é provisória, relativa a um certo
sobre um sector da objectividade, na m edida em que o pensamento só
momento ou estádio da organização da praxis, já que aquilo que nos
possui plenamente o seu objecto numa axiomática fechada. Mas, prestes
poderiam p a recer estruturas transcendentais a priori são criação do
a atingir este «ideal», dá-se conta da sua insuficiência e de que a reali­
espírito em contacto operatório com a realidade através de uma praxis
dade lhe escapará se aquela axiomática se não define por form a a de­
que historicamente evoluciona. Se aquele mesmo tipo de evidência se não
quada a novas estruturas e problem áticas. Tem, pois, também um
encontra nas ciências humanas, se nestas se requer a dinâm ica inter­
carácter heurístico, na m edida em que perm ite por novos problem as e
venção de uma consciência em acto para colher a «evidência», isso
determinar rigorosamente as aptidões operatórias das estruturas axioma-
significa tão-só que, aqui, o momento dinâmico do espírito permaneceu
tizadas. De sorte que a tendência axiomatizante, longe de ser um factor
presente, não fo i neutralizado pela formalização, que a própria consciên­
de im obilização do saber, deve antes ser havida como um dos pólos
cia cognoscente se situa ao nível do horizonte da consciência form ali-
motores de uma dialéctica do progresso científico.
zante, como factor permanente e vivo da sua dialectização - que a con­
Nas ciências humanas a axiomatização apenas pode ter um carácter
sciência do suppositum cognoscens está, por assim dizer, em curto­
local e parcelar. A s axiom atizações locais parecem ser a í as únicas
-circuito. Nisto reside a origin alidade epistem ológica das ciências
eficazes. Neste terreno, a axiomatização não passa.de um tenteio prévio
humanas —entre as quais se situa a jurisprudência —, e d a í procede
para a preparação de um campo operatório. Não deixa a axiomática,
também uma tal ou qual am bigüidade das mesmas ciências, em que a
porem, de tam bém aqui realizar as suas fu n çõ es: experim entação
form alização alterna constantemente com o recurso, em regra implícito,
a uma imaginação evocadora do concreto. explícita de variações eidéticas, operando sobre noções informes de que
destaca os elementos mínimos de coerência e eficácia (Granger), fo rn e
cimento de um quadro de referências indispensável a toda a tentativa de
15 - Complementar da estruturação do fenôm eno é a axiomatização
planificação da conduta, acesso a um conhecim ento activo e com bi
das estruturas. Axiomatizar é pôr os princípios capazes de constituírem
notório pela eliminação do impreciso das noções da experiência ingênua
uma base coerente e suficiente de dedução para todas as proposições de
do senso comum e pela neutralização dos aspectos concretos, redundan
uma teoria - de tal sorte que toda a proposição correctamente form ulada
tes e «acidentais» do objecto.
possa ser demonstrável ou refutável a partir dos axiomas. A axiomatiza­
A x io m a tiz a r é, p o is , tra n sp o r p a r a u m a lin g u a g e m a d e q u a d a e rigo
ção é também um modo de definição rigorosa dos conceitos e cria um
rosa u m a estru tu ra la te n te e d a r u m a fo r m a d e e q u ilíb r io p ro v isó rio aos
vínculo argumentativo unívoco, isto é, um sistema dedutivo. Ela elimina
c o n c eito s - in te g ra n d o -o s num s is te m a c o e re n te d e c o m b in a ç õ e s ou de
os conteúdos incontroláveis das noções de origem empírica, neutraliza
o p o siçõ es. S u b lin h e-se, to d a via, o c a rá c te r provisório d e s s e e q u ilíb rio , ja
os aspectos concretos do objecto, organiza uma estruturação explícita
q u e um p r o b le m a novo, se b e m q u e lig a d o a um c a m p o d e estru tu ra s
cujos elementos são abstractos e perm ite a passagem de uma prática
p r é v ia s q u e o «m o tiv a m » e em fu n ç ã o d o q u a l e le se fo rm u la , su sc ita a
vulgar e imediata a uma prática mediata, elaborada.
e la b o ra ç ã o d e n o va s e stru tu ra s e a r e d e fin iç ã o d o sistem a a n te rio r - ao
26
27
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

mesmo tempo que a modificação do campo estrutural altera a própria


enunciação da problemática. É que a inventiva humana não é compatível
com a axiornatização estática.

16 - Tendem as considerações anteriores a revelar as funções e os


limites da form alização e da axiornatização na ciência e a deixar
entrever em que consiste a «cientificidade» dos processos de pensamento.
Através delas mostrámos, em suma, que:
íi) a concepção da ciência como um sistema «fechado» de categorias
fixas e proposições rigorosamente axiom atizáveis não passa de uma
hlpuslasiação idealista de uma das etapas, ou antes, de um dos pólos, do
pensamento científico;
1>) o processo científico se caracteriza sempre pela redução concei­
tuai ou formalização, que consiste em fix a r e abstrair do dado aquilo que
avulta como relevante segundo uma certa intenção mental e um deter­
minado plano de corte;
c) os planos de form alização ou de corte são múltiplos, cabendo
referir sobretudo um corte formalista e um corte operacional («conscien­
temente estratégico»);
d) em qualquer dos casos, as form as ou estruturas conceituais da
ciência são sempre, em última análise, antes meios de acção que esque­
mas do objecto com valor especulativo;
e) a redução científica não exclui toda e qualquer ligação com os
aspectos concretos da realidade, mas apenas neutraliza (provisoria­
mente) esses aspectos.
Donde, em resumo, que uma disciplina deva ser definida como cientí­
fica pelo seu método, pela sua visualização ou intencionalidade e pelo
seu objecto. Saber metodologicamente rigoroso, isto é, penetrado pelo
espírito de control, a ciência é, quanto ã sua visualização, uma construção
de modelos coerentes e eficazes do fenômeno (G r a n g e r ), sendo o seu
objecto necessariamente constituído através da oposição de uma estru­
tura a um conteúdo vivenciado da experiência do sujeito cognoscente.
Fica-nos, pois, que o movimento mesmo do pensamento científico se
traduz sempre e necessariamente em opor um procedimento de estru­
turação, um esquema categorial, aos dados da experiência im ediata
- sendo que a «perficiência» desse esquema, a sistematização, útil e
necessária embora para precisar as possibilidades oferecidas pelas

28
NOTA PREAMBULAR

estruturas m anipuladas, não passa todavia de codificação de uma


ciência já constituída, que deixa escapar sempre uma fa c e da realidade
inexpressável através das suas variáveis operatórias e nos encobre a visão
das técnicas de pensamento instaurativas da mesma ciência: do seu
momento genuinam ente produtivo. Mas é neste momento verdadeira­
mente fecundo, instaurativo, que reside quanto a nós a mais decisiva
característica da cientificidade - enquanto «aprendizagem», enquanto
saber operatório de uma inteligência que «domina» um sector particular
da realidade por virtude da experiência «mental» adquirida na freqüente
manipulação das estruturas desse sector, saber esse que a habilita a
mobilizar de pronto os esquemas operatórios em que se desenham os
modos de acesso metódico e eficaz à solução de um problema, que a
habilita a inventariar num relance as diferentes vias estratégicas para
abordar um problem a novo e as potencialidades operacionais das
estruturas de pensamento já criadas. O pensar problem aticamente é,
decerto, comum a todas as ciências (cfr. todavia n.a 14, in fine/
Ora parece não poder negar-se que a dogmática jurídica, seja como
ciência interpretativa, sistemática ou com parativa, satisfaz a estes
requisitos. Ninguém duvidará, na verdade, do carácter eminentemente
categorial do pensamento jurídico, e a própria experiência nos convence
a todos do valor formativo, «especializante», potencializador do acerto,
da aprendizagem do Direito e, particularmente, da investigação aprofun­
dada desta ou daquela disciplina jurídica.
Só que, para evitar equívocos obscurecedores, importa ainda determi­
nar o verdadeiro plano de objectividade científica da jurisprudência
dogmática.

17 - Qual o tipo de objectividade da dogmática jurídica? Referimo-


-nos já aos dois pólos opostos, às duas perspectivas que nos permitem
operar a redução científica, que nos permitem definir estruturas objec-
tivas que funcionam como instrumentos dialécticos de uma oposição
provisória ao dado: o da formalização propriamente dita e o da pesquisa
operacional. O corte estrutural operado pela ciência jurídica dogmática
é um corte operacional.
Mas se é assim, se as estruturas conceptuais com que opera a teoria
ou a ciência dogmática do Direito são estruturas ou conceitos operacio­
nais (funcionais) de per si, o plano de objectivação verdadeiro e próprio
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL

de qualquer teoria, proposição ou conceito jurídico não é o axiomático-


-sistemático, não é o da projecção lógica dos mesmos conceitos, mas um
plano de estratégia óptima (de adequação funcional) - ao qual hão-de ser
subordinadas as próprias axiomáticas locais. A objectividade, o valor
objectivo dos conceitos e juízos, resulta aqui da sua adequação a um
modelo de estratégia óptima.
Dito por outras palavras: na óptica de um plano de acção, os conceitos
ou estruturas que dão corpo a esse plano são instrumentais em relação
ao fim a atingir - hão-de ser interpretados e valorados em função do fim
proposto. Ora, sendo assim, a sua objectiva validade não há-de ser
definida no plano da axiomatização, mas - em último termo, pelo menos
no plano de adequação funcional.
A esta luz, qual será a relação entre a «Teoria Pura do Direito» e a
dogmática jurídica? Cremos que a passagem de uma teoria geral do
Direito (como a «Teoria Pura» de Kelsen) a uma dogmática jurídica
eqüivale à passagem da noção de s i s t e m a - isto é, de um esquema
visando uma descrição universal e homogênea, obtida através de um
corte form alista - á noção de m o d e l o - isto é, - como diz G r a n g e r - de
esquema de um complexo relativamente autônomo em que são distin-
guidosfactores estratégicos, segundo um corte operacional. Quanto a nós,
a «Teoria Pura do Direito», servindo-se do corte «formalista», visa
construir de um golpe um sistema abstracto que estuda por si mesmo.
A form alização da dogmática, pelo contrário, é explicitamente ordena­
da a uma perspectiva de acção (investigação operacional). A primeira,
mais especulativa, não pode compreender a interpretação senão meca­
nicamente (ela não é uma ciência i n t e r p r e t a t i v a , como a dogmática), e
todas as suas construções se referem a um sistema jurídico configurado
por maneira a que possa ser dada como resolvida toda a problemática
da interpretação e aplicação do Direito. O seu nível de form alização não
permite captar tais problemas.
Observe-se, contudo, que uma a x i o m á t i c a g e r a l na teoria jurídica - no
estilo da de Kelsen - apenas exerce uma função delimitadora e extrínseca
- o m n is d e te r m in a tio e st n e g a tio competindo á dogmática jurídica
elaborar conceitos com aptidão operatória, de valor positivo, isto é, que
sejam instrumentos aptos ã realização de uma intencionalidade espiri-
tual-normativa. Razão assiste pois a ERICH Kaufmann quando afirma que
a genuína e positiva tarefa da jurisprudência só começa depois do

30
nota prea m bu la r

trabalho de purificação de Kelsen - que este desconheceu essa tarefa em


razão das exageradas exigências transcendentais por ele postas ao
método. Isto explica a infecundidade da sua teoria no plano da prática
jurisprudencial.
Se encararmos a dogmática jurídica à luz de uma teoria das decisões,
à luz da adaptação das reacções de um agente a um fluxo de eventos
aleatórios, como teoria de uma estratégia óptima, teremos que procurar
a objectividade dos juízos e dos conceitos jurídicos noutro plano que não
no da definição axiomática.

18 - Cremos que das considerações precedentes já decorre a solução


para o seguinte problema.
O procedimento de redução conceituai - coenvolvendo uma sim plifi­
cação, pela elim inação do redundante e, portanto, uma negação dos
aspectos «concretos» do objecto - é característica essencial de qualquer
ciência. A perspectiva sob a qual esta redução ou simplificação se opera
depende, em cada caso, do fim ou escopo visado pela respectiva ciência.
Ora a ciência jurídica dogmática propõe-se como fim descortinar e
realizar o juridicam ente vinculante, o «justo». No domínio jurídico,
portanto, a redução e simplificação científicas subordinam-se ã questão
de saber em que m edida elas poderão servir à revelação e actuação do
«justo».
São possíveis, conforme observa Hans Schróder, duas atitudes fu n d a ­
mentais:
a) Pode considerar-se que o «justo» é definível sem ter em conta as
circunstâncias históricas concretas - que uma conduta pode ser qualifi­
cada em abstracto como justa ou injusta. Para esta posição, a redução
cientifica no Direito não levanta problemas. É a atitude característica do
jusnaturalismo racionalista. Prepondera aqui o momento estático, pre­
ponderância esta revelada na imobilidade de certas posições, como a dos
chamados «direitos humanos inalienáveis». Tal estilo jusracionalista de
pensamento não é bem acolhido nos dias de hoje.
b) Pode, por outro lado, pensar-se - e é esta a posição correcta - quo
o «justo» apenas se nos revela precisamente através de uma concretiza
ção o mais completa possível - ou seja, que a determinação do hic el
nunc juridicam ente devido pressupõe uma plena concretização da
situação e, portanto, exige uma consideração dos elementos situacionais

31

« ttt H J iiit iiis iiiH iiiim iiin t ijm im m ii ........


A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

concretos. Para esta doutrina é que a redução operada pela ciência


jurídica se torna em problema.
Com efeito, o carácter abstracto da lei e dos conceitos jurídico-cien-
tífícos traduz em larga m edida ama negação da situação histórica
concreta - que por eles fo i reduzida, simplificada, estabilizada. Donde
que pareça impor-se a conclusão: o carácter científico da dogmática
jurídica, precisam ente porque nega e se opõe ã concretização, parece
tornar-lhe impossível a consecução do próprio escopo.
Sabemos agora como esta aparente contradição se resolve através da
consideração de que as estruturas conceituais da ciência jurídica têm um
carácter eminentemente funcional, como simples operadores estratégicos,
de que elas só «provisória e dialecticamente» se opõem ao concreto para
orientar a actuação de uma intenção normativa no próprio plano
concreto das situações históricas.
Um dos resultados mais significativos da doutrina que temos vindo a
expor está, quanto a nós, em ela nos permitir traçar, aclarar e fu n dar
epistemologicarnente a trajectória de uma certa via média entre a juris­
prudência conceitualista e a teoria da «livre descoberta do Direito» - em
explicar e justificar o trânsito da unidade sistemática ã unidade funcio­
nal do Direito de que fala, por exemplo, SlORAT, evitando ao mesmo tempo
a queda no subjectivismo e na insegurança da freie Rechtsfindung. Aí
se localiza, no estádio actual da evolução da Teoria do Direito, o nó
górdio da epistemologia jurídica. Convém frisar, porém, que o exposto
não passa de um primeiro apontamento, uma primeira tentativa - ainda
bastante imatura e informe - de acesso ao problema: o pouco que fomos
capazes de condensar num curto prefácio.

IV

19 - K e l s e n , porém, só reconhece uma justiça formal. Crê que só


possível determ inar (cognoscitivamentej o juridicam ente devido em
abstracto, que o dever-ser ou vínculo jurídico decorre do encadeamento
lógico dos conceitos e das normas do sistema.
Mas se é verdade, como o próprio Kelsen afirma, que na base de todo
o ordenamento jurídico positivo está uma certa m undividência - uma
certa «imagem do mundo e da vida» que se quer ver realizada - não

32
nota pr ea m bu la r

teremos de adm itir que o significado mesmo, a razão de ser de todo e


qualquer preceito jurídico há-de ser referida a essa mundividência?
A realização das finalidades ético-políticas do legislador - a concreti­
zação da mundividência do sistema - tem de processar-se num itinerário
histórico de curso imprevisível. Ora, sendo aleatório o fluxo dos aconte-
ceres em que essa «imagem do mundo» se pretende inserir, os comandos
legais, como normas de conduta, nada mais são além de elementos
operacionais de uma estratégia dirigida à realização dessa imagem do
mundo e, portanto, têm um valor eminentemente funcional (cfr. supra,
n, 6). Donde que o próprio ordenamento jurídico positivo com os seus
preceitos deva ser entendido como uma «pesquisa operacional» em que
o legislador visa realizar certa mundividência em certa época histórica -
e essa pesquisa operacional tem de ser continuada, segundo um
vector de concretização e adaptação, pela jurisprudência dogmática
('supra, II, y).
Resulta patente, pois, que o pensamento jurídico dogmático, ao mes­
mo tempo que está juridicamente vinculado aos «dogmas» que decorrem
da mundividência do sistema, está dialecticamente aberto às particula­
ridades das situações e conjunturas do processo histórico concreto. Logo,
não há uma vinculação ou prefixação rigorosa das soluções em termos
axiomático-dedutivos.
A posição de Kelsen, é, pois, paralela da do jusracionalismo - só que
tem na base uma razão teorético-gnoseológica: não é possível saltar para
fora do plano geral e abstracto da redução científica (e da formulação
das normas) sem abandonar, do mesmo passo, o terreno da ciência - a
qual só pode ter por objecto aquilo que se revela como denknotwendig:
como form a necessária do pensamento. Por essa razão, K e l s e n , aplicando
as categorias e esquemas da razão teorética num domínio da razão
prática, deixa escapar o verdadeiro sentido do normativo. Como todo o
positivismo, também o normativismo se dirige à dominação técnica e não
à compreensão do Direito - conforme nota Esser (cfr. supra, //, 8 e in, 10).
Decorre das considerações anteriores que uma tal posição é informada
e condicionada por uma concepção idealista e transcendental da ciência,
a qual isola o processo científico da praxis, hipostasiando as suas formas.

20 - Somos, portanto, chegados a esta conclusão: a teoria jurídica de


Kelsen, bem como a sua posição perante o problem a dá Justiça e do

33
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

D ireito N a tu ra l, é c o n d ic io n a d a p o r um c e rto c o n c e ito d e « c iê n c ia » :


a q u ele q u é resu lta d a re d u ç ã o tra n sc en d e n ta l d e K a n t e que, se g u n d o o
p o sitivism o, trad u z a ú n ica fo r m a d e co n h ecim en to válido. D o n d e q u e a
a p re c ia ç ã o d a teo ria kelsen ia n a , e com e la a so lu çã o d a q u estã o d e se
atribu ir oü não a trib u ir carácter d e « c ien tificid ad e» ã do gm ática ju ríd ica ,
d e v a m s e r s o lid á ria s d e u m a n o va d e te r m in a ç ã o do p ro b le m a ep iste-
m ológico d a s ciên cias.
Todavia, não nos parece inteiramente rigoroso alegar contra a posição
kelseniana - como fa z Larenz - que a ciência jurídica, além da função
cognoscitiva, tem também por tarefa cooperar na complementação e
criação do Direito, mesmo em hipóteses em que se tenha de abstrair de
uma fundamentação cognoscitiva (erkenntnismássig) das suas «deci­
sões» - pois que então, e nessa medida, não se estaria em fa c e de uma
«ciência», como bem acentua Kelsen. É que a ciência dogmática é, por
definição, uma pesquisa operacional vinculada a certos princípios
fundamentais - dogmas - derivados de uma visão global do mundo e do
homem - e a «justiça» que, segundo Larenz, a jurisprudência dogmática,
enquanto «ciência», se propõe também por missão «realizar», não poderá
deixar de ser uma justiça definida nos quadros daquela mundividência
que subjaz ao ordenamento positivo.
Parece, pois, que uma jurisprudência «científica» nos não permitirá
abandonar o terreno de um certo positivismo - embora entendido este em
termos muito mais amplos e maleáveis que o positivism o clássico. Só
através de uma perspectiva teleológica transcendente o homem se radica
no plano ético-existencial - funda radicalmente as opções axiológicas que
informam a sua conduta. Mas esta perspectiva parece subtraír-se sempre,
em último termo, ã form alização científica e ser domínio reservado à
especulação filosófica.
Contudo, sempre poderá também dizer-se - se é que vale aqui substi­
tuir uma explicação por uma metáfora - que o legislador não pode pôr
uma norma só que seja sem do mesmo passo criar o seu «campo de
harmônicos» semasiológicos, que, como ecos múltiplos, «respondem»
àquele facto normativo por fo rça da virtualidade referenciadora ou
reenviante de tudo o que é produto do espírito. Todos esses ecos ou
harmônicos não podem ser havidos como criação «directa» do próprio
legislador, pois emergem antes da exploração do fundamento último do
acto normativo, produzem-se, por assim dizer, na substância da luz que

34
nota prea m bu la r

desse fundam ento brota. Diríamos que a solução correcta para a inte­
gração da lei resulta da soma total e convergente do jogo dos reflexos das
valorações legais - e um tal resultado ou solução se, por um lado, pode
ser ainda considerado como influído pelas normas postas, por outro lado,
é produto da estrutura fundam ental e fundante do meio reflector: do
Direito puro e simples. É de recordar aqui a opinião de M e s s n e r segun­
do a qual os princípios suprapositivos a que o jurista se vê forçado a
recorrer em caso de lacuna não são defacto transcendentes mas imanen-
tes ao Direito - a todo o Direito.
É como se o Direito positivo, dirigido ã realização de certa mundi
vidência no processo histórico concreto através de actuaçôes humanas
informadas por opções axiológicas, não pudesse ele próprio subtrair-se
a certas regras estratégicas que o condicionam e o limitam - como se
uma certa «justiça» lhe fo sse necessariamente imanente para ele poder
ter «vigência» e ser Direito. Cabe aqui aceitar o ponto de vista de WELZEI.
quando afirma que há um limite imanente ao Direito, de carácter abso­
luto, e conclui: «o Direito, por sua própria essência, só pode ser recto -
mesmo o Direito positivo».
É essa mesma circunstância de o Direito positivo se ter de comportar,
na realização da mundividência que o motiva, como «investigação opera­
cional», como esquema de actuação estratégica destinada a inserir-se
eficazmente num processo histórico concreto de curso aleatório, que
explica a chamada «unidade objectiva» (ou axiológica) do ordenamento
jurídico - unidade esta que não é a unidade lógicoform al do sistema
conceitual-abstracto, mas aquela unidade «dinâmica» que se revela ao
pensamento jurídico enquanto este olha o ordenamento na perspectiva
de uma praxis bem como o não poder ser o Direito positivo de uma
época um sistema fechado sobre si e isento de lacunas, mas um sistema
sempre aberto a novas significações, lacunoso e necessitado de complc
mentação.

21 - Mas, aceites estas premissas, afastado o conceito de «ciência» <lc


que parte Kelsen, os problem as por ele debatidos nas páginas desta obra
terão de ser vistos a uma luz diferente.
Não vamos entrar aqui em pormenores. Consideraremos apenas
brevemente e a título de exemplo o princípio da igualdade, enquanto
princípio de justiça.
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL

Está-se perante o velho problem a de conciliar as noções de justiça


form al e justiça material. Claro que, como acentua H a n s S c h r õ d e r , a
«igualdade» de duas situações, que postula, consequentemente, uma
Icjualdade de tratamento, pressupõe um supremo critério normativo
comüm. Mas esse supremo critério normativo não pode ser representado
por uma «estrutura form al» - a igualdade em causa não pode traduzir-
,?(’ pela equivalência de conceitos num sistema axiomatizado. Como bem
sublinha o mesmo S c h r õ d e r , a estrutura comum que fu n da a igualdade
dt> duas situações há-de ser uma estrutura capaz de concretizar-se em
paralelo com a concretização da situação de facto. Mas uma estrutura
com tal aptidão é, por essência, uma estrutura estratégica, uma estrutura
tlt> corte operacional - capaz de reagir, «adaptando-se», ao fluxo de even­
tos aleatórios. Logo, a igualdade «material» não é uma igualdade «forma-
listlcamente» definível, mas uma igualdade de função, uma igualdade
orgânica, uma igualdade só definível no conspecto de um fim a realizar -
uma equivalência funcional e não estrutural.
Analisemos o problema mais de perto.
Nenhuma dúvida que a ideia de «igualdade» constitui um dos essen-
tialia da ideia de «justiça». É, pois, uma característica essencial de todo
o furídico.
Ora, o que desde logo cumpre observar é que o carácter científico da
jurisprudência e o método legislativo conduzem necessariamente a um
tratamento igualitário. A melhor garantia do princípio da igualdade,
neste sentido, residirá precisam ente em mantermo-nos rigorosamente
fiéis aos quadros científico- metodológicos.
Este, porém, é o aspecto negativo do princípio da igualdade de trata­
mento: a redução e simplificação científicas, bem como a generalidade
da lei, implicam a eliminação dos momentos concretos da situação - o
que se traduz em garantir uma igualdade meramente form al.
Mas um tratamento igual pode também ser injusto - ofendendo a
igualdade material. Na verdade, é perfeitamente possível que, em deter­
minados casos, o desprezo de certos elementos situacionais não conduza
a um tratamento recto, a um tratamento materialmente justo.
Temos, pois, uma igualdade formal e uma igualdade material - uma
justiça formal e uma justiça material.
A igualdade form al é, por definição, uma igualdade que decorre de
normas ou proposições normativas gerais, expressas através de concei­

36
nota pr ea m b u la r

tos. Como sabemos, os conceitos jurídicos têm um valor meramente


funcional, enquanto operadores estratégicos, pelo que a sua validade se
subordina à realização de um esquema mundividencial (um ideal norma­
tivo) nas situações históricas concretas. Ora, se uma certa estratégia não
resulta, há que mudar os seus conceitos-operadores.
E não se diga que um tal proceder é incientífico, pois, como vimos,
toda e qualquer ciência só pode manter-se na m edida em que consinta
uma abertura dialéctica no seu sistema, por modo a facultar uma
adultação «estratégica» às exigências da praxis.
Logo, a igualdade normativa não é o mesmo que a igualdade form al
- como pretende Kelsen. Em último termo, trata-sé de uma «igualdade»
axiológica - produto de uma intencionalidade espiritual e não de uma
estrutura lógica.
Também a propósito deste tema se revela, pois, a insuficiência do
formalismo kelseniano. Assim como para a Teoria Pura o conceito de
«validade» se torna num conceito meramente form al, assim também o de
«igualdade». A igualdade jurídica é - diz Kelsen - a lógica conseqüência
da generalidade da norma.
Mas não será isto inverter o mundo jurídico - definindo o principal
a partir do instrumental?
Se entendermos que os conceitos da ciência jurídica são sim ples
instrumentos ao serviço da descoberta e da realização de uma intencio­
nalidade mundividencial - e o próprio Kelsen afirma, como sabemos, que
por detrás de todo o ordenamento jurídico está uma certa m undivi­
dência -, teremos de adm itir que, em último termo, a igualdade ju rí­
dica normativa - isto é, verdadeira ou materialmente jurídica - há de
substanciar-se e relevar apenas na dinâmica da inserção dessa intencio­
nalidade no processo histórico concreto; há-de ser essa intencionalidade
normativa na sua projecção dinâm ica - isto é, na sua projecção num
esquema estratégico de realização - que nos fornecerá o termo de com­
paração com referência ao qual poderemos considerar duas situações
como «iguais». A igualdade material revela-se sempre como produto de
uma integração orgânica das situações de vida na unidade de intencio­
nalidade normativa de um ordenamento.

22 - O nexus moralis só se ata e se discerne na perspectiva teleo­


lógica. E, com efeito, só nesta perspectiva o homem se radica ético-
A j u s t i ç a e o d ir e it o n a t u r a l

-existencialmente - pelo que também os valores hão-de surgir e avultar


apenas à luz de uma teleologia, já que eles falam directamente ao nosso
destino pessoal. Logo, a questão de saber se dispomos de métodos intelec­
tualmente válidos para abordar o problem a da estim ativa jurídica
prende-se com a questão de saber se o homem é capaz de apreender o
natural desenvolvimento de uma form a em direcção ao seu termo perfi-
ciente - à sua plenitude de actualização. Á adm issibilidade de uma tal
aptidão cognoscitiva supõe, porém, antes de tudo, a superação do «deter­
minismo gnoseológico de fonte kantiana» (E. CORREIA) pela dinamização
e dialectização da epistemologia das ciências.
Ora todos convêm em que é esse determinismo gnoseológico transcen-
dentalista que está na raiz do agnosticismo axiológico de Kelsen. É ainda
ele que o im pede de visualizar o chamado Direito Natural no seu
momento instaurativo, dinâmico, para o conceber apenas racionalistica-
mente na sua estática transcensão ao Direito Positivo - o que conduz
Kelsen necessariamente a afirmar o carácter dualista das por ele chama­
das doutrinas idealistas do Direito e a tese de que, pela aceitação de uma
doutrina jusnaturalista, se conclui por recusar toda a validade ao Direito
Positivo enquanto tal.

23 - Também não estão por certo isentas de reparos outras análises


feitas por Kelsen neste pequeno mas luminosíssimo trabalho. Mas não
vamos ocupar-nos agora de tais reparos. Apenas referiremos dois ou três
pontos. De uma m aneira geral, parece-nos cabida a apreciação de
R e c a s é n s , segundo a qual a crítica fe ita pelo nosso Autor a algumas das
principais doutrinas da justiça «mostra a habitual agudeza e brilhan­
tismo de Kelsen; mas está determ inada pelos seus prejuízos, os quais
operam como uma espécie de rede que, dos pensamentos criticados, deixa
passar somente aquelas partes em que é fácil cravar objecções, sobretu­
do quando essas partes fica m desm em bradas do seu contexto total».
Quanto ao chamado silogismo normativo, já atrás (ü, y) expendemos
a nossa opinião.
Pelo que respeita ã crítica feita à doutrina do mesotes, lembraremos
apenas que o Autor simplifica demasiado esta doutrina aristotélica, pois
parece esquecer que, para A r i s t ó t e l e s , a virtude não era só um meio
termo entre dois vícios, mas era ainda e antes do mais um akrotes, um
acúmen.

38
nota prea m bu la r

R e la tiv a m e n te à a n á lis e c rític a a q u e s u b m e te o co n ceito d e ra z ã o


p rá tica em K a n t , crem o s q u e e la n ão é c o n fo rm e com a in te rp re ta ç ã o
tradicio n a l d a d o u trin a kan tian a nem com o eth os d esta m esm a d o u trin a
- se bem q u e nos p a r e ç a q u e o p ró p rio K a n t d e v e s e r re sp o n sa b iliz a d o
p e la c rític a q u e K elsen a g o ra lh e fa z .
Mas estas e outras análises feitas por Kelsen no presente trabalho são
o produto daquele mesmo poderoso e luminoso pensamento que construiu
o mais vasto e genial monumento de teoria jurídica do nosso século: a
«Teoria Pura do Direito» - e ninguém poderá ter a pretensão de avançar
nos domínios sobre que versam tais análises sem paciente e laboriosa­
mente se debater com elas.
Quanto a nós, o grande feito e mérito da teoria normativista de Kelsen
não está tanto em ela ter fornecido ao positivismo jurídico a sua fu n d a ­
mentação epistemológica, superando o psicologismo e o sociologismo de
que enfermava, como antes em ter definitivamente contribuído, por essa
via, para o amadurecimento de um erro, transformando-o de erro indis­
tintamente formulado, ambíguo, em erro refutável - em ter conduzido o
clássico positivismo jurídico, com inteiro rigor lógico, àquela sua extrema
conseqüência em que uma exigência de superação se torna patente
(cfr. supra, I, z). Ponto é que se logre desconectar a sua obstinada maqui­
naria lógica e escapar ao seu sortilégio redutor.
O pensamento de Kelsen é um pensamento que transcende e domina
o sistema em que o seu Autor o encerrou. A í reside, segundo cremos, a
marca da sua pujança e perenidade. Através da experiência fundamental
do sistema kelseniano, cuja irradiação clarificadora é um facto incort
testado e incontestável, o pensamento jurídico conquistou uma nova <'
definitiva etapa, banhou-se na luz de um novo horizonte de que não mais
perderá á memória.

O Tradutor
r
I. A S N O R M A S DA JU S T IÇ A

NoçAo DE j u s t i ç a *

x. A justiça é uma qualidade ou atributo que pode ser afirmado


de diferentes objectos. Em prim eiro lugar, de um indivíduo. Diz-se
que um indivíduo, especialmente um legislador ou um juiz, é justo ou
injusto. Neste sentido, a justiça é representada como uma virtude dos
indivíduos. Como todas as virtudes, também a virtude da justiça é uma
qualidade moral; e, nessa medida, a justiça pertence ao domínio da
moral.
Mas a qualidade ou a virtude da justiça atribuída a um indivíduo
exterioriza-se na sua conduta: na sua conduta em face dos outros indi­
víduos, isto é, na sua conduta social. A conduta social de um indivíduo
é justa quando corresponde a uma norma que prescreve essa conduta,
isto é, que a põe como devida e, assim, constitui o valor justiça. A con­
duta social de um indivíduo é injusta quando contraria uma norma que
prescreve um a determinada conduta. A justiça de um indivíduo é a
justiça da sua conduta social; e a justiça da sua conduta social consiste
em ela corresponder a uma norma que constitui o valor justiça e, neste
sentido, é justa. Podemos designar esta norma como norma da justiça.
Como as normas da moral são normas sociais, isto é, normas que
regulam a conduta de indivíduos em face de outros indivíduos, a norma
da justiça é um a norma moral; e assim, também sob este aspecto o
conceito da justiça se enquadra no conceito da moral.
Porém, nem toda a norma moral é uma norma de justiça, nem toda
a norma de uma moral constitui o valor justiça. Como norma de justiça
apenas pode ser considerada uma norma que prescreva um determinado
tratamento de um indivíduo por outro indivíduo, especialmente o trata­
mento dos indivíduos por parte de um legislador ou juiz. A norma: não
devemos suicidar-nos, pode ser norma de uma moral que proíbe tal
conduta em razão dos seus maus efeitos sobre a comunidade. Mas esta

* Os títulos que antecedem os núm eros sao da responsabilidade do tradutor.

41
.n u u iu m u m u jj iltüíiii'1 iii

A JU STIÇA E O DIREITO NATURAL


a s n o r m a s d a ju s t iç a

norma não pode ser um a norm a de justiça, pois não prescreve um


ramos um juízo segundo o qual a norm a do direito positivo é justa
determinado tratamento de um homem por parte de outro homem.
quando corresponde à norma justiça - na m edida em que estatui o que
Quer dizer: o suicídio pode ser julgado imoral, mas não injusto. No
a norma de justiça prescreve - ou segundo o qual ela é injusta quando
entanto, o facto de se inumarem os suicidas, não num cemitério comum,
não corresponde à norm a de justiça - na m edida em que estatui o
mas em separado, ou de se punir a tentativa do suicídio, pode ser contrário do que a norma de justiça prescreve.
considerado como justo ou injusto, isto é, ser apreciado segundo uma
Isto pressupõe que a norma de justiça e a norma do direito positivo
norma que prescreve um determinado tratamento dos homens, o impõe
sejam consideradas como simultaneamente válidas. Tal, porém, não é
ou o proíbe - e, assim, constitui o valor justiça, tem o carácter de uma
possível, se as duas normas estão em contradição, quer dizer, entram em
norma de justiça.
conflito uma com a outra ('). Nesse caso, apenas uma delas pode ser
considerada como válida. Em face de uma norm a de justiça pressuposta
2. A justiça é, portanto, a qualidade de uma específica conduta
como válida não pode ser considerada válida uma norma do direito
humana, de uma conduta que consiste no tratamento dado a outros
positivo que a contradiga e, inversamente, em face de uma norma do
homens. O juízo segundo o qual um a tal conduta é justa ou injusta
direito positivo pressuposta como válida não pode ser considerada
representa uma apreciação, uma valoração da conduta. A conduta, que
válida uma norm a de justiça que a contrarie. Por «validade» deve
é um facto da ordem do ser existente no tempo e no espaço, é confron­
entender-se aqui validade objectiva. Dizer que uma norma do direito
tada com uma norma de justiça, que estatui um dever-ser. O resultado
positivo, isto é, do direito posto através de actos humanos, «vale»,
é um juízo exprimindo que a conduta é tal como - segundo a norma de
significa que o sentido subjectivo do acto - sentido segundo o qual as
justiça - deve ser, isto é, que a conduta é valiosa, tem um valor de justiça
pessoas se devem conduzir de determinada m aneira - é interpretado
positivo, ou que a conduta não é como - segundo a norma de justiça -
como sendo também o seu sentido objectivo. Todo o acto de comando
deverá ser, porque é o contrário do que deverá ser, isto é: que a conduta
tem por sentido subjectivo que aquele a quem o comando se dirige se
é desvaliosa, tem um valor de justiça negativo. Objecto da apreciação ou
deve conduzir de determ inada maneira. M as nem sempre o sentido
valoração é um facto da ordem do ser. Somente um facto da ordem do
subjectivo de todo e qualquer acto de comando é interpretado como seu
ser pode, quando confrontado com um a norma, ser julgado como
sentido objectivo, isto é, como norma vinculante. Por aí se distingue o
valioso ou desvalioso, pode ter um valor positivo ou negativo. Por outras
acto de comando de um salteador de estradas do acto de comando de
palavras: o que é avaliado, o que pode ser valioso ou desvalioso, ter um
um órgão jurídico. Já anteriorm ente m ostrám os sob que condição o
valor positivo ou negativo, é a realidade.
sentido subjectivo de um acto de comando é interpretado como seu
sentido objectivo, como norma vinculante.
É sobretudo do ponto de vista da doutrina do direito natural, por força
0 ju íz o de v a lo r n ã o p o d e in c id ir s o b r e n o r m a s
da qual o direito positivo apenas é válido quando corresponda ao direito

3. Isto parece estar em contradição com o facto de a justiça - e bem


C) Com o um a norm a não pode ser verdadeira ou falsa, mas apenas válid a ou
assim a injustiça - ser tam bém afirm ada como qualidade de normas,
invalida, um conflito de norm as não é uma contradição lógica em sentido estrito. Cfr,
com o facto de também as normas serem apreciadas como boas ou más, Teoria Pura do Direito, vol. 1, p. 50. Quando falam os de norm as «contraditórias» entre
justas ou injustas, quando falam os de um direito positivo bom ou mau, si querem os sign ificar norm as que entram em conflito um as com as outras, por form a
justo ou injusto. Parece, com efeito, que ao proceder assim comparamos tal que um a prescreva que nos devem os conduzir de certa m aneira e a outra que nos
as normas do direito positivo com uma norma de justiça, que, portanto, nao devem os conduzir dessa m aneira. A validade de um a das norm as é inconciliável
com a validade da outra. Por isso, não podem ser am bas válidas ao m esm o tem po,
avaliamos uma norm a através de outra norma e, por essa via, elabo­
lam bem neste sentido em prega K a n t a palavra «contradizer». Cfr. infra.

42
43
A JUSTIÇA E o DIREITO NATURAL

natural constitutivo de um valor de justiça absoluto, que se opera um juízo


de apreciação do direito positivo como justo ou injusto. Se pressupomos
um tal direito natural, então uma norma do direito positivo que o
contradiga não pode ser considerada válida. Somente podem valer as
normas do direito positivo conformes ao direito natural. E se a norma de
um direito positivo apenas vale na medida em que corresponda ao direito
natural, então o que vale na norma do direito positivo é apenas o direito
natural. É esta efectivamente a conseqüência da doutrina jusnaturalista
que, ao lado ou por cima do direito positivo, afirma a validade de um
direito natural e, ao proceder assim, vê neste direito natural o fundamento
de validade do direito positivo. Isto, porém, significa que, de acordo com
esta teoria, só o direito natural pode, na verdade, ser considerado válido,
e não o direito positivo como tal.
Mas nem por isso existe aqui qualquer forma de avaliação do direi­
to positivo através do direito natural, isto é, qualquer apreciação de uma
norma válida através de outra norma. Como poderia também uma
norma, que constitui um valor - e toda a norma válida constitui um
valor como poderia um valor ser valorado, como poderia um valor ter
um valor ou ter mesmo um valor negativo? Um valor valioso é um
pleonasmo, um valor desvalioso uma contradição nos termos.

O b je c t o d o ju íz o d e v a l o r f u n d a d o n a ju s t iç a . I n d e p e n d ê n c ia d a v a l i­

dade DA NORM A PO SITIVA RELATIVAM ENTE À NORM A DE JU STIÇA

4. A partir desta ideia, analisemos agora a situação que se apresenta


quando falamos de um direito positivo justo ou injusto, quando afirma­
mos a justiça ou injustiça como qualidade de normas válidas do direito
positivo, quando, como se diz, julgamos as normas do direito positivo
segundo uma norma de justiça, as valoramos como justas ou injustas
tomando por padrão de medida uma norma de justiça e presumindo ao
mesmo tempo, contudo, que a validade dessas normas do direito
positivo não depende da relação em que se encontrem com a norma
de justiça. Nesta independência da validade do direito positivo da
relação que este tenha com uma norma de justiça reside o essencial
da distinção entre a doutrina do direito natural e o positivismo
jurídico.

44
AS n o r m a s d a ju s t iç a

Uma norma de justiça prescreve uma determinada conduta de


homens em face de outros homens. Esta conduta pode consistir na
estatuição de normas. Na medida em que uma norma de justiça se refere
ao direito positivo, postula um determinado afeiçoamento do conteúdo
das suas normas; prescreve a estatuição de normas com determinado
conteúdo. Isto, porém, significa que ela se dirige à criação do direito
positivo. A conduta que ela prescreve, o seu objecto, são actos através
dos quais são postas as normas. Estes actos podem corresponder à
norma de justiça ou contradizê-la. Correspondem à norma de justiça
quando a norma que estatuem tem aquele conteúdo que a norma de
justiça prescreve; contradizem a norma de justiça quando a norma que
estabelecem tem o conteúdo oposto.
Como a justiça ou a injustiça consiste nesta correspondência ou não
correspondência dos actos legiferantes, são estes actos fixadores do
direito positivo, a conduta dos homens que estatuem as normas do
direito positivo, factos da ordem do ser, portanto, que formam o objecto
da apreciação efectuada através da norma de justiça, que, medidos pelo
estalão des^a norma de justiça, são valorados como justos ou injustos,
têm um valor de justiça positivo ou negativo. Este valor de justiça do
acto normativo, porém, deve ser claramente distinguido do valor jurí­
dico que as normas do direito positivo constituem. Do ponto de vista
do direito positivo, uma tal norma não constitui um valor jurídico
positivo por ser posta através de um acto que tem um valor de justiça
positivo, e constitui um valor jurídico positivo mesmo quando seja posta
através de um acto que tem um valor de justiça negativo.
Se a estatuição da norma do direito positivo corresponde à norma de
justiça, então o valor jurídico constituído por aquela coincide com o
valor de justiça constituído por esta. Diz-se, neste caso, que a norma do
direito positivo é justa. Se a estatuição da norma do direito positivo
contraria a norma de justiça, valor de justiça e valor jurídico não coinci­
dem; diz-se então que a norma do direito positivo é injusta. No entanto,
a justiça e a injustiça, que são afirmadas como qualidade de uma norma
jurídica positiva cuja validade é independente desta sua justiça ou
injustiça, não são - ou não são imediatamente, pelo menos - qualidades
desta norma, mas qualidades do acto pelo qual ela é posta, do acto de
que ela é o respectivo sentido. Se, v. g., uma norma de justiça pressu­
posta como válida preceitua que todos os homens devem ser tratados

45
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

igualmente, um acto legislativo pelo qual sejam postas normas que


prescrevam um tratamento desigual dos indivíduos, estatuindo que os
tribunais apenas devem punir aqueles que cometeram um delito e não
os outros e que devem punir os ladrões com a privação da liberdade ao
passo que os assassinos devem ser castigados com a privação da vida,
então este acto legislativo e os actos dos tribunais que aplicam a lei são
injustos. Diz-se, nesse caso, que a norma geral da lei e as normas indi­
viduais das decisões judiciais que aplicam a lei são injustas. A sua
injustiça reside no facto de os actos que as estabelecem contradizerem
uma norma de justiça, quer dizer, no facto de, segundo esta norma, não
deverem ser postas.
De acordo com o direito positivo, porém, elas devem ser postas. Ora
não é possível que algo deva ser e não deva ser ao mesmo tempo.
Portanto, do ponto de vista de uma norma de justiça considerada como
válida, não pode ser considerada válida uma norma do direito positivo
que a contradiga, assim como, do ponto de vista de uma norma do
direito positivo tida como válida, não pode ser considerada válida uma
norma de justiça que a contrarie. Quando está em questão a validade de
uma norma do direito positivo, temos que abstrair da validade de uma
norma de justiça que a contradiga; quando está em questão a validade
de uma norma de justiça, temos de abstrair da validade de uma norma
do direito positivo que se lhe oponha. Não podemos considerá-las simul­
taneamente válidas. Portanto, não pode existir qualquer norma do
direito positivo considerada como válida que possa ser julgada como
injusta do ponto de vista de uma norma de justiça havida simultanea­
mente como válida. Por isso, nem de um ponto de vista nem do outro
pode valer uma norma injusta do direito positivo. Uma norma jurídica
positiva não pode, por conseguinte, ser injusta, nem a partir de um dos
pontos de vista, nem a partir do outro.
Pode, na verdade, existir um acto cujo sentido subjectivo é um dever-
-ser e tal acto pode ser julgado como injusto do ponto de vista de uma
norma de justiça considerada válida. Porém, o sentido subjectivo deste
acto não pode, se a norma de justiça é tida como válida, ser havido como
sentido objectivo deste mesmo acto e, portanto, não pode ser conside­
rado como norma objectivamente válida. Do ponto de vista de uma
norma de justiça considerada como válida, uma norma do direito
positivo que lhe não seja conforme é inválida; e se o sentido subjectivo

46
AS n o r m a s d a ju s t iç a

do acto é considerado como seu sentido objectivo, isto é, como norma


objectivamente válida, porque esse acto foi posto de acordo com a
norma fundamental da ordem jurídica, a norma de justiça não pode ser
havida como válida. Se, do ponto de vista de uma norma de justiça con­
siderada como válida, o direito positivo injusto não pode valer porque
um direito injusto não pode, deste ponto de vista, ser um direito válido,
então também deste ponto de vista nenhum direito justo pode valer
como tal. E tal é de facto o caso quando, do ponto de vista de uma norma
de justiça considerada como válida, uma ordem jurídica positiva apenas
vale porque a sua estatuição corresponde a esta norma de justiça. Por
isso que, então, a validade da ordem jurídica positiva apenas é - como
já se observou - a validade da norma de justiça, o direito positivo como
tal não tem qualquer validade própria.
E se, do ponto de vista de uma norma jurídica positiva considerada
como válida, nenhuma norma de justiça contrária a esta norma por ser
havida por válida, e, consequentemente, também deste ponto de vista
nenhuma norma injusta de direito positivo pode valer (existir), então
também não é lícito considerar como válida, deste ponto de vista,
qualquer norma de justiça à qual corresponda uma norma jurídica
positiva. Se, porém, temos de abstrair da validade de uma norma de
justiça que esteja em contradição com uma norma do direito positivo
quando se põe a questão da validade desta, também temos de abstrair
da validade de uma norma de justiça que esteja em conformidade com
uma norma do direito positivo quando esteja em causa a validade desta
última. Seria um contra-senso presumir que o direito positivo pode ser
justo mas não pode ser injusto. Se o direito positivo não pode ser
injusto, também não pode ser justo. Ele apenas pode ser: justo ou
injusto, ou: nem justo nem injusto. Abstrair da validade de toda e
qualquer norma de justiça, tanto da validade daquela que está em con­
tradição com uma norma jurídica positiva como daquela que está de
harmonia com uma norma jurídica positiva, ou seja, admitir que a
validade de uma norma do direito positivo é independente da validade
de uma norma de justiça - o que significa que as duas normas não são
consideradas como simultaneamente válidas - é esse justamente o
princípio do positivismo jurídico.
Desta análise resulta que a proposição que afirm a que uma norma
do direito positivo ou é justa ou injusta apenas pode significar: Quando

47
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

se pressuponha uma determinada norma de justiça como válida, o acto


pelo qual é posta a norma de uma determinada ordem jurídica positiva,
isto é, o acto cujo sentido subjectivo é esta norma, é justo ou injusto
conforme corresponda ou não à norma de justiça. A existência do acto
não é inconciliável com a validade da norma de justiça. Também um
acto que não corresponda a uma norma pode existir. Quando, porém,
está em causa a validade da norma de uma ordem jurídica positiva, quer
dizer: quando se põe a questão de saber se o sentido subjectivo do acto
deve também ser considerado como seu sentido objectivo, não porque
o acto corresponda à norma de justiça mas porque foi posto de confor­
midade com a norma fundamental da ordem jurídica - e, portanto,
ainda na hipótese de o seu sentido subjectivo não corresponder à norma
de justiça -, então a norma de justiça não pode ser considerada como
válida ao mesmo tempo que a norma jurídica positiva.

A n o r m a e o c o n c e it o

5. A norma de justiça ou - mais rigorosamente, conforme teremos


ocasião de ver - as normas da justiça têm um carácter geral. Geral é uma
norma quando tem validade não - como a norma individual - apenas
num caso singular, mas vale para um número de casos iguais que não
pode ser de antemão determinado, quer dizer, deve ser observada ou
aplicada num número indeterminado de casos. Sob este aspecto, ela é
análoga ao conceito abstracto. Não obstante, a norma geral não pode ser
identificada com o conceito abstracto, como por vezes se faz - por
razões de que falaremos mais adiante.
O conceito abstracto determina os elementos ou qualidades que um
objecto concreto há-de possuir para nele se enquadrar. O conceito não
estatui que o objecto deve ter estas propriedades. O conceito não cons­
titui - como a norma - um valor. Quando um objecto tem as proprie­
dades determinadas num conceito, nem por isso possui um valor
positivo e, quando as não tem, nem por isso possui um valor negativo.
Diferentemente, a conduta de um indivíduo que corresponde a uma
norma, que é tal como a norma determina, ou seja, como, segundo a
norma, deve ser, tem um valor positivo e uma conduta que é contrária
à norma, que não é como a norma determina, isto é, como, segundo a

48
AS NORMAS da fUSTIÇA

norma, deveria ser, tem um valor negativo, um desvalor. Logo, não se


pode deduzir de um conceito uma norma, como pretende erroneamente
a chamadci jurisprudência dos conceitos. Uma norma apenas pode ser
deduzida de outra norma, um dever-ser apenas pode ser derivado de um
dever sei.

S il o g is m o n o r m a t iv o e s il o g is m o t e o r é t ic o

6. Todavia, na operação lógica que se empreende quando a validade


de uma norma individual é derivada de um a norma geral, aparece
também um juízo de realidade (SeinsUrteil), a afirmação de um facto.
Assim, a proposição que afirma a validade da norma individual: Eu devo
dizer a verdade, apenas pode ser derivada da proposição que afirma a
validade de uma norma geral: Todos os homens devem dizer a verdade,
por intermédio de uma proposição que afirme um ser, um facto: Eu sou
um homem. O facto de a conclusão: Eu devo dizer a verdade, ser dedu­
zida da prem issa maior: Todos os homens devem dizer a verdade,
significa que a conclusão já está contida na prem issa maior do
silogismo. Mas a conclusão apenas pode estar contida na premissa
maior, não na premissa menor: Eu sou um homem, pois só a premissa
maior é, tal como a conclusão, uma proposição de dever-ser e uma
afirmação sobre o falar-verdade, enquanto a prem issa menor é uma
proposição ou juízo de realidade e uma afirmação sobre o ser-homem.
Ambas as premissas, premissa maior e premissa menor, condicionam
a conclusão: Se todos os homens devem falar verdade e se eu sou
um homem, então eu devo falar verdade. Porém, entre as duas con­
dições, entre os dois elementos condicionantes, existe a diferença
que acabamos de referir. Somente a norma geral expressa na premissa
maior é o fundamento de validade da norma individual expressa na
conclusão (*).

(L) Cfr. Ch. P e r e l m a n , De la justice, Bruxelles, 1945, pp. 57 e ss. P e r e l m a n fala de


um «syllogisme im péralif» no qual a prem issa maior e a conclusão são proposições de
dever-ser e a prem issa menor é um a proposição ou juízo de realidade, para o distinguir
do «syllogisme théorique», no qual prem issa maior, prem issa menor e conclusão são
proposições ou juízos de realidade.

49

........................................................................... mil
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL

A estrutura lógica do silogismo normativo é a mesma que a do


silogismo teorético: prem issa maior: - Todos os homens são mortais;
prem issa menor: - Eu sou um homem; conclusão: - Eu sou mortal.
A conclusão é deduzida da premissa maior, na qual já está contida; e
apenas pode estar contida na premissa maior, não na premissa menor,
porque só aquela, e não esta, é uma afirm ação sobre a mortalidade.
A diferença entre o silogismo normativo e o teorético consiste apenas
em que, naquele, a prem issa maior, tal como a conclusão, é uma
proposição de dever-ser, ao passo que neste todas as três proposições são
proposições ou juízos de realidade.

C o n c l u d ê n c ia n o r m o l ó g ic a e f u n d a m e n t a ç ã o d a v a l id a d e

7. O princípio lógico segundo o qual a validade de uma norma não


pode ser fundamentada sobre um facto da ordem do ser vale igualmente
quando este facto é um acto de vontade cujo sentido subjectivo seja o
de que nos devemos conduzir de certa maneira. O argumento muito
divulgado segundo o qual nos devemos conduzir de certa maneira
porque o legislador ou Deus querem, isto é, ordenam que assim nos
conduzamos, é uma falsa ilação. A conclusão tão-só é possível se
pressupomos a norma segundo a qual nós nos devemos conduzir como
o legislador quer ou como Deus quer.
Já a outro propósito fizemos notar (') que, do facto de um salteador
de estradas nos ordenar que lhe demos o nosso dinheiro, não con­
cluímos de forma alguma que devamos dar-lhe o nosso dinheiro,
que devamos obedecer ao seu comando; e não o fazemos porque,
na verdade, não pressupomos qualquer norma por força da qual o sen­
tido subjectivo do acto do salteador de estradas seja também o seu
sentido objectivo. O fundamento de validade de uma norma positiva,
isto é, de uma norma posta através de um acto de vontade, não é o
acto que põe esta norma ou põe uma norma superior, quer dizer, o
acto cujo sentido objectivo é a norma inferior ou a norma superior,
mas a norma superior que é pressuposta como objectivamente válida e
que opera a fundamentação da validade da norma inferior precisa-

(') Cf. Teoria P u ra do D ireito, vol. II, pp. 1 e ss.

50
a s n o r m a s d a ju s t iç a

mente pelo facto de legitimar o sentido subjectivo do acto que põe esta
norma como seu sentido objectivo, isto é, como norma objectivamenlc
válida.
O processo da fundamentação normativa da validade conduz, porém,
necessariamente, a um ponto final: a uma norma suprema, generalís
sima, que já não é fundamentável, à chamada norma fundamental, cuja
validade objectiva é pressuposta sempre que o dever-ser que constitui
o sentido subjectivo de quaisquer actos é legitimado como sentido
objectivo de tais actos. Se fosse de outra maneira, se o processo da
fundamentação normativa da validade, tal como o processo da expli
cação causai - que, de acordo com o conceito de causalidade, não pode
levar a qualquer termo, a qualquer causa ú ltim a -, fosse sem fim, .1
pergunta de como devemos actuar permaneceria sem resposta, sei ia
irrespondível. Consideramos um determinado tratamento de um
indivíduo por parte de outro indivíduo como justo quando este
tratamento corresponde a uma norma por nós havida como justa.
A questão de saber por que é que nós consideramos esta norma comn
justa conduz, em último termo, a uma norma fundamental por nos
pressuposta que constitui o valor justiça.

Ta r e f a d a c iê n c ia p e r a n t e a s n o r m a s d e ju s t iç a

8. De facto muitas e muitas normas de justiça, muito diversas e em


parte contraditórias entre si, são pressupostas como válidas. Um 11,11,1
mento científico do problema da justiça deve partir destas norm.is dr
justiça e por conseguinte das representações ou conceitos que ns
homens, no presente e no passado, efectivamente se fazem e li/e
ram daquilo que eles chamam «justo», que eles designam como jusiii,a
A sua tarefa é analisar objectivamente as diversas normas que ns
homens efectivamente consideram como válidas quando valoram alpi
como «justo».
Como ciência, não tem que decidir o que é justo, isto é, pres< ievei
como devemos tratar os seres humanos, mas que descrever aquilo tpu­
de facto é valorado como justo, sem se identificar a si própria com um
destes juízos de valor. Pode tentar determinar nas diferentes 1101 mas de
justiça um elemento comum para assim chegar a um conceito ^eial de
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

justiça ('). Este, porém, será - como veremos - o conceito de uma nor­
ma essencialmente geral que, sob determinados pressupostos, prescreve
um determinado tratamento dos homens sem afirm ar algo sobre a
natureza e o modo deste tratamento - pelo que, sob este aspecto, se
revela completamente vazia de conteúdo.

T ipo s d e n o r m a s d e j u s t i ç a : N o r m a s d e j u s t i ç a d e t i p o m e t a f í s ic o e
n o r m a s d e ju s t iç a d e t ip o r a c io n a l

9. Dois tipos de normas de justiça se podem distinguir: um tip


metafísico e um tipo racional.
As normas de justiça do tipo metafísico caracterizam-se pelo facto
de se apresentarem, pela sua própria natureza, como procedentes de
uma instância transcendente, existente para além de todo o conheci­
mento humano experimental (baseado sobre a experiência), pelo que
pressupõem essencialmente a crença na existência de uma tal instância
transcendente. Estas normas são metafísicas não só pelo que toca à sua
proveniência mas ainda pelo que respeita ao seu conteúdo, na medida
em que não podem ser compreendidas pela razão humana. O homem
deve acreditar na justiça que elas constituem - tal como acredita na
existência da instância de que elas promanam -, mas não pode com­
preender racionalmente essa justiça. O ideal desta justiça é, como a
instância da qual ele provém, absoluto: de conformidade com o seu
próprio sentido imanente, exclui a possibilidade de qualquer outro ideal
de justiça.
As normas de justiça do tipo aqui designado como «racional» - por
contraposição ao «metafísico» - são caracterizadas pelo facto de não
pressuporem como essencial qualquer crença na existência de uma

(■) P erelm an dá-nos u m a excelente an álise dos «mais correntes» conceitos de justiça
e p ro cu ra d e fin ir u m co n ceito « fo rm al» ou «abstracto» de ju stiç a que co n ten h a o
elem ento comum a todos os conceitos «concretos» de justiça. Diz ele, ob. cit. p. 2 2 : «Pour
q u ’u n e a n aly se lo g iq u e de la n o tio n de la ju stice p u isse c o n stitu er u m p ro grès
incon testable dans 1'éclairc issem en t de cette idée con fu se, il fa u t q u ’elle p a rv ie n n e à
décrire d'une fa ço n p récise ce q u ’il y a de co m m u n d ans les d iffére n te s fo rm u les de la
ju stice et à m o n trer les p o in ts p a r le sq u e ls e lles d iffè re n t» . P ara u m a d e fin iç ã o do
conceito «form al» de ju stiça, cfr. infra.
r AS NORMAS DA JUSTIÇA

in stâ n c iatranscendente, pelo facto de poderem ser pensadas como


esta tu íd a satravés de actos humanos postos no mundo da experiência
e poderem ser entendidas pela razão humana, isto é, ser concebidas
! racionalmente. Isto não significa, todavia, que estas normas possam ser
í postas pela razão humana - pela chamada razão « p rá tic a » -o u ser
l encontradas na razão. Isto é impossível, se bem que seja afirmado por
| aqueles que, na resposta à questão sobre o que é justo, pressupõem estas
j normas como imediatamente evidentes (l ).
As normas de justiça do tipo aqui designado como racional podem
| na realidade ser também representadas como postas por uma instância
: transcendente; e muitas delas, como, especialmente, a norma de justiça
da retribuição (Vergeltung), são descritas como vontade da divindade.
| Todavia, isto não lhes é essencial e, pelo seu conteúdo, elas permanecem
mesmo então como racionais, quer dizer: podem ser compreendidas
pela razão humana, ser racionalmente concebidas.
Se, no problema da justiça, partirmos de um ponto de vista racion-
al-científico, não-metafísico, e reconhecermos que há muitos ideais de
justiça diferentes uns dos outros e contraditórios entre si, dos quais
nenhum exclui a possibilidade de um outro, então apenas nos é lícito
conferir uma validade relativa aos valores de justiça constituídos através
destes ideais.
; A nossa análise começará por incidir sobre as normas de justiça do
tipo racional.

A FÓ RM ULA DO «SUUM CUIQUE»

10. A fórmula de justiça mais frequentemente usada é a conhecida


suum cuique, a norma segundo a qual a cada um se deve dar o que é seu,
isto é, o que lhe é devido, aquilo a que ele tem uma pretensão (título)
ou um direito. E fácil de ver que a questão decisiva para a aplicação
desta norma: O que é o «seu», o que é que é devido a cada um, o que é
o seu direito - não é decidida através da mesma norma. Como aquilo
que é devido a cada um é aquilo que lhe deve ser dado, a fórmula do
suum cuique conduz à tautologia de que a cada qual deve ser dado aquilo

(') C /r. infra.

53
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

que lhe deve ser dado. A aplicação desta norma de justiça pressupõe a
validade de uma ordem normativa que determine o que é para cada um
o «seu», quer dizer, o que é que lhe é devido, a que é que ele tem direito
- por os demais, segundo a mesma ordem normativa, terem um dever
correspondente.
Isto significa, porém, que, qualquer que seja essa ordem normativa,
quaisquer que sejam os deveres e direitos que ela estatua, particular­
mente, qualquer que seja a ordem jurídica positiva, ela corresponde à
norma de justiça do suum cuique e, consequentemente, pode ser estima­
da como justa. Nesta função conservadora reside a sua significação
histórica. O valor justiça que esta norma constitui identifica-se com o
valor ou valores que são constituídos através das normas do ordena­
mento - do ordenamento jurídico, em particular - que é pressuposto no
momento da sua aplicação.

A r e g r a d e o ir o

11. Da mesma natureza é a chamada regra de oiro: «Não faças aos


outros o que não queres que te façam a ti» que, formulada positiva­
mente, se traduz pelo princípio de justiça: Devemos tratar os outros tal
como gostaríamos de ser tratados. Se tomamos esta fórmula ao pé da
letra, imediatamente verificamos que ela conduz a resultados que decidi­
damente não são pretendidos por aqueles que dela se servem. Se deve­
mos tratar os outros como queremos ser tratados, fica excluída toda a
punição de um malfeitor, pois nenhum m alfeitor deseja ser punido
Deste modo, é afastada uma parte essencial do direito positivo. Ninguém
gosta de ser censurado. Sem a possibilidade de censurar, a educação é
impossível. Muitos gostam de ser lisonjeados; para a maioria dos
homens uma verdade desagradável é indesejável. Desejam ser enga­
nados. Será lícito concluir daí que são obrigados ou têm sequer o direito
de lisonjear os outros ou de os enganar? Mundus decipi vult. Não será
cinismo concluir daí: ergo dicipiatur?
Muito daquilo que, do ponto de vista da moral ou do direito, tem de
ser proibido, não é para muitos homens desejável, mas também não é
indesejável. Logo, não basta exigir que não tratemos os outros pela
forma por que também não gostaríamos de ser tratados. Por exemplo:

54
a s n o r m a s da (USTIÇA

a moral prescreve que não mintamos. Todavia, alguém pode não fazer
caso de que os outros lhe mintam, porque se considera esperto bastante
para descobrir as suas mentiras e suficientemente forte para se prote­
ger contra as conseqüências desvantajosas delas. Se também neste caso
é aplicada a regra de oiro, pode esse alguém, através dela, justificar as
mentiras que diz aos outros, pois está pronto a deixar que os outros lhe
mintam. Na grande maioria, os homens amam a sua vida e desejam,
portanto, que lhes não seja exigida uma conduta que os exponha ao risco
de a perderem. Todavia, quando lhes é feita uma tão indesejável exigên­
cia, eles satisfazem-na superando o medo. Segundo a regra de oiro,
quando entendida ao pé da letra, não seria lícito ao legislador, que não
é, ele próprio, mais intemerato que a maioria dos homens, pôr qualquer
norma moral ou jurídica que obrigue a uma tão indesejável (e indese
jada) conduta.
Quando a regra de oiro postula que qualquer um de nós trate os
outros como subjectivamente deseja ser por eles tratado, pressupõe-se
evidentemente que também os outros assim desejam ser tratados. Mas
tal é evidente e compreende-se de per si - pensa-se - pois todos desejam
sem dúvida ser bem tratados. Se a regra de oiro fosse observada, have
ria concordância entre os homens quanto à sua conduta recíproca e não
existiriam, portanto, quaisquer conflitos - alcançar-se-ia a harmonia
social. Isto, porém, é uma ilusão, pois que os homens de forma alguma
coincidem no seu juízo sobre aquilo que é subjectivamente bom, ou seja,
afinal, naquilo que desejam. O que alguém considera ser um bom trata
mento, a ponto de desejar ser tratado dessa maneira, e de, consequen
temente, segundo a regra de oiro, tratar outrem da mesma forma, pode
este outrem considerar subjectivamente como um mau tratamento, o
que significa que ele não quer ser tratado dessa maneira. Para um,
podem a lisonja e a mentira ser desejáveis, para o outro, porém, podem
ser indesejáveis. Ora, neste caso, há um conflito entre os dois.
Se a regra de oiro é tomada à letra, se cada pessoa deve tratar as
outras da forma, e apenas da forma, como deseja ser tratada, quer dizei,
se para a justificação de uma ordem social é decisivo um critério
subjectivo, então não é possível moral nem ordem jurídica. Se a r e g r a
de oiro, de conformidade com a sua intenção, deve funcionar como
norma fundamental de uma ordem social, então tem sem dúvida de sei
entendida como a norma que manda tratar os outros, não como efecli
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

vãmente queremos nós próprios ser tratados, mas como devemos querer
nós próprios ser tratados, quer dizer: como devemos ser tratados,
segundo uma norma geral aplicável não só a nós próprios como também
a todos os demais. Mas, como é que devemos ser tratados? Qual é o
conteúdo desta norma geral? A esta questão, que é a decisiva, não dá a
regra de oiro qualquer resposta, tal como a fórmula do suum cuique não
dá qualquer resposta à questão de saber o que é o «seu» de cada um.
Aquela pressupõe, como esta, uma ordem norm ativa que fixe as
determinações (regulamentações) decisivas, que prescreva como é que
devemos ser tratados. Tal como acontece com a fórmula do suum cuique,
lambém com a regra de oiro se harmoniza toda e qualquer ordem social,
especialmente, toda e qualquer ordem jurídica positiva.

O im p e r a t iv o c a t e g ó r ic o d e K a n t : s u a a n á lis e

12. Estreitamente aparentado com a regra de oiro é o imperativ


c a te g ó r ic o de K a n t . Este, na mais corrente das suas diversas formu­
l a ç õ e s , diz: «Age sempre de tal modo que a máxima do teu agir possa
p o r ti s e r querida como lei universal» (l). Este imperativo não é propria­
m e n t e pensado como uma norma de justiça, mas como um princípio
g e r a l e supremo da moral no qual está contido o princípio da justiça (2).

(') K a n t , Grundlegung zur M etaphysik der Sitten. K ant’s gesam m elte Schriften,
editados pelo Kõniglichen Preussischen Akademie der W issenschaften, Bd. iv, p. 421.
Os escritos de K a n t citados de ora em diante sê-lo-ão segundo esta edição.
(*) K a n t , na sua ética, não se ocupou mais detalhadamente do princípio da justiça
como um princípio especial da moral. Diz incidentalmente (Die Metaphysik der Sitten, IV,
p. 490): «O conceito da justiça não necessita de qualquer definição mais precisa». Na
Kritik der reinen Vernunft (m, pp. 372/3) encontra-se mesmo um a observação que pode
ser entendida no sentido de que K a n t , na sua ética, parte do pressuposto de que a
imputação moral só é possível se 0 homem é livre, quer dizer, se a sua vontade não é
causalmente determinada. Todavia, como K a n t tem de conceder que o homem empírico,
o homem no mundo dos sentidos, e a sua vontade são, como tudo neste mundo, causal­
mente determinados, apenas lhe resta a possibilidade de salvar a liberdade referindo-a
ao hom em como coisa em si (Ding an sichj, ao homem in teligível. Como, porém, é
precisamente ao homem empírico que é feita a imputação moral e K a n t expressamente
declara: «pelo que toca a este carácter empírico não há, portanto, qualquer liberdade», o
mesmo K a n t é obrigado a confessar: « A autêntica m oralidade das acções (mérito e

56
r AS n o r m a s da ju st iç a

O imperativo categórico postula uma determinada actuação. Ele é a


resposta à questão de saber como devo agir para agir moralmente bem.
E s t a resposta diz: ages moralmente bem quando actuas segundo uma

máxima da qual possas querer que ela se transforme numa lei universal.
Aqui «máxima» é a regra segundo a qual o homem quer efectivamente
agir, segundo a qual se propõe ou se predispõe a agir, é a «lei universal»,
a norma geral segundo a qual ele deve agir (*). Se efectivamente, como
parece ser o caso, segundo a fórmula acabada de citar, se tratasse de
saber se nós podemos querer que aquilo que nos propomos a nós pró­
prios como regra do nosso agir se transforme numa lei universal, então
o imperativo categórico não conduziria necessariamente a uma actuação
moralmente boa. Com efeito, um homem pode de facto querer de toda
e qualquer máxima que ela se transforme numa lei universal.
Isso pode em muitos casos - do ponto de vista de uma moral já pres­
suposta - ser censurável; todavia, não é im possível. K ant crê poder
demonstrar que não podemos querer que muitas máximas se trans­
formem em lei universal, procurando mostrar que a vontade de elevar
a uma lei universal uma máxima imoral, ou seja, uma máxima que K ant
de antemão pressupõe como imoral, ou a lei a que esta m áxima é
elevada, «se contradiria a si própria» (2). Assim, diz ele da máxima que

culpa), mesmo a da nossa própria conduta, permanece-nos, por conseguinte, completa­


mente oculta. As nossas imputações apenas podem ser referidas ao carácter empírico.
Porém, quanto deste [scl. carácter] seja puro efeito da liberdade, quanto seja de atribuir à
pura natureza e aos defeitos do temperamento de que se não é culpado ou à feliz estru­
turação do mesmo temperamento (merito fortunae), isso ninguém pode discernir e, por
conseguinte, também ninguém pode julgar segundo um a justiça completa».
Na «Schlussanmerkung» da M etaphysik der Sitten (vi, pp. 488 e ss.) fala K a n t da
justiça, mas apenas da justiça divina, da qual diz que «é para nós impenetrável». Quanto
ao princípio segundo o qual a liberdade de cada um deve ser conciliável com a liberdade
de todos os outros, e que K a n t não designa como princípio da justiça mas como «princí­
pio do direito» (Rechtsprinzip), cfr. infra.
(') K a n t , Grundlegung zur M etaphysik der Sitten, IV, p. 420.: «Máxima... é a regra
fundamental segundo a qual ele deve agir, isto é, um imperativo». - Die Metaphysik der
Sitten, vi, p. 225: «A m áxim a é o princípio subjectivo da acção, aquilo que o próprio
sujeito se põe como regra (como ele próprio quer agir). Pelo contrário, o princípio do
dever [a lei] é o que a razão incondicional e, portanto, objectivam ente lhe prescreve
(como ele deve agir)».
(2) K a n t , Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, IV, p. 424.

57
A JU STIÇA E O DIREITO NATURAL

conduz a pôr termo à vida pelo suicídio quando aquela promete mais
sofrimentos do que prazeres: - que não poderíamos querer que uma tal
norma se transformasse numa lei universal da natureza, porque «uma
natureza cuja lei fosse destruir a própria vida através do mesmo senti­
mento cuja finalidade é incitar à promoção da vida seria contraditória
consigo mesma e, portanto, não poderia subsistir como natureza, pelo
que, consequentemente, aquela máxima não poderia ter lugar como lei
universal da natureza e, logo, seria contrária ao supremo princípio de
todo o dever» (isto é, ao imperativo categórico) (').
Não pode seriamente pôr-se em dúvida que um homem pode de facto
querer que a máxima que manda pôr termo à própria vida quando ela
é insuportável se torne numa lei universal. Se uma tal lei é válida, então
a validade da lei segundo a qual a vida deve ser conservada é restrin­
gida por aquela. De form a alguma existe aqui necessariamente uma
contradição. Uma tal contradição apenas existe entre aquela m áxim a e
uma lei moral pressuposta por K a n t segundo a qual o suicídio é proi­
bido em todas e quaisquer circunstâncias e por força da qual não deve
querer-se da máxima em questão - se bem que tal possa ser querido -
que ela se transforme numa lei universal.
Uma outra máxima cuja compatibilidade com o imperativo categó­
rico é analisada por K a n t é a que se exprime em fazer uma promessa
com a intenção de a não cumprir. Imediatamente intuímos, diz K a n t ,
que não poderíamos querer desta máxima que ela se transforme numa
lei universal, «pois segundo uma tal lei não haveria qualquer pro­
messa» (2). Mas por que haveria um homem mau de não poder querer
uma tal situação? Se ele quer que a sua máxima seja uma lei universal,
pode a sua vontade ser julgada como má desde que pressuponhamos a
norma moral que diz que devemos cumprir as nossas promessas, mas
não pode ser considerada como impossível. Quem não quer cumprir a
sua promessa e está de acordo com que ninguém deve (tem o dever de)
cumprir a sua promessa, quer algo de mau, isto é, algo que não deve
querer, mas não algo que ele não possa querer.
De forma alguma a sua máxima, tornada numa lei universal, tem de,
como K a n t diz, «destruir-se a si própria», na medida em que com o

(1) Op. cit., pp. 421-422.


(2) Op. cit.., p. 403.

58
AS NORMAS DA JUSTIÇA

«destruir-se a si própria» se signifique contradizer-se a si própria. Com


efeito, prometer a outrem uma determinada conduta significa: declarar
que queremos, no futuro, conduzir-nos por aquela forma. Uma norma
universal: não devemos cumprir as nossas promessas, apenas se con­
tradiz a si própria se prometer uma determinada conduta não significa
apenas que queremos, no futuro, conduzir-nos por aquela forma, mas
também que devemos, no futuro, conduzir-nos por aquela forma - quer
dizer, se se pressupõe como válida a norma segundo a qual devemos
cumprir as nossas promessas. K a n t pressupõe esta norma como
evidente quando afirma que não podemos querer da máxima que nos
leva a não cumprir uma promessa que ela se torne numa lei universal.
Pois que, ao afirmar tal, K A N T apenas pode significar que não devemos
querer que uma tal norma se torne numa lei universal.
Da máxima que nos leva a tomar dinheiro de empréstimo ainda que
saibamos que não podemos restituí4 o, diz K a n t que não poderíamos
querer que ela se tornasse numa lei universal da natureza porque uma
tal máxima, tornada numa lei universal, «teria necessariamente de se
contradizer». Uma lei em que tal máxima fosse transformada necessa­
riamente «tornaria ela mesma im possível a prom essa [de restituir o
dinheiro tomado de empréstimo] e o fim que se possa ter em vista ao
fazê-la» (*). Não poderia, por conseguinte, haver contratos de emprés­
timo. Ora querer tal é seguramente possível; só que não devemos querer
tal. Contradição apenas existiria se, ao lado de uma tal lei, fosse também
considerada como válida uma outra que prescrevesse a restituição do
empréstimo. Esta lei não é, porém, querida nesta hipótese. K A N T
pondera que a m áxim a em questão «seria contrária ao princípio
supremo de todo o dever», isto é, ao imperativo categórico. Mas isso
somente sucederia se deste se pudesse deduzir a norma segundo a qual
os empréstimos devem ser restituídos. Tal não é, porém, o caso. Esta
norma é pressuposta por K a n t como de per si evidente. E somente com
base nesta pressuposição, e não por força do imperativo categórico, é
que ele é conduzido à ideia de que não podemos querer a máxima em
questão, ou seja, afinal, de que a não devemos querer.
Muito significativo é o que K a n t diz da m áxim a seguida por um
homem que prefere «antes correr atrás do prazer do que esforçar-se por

(‘ ) Op. cit., p. 422.

59
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

alargar e aperfeiçoar as suas boas disposições naturais». «Não é possível


um homem querer» que esta máxima se torne uma lei universal «pois,
c o m o ser racional, ele quer necessariamente que todas as faculdades
nele sejam desenvolvidas, porque estas lhe são dadas e lhe servem para
toda a espécie de finalidades (Absichteri) possíveis» (1). É muito provável
q u e um homem que dá preferência à busca do prazer sobre o desen­
volvimento das suas capacidades possa querer que a sua máxima se
torne numa lei universal. A «necessidade» com a qual o homem, como
s e r racional, quer que todas as faculdades nele sejam desenvolvidas não
é, obviamente, uma necessidade causai mas uma necessidade normativa.
O h o m e m deve desenvolver as suas faculdades. Nem a m áxim a que
c o n d u z à busca do prazer nem uma lei a que essa máxima seja elevada
silo autocontraditórias. Contudo, a máxima contradiz uma lei moral por
íorça da qual devemos desenvolver todas as nossas faculdades; e só em
c o n f r o n t o desta lei moral é que a máxima é imoral. K a n t , porém,
p r e s s u p õ e a lei moral como de per si evidente.
0 m e s m o precisamente se passa com a máxima de uma pessoa que
s e p r o p õ e contribuir apenas para o seu próprio bem-estar mas não para
o b e m - e s t a r dos outros. «Ora é impossível», diz K a n t , «querer que um
ta l princípio vigore em toda a parte como lei natural. Com efeito, uma
v o n t a d e q u e isto decidisse contradizer-se-ia a si própria», pois que o
h o m e m , « a t r a v é s de uma tal lei natural emanada da sua própria vontade,
•se privaria a si próprio de toda a esperança da ajuda que ele para si
d e s e j a » (2). É patente que um egoísta pode querer uma lei universal do
e g o í s m o e , simultânea e consequentemente, renunciar à ajuda dos
o u t r o s , podendo, portanto, querer sem contradição que a sua máxima
s e t o r n e uma lei universal. A contradição que aqui surge é a contradição
e n t r e a máxima e uma lei moral pressuposta por K a n t , por força da qual
d e v e m o s contribuir para o bem-estar dos outros. Só desta pressuposição,
e n ã o do imperativo categórico, se segue que o homem não «pode»
q u e r e r , ou seja, afinal, não deve querer, que o princípio do egoísmo se
t o r n e numa lei universal.
É, assim, patente que, com o «poder querer» do imperativo categó­
rico, se quer significar um «dever querer», que o verdadeiro sentido do

(') Op. cit., p. 428.


(2) Op. cit., p. 423.

60
AS NORMAS DA JUSTIÇA

imperativo categórico é: Actua segundo uma m áxim a da qual devas


querer que ela se transforme numa lei universal. Mas, de que máxima
devo eu querer e de que máxima devo eu não querer que ela se tornè
numa lei universal? A esta questão não dá o im perativo categórico
qualquer resposta.
De resto, K a n t formula por vezes o imperativo categórico sem men­
cionar o «poder querer». Assim, por exemplo: «Actua segundo uma
máxima que, ao mesmo tempo, possa valer como lei universal» (l).
Como, porém, o imperativo categórico não diz qual a máxima que pode
valer como lei universal, ele reconduz-se à fórmula: actua segundo uma
lei universal. O que ele exige nada mais é que a conformidade da acção
a uma lei, isto é, a sua harmonização com uma norma geral. Isso no-lo
diz o próprio K a n t : «Como o imperativo, além da lei, apenas contém a
necessidade da máxima ser conforme a essa lei, e a lei, por seu turno,
não contém qualquer condição que a restrinja, nada mais fica, portanto,
do que pura e simplesmente a generalidade de uma lei à qual a máxima
da acção se deve conformar e cuja conformidade apenas o imperativo
apresenta como propriamente necessária» (2).
A «necessidade» de ser conforme a lei (a «necessidade» da confor­
midade) é o dever-ser e este é o sentido de toda e qualquer norma. O que
o imperativo categórico exprim e para além disso é tão-só que esta
norma tem de ter um carácter geral, tem de ser um a lei universal.
Contudo, a questão decisiva para qualquer ética, a questão de saber
qual seja o conteúdo da lei universal com a qual a m áxima deve confor­
mar-se, permanece por responder. Também do imperativo que manda
agir de acordo com uma lei universal cujo conteúdo não é indicado se
não pode deduzir qualquer norma moral que prescreva uma determi­
nada conduta.
Contudo, é uma tal dedução que tem em vista a teoria kantiana do
imperativo categórico. Na introdução aos exem plos por ele apresen­
tados, e que acabam de ser analisados, diz K A N T : «O imperativo cate­
górico é, portanto, apenas um e único... Ora se deste único imperativo
podem ser deduzidos, como do seu princípio, todos os imperativos do
dever, então, ainda que deixemos por decidir se aquilo a que chamamos

(‘ ) K a n t , Die M etaphysik der Sitten, VI, p. 226.


(2) K a n t , Grundlegung zur M etaphysik der Sitten, IV, p. 4 2 0 -4 2 1.

61
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

dever não será pura e simplesmente um conceito vazio, poderemos pelo


menos mostrar, apesar de tudo, o que entendemos por dever e o que este
conceito quer significar» (J). Ora isto significa, sem dúvida, que do sumo
princípio da moralidade, não obstante a sua vacuidade que, pelo menos,
não é negada, podem ser derivadas as diferentes leis morais, como a
norma de que não devemos mentir, a de que não devemos cometer
suicídio, a de que devemos restituir os empréstimos, etc. E é isso mesmo
o que procura fazer K ant nos exemplos por ele apontados.
Todavia, a dedução assim tentada funda-se, como mostrámos, em
falsas ilações. A única coisa que é possível é verificar se uma lei moral
concreta pressuposta como válida é compatível com o imperativo
categórico - e toda e qualquer lei moral é compatível com o imperativo
categórico, pois este nada mais exige senão que a máxima da acção seja
conforme a uma lei universal, já que nada mais se afirma das leis mo­
rais senão que elas hão-de ter o carácter de normas gerais. Tal como o
princípio do suum cuique ou a regra de oiro, também o imperativo
categórico pressupõe a resposta à questão de como devemos agir para
proceder bem e justamente como previamente dada por um ordena­
mento preexistente.
Isto não só resulta dos exemplos que o próprio K a n t aponta, como
também é por ele reconhecido - pelo menos indirectamente - quando
declara «que não é, pois, necessária qualquer ciência ou filosofia para
sabermos o que temos a fazer, para sermos honrados e bons, para
sermos até sábios e virtuosos», «que o conhecimento daquilo que se
deve fazer compete, portanto, a qualquer homem, mesmo ao mais
vulgar»; quando pergunta a sério se não seria mais aconselhável «deixar
as coisas morais ao comum juízo da razão (ao senso comum) e apenas
utilizar a filosofia, quando muito, para... descrever o sistema moral
(System der Sitten) por maneira mais acabada e compreensível» (2). Por
outras palavras: o que é bom e o que é mau compreende-se de per si (é
de per si evidente). Esta questão não precisa de ser respondida por uma
ciência da moral. À luz da teoria do conhecimento de K a n t (a que ele
claramente se não mantém fiel na sua ética), mandaria a coerência dizer
que uma ciência da moral de form a alguma pode responder a esta

(’ ) Op. cit., p. 4 21.


(2) Op. cit., p. 404.

62
AS NORMAS DA JUSTIÇA

questão, que aquela tão-só pode determinar sob que condição ou


pressuposto lógico são possíveis os juízos de que algo é bom ou mau; e
que tal condição é: pressuporem-se como válidas normas gerais que
prescrevem uma determinada conduta humana.

Outra f ó r m u l a v a z ia d e c o n t e ú d o

13. Esta pressuposição de uma ordem moral ou jurídica preexistente


que determine o que é bom e o que é mau, quer dizer, que determine
como nos devemos conduzir, é ainda mais patente que no imperativo
categórico de K a n t na fórmula usada por muitos tratadistas da filoso­
fia moral, particularmente por T o m á s DE AQ U IN O (1), e que diz: Faz o
bem e evita o mal; e como norma de justiça: Os homens devem ser bem
tratados, e não maltratados. Como tratar «bem» os homens apenas pode
significar tratar os homens tal como eles devem ser tratados segundo
uma norma que se pressupõe como justa, e não tal como eles desejam
ser tratados, também esta fórm ula é em si completamente vazia. Ela
apenas é aplicável sob a pressuposição de uma ordem normativa
constituída ou a constituir, e é aplicável sob a pressuposição de toda e
qualquer ordem normativa, desde que não se subentenda - como faz
TOMÁS DE AQUINO - um bem absoluto determinado por Deus, desde que
não se pressuponha como válida uma ordem divina da justiça.

0 COSTUME CO MO CONSTITUTIVO DO VALOR JU STIÇA

14. Segundo uma ideia especialmente dominante dentro de comu­


nidades relativamente prim itivas é correcto ou, quando se trate da
forma de tratamento a dar às pessoas, é justo, conduzirmo-nos em face
de outrem tal como os membros da comunidade se têm conduzido uns
em face dos outros, quer dizer, se têm tratado uns aos outros desde
tempos imemoriais ou, pelo menos, há longo tempo. Pressupõe-se que

(1 ) T o m ás DE AQUINO, Summa theologica, i-il, Art. 2: «Hoc est ergo p rim u m prae-
ceptum legis, qu o d b o n u m est fa c ie n d u m e p ro se q u e n d u m , et m alu m v ita n d u m ; et
super hoc fu n d an tu r o m n ia alia p raecep ta legis natu rae». Cfr. tam b ém li-Ll, 79, A n . 1.
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL

os membros da comunidade se têm conduzido de certa maneira desde


lempos remotos ou há longo tempo porque é assim que nos devemos
conduzir. A norma de justiça: Devemos tratar outrem tal como os
membros da comunidade consuetudinariamente se tratam uns aos
outros, pressupõe como justa, não qualquer ordem normativa, mas uma
ordem normativa determinada: aquela a que corresponde a conduta
eonsuetudinária dos membros da comunidade. Ela institui o costume
como o valor justiça, é a justificação do direito consuetudinário.

O MIÍIO t e r m o a r is t o t é l ic o

15. Como norma de justiça, ou seja, como norma referida ao mod


de tratar os homens, surge também o preceito geral do comedimento,
,1 ideia de que a conduta recta consiste em não exagerar para um demais
ou para um demenos, em manter, portanto, o «doirado» meio termo.
Mus, o que é o demais e o que é o demenos do «bom» - como costuma
dizer-se - ou seja, daquilo que devemos? A norma que isto determina
tf pressuposta como de per si evidente, mas não é de forma alguma
evidente. Isso no 4 o mostra uma análise da ética aristotélica. Esta tem
em vista um sistema de virtudes, entre as quais a justiça é a virtude prin­
cipal, a virtude perfeita j 1). A r i s t ó t e l e s assegura que encontrou um
método científico, a saber, um método matemático-geométrico, para
determinar as virtudes, quer dizer, para responder à questão de saber
0 que é moralmente bom. O filósofo moralista - afirma A r i s t ó t e l e s -
poderia encontrar qualquer virtude cuja essência se proponha deter­
minar por um processo igual, ou pelo menos por um processo muito
semelhante, àquele pelo qual o geómetra pode encontrar o ponto
equidistante dos dois extremos de uma linha e que divide esta em duas
partes iguais. Com efeito, a virtude é o meio entre dois extremos, isto
é, entre dois vícios, um por excesso e outro por defeito (2). A s s i m , por
exemplo, a virtude da coragem é o meio termo entre o defeito da
covardia (um por demenos de ânimo) e o defeito da temeridade (um por
demais de ânimo).

(1) A r i s t ó t e l e s , Ética Nicomaqueia, 1 1 2 9 b.


(2) Op. cit., 1 1 0 7 a, 1 1 0 6 a, 1 1 0 5 b.
r
a s n o r m a s d a ju s t iç a

É esta a célebre teoria do mesotes. Para poder ajuizar desta doutrina,


devemos ponderar que um geómetra só pode dividir uma linha em duas
partes iguais sob a condição de os dois pontos extremos lhe serem pre­
viamente dados. Se estes, porém; são dados, tam bém com eles nos é
dado o ponto médio, quer dizer, já com eles vem predeterminado. Se nós
sabemos o que são os vícios ou defeitos, também já sabemos o que são
as virtudes, pois que uma virtude é o contrário de um vício. Se a mentira
é um vício, então a verdade é uma virtude. A r i s t ó t e l e s , porém, pres­
supõe o conhecimento dos vícios como conhecimento de algo de per si
evidente e pressupõe como vício ou defeito aquilo que a moral tradicio­
nal do seu tempo cataloga como tal.
Isto significa que a ética da doutrina do mesotes apenas simula solu­
cionar o seu problema, o problema de saber o quer é mau e, portanto, o
que é um vício, e, logo, o que é bom ou o que é uma virtude. Com efeito,
a questão de saber o que é bom é respondida com a questão de saber o
que é mau; e a resposta desta última questão é deixada pela ética aristo-
télica à moral positiva e ao direito positivo, à ordem social dada. É a
autoridade desta ordem social - e não a fórmula do mesotes - que deter­
mina o que é «demais» e o que é «demenos», que fixa os dois extremos,
isto é, os dois vícios, e, portanto, a virtude que se situa entre ambos. Esta
ética pressupõe como válida a ordem social estabelecida. A fórmula
tautológica do mesotes cifra-se em confirmar que é bom o que, segundo
a ordem social existente, é bom. Tem uma função inteiramente conser­
vadora: a manutenção da ordem social estabelecida.
O carácter tautológico da fórmula do mesotes revela-se com particular
clareza na sua aplicação à virtude da justiça. A r i s t ó t e l e s ensina: a
conduta recta é o meio termo entre praticar a injustiça e sofrer a
injustiça (1). Neste caso, a fórmula: a virtude é o meio termo entre dois
vícios, nem sequer tem sentido como uma metáfora, pois a injustiça que
praticamos e a injustiça que suportamos não são de forma alguma dois
vícios ou males mas uma e mesma injustiça, aquela que um pratica e
que, portanto, um outro sofre. E a justiça é simplesmente o oposto desta
injustiça. A questão decisiva: O que é a injustiça, não obtém resposta da
fórmula do mesotes. A resposta é pressuposta; e A r i s t ó t e l e s pressupõe
evidentemente como injusto aquilo que é injusto segundo a moral e o

(*) Op. cit., 1 1 3 3 b.

65
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL

direito positivos. A autêntica função da teoria do mesotes não é deter­


minar a essência da justiça, mas reforçar a vigência do ordenamento
social existente, estabelecido pela moral e pelo direito positivos. Aqui,
nesta sua função conservadora, reside a sua função política (*).

O p r in c íp io r e t r ib u t iv o c o m o p r in c íp io d e ju s t iç a

r6. O princípio de justiça historicamente talvez mais importante é


o da retribuição (Vergeltung). Ele exige uma pena para a falta ou ilícito
e tem, sob este aspecto, psicologicamente, a sua raiz no instinto vindi-
cativo do homem. Na medida em que o direito é uma ordem estatuidora
de sanções e as sanções consistem na aplicação coactiva de um mal
como reacção contra um ilícito, o direito - todo o direito - corresponde
ao princípio da retribuição. Mas o princípio retributivo postula também
um prêmio para o merecimento e é, assim, uma aplicação do preceito
moral da gratidão. Se o formularmos: A cada um segundo o seu mérito,
esta fórm ula somente estará completa se sob a expressão mérito
também entendermos o demérito - não só um valor positivo, mas tam­
bém um valor negativo.
A norma da retribuição prescreve, portanto, que àquele que faz bem,
se deve fazer bem, e àquele que faz mal, se deve fazer mal. Todavia, esta
fórmula é tão vazia como a fórmula segundo a qual devemos fazer o
bem e. omitir o mal e, como esta, pressupõe uma ordem normativa que
determine o que é bom e o que é mau, quer dizer: o que devemos fazer
e o que devemos omitir - como nos devemos conduzir. E, se com a
fórmula: A cada um o seu, queremos dizer: A cada um o que lhe é
devido, o que ele merece, então o princípio da retribuição já está nela
implícito.
a) É costume ver-se no princípio retributivo uma aplicação do princí­
pio da igualdade, que por muitos é considerado como sendo o princípio
da justiça puro e simples. A este ponto voltaremos mais tarde. Aqui
limitar-nos-emos apenas a verificar que, se a norm a de justiça da
igualdade diz: Todos os homens devem ser tratados por forma igual, o

(') Cfr. a propósito o meu estudo: «Aristóteles, Doctrine o f Justice» no meu livro:
What is Justice? Califórnia U niversity Press, Berkeley, 1954, pp. 1 1 0 e ss.

66
AS n o r m a s d a ju s t iç a

princípio da retribuição é justamente o oposto do princípio da


igualdade. Com efeito, ele não postula um tratamento igual mas um
tratamento desigual dos homens, enquanto prescreve, para aqueles que
fazem mal, uma pena, e para aqueles que fazem bem, um prêmio.
Mas talvez pudéssemos ver a ideia de igualdade no facto de, segundo
a norma retributiva de justiça, quando em dois casos a falta ou culpa é
igual, o castigo ou pena dever ser igual, e quando em dois casos o mere­
cimento é igual, o prêmio dever ser igual. Quer dizer: poderíamos reco­
nhecer na norma retributiva a aplicação do princípio de que aquilo que
é igual deve ser igualmente tratado, ou, formulado duma maneira ainda
mais geral, de que, sob iguais pressupostos, se devem produzir iguais
conseqüências. Este princípio será tratado em conexão com o princípio
de justiça da igualdade. Aí se indagará em que consiste a igualdade de
dois factos ou indivíduos e se mostrará que o princípio em apreço não
é o postulado de uma norma de justiça mas antes a lógica conseqüên­
cia do seu carácter geral.
b) O princípio da retribuição estatui que a uma determinada acção
- a conduta boa ou má de um homem - se deve seguir uma determinada
reacção - o prêmio ou a pena. Poder-se-ia ser tentado a reconhecer a
ideia da igualdade na relação entre acção e reacção. Com efeito, a norma
retributiva postula o mal para o mal, o bem para o bem - portanto, igual
para igual. Na form a mais prim itiva do princípio retributivo, o talião, é
isto mesmo o que se exprime: olho por olho, dente por dente. Como na
consciência primitiva não existe qualquer distinção clara entre interpre
tação explicativa e normativa, a verdade é identificada com a justiça ('),
a ideia da igualdade funciona aqui não só como norma da acção mas
também como norma do conhecimento. Segundo a concepção primitiva
não só se deve retribuir igual com igual como também somente é
possível conhecer o igual pelo igual (2).
Se, porém, analisarmos as coisas mais de perto, verificamos que no
princípio retributivo acção e reacção não são nem podem ser iguais, que

(') Quando J e s u s diz a P i l a t o s : « E u vim para dar testemunho da verdade» quer diz
er: dar testemunho da justiça.
P) Referindo-se à frase d e PLATÃO segundo a qual a fronte (o olho) é o órgão da per
cepção mais semelhante ao sol {Politeia, vi, 508), diz P l o t in o (1. Enneade, B. 6, c. 9): «Ja­
mais teriam os olhos visto o sol se eles próprios não fossem da natureza do sol - do mes
mo modo, a alma que não é bela não pode ver a beleza.»

67
A JUSTIÇA E o DIREITO NATURAL

na fórmula: o mal para o mal, o bem para o bem, a igualdade apenas


existe na expressão verbal e não na realidade. Acção e reacção represen­
tam valores; portanto, a igualdade de acção e reacção deveria ser uma
igualdade dos valores. Tal não é, porém, o caso. Quando a norma da
retribuição, na sua primeira parte, exige o mal para o mal, o mal da
acção consiste no facto de ela ser contrária à norma que o princípio
retributivo pressupõe, especialmente às normas que proíbem o homicí­
dio, o furto, a fraude, etc. É um valor negativo, um desvalor num sentido
objectivo que consiste na não conformidade com uma norma objectiva;
diferentemente de um valor ou desvalor num sentido subjectivo, que
consiste no facto de algo corresponder ou não corresponder - não a uma
norma, mas - ao desejo subjectivo de um indivíduo, porque lhe propor­
ciona prazer ou desprazer, porque é por ele recebido como um bem ou
como um mal.
Punido deve ser quem se conduz tal como, de acordo com a norma
pressuposta, se não devera conduzir. Mas o mal da reacção estatuída
pela norma retributiva não pode ser um desvalor neste sentido objec­
tivo, pois a reacção, o castigo, é posto pela norma de retribuição como
devido (devendo ser) e a sua execução opera-se em consonância com
esta norma, pelo que não é, consequentemente, um desvalor, mas um
valor. Isto, porém, significa que a reacção não é um mal - no sentido em
que a acção é um mal - mas um bem: um valor positivo e não um valor
negativo. Ela é um mal apenas no sentido subjectivo de que é, para
aquele contra quem se dirige, algo de mal, quer dizer, algo que ele recebe
como um mal porque lhe proporciona um desprazer - o que, de resto,
nem sequer tem de ser sempre e necessariamente o caso. Pode acon­
tecer - se bem que apenas excepcionalmente - que um malfeitor deseje,
por remorso, ser punido, porque a pena o liberta do aguilhão da sua má
consciência. Portanto, acção e reacção não são - como valores - de
forma alguma iguais, mas desiguais.
Poder-se-ia replicar que esta desigualdade é de natureza apenas
formal; que a conduta que deve ser punida e, por essa razão, é qualifi­
cada como falta ou ilícito, apenas deve ser punida porque tem sobre os
outros um efeito que estes recebem ou sentem como um mal, como algo
de mau, de tal modo, portanto, que não só a pena mas também a falta,
não apenas a reacção como também a acção representa um valor nega­
tivo em sentido subjectivo, isto é, representa algo que é recebido ou

68
AS NORMAS DA JUSTIÇA

sentido subjectivamente por aquele a quem afecta como um mal. Mas


também nem sempre e necessariamente é este o caso. É perfeitamente
possível que a conduta de um indivíduo em face de outro seja moral e
juridicamente proibida, muito embora seja desejada por este último
- como, por exemplo, quando também a morte a pedido da vítima é tida
como imoral e como um crime, quando é passível de punição o médico
que provoque a morte de um paciente, a repetidas instâncias deste, para
o libertar do seu sofrimento incurável.
Mesmo que apenas tomemos em consideração os casos normais, nos
quais tanto a acção como a reacção representam um mal subjectivo, o
mal da reacção não terá de ser, todavia, de modo algum, igual ao mal da
acção, conforme estabelece o princípio retributivo. Ao homicídio não
tem de corresponder de forma alguma a pena de morte; e, quando o
furto, que é a subtracção não consentida da propriedade, é punido com
a prisão, isto é, com a subtracção com pulsória da liberdade, temos,
um em face do outro, dois males subjectivos muito desiguais. Só o
princípio do talião - que é, porém, o princípio retributivo na sua forma
mais rude - prevê na acção e na reacção a igualdade dos males subjec­
tivos.
c) Essencialmente análoga é a relação entre acção e reacção na
segunda parte da norma retributiva, o preceito: ao merecimento a sua
recompensa, o bem para o bem. Só que aqui a reacção, não só objectiva
como subjectivamente, é um valor positivo. Mas os dois valores que a
acção e a reacção representam também neste caso podem ser muito
diferentes. Tal sucede, por exemplo, quando a recompensa por um acto
de bravura consiste na honra expressa pela medalha que, aquele a quem
tal honra é conferida, é autorizado a trazer ao peito. Bravura e
homenagem representam dois valores muito diferentes. O dever ser con­
ferida a igual mérito igual recompensa não é imanente ao princípio
retributivo como tal, mas - tal como o princípio de que á igual falta deve
caber igual pena - é conseqüência do carácter geral da norma da
retribuição.
d) A relação entre acção e reacção na norma retributiva de justiça
não é a de igualdade mas a de proporcionalidade. Isso exprime-se na
norma: Quanto maior for a falta, tanto maior deve ser o castigo; quanto
maior o merecimento, tanto maior deve ser a recompensa. Trata-se aqui
da proporcionalidade entre os valores positivos ou negativos que a acção

69
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
AS NORMAS DA ju s t iç a

e a reacção representam. Tal proporcionalidade pressupõe que estes


valores possam ter diversos graus. Isso, porém, não se aplica aos valores por form a a que, no caso do valor negativo 0 11 n n . i e j

multiplicado por „-vezes o valor negativo ou posMvo H° ser


em sentido objectivo. Se o juízo segundo o qual uma conduta tem um
ser igualmente m u„ i plieado por , L e ,
valor positivo, é boa, significa que ela corresponde a uma norma que a
preceitua, e o juízo segundo o qual uma conduta tem um valor negativo porem, apenas seria possível se os valores tomados
em consideração
ou é má, significa que ela é contrária a uma norma que a prescreve, se fossem quantitativamente mensuráveis. Tal não é porém o r
o valor positivo ou negativo reside neste ser-conforme ou ser-descón- Consequentemente, nas relações entre a acção e a reacrãn H
forme à norma, então não pode ter qualquer grau. Uma conduta não retributivo não se pode falar de proporcionalidade num s e n X e T t r T ’
pode corresponder mais ou menos a uma norma ou contrariáda mais mas apenas num sentido aproximativo. eStnto
ou menos e, portanto, não pode ser mais ou menos boa ou mais ou
menos má. Ela apenas pode ser-lhe conforme ou não lhe ser conforme,
contrariáda ou não a contrariar, quer dizer: neste sentido objectivo, ela
apenas pode ser boa ou má, não mais ou menos boa nem mais ou menos
má - apenas pode ser um valor positivo ou negativo, não um valor ou
desvalor maior ou menor. 17. Uma norma de justiça que é aparentada com o
princípio da
Se o homicídio é considerado como um crime mais grave e, portanto, retnbuiçao, na medida em que produz uma conexão entre uma accão e
um desvalor maior que o furto, isso não pode ser por o homicídio ser uma reacçao, e aquela que abreviadamente se pode formular- A r ri
mais contrário à norma que proíbe esta conduta do que o furto é con­
trário à norma que proíbe estoutra conduta. A diferente graduação não
se pode referir ao valor em sentido objectivo mas apenas ao valor em
sentido subjectivo. O ser-desejado ou o não-ser-desejado algo pode ser do„a. No primeiro caso a reacção é um salário, no segundo " um préco
mais ou menos intenso, o prazer ou desprazer que provoca esse algo
pode ser maior ou menor. Se o homicídio é julgado pela sociedade um la T ic Z Í^ r tr reaM“ ™
crime mais grave do que o furto, é porque aquele é mais indesejável do
que este, porque o desprazer, a reacção emocional que é produzida na
sociedade em caso de homicídio é mais intensa do que no caso de furto.

p p S íilil
Por outras palavras: porque o prejuízo que o homicídio causa à socie­
dade é mais fortemente sentido do que o prejuízo que o furto provoca,
porque a segurança da vida é ainda mais desejada do que a segurança
da propriedade. Igualmente, a pena de morte é uma pena mais grave do
que a de prisão porque a vida representa um valor subjectivo maior do
que a liberdade (1).
Proporcionalidade no estrito sentido da palavra só existe, então, entre “ " ° ' ma em qUeStá° é por ve2es formulada da seguinte
os valores em sentido subjectivo que a acção e a reacção do princípio re e b e r 0 ; af e mc P ' e S ,a
" a b a lh ° " '^ r c a d o r i a 8 d e v e
retributivo representam, quando a relação entre as duas é estabelecida í o saiano correspondente ao valor do ■ ‘

(’ ) Cfr. Teoria Pura do Direito, vol. i, pp. 39 e ss. orero i . ° Prestação deve determii o salário ou o
P eço. Isto pressupõe a concepção jusnaturalista de que o valor objec-
70
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL

tivo da prestação é imanente a esta, pode ser determinado através de


uma análise da realidade dos factos. Esta concepção é, como veremos,
insustentável. Ora o valor da prestação só pode determinar o salário ou
o preço se tal valor é imanente ao trabalho a recompensar pelo salário
ou à mercadoria a pagar. Todavia, não é o valor da prestação do trabalho
que determina o salário ou o valor da mercadoria que determina o
preço, mas, inversamente, o valor da prestação de trabalho é determi­
nado pelo salário e o valor da mercadoria é determinado pelo preço que
a prestação de trabalho ou a mercadoria efectivamente produzem.
O valor aqui tomado em consideração é o valor econômico. Este, quer
dizer, o salário da mesma form a que o preço, é determinado, nos
quadros de uma economia livre, através da oferta e da procura e,
nos quadros de uma economia planeada, através de uma regulamen­
tação autoritária.
Assim como, relativamente ao princípio da retribuição, se põe a
regra: Para uma falta igual um castigo igual, para um merecimento
igual, uma recompensa igual, também relativamente ao princípio da
prestação se põe análoga regra fundamental: Para uma igual prestação
de trabalho, um salário igual, para uma mercadoria igual, um preço
igual. É a aplicação do princípio geral de que, sob iguais condições,
devem produzir-se iguais conseqüências. Este princípio será objecto
de indagação ao procedermos à análise do princípio de justiça da
igualdade.

P r o p o r c io n a l id a d e e n t r e p r e s t a ç ã o e c o n t r a p r e s t a ç ã o e c ô m p u t o do

s a l á r io

18. Se o pagamento do salário do trabalho é feito em dinheiro, pode


haver estrita proporcionalidade nas relações entre a prestação e o
salário. Sob este aspecto, distinguem-se dois sistemas de salário. Num
deles, o critério ou medida do salário é o tempo de trabalho, no outro,
é o produto ou resultado do trabalho (sistema do trabalho por tarefa).
Se está estabelecido que alguém deve receber um determinado salário
pelo trabalho de uma hora ou pela produção de uma determinada
unidade de certa forma qualificada, então, quem trabalhe n-horas ou
produza n-unidades deve receber um salário n-vezes superior. Esta

72
AS NORMAS DA JUSTIÇA

proporcionalidade pressupõe que, para o trabalho de uma hora ou


para a produção de uma unidade de certa form a qualificada, esteja
fixado por uma norma um determinado salário. Esta norma: se
alguém trabalha uma hora ou produz uma unidade de certa forma
qualificada deve receber um determinado salário, é a base de ambos os
sistemas de salário. Nela se exprime o princípio da justiça referida à
prestação.
Mas esta norma não traduz por si qualquer proporcionalidade nas
relações entre prestação de trabalho e salário. Estas relações podem ser
determinadas por toda e qualquer forma e - como já notámos - são
determinadas, nos quadros de uma economia livre, através da oferta e
da procura, e, nos quadros de uma economia planeada, através de uma
regulamentação autoritária. A proporcionalidade, que consiste em que
a uma prestação de trabalho de n-horas ou à produção de n-unidades
cabe (é devido) o salário de n-vezes, resulta do facto de a norma que
constitui a base dos sistemas de salário ter um carácter geral e, portanto,
poder ser aplicada, não apenas em um só caso, isto é, quando apenas se
trabalhe uma vez uma hora ou se produza uma vez uma unidade, mas
também quando se trabalhe n-horas ou sejam produzidas n-unidades
- de ela poder, pois, ser aplicada n-vezes; e de, quando é aplicada n-vezes,
resultar um salário de n-vezes. Mas o princípio da justiça referida à
prestação também é aplicável quando não seja o caso de se trabalhar
mais que um a hora ou produzir mais que uma unidade, quando
efectivamente se trabalhe uma hora ou produza uma unidade apenas
uma única vez, ou seja, portanto, quando nem sequer apareça qual­
quer proporcionalidade nas relações entre a prestação de trabalho e o
salário.
Para as relações entre mercadoria e preço não se considera o pro­
blema da relação de proporcionalidade. Se uma mercadoria quantitativa
e qualitativamente determinada tem um detetminado preço, nós não
supomos que seja justo que a quantidade de n-vezes desta mercadoria
deva ter o preço de n-vezes. Com efeito, por vezes considera-se adequado
um preço inferior ao de n-vezes. Quem compra cem unidades de uma
mercadoria não paga - justamente - cem vezes aquilo que teria a pagar
se apenas comprasse uma unidade, mas bastante menos. Vale como
justo que o preço por atacado de uma determinada mercadoria é menor
do que o preço de retalho.

73
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l
a s n o r m a s d a ju s t iç a

A n á lis e d o p r in c íp io d e ju s t i ç a c o m u n is t a f o r m u la d o p o r M a r x
Como na realidade nunca dois objectos são completamente iguais
isto e, iguais sob todos os aspectos, eles apenas poderão ser iguais sob
19. Na sua crítica da ordem social capitalista afirma K A R L M A R X ( ') certos aspectos, quer dizer: se ignorarmos a sua desigualdade sob outros
que o princípio de justiça que está na base desta ordem social é o aspectos. A crítica de M a r x à ordem econômica capitalista reconduz-se
postulado: a igual prestação de trabalho cabe igual salário, isto é, cabe ao postulado de que não devemos ignorar, ao pagar o salário do trabalho
igual participação no produto do trabalho. Este seria o pretenso «direito certas desigualdades, a saber, a desigualdade das capacidades e neces­
igual» deste sistema econômico. Seria na verdade, porém, um direito sidades dos diferentes indivíduos em singular, desigualdades essas que
desigual, pois não toma em consideração as desigualdades entre os são ignoradas no sistema de salário da ordem econômica capitalista.
indivíduos no que toca à sua capacidade de trabalho - pelo que não sena Cumpre-nos concordar com ele em que este sistema não representa um
um direito justo, mas um direito injusto. Com efeito, o quantum igual direito igual, não, porém, pela razão de que trata igualmente o que é
de trabalho, medido pelo tempo ou pelo produto (resultado) do trabalho desigual, mas porque trata desigualmente o que é desigual, porque, de
prestado ou realizado por um indivíduo mais forte e mais dotado e por conformidade com o principio da prestação que lhe está na base, alguém
um indivíduo mais fraco e menos dotado, só aparentemente é igual. Por que trabalhe durante mais tempo ou produza mais unidades recebe um
isso, se ambos recebem pelo seu trabalho a mesma participação no salário maior do que aquele que trabalhe menos tempo ou produza
produto do trabalho, caber4 hes-á igual por desigual. A verdadeira menos unidades. Também o princípio de justiça da economia comu
igualdade e, portanto, a verdadeira - e não apenas aparente - justiça msta, formulado por M a r x , não corresponde de forma alguma - como
apenas poderia ser realizada na economia comunista do futuro em que ele, identificando justiça e igualdade, parece pressupor - ao princípio da
valerá a regra: Cada um segundo as suas capacidades, a cada um igualdade, quer dizer, à exigência ou postulado que manda tratar a todos
segundo as suas necessidades (2). igualmente, mas - precisamente ao contrário - à exigência ou postulado
Çue manda tratar desigualmente o que é desigual.
a) A fórmula: - Cada um segundo a sua capacidade, a cada um
(') «Zur K ritik des sozialdemokratischen Parteiprogramms». Aus dem Nachlass von
segundo a sua necessidade - consta de duas exigências que podem sei
K a r l M a r x . Neue Zeit, IX. Jahrgang, 1. Bd. (18 90-18 91), pp. 5 6 1 e ss.
(2) Na parábola dos trabalhadores da vinha (Mateus, XX, 1-16), na qual Jesus compara entendidas com o sentido de que, a primeira, postula um dever do
o Reino de Deus a um pai de fam ília que contrata trabalhadores para a sua vinha, diz-se indivíduo: o dever ou obrigação de produzir segundo as suas capaci­
que o pai de fam ília deu àqueles que trabalharam doze horas na vinha o mesmo salário dades; e a segunda postula um direito do indivíduo: o direito à satisfaçao
- a saber, um a moeda - que àqueles que trabalharam apenas nove, seis, duas horas ou das suas necessidades. Ambas vão dirigidas à estruturação de uma
mesmo uma hora. Como os primeiros m urmurassem contra isso, Jesus põe na boca do ordem social.
patrão estas palavras: «Meu amigo, eu não te faço injustiça. Não combinaste tu comigo
uma moeda? Toma o que te pertence (o que é teu) e vai-te. Eu quero, porém, dar a estes
A ptim eira identifica-se, no essencial, com o princípio que P l a t a o
últimos 0 mesmo que a ti. Ora não poderei eu fazer o que quero com aquilo que é meu? estabelece ao descrever a constituição do seu Estado Ideal no diálogo
Vês tu com maus olhos o facto de eu ser tão bondoso? Pois os últimos serão os primeiros Politeia (1): Que cada indivíduo apenas deva produzir o que é conforme
e os primeiros serão os últimos...» Os que haviam trabalhado doze horas estão descon­ com a sua natureza, ou seja, afinal, o que corresponde às suas capaei
tentes, pois pressupõem uma norma geral por força da qual a cada hora de trabalho deve
corresponder uma moeda de salário. Só que o patrão - tal é o sentido que Jesus dá às
suas palavras - nega a validade de uma tal norma. Ele remete os descontentes para a nor norma de justiça do amor, que Jesus opõe à norma de justiça vigente na sociedade de.su>
ma individual que, estabelecida através do contrato com cada um deles celebrado, estatui mundo - segundo a qual a cada um deve pagar-se conform e a sua prestação - com..
o salário de um a moeda para doze horas de trabalho. O facto de àqueles que trabalham principio revolucionário de justiça do vindoiro Reino de Deus, no qual os últimos será»
menos ser atribuído salário igual não é injusto, pois não viola qualquer norma os primeiros e os primeiros serão os últimos. Cfr. a propósito, infra.
pressuposta como válida. É justo, pois é conform e ao princípio da bondade, isto é, à (') P l a t á o , Politeia, li, 374, iv, 433, v, 453 e s.

74 7.5
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

dades. Compreende-se como evidente que, com a exigência: Cada um


segundo as suas capacidades, não pode significar-se que a questão de
saber qual a capacidade de cada um e qual a produção que, em corres­
pondência com esta capacidade, haja de ser posta a seu cargo, há-de
ser respondida por cada indivíduo segundo o seu próprio critério. Não
se pode pôr seriamente em dúvida que esta questão tem de ser
decidida pelos órgãos da comunidade a tal chamados, e apenas por
eles, segundo normas gerais do ordenamento da mesma comunidade.
O postulado: Cada um segundo as suas capacidades, pressupõe esse
ordenamento - ele não é aplicável sem um tal ordenamento, dado como
preexistente.
Mas então surge a questão de saber o que há-de acontecer, como
liá-de o ordenamento reagir, quando um indivíduo, por quaisquer
razões, não produzir o que, segundo as suas capacidades, de con­
formidade com o mesmo ordenamento, devera produzir. Esta questão
é tanto mais importante quanto é certo que uma ordem social só
pode evidentemente assegurar a satisfação da segunda exigência:
A cada um segundo as suas necessidades - quando a prim eira exi­
gência, que postula que cada um deva produzir segundo as suas
capacidades, for satisfeita. M a r x não dá a esta questão qualquer res­
posta, sim, nem mesmo põe esta questão, pois parte do utópico pres­
suposto de que, quando na sociedade comunista as necessidades de
cada um forem satisfeitas e cada um apenas tenha de produzir con­
forme as suas capacidades, esta ordem social não corre perigo de ser
violada, pois que cada um produzirá voluntariamente aquilo a que a
ordem social o obriga; ou seja, parte do pressuposto de que esta ordem
social não precisa de estatuir quaisquer actos de coerção como sanções
e, portanto, constitui uma comunidade sem Estado e sem direito.
Admitida a possibilidade de uma violação da ordem social - ainda
que só em casos excepcionais -, surge a questão de saber se também
hão-de ser satisfeitas as necessidades de um membro da comunidade
que viole o seu ordenamento.
Esta questão, segundo o espírito do princípio de justiça comunista,
há-de sem dúvida ser respondida pela afirmativa, pois tal princípio
contrapõe-se conscientemente ao princípio da retribuição.
b) Também perante o segundo postulado do princípio de justiç
comunista: A cada um segundo as suas necessidades - surge a questão

76
a s n o r m a s d a ju s t iç a

de saber se para tal se pressupõe um critério subjectivo ou um critério


objectivo, se por «necessidade» se há-de entender aquilo que cada indi­
víduo de facto sente como necessidade e especialmente se, segundo tal
postulado, todas as necessidades neste sentido subjectivo devem ser
satisfeitas - ou se apenas devem ser satisfeitas as necessidades reconhe­
cidas pela ordem social como dignas de satisfação e tão-só segundo uma
hierarquização estabelecida pela mesma ordem social e com os meios
também por ela determinados. Pode ser que, por motivos propagandís-
ticos, não seja expressamente excluída uma interpretação no primeiro
sentido mencionado. Com efeito, na satisfação de todas as necessidades
sentidas pelo indivíduo reside a felicidade deste; e a ordem social
comunista, que corresponde a esta norma de justiça, quer assegurar a
felicidade de todos.
A exigência: a cada um segundo as suas necessidades, como uma das
exigências do princípio comunista de justiça, deve, portanto, ser
indubitavelmente interpretada num sentido subjectivo se a profecia da
sociedade comunista há-de ser entendida como promessa da felicidade
completa de todos os seus membros. Tal, porém, é uma ilusão tão
utópica como aquela segundo a qual, nesta sociedade, todos cumprirão
voluntariamente os seus deveres. As necessidades que os homens
subjectivamente sentem estão de tal forma em conflito umas com as
outras que nenhuma ordem social pode satisfazê-las todas, isto é,
satisfazê-las de outra forma que não seja contentando uma a expensas
de outra - e não apenas a necessidade de um indivíduo a expensas da
de um outro, mas também uma necessidade de um indivíduo à custa de
uma outra necessidade do mesmo indivíduo.
c) Se a exigência: a cada um segundo as suas necessidades, não
há-de ser excluída, como completamente irrealizável, de uma análise das
normas de justiça do tipo racionalista, apenas poderá ser entendida sob
a condição de se pressupor um critério objectivo para a postulada
satisfação das necessidades. O verdadeiro sentido do princípio de justiça
comunista apenas pode ser: Cada um deve, segundo as suas capacidades,
fixadas de conformidade com o ordenamento social, realizar o trabalho
que é posto a seu cargo pelo mesmo ordenamento social; e a cada um
devem ser satisfeitas as necessidades pelo ordenamento social reconhe­
cidas, pela ordem no mesmo ordenamento estabelecida e com os meios
determinados também por esse ordenamento.

77
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

Como uma ordem social comunista é, em primeira linha, uma ordem


econômica, são de considerar antes de tudo as necessidades econô­
micas, como a necessidade de alimentação, de vestuário, de habita­
ção, etc. O ideal comunista de justiça é, antes de tudo, o ideal da
segurança econômica de todos os membros da comunidade, o qual
apenas pode ser realizado através da economia planeada e não por meio
da economia livre do sistema capitalista. Também o ideal de justiça
comunista pressupõe, como a norma de justiça que manda dar «a cada
um o seu», uma ordem social sem a qual não pode ser aplicada.
Todavia, sobre o conteúdo das suas determinações, sem as quais nem
o postulado «cada um segundo as suas capacidades» nem o postulado
«a cada um segundo as suas necessidades» podem obter satisfação, este
princípio de justiça diz-nos tanto como a fórmula «a cada um o seu»
nos diz sobre o que deve ser havido como o «seu» de cada um: nada
nos diz.
O segundo postulado do princípio de justiça comunista: a cada um
segundo as suas necessidades, também é respeitado, dentro de certos
limites, nas ordens sociais não comunistas. Assim, a legislação de
política social dos Estados modernos pode ser entendida do ponto de
vista deste postulado (1).

O p r e c e it o d o a m o r do p r ó x im o

20. Se a exigência: a cada um segundo as suas necessidades, se


dirige, não à autoridade legisladora, especialmente, não ao legislador,
mas a todo e qualquer indivíduo, e se com ela se quer traduzir uma
norma que prescreve como cada um se deve conduzir em face dos
demais, como deve tratar qualquer outra pessoa, então tal exigência
torna-se no preceito do amor do próximo. Nesse caso, porém, também
o círculo das necessidades que hão-de ser satisfeitas sofre um estreita­
mento essencial. O preceito do amor do próximo apenas exige que
libertemos o que sofre dos seus sofrimentos, que minoremos ou sua­
vizemos os seus males e, especialmente, que ajudemos quem está
necessitado. Tal como na exigência geral: devemos satisfazer as neces­

(') A isto se refere P e re lm a n , op. cit., pp. 1 7 e s.

78
AS NORMAS DA JUSTIÇA

sidades dos outros, também no preceito do amor do próximo, isto é, na


exigência especial que manda satisfazer á necessidade de outrem,
libertá-lo do sofrimento, prestar-lhe ajuda quando necessitado, a «neces­
sidade» pode ser entendida num sentido subjectivo ou num sentido ob­
jectivo.
É o último o caso quando o preceito do amor do próximo deva
ser interpretado no sentido de apenas exigir a libertação dos sofrimen­
tos de que se não tenha culpa e prescrever o auxílio apenas no caso de
necessidade inculposa. Sendo assim, este preceito, como as outras
normas de justiça, pressupõe uma ordem social segundo a qual possa
ser decidido quando é que um sofrimento ou um estado de necessidade
é inculposo. E se o critério da necessidade que o preceito do amor do
próximo manda satisfazer não é um critério subjectivo, mas um critério
objectivo, então esse preceito pode ter aplicação também quando o
indivíduo em face do qual o amor do próximo se deve manifestar não
tenha ele próprio, de form a alguma, a sensação do sofrimento ou
não se creia em estado de necessidade, sempre que ele, segundo um
qualquer critério moral ou religioso, «sofra» de qualquer necessidade ou
esteja ameaçado de qualquer mal que talvez desconheça: esteja «neces­
sitado». Com fundamento em que a alma de um infiel ou descrente
sofre por estar separada do verdadeiro Deus, pois que o inferno a
ameaça, têm os crentes cristãos feito tentativas de conversão, no
exercício do seu dever de amor do próximo - mesmo com o emprego
da força.
Imediatamente ocorre entender o preceito do amor do próximo no
sentido de que ele exige que prestemos ajuda a todo aquele que - com
culpa ou sem ela - subjectivamente sofre ou se encontra necessitado.
Neste caso, ele não pressupõe na sua aplicação qualquer espécie de or­
dem social e assim se distingue das outras normas de justiça. Isto,
porém, não é razão para afirmar que o preceito do amor do próximo não
constitui sequer uma norma de justiça, como por vezes se faz. Um tal
ponto de vista apenas terá razão de ser se limitarmos o conceito de
justiça àquelas exigências ou postulados que se dirigem à autoridade leg-
isladora (criadora das normas). Se por justiça, porém, entendermos uma
norma que prescreva o tratamento a dar a um homem por parte de out­
ro e que não tem de se dirigir necessariamente à autoridade normado-
ra, o preceito do amor do próximo pode, sem mais, ser considerado

79
A ju st iç a e o d ir e it o n a t u r a l

como uma das muitas normas de justiça (1). A propósito importa


observar que o preceito do amor do próximo, que pode valer indepen­
dentemente de qualquer pressuposto m etafísico pois exige amor de
homem para homem, deve ser distinguido do princípio metafísico do
amor de Deus, do princípio de justiça proclamado por Jesus - que,
todavia, também reconhece o preceito (que dele se distingue) do amor
do próximo (ou caridade).

21. Na sua doutrina - tal como ela, com muitas contradições,


apresentada nos Evangelhos - aparece, contudo, também um outro
pi ineípio de justiça que a custo é compatível com o do amor do próximo,
liste exige que aqueles que aqui são os primeiros sejam os últimos no
Reino que há-de vir (2), que os que aqui são os últimos sejam aí os pri­
meiros, que os que aqui estão fartos aí passem fome, que os que aqui
passam fome aí sejam saciados p), que os que aqui vêem aí sejam cegos,
que os que aqui são cegos aí vejam (4), que os que aqui riem aí chorem,
que os que aqui choram aí riam (5). É a exigência ou o postulado
segundo o qual, para que as coisas possam processar-se equilibrada ou
icetainente, no futuro tudo terá de ser diverso do que é no presente
pois o modo como as coisas agora decorrem é injusto. É o princípio
de justiça da completa subversão do que actualmente subsiste, da
revolução no sentido literal desta palavra.

(') O argumento de P e r e lm a n [op. cit., pp. 5 8 e s.), que afirm a que o preceito do
amor do próximo se opõe directamente ao princípio da justiça («La charité est la vertu
la plus directement opposée à la justice»), que a justiça é uma regra ao passo que o amor
do próximo não é determ inado através de regras, não colhe em qualquer dos casos.
() preceito do amor do próxim o é a regra, quer dizer, a norm a geral segundo a qual,
quando alguém sofre, devemos prestar-lhe auxílio. O próprio P e re lm a n caracteriza 0
amor do próximo dizendo: «Des hommes souffrent, il faut les aider». Segundo Leibnitz,
a justiça é o amor do próximo dos prudentes. Diz ele: «Um homem bom ama todos os
homens na medida em que a razão o permite. Por conseguinte, nós definiremos a justiça,
que é a virtude directriz deste im pulso e que em grego se chama amor dos homens,
com o amor dos prudentes (sábios)...» G o t t f r i e d W ilh e lm L eib n itz , Gott Geist Güte.
líine Auswahl aus seinen Werken, Gütersloh, 1947, p. 2 14.
(J ) M a t e u s , x v iii , 4, xix, 30, xx, 16, 26; M a r c o s , ix , 35, x, 44; L u c a s , xm, 30.
(-1) Lu c a s , v i, 2 1 , 24, 25.
(*) JoAo, ix, 39.
(s) L u c a s , v i, 2 1 , 25.

80
AS n o r m a s d a ju s t iç a

Na doutrina de JE SU S deve ter-se como dogma de f é que o presente


Aion ou Era é um reino de Satã ou do Mal que será destruído pelo Áion
ou Era do Bem, pelo Reino de Deus, que é o reino da justiça, pois tornará
infelizes os que agora são injustamente felizes e fará felizes os que agora
são injustam ente infelizes. É o princípio da retribuição, tal como é
interpretado pelos desprotegidos da sorte, sob a forma de ressentimento
contra os favorecidos pelo destino.

A id e ia d e l ib e r d a d e c o m o f u n d a m e n t o d a ju s t iç a

22. Um princípio de justiça do mais alto valor político é o que se


apresenta com base num sistema moral em que a liberdade individual
é tida como o valor supremo. A ideia originária de liberdade tem
carácter puramente negativo. É o postulado individualista de que
o homem deve ser livre, quer dizer, não estar submetido a qualquer
ordem normativa que regule a sua conduta em face dos outros e limite,
consequentemente, a sua liberdade individual. É uma norma que
exclui a validade de todas as normas sociais que limitam a liberdade
individual.
Nesta sua form a originária, a ideia da liberdade é um princípio
associai, anti-social mesmo. Como princípio moral, ou seja, afinal, como
princípio social e particularmente como princípio de justiça, a ideia de
liberdade tem de sofrer transformação. A liberdade (= libertação) da
ordem normativa tem de tornar-se em liberdade sob a ordem normati-

(') A m etam orfose da ideia de liberdade foi por mim desenvolvida no trabalho: Vom
Wesen und Wert d er Demokratie, 2.a ed., Tübingen, 1929. Na sua M etaphysik der Sitten
(vi, pp. 230 e ss.) form ula K a n t , sob o nome de «princípio universal do direito» a
seguinte regra: «É justa toda e qualquer acção segundo cuja maxima a liberdade do
arbítrio de cada um se pode conciliar com a liberdade de todos os outros segundo um a
lei universal». A ssim limitado, o princípio da liberdade torna-se, de um ideal associai,
num ideal social, mas, em si, não é conciliável com o direito positivo como ordem de
coacção. Com efeito, a liberdade de um apenas é conciliável com a liberdade de todos
os outros se a ninguém é lícito em pregar a coacção contra os demais. Ora o direito
positivo prescreve a coacção do hom em pelo homem.
Dado que K a n t tenta apresentar a ordem de coacção do direito positivo como
conciliável com o ideal da liberdade e, assim, justificá-la com base nele, ele interpreta o
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

va, a liberdade individual tem de transformar-se em liberdade social (-1).


Se tem de existir uma ordem normativa que vincule os homens na sua
conduta recíproca, ela apenas poderá ser uma ordem erigida com base
no assentimento dos indivíduos que lhe vão ficar submetidos. Pois o
homem apenas deve, ou - como por vezes também se formula - apenas
pode ser vinculada através da sua própria vontade.

seu princípio do direito pela seguinte forma: «Logo, a lei jurídica universal: actua exter­
namente de tal forma que o livre uso do teu arbítrio possa conciliar-se com a liberdade
de todos os outros segundo uma lei universal, é na verdade uma lei que me impõe uma
vinculação, mas de forma alguma espera nem muito menos exige que eu próprio deva,
inteiramente em razão desta vinculação, lim itar a minha liberdade por aquelas
condições, pois a razão apenas diz que ela, na sua ideia, está por elas lim itada e pode
também, licitamente, ser de facto compelida pelos demais a confinar-se àqueles limites; e
isto ela o diz como um postulado que não é capaz de qualquer outra demonstração».
Quer dizer: do princípio do direito por ele formulado não se segue - o que realmente re­
sulta, no entanto, de seu teor verbal - que o indivíduo não possa exercer qualquer
coacção contra um outro. Contra aquele que pratica o ilícito é permitido, deve-se mesmo
- segundo o direito positivo - exercer coacção.
A fim de tornar também com patível com o princípio da liberdade esta limitação,
tem K a n t de interpretar todo o ilícito como «obstáculo à liberdade» e a coacção dirigida
contra o autor do ilícito como conciliável com a liberdade - o que recorda a fórm ula
altamente contraditória de R o u s s e a u segundo a qual os hom ens poderiam ser com­
pelidos a ser livres (Contrat social, livre I, chap. 7). «O direito está ligado ao poder de
coagir. A resistência que é oposta ao impedimento de um resultado é uma promoção
deste mesmo resultado e concilia-se com ele. Ora tudo o que é injusto é um impedimen­
to da liberdade segundo leis universais. A coacção, por seu turno, é um impedimento ou
oposição que acontece à liberdade. Consequentemente: quando um certo uso da própria
liberdade é um obstáculo à liberdade segundo leis universais (quer dizer, é injusto), a
coacção que a tal uso é oposta concilia-se, como im pedim ento de um obstáculo à
liberdade, com a liberdade segundo leis universais, isto é, é justa. Por conseguinte, ao
direito está ao mesmo tempo ligado, segundo 0 princípio da contradição, um poder de
coagir quem o viole».
E assim a coacção se torna conciliável com a liberdade, que é o seu oposto. «O direito
estrito («aquele ao qual nenhum elemento ético se mistura») pode também ser confi­
gurado como a possibilidade de uma coacção recíproca universal que se concilia com a
liberdade de cada um segundo leis gerais». K a n t parte da norma de justiça da liberdade,
mas, no intento de justificar através dela a ordem coactiva do direito positivo, chega
- nem outra coisa seria de form a alguma possível - à sua anulação.

82
AS NORMAS DA JUSTIÇA

O «c o n t r a t o s o c ia l » e o id e a l d e ju s t iç a d a d e m o c r a c ia l ib e r a l

23. Sobre esta ideia de liberdade se apoia a teoria do contrato social


do jusnaturalismo individualista. Somente será justa uma ordem
social instaurada através do acordo dos que lhe estão subordinados, ou
seja, afinal, através de contrato ou deliberação unânime. O princípio de
justiça da autodeterminação não se refere ao conteúdo mas à produção
ou criação da ordem social. Todavia, ele apenas pode ser sustentado para
a hipótese imaginária da primeira constituição da ordem social, mas já
não pode ser aplicado ao processo da sua modificação. Com efeito, se
também uma alteração da ordem social vigente apenas fosse lícita
através de acordo ou de deliberação unânime dos súbditos, poderia, se
não concordassem todos com uma modificação desejada por muitos,
apresentar-se a situação paradoxal de a ordem social instituída segundo
o princípio da autodeterminação ser contrária à vontade de muitos e,
portanto, contradizer o princípio da autodeterminação. Isso conduz a
um enfraquecimento deste princípio. Com efeito, a ordem social vigente;
deve harmonizar-se, não com a vontade de todos os que lhe estão
submetidos, mas apenas com a vontade do maior número possível - e
ser contrária à vontade do menor número possível- Consequentemente,
aceita-se o princípio da maioria. A justiça da autodeterminação trans
forma-se em justiça da democracia.
Eis uma forma de justiça que de modo algum define o conteúdo da
ordem jurídica criada pela via democrática. Esta pode mesmo imiscuir
-se, em toda e qualquer medida, na esfera de liberdade dos indivíduos
que lhe estão sujeitos. O princípio da autodeterminação maioritária não
preclude uma democracia totalitária. Mas a ideia originária da liberdade
não se deixa suplantar completamente pela ideia da autodeterminaçao
enfraquecida pelo princípio maioritário. Ela é ainda suficientemente
forte para, na teoria do liberalismo do século XIX, fazer aparecer como
um mal - se bem que um mal necessário - uma ordem social erigida
segundo o princípio da autodeterminação e m odificável segundo o
princípio maioritário e bem assim, por conseguinte, o Estado através
dela constituído. E é esta ideia originária de liberdade, o ideal anti-social
do não-estar-sujeito a vinculação normativa, que leva a exigir que a com
petência do Estado seja reduzida a um mínimo, isto é, que o conteúdo
das normas que constituem a ordem jurídica seja modelado por forma
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

tal que a liberdade individual das pessoas sujeitas a esta ordem seja
restringida o menos possível. É este o ideal de justiça da democracia
liberal que garante a liberdade da economia, a liberdade de crença, a
liberdade da ciência.

J ustiça e ig u a ld a d e . A ig u a ld a d e c o m o c o n s e q ü ê n c ia ló g i c a d a g e n e ­
ralidade d a n o r m a . A ig u a ld a d e p e r a n te a le i

24. Completamente diferente do princípio de justiça da liberdade e


pnrcialmente contraditório com ele - se bem que frequentemente a ele
np encontre ligado na ideologia política - é o princípio de justiça da
Imunidade. Tal princípio exprime-se na norma: todos os homens devem
nim' tratados por igual. Esta norma de nenhuma forma pressupõe que
todos os homens sejam iguais; pelo contrário, ela pressupõe a sua desi­
gualdade. Todavia, exige que não se faça acepção de qualquer desigual­
dade no tratamento dos homens. A afirmação de que todos os homens
sflo iguais está em aberta contradição com os factos. Quando, apesar
disso, se recorre a ela para fundamentar a exigência ou postulado de que
todos os homens devem ser tratados por igual, ela apenas pode signifi­
car que as desigualdades de facto existentes - e que não é possível
negar - são irrelevantes para o tratamento dos homens (1).
Os homens (assim como as circunstâncias externas) apenas podem
ser considerados como iguais, ou, por outras palavras, apenas há
homens iguais (ou circunstâncias externas iguais), na medida em que
as desigualdades que de facto entre eles existem não sejam tomadas em

(') Quando, na doutrina do direito natural, frequentemente aparece a afirm ação de


que os homens são por natureza iguais, que eles «nasceram» iguais, isto im plica a ideia
de que todos os homens são por natureza bons, foram criados pela natureza ou por Deus
como bons, em bora depois se tenham tornado maus através de quaisquer influências
externas. Assim , C í c e r o , De Legibus I, x, 29: «Nihil est enim unum uni tamen simile,
tam par, quam omnes inter nosmet ipsos sumus. Quod si depravatio consuetudinum,
si opinionum varietas non im becillitatem animorum torqueret et flecteret quocumque
coepisset, sui nem o ipse tam sim ilis esset quam omnes sunt om nium . Itaque
quaecumque est hom inis definitio, una in omnis valet». Quer dizer: os homens seriam
iguais se os maus costum es e as falsas opiniões não desencam inhassem os espíritos
fracos.
a s n o r m a s d a ju st iç a

consideração. Se não há que tomar em conta quaisquer desigualdades


sejam elas quais forem, todos são iguais e tudo é igual. Na norma:
Nenhum homem deve ser morto, todos os homens são tratados por
igual, não se faz acepção de qualquer diferença - do ponto de vista desta
norma todos os homens são iguais. Todavia, esta igualdade refere-se
apenas ao não-ser-morto, não a todas as possíveis formas de tratamento.
Relativamente à punibilidade, tem necessariamente de ser tomada em
conta a diferença entre o indivíduo que comete um delito e o indivíduo
que não pratica qualquer delito. Do ponto de vista da norma segundo
a qual um indivíduo que cometeu um delito - e apenas um tal indi­
víduo - deve ser punido, os homens não são de form a alguma todos
iguais.
a) O princípio directamente oposto ao de que todos devem ser igual­
mente tratados, isto é, de que nenhuma desigualdade deve ser tomada
em conta, é aquele segundo o qual todos devem ser desigualmente
tratados, isto é, segundo o qual todas as desigualdades devem ser toma­
das em conta - segundo o qual, portanto, uma vez que cada indivíduo
é diferente de qualquer outro, a cada indivíduo é lícito pretender um
tratamento especial. Também este princípio surge como princípio de
justiça - quando, por exemplo, se repudia a pretensão de vincular os
órgãos aplicadores do direito através de normas jurídicas produzidas por
via consuetudinária ou legislativa, quando se exige que se lhes deixe um
poder de apreciação inteiramente discricionário a fim de que possam
tratar cada caso concreto de acordo com as particularidades do mesmo.
Somente quando cada caso particular fosse, tratado por modo conforme
à sua mesma particularidade é que o seu tratamento seria justo. É este
o princípio de justiça que está na base da política da livre descoberta do
direito e que já PLATÃO aplica, no seu Estado ideal, à actividade dos
juizes desse Estado. Corresponde ao ideal da plena flexibilidade do
direito que se contrapõe à rigidez do direito, rigidez que é conseqüên­
cia das normas gerais que vinculam os órgãos de aplicação jurídica.
A norma de justiça segundo a qual todos os homens devem ser
tratados por forma igual nada diz sobre a questão de saber qual deva
ser o conteúdo deste igual tratamento e, portanto, para poder de todo
em todo ser aplicada, pressupõe uma norma que determine este
conteúdo. Somente quando uma Constituição estabeleça que o órgão
legislativo deve ser eleito pelo povo é que pode exigir-se, em aplicação

85
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

da norma de justiça da igualdade, que todos os homens sem qualquer


distinção tenham um direito de voto. Só quando uma ordem jurídica
estatua a obrigação de prestar serviço militar é que se pode, em
aplicação da norma de justiça da igualdade, exigir que essa obrigação
seja imposta a todos os indivíduos sem qualquer distinção.
Compreende-se como de per si evidente que a exigência ou postulado
de que todos os homens sejam tratados por igual, ou seja, de que não
deve fazer-se acepção de qualquer das desigualdades de facto existentes,
qualquer que seja o conteúdo que possa ter o tratamento conforme à
norma pressuposta pela norma de justiça, conduz a conseqüências
absurdas; e, de facto, não há qualquer sistema moral que contenha a
norma que manda tratar os menores da mesma forma que os adultos,
os homens da mesma forma que as mulheres, os doentes mentais como
as pessoas normais, os desordeiros da mesma forma que os pacíficos.
Não é possível deixar de lado todas as desigualdades em toda e qualquer
espécie de tratamento. Certas desigualdades têm de ser tomadas em con­
sideração. Do que se trata é apenas de saber quais as desigualdades que
devem ser desatendidas e quais os indivíduos que, portanto, podem ser
considerados como iguais.
b) Como o princípio de que todos devem ser tratados por igual não
pode, ou apenas pode numa medida muito limitada, ser aplicado na
realidade social, apresenta-se como princípio de justiça da igualdade
uma regra que habitualmente é formulada assim: Só os que são iguais
devem ser tratados por forma igual. Todavia, esta formulação é incom­
pleta e induz em erro. Com efeito, se apenas os que são iguais devem
ser tratados igualmente e não há apenas indivíduos iguais mas também
os há desiguais, os que são desiguais devem ser tratados desigualmente.
Por isso, o princípio, plenamente formulado, diz: Quando os indivíduos
são iguais - mais rigorosamente: quando os indivíduos e as circunstân­
cias externas são iguais -, devem ser tratados igualmente, quando os
indivíduos e as circunstâncias externas são desiguais, devem ser trata­
dos desigualmente. Este princípio postula que as desigualdades relati­
vamente a certas qualidades devam ser consideradas e que as desigual­
dades quairto a outras qualidades não devam ser levadas em conta.
O princípio não é, pois, de forma alguma, um princípio de igualdade.
Ele não postula um tratamento igual, ou melhor, postula não apenas um
tratamento igual mas também um tratamento desigual. Por isso, tem de

86
a s n o r m a s d a ju s t iç a

haver uma norma correspondente a este princípio que expressamente


defina certas qualidades em relação às quais as desigualdades hão-de ser
tidas em conta, a fim de que as desigualdades em relação às outras quali­
dades possam permanecer irrelevantes, a fim de que possam existir de
todo em todo, portanto, indivíduos «iguais». «Iguais» são aqueles
indivíduos que, em relação às qualidades assim determinadas, não são
desiguais. E o poderem, de todo em todo, existir indivíduos «iguais», é
a conseqüência do facto de que, se não todas, pelo menos certas
desigualdades não são consideradas. Se, por exemplo, segundo um
ordenamento eleitoral positivo, têm direito de voto todos os indivíduos
que tenham mais de vinte anos, gozem de saúde mental, sejam cidadãos
e não tenham sofrido condenação penal, isto significa que são tomadas |
em conta como relevantes - ao serem contemplados apenas uns, e não
os outros, com o direito de voto - as desigualdades que consistem em
que um indivíduo tem mais de vinte anos e outro menos, um é mental- I
mente são e outro mentecapto, um é cidadão e outro é estrangeiro, um ^
sofreu condenação penal e outro não e que portanto, as duas categorias
de indivíduos, dos quais uns apresentam as quatro qualidades determi- ^
nadas pelo ordenamento eleitoral e os outros não possuem uma ou outra I
daquelas qualidades, são tratadas desigualmente.
Quer dizer, os indivíduos da segunda categoria recebem um trata- '
mento diferente do que é reservado aos da primeira. Outrossim significa \
que as diferenças que consistem em um indivíduo ser homem e outro
ser mulher, um cristão e outro judeu, um médico e outro padre, não são '
tomadas em conta pela lei eleitoral no tratamento dos indivíduos. (
A atribuição do direito de voto é independente da diferença de sexo, de
religião ou de profissão. «Iguais» são aqueles indivíduos que possuam
as quatro qualidades determinadas pela lei eleitoral, isto é, que são
iguais quanto a estas qualidades, embora sejam desiguais relativamente
a todas as outras qualidades que de facto possuem.
Como já acentuámos, o princípio ou regra de que os que são iguais
devem ser tratados igualmente apenas pode valer em combinação com
a regra segundo a qual os que são desiguais devem ser tratados por
forma desigual. A primeira regra, no entanto, só é aplicável quando dois
ou mais indivíduos têm as qualidades que são de levar em conta e são
iguais por terem estas qualidades - quer dizer: em relação a estas qua­
lidades não são desiguais. É, porém, possível que na realidade não seja

87
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

este o caso, que de facto apenas um único indivíduo possua estas quali­
dades e que, portanto, um tratamento igual de dois ou mais indivíduos
não possa de forma alguma ter lugar, que, da norma em vigor segundo
a qual o. que é igual deve ser tratado igualmente e o que é desigual
desigualmente, a primeira parte, que exige um tratamento igual, não
possa de modo algum ter ocasião de aplicar-se. Também daqui resulta
que é desacertado considerar a regra que manda tratar os que são iguais
por forma igual como aplicação do princípio de justiça da igualdade.
A única norma que pode valer como princípio de justiça da igualdade
6 a norma segundo a qual todos os homens devem ser igualmente
tratados, segundo a qual nenhuma das desigualdades que efectivamente
entre eles existem deve ser tomada em consideração.
c) Se analisarmos as coisas mais de perto, verificamos que a regra
segundo a qual os que são iguais devem ser tratados por forma igual e
os que são desiguais devem ser tratados por forma desigual não é sequer
uma exigência da justiça mas uma exigência da lógica. Com efeito, ela
é apenas a lógica conseqüência do carácter geral de toda a norma que
prescreva que determinados indivíduos, sob determinadas circunstân­
cias, devem ser tratados de determinada maneira, ou, formulada de
um modo mais genérico, que prescreva que sob um determinado pres­
suposto se deve verificar uma determinada conseqüência, especial­
mente, um determinado tratamento.
O carácter geral de uma norma que prescreve que, dado um deter­
minado pressuposto, deve verificar-se uma determinada conseqüência,
consiste - como já foi notado - no facto de esta norma, de acordo com
a sua própria intenção, dever ser aplicada, não apenas num único caso,
mas num número de casos indeterminado. O seu sentido é: sempre
que se apresente o pressuposto por ela fixado, deve sempre, também,
verificar-se a conseqüência por ela estabelecida.
Partindo do suposto de que a justiça apenas importa nas relações
entre homens, de que as normas de justiça apenas são aplicáveis a seres
humanos, normas de justiça são normas que prescrevem que os homens,
sob determinadas condições, devem ser tratados de certa maneira. O seu
carácter geral reside no facto de prescreverem: Sempre que um ser é
homem e outras condições fixadas pela norma estejam presentes, deve
verificar-se o tratamento estabelecido pela norma. Se uma norma por
forma geral prescreve que dado um determinado pressuposto se deve
a s n o r m a s d a ju s t iç a

produzir uma determinada conseqüência, deve seguir-se em todo e


qualquer caso, sempre sob o mesmo pressuposto, a mesma conseqüên­
cia, pois que a norma determina precisamente apenas este e nenhum
outro pressuposto, apenas esta e nenhuma outra conseqüência, e deter­
mina-os, pressuposto e conseqüência, por form a geral. Se uma norma
prescreve por via geral que os homens, sob determinadas condições,
devem ser tratados de determinada maneira, que dizer: se, quando
estamos em face de seres humanos e determinadas outras condições se
verificam, se deve verificar um certo tratamento, o mesmo tratamento,
um tratamento igual, deve ser aplicado em cada caso sob iguais con­
dições, isto é, os seres humanos, sob iguais condições e, portanto, iguais,
devem ser tratados igualmente, precisamente porque a norma apenas
determina estas e não quaisquer outras condições, apenas este e não
qualquer outro tratamento, e determina aquelas e este por via geral (*).
A igualdade que consiste em deverem os que são iguais ser tratados
igualmente é, portanto, uma exigência da lógica e não uma exigência da
justiça.
O princípio de que, quando as condições são iguais, as conseqüên­
cias devem ser iguais, é, na verdade, a conseqüência lógica do carácter
geral da norma que prescreve que, verificado um determinado pres­
suposto, se deve produzir determinada conseqüência. Mas, efectiva-
mente, esta regra apenas pode achar aplicação, quer dizer, apenas pode
ter lugar um tratamento igual, quando a norma que por via geral pres­
creve que, verificado um determinado pressuposto, se deve produzir

(') Quando se afirm a que toda a norma de justiça é aplicação do princípio da igual­
dade na m edida em que apenas se refere a seres da m esm a espécie - por exem plo,
apenas a hom ens - , também esta igualdade, a igualdade dos seres aos quais a norm a
de justiça se aplica, é tão-só uma conseqüência lógica do carácter geral da norma. A natu­
reza do ser ao qual a norma de justiça é aplicável é um a das condições ou pressupos­
tos do tratamento prescrito como conseqüência: Quando um ser é um homem (ou tem
uma alma) e quando... deve esse ser ser tratado de determ inada maneira. A afirm ação
de que os indivíduos aos quais um a norm a de justiça se refere devem ser iguais, não
pode, no entanto, ser fundam entada no facto de o problem a da justiça apenas se pôr
nas relações entre os homens e já não nas relações entre hom ens e animais ou entre
homens e plantas. Com efeito, na sociedade prim itiva, em que ainda dom inavam
concepções anim istas, as norm as da ordem social tidas com o justas tam bém tinham
aplicação a seres não humanos. Assim , o princípio retributivo aplicava-se tam bém aos
animais. Cfr. Teoria Pura do Direito, vol. I, pp. 6o e ss.
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

uma determinada conseqüência, de facto possa ser aplicada em mais do


que um caso, quando, portanto, haja mais do que um caso em que se
verifique a condição ou pressuposto determinado pela norma geral.
Com efeito, «igual» é um conceito de relação e um facto ou situação
apenas é «igual» em relação a um outro facto ou situação: É possível,
todavia, que a norma geral de facto apenas possa ser aplicada em um
caso. Tal sucede, por exemplo, se uma norma geral determina que todo
aquele que tenha o rendimento anual de mais de 1 milhão de dólares
deve pagar um imposto sobre os rendimentos de 90% e se apenas
um indivíduo, e em um ano somente, obtém um tal rendimento. Isto
significa que o carácter geral de uma norma de justiça cuja lógica conse­
qüência é a regra segundo a qual os que são iguais devem ser tratados
de maneira igual não exclui a possibilidade de que, em dados casos, não
possa sequer haver lugar para qualquer tratamento igual. Também por
aqui se mostra que esta regra não pode ser identificada com o princípio
de justiça da igualdade.
Como todas as normas de justiça têm um carácter geral e todas elas
prescrevem que os homens, sob determinados pressupostos, devem ser
tratados de determinada maneira, a regra de que os que são iguais
devem ser tratados igualmente é uma conseqüência lógica do carácter
geral de todas as normas de justiça. Assim, por exemplo, a regra segundo
a qual a uma falta igual cabe uma pena igual, a um merecimento ou
serviço igual uma recompensa igual, é a conseqüência lógica do carácter
geral da norma da retribuição, que prescreve para a falta uma pena e
para o merecimento uma recompensa, isto é, que prescreve que, quando
um indivíduo comete um delito, deve ser punido e, quando um indi­
víduo tem merecimento, deve ser recompensado.
Se uma norma de direito penal, em consonância com o princípio da
retribuição, liga a uma determinada falta, isto é, a um determinado facto
ilícito, uma determinada pena, v. g., a pena de prisão ao furto, e se o faz
por uma form a geral, quer dizer, se prescreve que, sempre que se
verifique este facto ilícito por ela determinado, a saber, o furto, deve ser
aplicada, igualmente sempre, a pena por ela estatuída, tem o juiz de
aplicar em cada caso ao mesmo facto, a saber, ao furto, a mesma pena,
a saber, a pena de prisão, e nenhuma outra pena, porque precisamente
a norma de direito penal a aplicar liga a este e não a qualquer outro
facto, ou seja, ao furto, esta e não qualquer outra pena, ou seja, a pena

90
AS n o r m a s d a ju s t iç a

de prisão, e opera tal ligação por via geral. Se a norma que liga ao furto
a pena de prisão é considerada como constitutiva de um valor justiça
por ser havida como aplicação do princípio retributivo, e se um juiz num
caso de furto aplica a pena de prisão e num outro a pena de morte ou
uma pena pecuniária, a sua sentença é contrária ao direito (ilegal) e isso
quer dizer, neste contexto, também injusta não por ele ter aplicado em
dois casos em que se verifica uma falta igual penas desiguais, mas
porque agiu contrariamente a uma norma constitutiva de um valor
justiça que liga ao furto a pena de prisão e não a pena de morte ou uma
pena pecuniária. Só uma das duas sentenças por ele proferidas é injusta:
aquela, a saber, em que ele, violando a norma que devera aplicar, aplica
ao furto a pena de morte ou uma pena pecuniária, e não a outra, na qual
ele aplica ao furto, de acordo com a norma aplicada, a pena de prisão.
Se a injustiça residisse no facto de o juiz não aplicar nos dois casos a
mesma pena, também a sentença na qual ele aplica ao furto a pena de
prisão houvera de ser injusta; pois também neste caso a pena não é
igual, quer dizer, não é a mesma pena que ele aplica no outro caso de
furto. Todavia, a sentença na qual ele, de harmonia com a norma justa
a aplicar, aplica a pena de prisão, não é injusta, mas justa, embora - em
confronto com a sentença injusta - seja desigual.
Aquilo que vale da norma retributiva que prescreve para uma deter­
minada falta uma determinada pena, vale também de forma análoga
pelo que respeita à norma retributiva que prescreve para um determi­
nado merecimento uma determinada recompensa, assim como para a
norma de justiça que prescreve para uma determinada prestação uma
determinada contraprestação; sim, para todas as normas de justiça que
prescrevam que os homens, sob determinadas condições, devem ser
tratados de determinada maneira. Quando a regra de que os que são
iguais devem ser tratados por forma igual é apresentada como uma
aplicação do princípio da igualdade, a «igualdade» de que aqui se trata
é aquela «igualdade» que, no uso corrente da linguagem jurídica, se
designa por igualdade perante a lei, para a distinguir da igualdade na
lei - entendendo-se por «lei» uma norma geral, para a distinguir da
norma individual que consiste na decisão do órgão aplicador do direito.
A igualdade perante a lei pode existir mesmo quando não exista
qualquer igualdade na lei, quer dizer, quando a lei não prescreva
qualquer tratamento igualitário. Se a lei apenas aos homens, e não às
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

m u lh e re s, confere um direito de voto e, portanto, não existe sob este


asp e c to igualdade na lei, pode no entanto subsistir o princípio da
i g u a l d a d e perante esta lei. Um juiz que, em aplicação desta lei, decida
q u e u m homem tem direito de voto e que uma mulher já não tem tal
d ir e it o , n ã o viola em nada o princípio, da igualdade perante a lei, embora
t r a t e o s dois desigualmente. Já viola, porém, o princípio da igualdade
p e r a n t e a lei quando decida que um homem branco, e não já um negro,
t o m o d i r e i t o de voto, se a lei a aplicar, na concessão do direito de voto,
t o m o u n a verdade em conta a desigualdade do sexo mas não a desigual-
(liid c d e r a ç a . Com efeito, a chamada «igualdade» perante a lei não
s i g n i f i c a qualquer outra coisa que não seja a aplicação legal, isto é,
c o r r e c t a , da lei, qualquer que seja o conteúdo que esta lei possa ter,
m e s m o que ela não prescreva um tratamento igualitário mas um trata­
m e n t o d e s i g u a l . A chamada igualdade perante a lei é respeitada sempre
q u e a le i é aplicada tal como, de acordo com o seu próprio sentido, deve
s e r a p l i c a d a , sempre que o órgão aplicador do direito apenas considera
c o m o r e l e v a n t e s aquelas desigualdades que a lei manda ter em conta.
A i g u a l d a d e perante a lei não é, portanto, de forma alguma, igualdade
m a s c o n f o r m i d a d e à norma. Ela consiste em que a fixação de uma
n o r m a i n d i v i d u a l - a decisão do órgão aplicador do direito - corres­
p o n d e a u m a norma geral. Esta correspondência é correcção lógica e
n a d a t e m a v e r com a justiça, especialmente com a justiça da igualdade.
d) S e o princípio de que os que são iguais devem ser tratados d
I g u a l modo apenas pode valer em essencial ligação com o princípio de
q u e o s q u e são desiguais devem ser tratados desigualmente, e se este
d u p l o princípio é tão-só a lógica conseqüência do carácter geral de uma
n o r m a q u e prescreva que, postas determinadas condições, se deve seguir
um determinado tratamento, se ele é, portanto, uma exigência õu
postulado da lógica e não da justiça, não pode tal princípio ser consi­
derado como o princípio de justiça da igualdade e a igualdade não pode
ser considerada como o elemento comum a todas as normas de justiça.
Uma norma de justiça é - como vimos - uma norma que prescreve um
determinado tratamento dos homens. Se uma norma de justiça não de­
termina que todos os homens devem ser tratados de igual maneira - e,
de acordo com todas as normas de justiça, à excepção de uma só,
não devem todos os homens ser tratados igualmente -, a justiça não é
igualdade.

92
AS NORMAS DA JUSTIÇA

Relativamente ao tratamento prescrito pelas diferentes normas de


justiça do tipo racional, não se pode sequer determinar qualquer
elemento comum. O tratamento preceituado pelas diferentes normas
de justiça deste tipo é tão diverso que as diferentes normas de justiça
têm de entrar necessariamente em conflito umas com as outras.
Assim sucede quando, segundo a norma de justiça da retribuição,
quem cometeu uma falta deve ser punido e quem prestou um
serviço meritório deve ser premiado, mas, segundo a norma de
justiça que prescreve que cada um deve ser tratado segundo as suas
necessidades, não deve tomar-se em conta a falta, a culpa, ou o mérito
das pessoas; ou quando pela maioria das normas de justiça é pressu­
posta uma ordem moral ou jurídica positiva que mais ou menos
limita a liberdade dos indivíduos, mas, segundo a norma de justiça
fundada na liberdade, se exclui a validade de toda e qualquer outra
norma social.
O elemento comum a todas as normas de justiça do tipo racional não
pode ser encontrado no tratamento por elas preceituado. Esse elemento
comum consiste pura e simplesmente no facto de que todas elas são
normas racionais que preceituam, sob condições determinadas - mas
determinando as diferentes normas de justiça condições ou pressupos­
tos muito diferentes -, um tratamento determinado - porém, sendo
determinados tratamentos muito diversos pelas diferentes normas de
justiça. Relativamente à questão decisiva de saber como devem os
homens ser tratados para que o seu tratamento deva ser considerado
justo, um conceito geral de justiça apenas pode ser algo de completa­
mente vazio (*), principalmente quando esse conceito deva abranger
ainda as normas de justiça do tipo metafísico.

(’ ) P e r e l m a n , op. cit., pp. 22 e ss., que apenas toma em consideração as norm as do


tipo racional, procura definir um conceito geral ou, segundo ele próprio se exprime, um
conceito «formal» ou «abstracto» de justiça, pondo em relevo o elemento comum aos
diferentes conceitos «concretos» de justiça. Aponta como sendo este elemento comum
a ideia de igualdade: «La notion de justice suggère à tous inévitablem ent 1'idée d’une
certaine égalité». «On peut donc définir la justice form elle ou abstraite com m e un
principe d ’action selon lequel les êtres d'une même catégorie essentielle doivent être
traités de la même façon». Os seres que pertencem à m esm a categoria são, sob este
aspecto, iguais. Segundo P e r e l m a n , pois, o princípio de que os que são iguais devem

93
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL

N o r m a s d e ju s t iç a d o t ip o m e t a f ís ic o : a I d e ia d e J u s t iç a e m P l a t ã o

25. O representante clássico deste tipo de normas de justiça é


PLATÃO ('). A justiça é o problema central de toda a sua filosofia. É para
solucionar este problema que ele desenvolve a famosa Teoria das Ideias.
As ideias são essências transcendentes que existem num outro mundo,
num mundo diferente do perceptível pelos nossos sentidos, e, por isso,
são inacessíveis ao homem, prisioneiro dos mesmos sentidos. Elas
representam no essencial valores que devem, na verdade, ser realizados
no mundo dos sentidos, mas que jamais podem ser aí plenamente

ser tratados por fo rm a igual é o p rin c ip io geral da ju stiça. M as a sua afirm ação de que
este prin cíp io exp rim e a id eia de igu a ld a d e não é exacta, pois q u e o p rin c íp io segundo
0 qual os seres da m esm a catego ria d evem ser tratados por fo rm a ig u a l não p o de ser
separado do p rin c íp io segu ndo o q u al os seres que não são da m esm a catego ria devem
ser tratados de m an eira d esigu al - p elo qu e o p rin cíp io em q u estã o p o stu la não só um
tratam ento igual m as tam bém um tratam en to desigual.
De resto P e r e lm a n (pp. 54 e s.) - em contradição com a sua afirm ação de que o
conceito de justiça implica a ideia de igualdade - concede «que 1’égalité de traitement
dans la justiceform elle, n est rien d'autre que 1'application correcte d'une règle de justice
concrète...»; «que, contrairement à 1’opinion courante, ce n'est pas la notion d'égalité qui
constitue de fondement de la justice, même formelle». «L'égalité du traitement n’est
qu'une conséquence logique du fait que l'o n se tient à la règle».
O que P e r e lm a n designa com o «justice form elle» é a cham ad a «igualdade» perante a
lei, isto é, a ap licação lo g ica m en te co rrecta de u m a n o rm a g eral. D iz ele: «La ju stice
fo rm elle se ram èn e donc sim p le m e n t à l’ap p lica tio n co rrecte d ’u n e règle» (p. 56) e
acentua acertad am en te que esta c o rrecç ão é de n a tu re za ló g ic a : «ou v o ít en qu oi la
justice fo rm elle est liée à la lo giq u e: en effet, il faut que l'a p p lica tio n de la règle soit
correcte, logiquem ent irréprochable, il fau t que 1’acte juste soit co n fo rm e à la conclusion
d’un syllogism e particulier que nous appellerons de syü ogism e im pératif, parce que sa
m ajeur et sa con clusion ont u n e fo rm e im pérative» (p. 57). Se, com o P e r e lm a n aqui
afirm a, o p rin cíp io do igual tratam en to daqueles que pertencem à m esm a categoria é um
p o stu lad o d a ló g ica , ele não é u m p rin c íp io da ju stiça, n em m esm o de um a ju stiça
formal.
- Tam bém o im perativo categórico de K a n t pode ser en ten dido com o um a tentativa
de fo rm u lação de u m p rin c íp io g eral da m o ralidad e (Sittlic.hkeit) ab arcan d o todas as
norm as m o rais particu lares. É s ig n ific a tiv o que K a n t a firm e d este p rin c íp io qu e ele
não exp rim e outra coisa senão a «generalidade de um a lei tran scen den tal». Cfr. supra,
pp. 3 1 e ss.
(’ ) Cfr. o m eu estudo: «Die Plato n isch e G erechtigkeit», K an tstu d ien , Bd. 38, 19 5 3,
pp. 9 1 e ss.

94
AS n o r m a s d a ju s t iç a

realizados (1). A ideia principal, aquela à qual todas as outras ideias se


subordinam e da qual todas retiram a sua validade, é a ideia do Bem
absoluto; e esta ideia desempenha na filosofia de P l a t ã o o mesmo papel
que a ideia de Deus na teologia de qualquer religião.
A ideia de Bem contém em si a de Justiça - aquela Justiça cujo
conhecimento visam quase todos os diálogos de PLATÃO. A Questão:
«O que é a Justiça?» identifica-se, portanto, com a questão: «O que é bem
ou o que é o Bem?». Nos seus diálogos, PLATÃO faz numerosas tentativas
para responder a esta pergunta por uma via racional. Todavia, nenhuma
destas tentativas conduz a um resultado definitivo. Quando uma
qualquer definição parece ter sido alcançada, PLATÃO logo declara pela
boca de SÓCRATES que são necessárias novas indagações. P l a t ã o remete
repetidas vezes para um específico método de pensamento abstracto
liberto de todas as representações sensíveis, a chamada dialéctica que
- segundo ele afirma - dá àquele que o domina a capacidade de apreen­
der a Ideia. Todavia, ele próprio não emprega este método nos seus
diálogos nem tão-pouco nos comunica os resultados desta dialéctica.
Da Ideia do Bem absoluto diz até expressamente que ela se situa para
além de todo o conhecimento racional, isto é, de todo o pensamento.
Numa das suas cartas - a sétima em que ele nos dá conta dos motivos
mais profundos e das finalidades últimas da sua filosofia, declara que
nem sequer pode haver qualquer conhecimento conceituai do Bem
absoluto mas apenas uma espécie de intuição e que esta intuição se
processa pela via de uma vivência mística que só a poucos é comunicada
e tão-só por graça divina; que, porém, é im possível descrever em

(’ ) Todavia, as ideias funcionam também como conceitos abstractos das coisas


concretas existentes no mundo dos sentidos. A relação da coisa concreta com a sua ideia
abstracta é descrita por P la tã o como participação daquela nesta. A ideia é im agem
originária ideal ou exem plar, a coisa concreta a im itação m ais ou menos conform e
àquela p rim eira im agem ideal, sendo-lhe im anente a tendência para se conform ar
segundo a sua im agem . Apenas a ideia é (tem ser) verdadeiram ente, sendo a coisa
concreta m era aparência. Esta comporta-se em relação àquela como uma im agem
reflectida num espelho relativam ente ao objecto que reflecte (Politeia, x). Há muitas
mesas concretas, mas apenas um a ideia de mesa, a qual exprim e como uma mesa deve
ser, representa a mesa ideal, a norm a da mesa. Assim , a ideia platônica reúne em si a
função do conceito e a da norma. A identificação de norma e conceito é especificamente
platônica.
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

palavras da linguagem humana o objecto desta intuição mística, isto é,


o Bem absoluto. Por isso - e tal é desta sabedoria a última conclusão -
não pode haver qualquer resposta para a questão da essência da Justiça.
Pois que, com efeito, a Justiça é um segredo que Deus confia - se é que
confia - apenas a alguns poucos eleitos e que tem de permanecer
segredo destes porque eles o não podem comunicar aos demais.

J u s t iç a e a m o r de D eu s: a J u s t iç a d iv in a

26. A justiça que o grande filósofo ensina postula que os homens


devam ser tratados por modo condizente com a Ideia transcendente de
liem, que é inacessível ao conhecimento racional. Ela eqüivale à justiça
que exige que os homens devem ser tratados tal como for conforme à
vontade divina, à humanamente incognoscível vontade de Deus, o qual
preceitua o bem mas também permite o mal, é absolutamente bom e,
ao mesmo tempo, omnipotente - pelo que é autor não só do Bem como
também do Mal. Ela eqüivale, especialmente, à justiça que ensina o
(àande Santo. Jesus, depois de ter energicamente rejeitado (r) o prin­
cípio «olho por olho, dente por dente», o princípio da retribuição,
anuncia como sendo a nova, a verdadeira justiça a que se contém no
princípio do amor: não retribuir o mal com o mal, mas com o bem, não
opor resistência ao mal que nos fazem mas amar quem nos faz mal, sim,
amar até os inimigos (2).
Esta justiça situa-se para além de toda a ordem possível numa realidade
social; e o amor, que é esta justiça, não pode ser a emoção humana a que
nós chamamos amor. Isto não só porque é contra a natureza humana amar
o.s inimigos mas ainda porque JE SU S expressamente rejeita o amor
humano que liga o homem à mulher, os pais aos filhos. Quem quer seguir
J liSUS e alcançar o Reino de Deus deve deixar a casa e a fazenda, os pais,

(’ ) M a t e u s , v , 38 , 39 . No entanto, ele sustenta na sua pregação muito expressamente


também a exigência de que o bem deve ser premiado e o mal deve ser castigado - assim,
v. g., M a t e u s , v , 1 2 , 46, v n , 2 1 , xxill, 3 5 . Mas, sobretudo, é o princípio da retribuição que
é aplicado no Juízo Final, predito por J e s u s . Cfr. M a t e u s , XXV, 3 1 ss. Todavia, JESUS fala
da justiça do R eino de Deus ( M a t e u s , v i , 3 3 ) como o «segredo» do R eino de Deus
( M a t e u s , x ii, 1 1 ) .
(2) M a t e u s , v , 3 8 ,4 4 .
AS NORMAS DA JUSTIÇA

os irmãos, a mulher e os filhos ('). Sim, quem não odeia o seu pai, mãe,
mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a sua própria vida, não pode ser discí­
pulo de J e s u s (2). O amor que JE SU S ensina não é o amor do homem. É o
amor através do qual o homem deve tornar-se tão perfeito como o Seu Pai
no céu, o qual manda o sol levantar-se sobre os maus e sobre os bons e
manda chover sobre justos e injustos (3). É o amor de Deus - e como tal,
completamente diferente do amor do próximo, que é inteiramente
humano. O mais estranho neste amor de Deus é que o temos de aceitar
como compatível com a pena cruel, eterna mesmo, que será aplicada ao
pecador no Juízo Final; e, portanto, como conciliável como o temor mais
profundo de que o homem é capaz, o temor de Deus.
Esta e muitas outras contradições não procurou JE S U S esclarecê-las.
Pois que, com efeito, ela apenas é contradição para a razão humana limi­
tada, não para a razão absoluta de Deus, que é inacessível ao homem.
Por isso ensina PA U LO , o primeiro teólogo da religião cristã, que a
sabedoria deste mundo é insensatez em face de Deus (4), que a filoso­
fia, que é conhecimento lógico racional, não é via de acesso à justiça
divina que está encerrada na insondável sabedoria de Deus (5), que esta
justiça apenas nos é revelada por Deus através da fé (6), da fé que actua
através do amor (?). PAULO conserva-se fiel à doutrina de JE SU S da nova
justiça, do amor de Deus (8). Mas reconhece que o amor que J e s u s en­
sina está para além do conhecimento da razão (9). Ele é um segredo, um
dos muitos mistérios da fé (IO).

(') L u c a s , X V I I I , 29, 30.


(2) L u c a s , XIV, 26.
(3 ) MATEUS, V, 45,48.
(4) I Cor. III, 19.
(5 ) 1 Cor. 11, 1 ss.
(6) Phil. in, 9.
(7) Gal. v, 6.
(8) Rom. XIII, 8 ss., I Cor., XIII, 1 ss.
(l->) Eph. in, 19.
(lo) Na sua Epístola ao Romanos x i i i , 1 ss. P a u l o , no entanto, defende também o
princípio racional da justiça da retribuição que encontra aplicação em toda a ordem ju­
rídica positiva. Com efeito, ele justifica neste passo toda a autoridade legisladora como
delegada por Deus: «Ela é a serva de Deus, um a vingadora para castigar aquele que
faz mal». Cfr. a propósito tam bém o meu estudo: «The id ea o f Justice in the Holy
Scriptures» in: What is Justice, pp. 25 e ss.

97
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

J u s t iç a e f e l ic id a d e

27. PLATÃO ensina que o justo, e apenas o justo, é feliz; ou que temos
de conduzir os homens a crer em tal. E, de facto, o problema da justiça
tem uma importância tão fundamental para a vida social dos homens,
a aspiração à justiça está tão profundam ente enraizada nos seus
corações porque, no fundo, em ana da sua indestrutível aspiração à
felicidade.
Nenhuma justiça simplesmente relativa, apreensível pela razão
humana, pode atingir este fim. Uma tal justiça relativa apenas conduz
a uma satisfação muito parcial. A justiça pela qual o mundo clama, «a»
justiça por excelência é, pois, a justiça absoluta. Esta é um ideal irracio­
nal. Com efeito, ela só pode emanar de uma autoridade transcendente,
só pode emanar de Deus. Por isso, a fonte da justiça e, juntamente com
ela, também a realização da justiça, têm de ser relegadas do Aquém para
o Além - temos de nos contentar na terra com uma justiça simples­
mente relativa, que pode ser vislum brada em cada ordem jurídica
positiva e na situação de paz e segurança por esta mais ou menos
assegurada. Em vez da felicidade terrena por amor da qual a justiça é
tão apaixonadamente exigida, mas que qualquer justiça terrena relativa
não pode garantir, surge a bem-aventurança supraterrena que promete
a justiça absoluta de Deus àqueles que nele crêem e que, consequente­
mente, acreditam nela. Tal é o engodo desta eterna ilusão.
II. A D O U TR IN A DO D IREITO N A T U R A L

D ir e it o e ju s t iç a . A t e o r ia id e a l is t a d o d ir e it o é uma t e o r ia d u a l is t a

28. O conceito de justiça deve ser distinguido do conceito de direito.


A norma da justiça indica como deve ser elaborado o direito quanto ao
seu conteúdo, isto é, como deve ser elaborado um sistema de normas
que regulam a conduta humana, normas essas postas por actos humanos
e que são global e regularmente eficazes - ou seja, o direito positivo.
Visto a norma da justiça prescrever um determinado tratamento dos
homens, ela visa - como já se mostrou - o acto através do qual o direito
é posto. A justiça não pode, portanto, ser identificada com o direito.
Para a questão da validade do direito, isto é, para a questão de saber
se as suas normas devem ser aplicadas e acatadas, é decisiva a relação
que se pressuponha entre justiça e direito. Sobre este ponto apresentam-
se-nos duas concepções diametralmente opostas. Segundo uma delas,
um direito positivo apenas pode ser considerado como válido na medida
em que a sua prescrição corresponda às exigências da justiça. Direito
válido é direito justo: uma regulamentação injusta da conduta humana
não tem qualquer validade e não é, portanto, direito, na medida em que
se deva entender por direito apenas uma ordem válida. Quer isto dizer
que a validade da norma de justiça é o fundamento da validade do
direito positivo. Segundo a outra concepção, a validade do direito
positivo é independente da validade da norma de justiça. Um direito
positivo não vale pelo facto de ser justo, isto é, pelo facto da sua
prescrição corresponder à norma de justiça - e vale mesmo que seja
injusto. A sua validade é independente da validade de uma norma de
justiça. É esta a concepção do positivismo jurídico, e tal é a conseqüência
de uma teoria jurídica positivista ou realista, enquanto contraposta à
doutrina idealista.
Uma outra antinomia que interessa ao nosso ponto é a que existe
entre a justiça relativa e a absoluta.
A norma de justiça que prescreve um determinado tratamento dos
homens constitui um valor absoluto quando surge com a pretensão de

99
A JU S T IÇ A E O D IR EIT O N A T U R A L

ser a única válida, isto é, quando exclui a possibilidade de qualquer outra


norma que prescreva um diferente tratamento dos homens. Uma tal
norma de justiça, constitutiva de um valor absoluto, apenas pode - como
já se acentuou - provir de uma autoridade transcendente - e é como tal
que ela se coloca em face do direito enquanto sistema de normas que
são postas através de actos humanos na realidade empírica. Então surge
um característico dualismo: o dualismo de uma ordem transcendente,
ideal, que não é estabelecida pelo homem mas lhe está supra-ordenada,
e uma ordem real estabelecida pelo homem, isto é., positiva. É o
dualismo típico de toda a m etafísica: o dualismo que distingue entre
uma esfera empírica e uma esfera transcendente, cujo esquema clássico
é a Teoria das Ideias de P l a t ã o e que, como dualismo do Aquém e do
Além, do homem e de Deus, está na base da teologia cristã. A teoria
idealista do direito tem - em contraste com a teoria realista do mesmo
direito - um carácter dualista. Pelo contrário, a teoria realista do direito
é monista, pois não conhece, como aquela, um direito ideal - que não
é posto pelo homem mas emana de uma autoridade transcendente - e
ao lado deste um direito real, posto pelo homem, mas apenas um direito:
o direito positivo, estabelecido pelo homem.

O RELATIVISM O AXIOLÓGICO COMO PONTO DE PARTIDA DA TEO RIA PO SITIVISTA


DO D IREITO

29. Quando, do ponto de vista do conhecimento científico, se rejeite


0 pressuposto de uma essência transcendente, existente para além de
toda a experiência humana, isto é, a existência de um absoluto em geral
e de valores absolutos em particular, e apenas se reconheça a validade
de valores relativos, a validade do direito positivo não pode, do ponto
de vista de uma teoria científica do direito, ser posta na dependência da
sua relação com a justiça. Pois que uma tal dependência apenas pode
subsistir quando a justiça seja um valor absoluto, quando se pressu­
ponha como válida uma norma de justiça que exclui a possibilidade de
tomar como válida qualquer outra norma que a contrarie. Quando se
admita a possibilidade de normas de justiça diferentes e possivelmente
contraditórias, no sentido, não de que duas normas de justiça contraditó­
rias possam ser havidas ao mesmo tempo como válidas, mas no sentido
A D O U T R IN A DO D IREITO N A T U R A L

de q u e quer um a quer a outra das duas normas de justiça diferentes e


possivelmente contraditórias pode ser tomada como válida, então o
valor de justiça apenas pode ser relativo; e, nesse caso, toda a ordem
jurídica positiva tem de entrar em contradição com qualquer destas
diversas normas de justiça - pelo que, consequentemente, não poderá
haver qualquer ordem jurídica positiva que deva ser considerada como
n ã o válida por estar em contradição com qualquer uma destas normas
de justiça. Por outro lado, cada ordem jurídica positiva pode correspon­
der a qualquer das várias normas de justiça constitutivas apenas de
valores relativos, sem que esta correspondência possa ser tomada como
o fundamento da sua validade.
Uma teoria do direito positivista, isto é, realista, não afirma - e isto
importa acentuar sempre - que não haja qualquer justiça, mas que de
facto se pressupõem muitas normas de justiça, diferentes umas das
outras e possivelm ente contraditórias entre si. Ela não nega que a
elaboração de uma ordem jurídica positiva possa ser determinada - e,
em regra, é-o de facto - pela representação de qualquer das muitas
normas de justiça. Especialmente, não nega que toda a ordem jurídica
positiva - quer dizer, os actos através dos quais as suas normas são
postas - pode ser apreciada ou valorada, segundo um a destas normas
de justiça, como justa ou injusta (1). Mantém, todavia, que estes critérios
de medida têm um carácter meramente relativo e que, portanto, os actos
através dos quais uma e mesma ordem jurídica positiva foi posta podem,
quando apreciados por um critério, ser fundamentados como justos, e
já, quando apreciados segundo outro critério, ser condenados como
injustos - sustentando ao mesmo tempo que uma ordem jurídica posi­
tiva é, quanto à sua validade, independente da norma de justiça pela
qual possam ser apreciados os actos que põem as suas normas. Assim
se mostra, pois, que uma teoria jurídica positivista, isto é, uma teoria do
direito positivo, nada tem a ver com uma apreciação ou valoração do seu
objecto.
Uma teoria jurídica positivista não reconhece o fundamento de
validade de um a ordem jurídica positiva em qualquer das muitas
normas de justiça - pois não pode dar a qualquer delas preferência
sobre as demais - mas, como já se mostrou, numa norma fundamental

(:) Cfr. supra, pp. 3 e ss.

101
r
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

hipotética (isto é, pressuposta pelo pensamento jurídico) por força da


qual nos devemos conduzir e por força da qual devemos tratar os
homens tal como for conforme a uma primeira constituição histórica,
global e regularmente eficaz, sem importar a questão de saber se a
ordem jurídica erigida em conformidade com esta constituição corres­
ponde ou não a qualquer norma de justiça. Na medida em que esteja
em causa a validade do direito positivo, nenhuma outra, além desta
norma fundamental, importa tomar em consideração e, especialmente,
nenhuma norma de justiça há que deva ser levada em conta.

P r im e ir a n o ç ã o do ju s n a t u r a l is m o

30. A chamada doutrina do direito natural é uma doutrina idealista-


dualista do direito. Ela distingue, ao lado do direito real, isto é, do direito
positivo, posto pelos homens e, portanto, mutável, um direito ideal,
natural, imutável, que identifica com a justiça. É, portanto, uma doutrina
jurídica idealista, mas não «a» doutrina jurídica idealista. Distingue-se
das outras doutrinas jurídicas idealistas-dualistas pelo facto de - como
o seu nome indica - considerar a «natureza» como a fonte da qual
promanam as normas do direito ideal, do direito justo.
A natureza - a natureza em geral ou a natureza do homem em
particular - funciona como autoridade normativa, isto é, como auto­
ridade legiferante. Quem observa os seus preceitos, actua justamente.
Estes preceitos, isto é, as normas da conduta justa, são imanentes
à natureza. Por isso, elas podem ser deduzidas da natureza através de
uma cuidadosa análise, ou seja, podem ser encontradas ou, por assim
dizer, descobertas na natureza - o que significa que podem ser conhe­
cidas.
Não são, portanto, normas que - como as normas do direito positivo
- sejam postas por actos da vontade humana, arbitrárias e, portanto,
mutáveis, mas normas que já nos são dadas na natureza anteriormente
a toda a sua possível fixação por actos da vontade humana, normas por
sua própria essência invariáveis e imutáveis.

102
A D O U TRIN A DO D IREITO N A T U R A L

0 BJECÇÃO DE PR IN C ÍPIO A TODO O fU SN ATU RA U SM O

3 1. Se por «natureza» se entende a realidade empírica do acontecer


fáctico em geral ou a natureza particular do homem tal qual ela se revela
na sua conduta efectiva - interior ou exterior então uma doutrina que
afirme poder deduzir normas da natureza assenta num erro lógico fun­
damental. Com efeito, esta natureza é um conjunto de factos que estão
ligados uns aos outros segundo o princípio da causalidade, isto é, como
causa e efeito - é um ser; e de um ser não pode concluir-se um deve-ser,
de um facto não pode concluir-se uma norma. Ao ser não pode estar
ímanente qualquer dever-ser, aos factos não podem ser imanentes
quaisquer normas, nenhum valor pode ser imanente à realidade
empírica.
Só quando confrontamos o ser com um dever-ser, os factos com as
normas, é que podemos apreciar aqueles por estas e julgá-los como
conformes às normas, isto é, como bons, como justos, ou como
contrários às normas, quer dizer, como maus, como injustos.
Só assim poderemos valorar a realidade, isto é, qualificá-la como
valiosa ou desvaliosa. Quem julgue encontrar, descobrir ou reconhecei
normas nos factos, valores na realidade, engana-se a si próprio.
Com efeito, quem assim proceda tem de - consciente ou inconscien
temente - projectar sobre a realidade dos factos as normas constitutivas
dos valores por ele de qualquer maneira pressupostas, para depois as
poder deduzir desta mesma realidade. Realidade e valor pertencem a
domínios distintos.

Fund am en to m e t a f í s i c o -r e l ig io s o d a d o u t r in a d o d ir e it o natural

32. Como a natureza, ou seja, a concreta realidade do acontecer


fáctico, se encontra em perpétua mutação, como o ser da natureza é um
devir, um tornar-se, as normas imutáveis do direito natural apenas
podem consistir na regularidade observável do acontecer fáctico - elas
apenas podem ser as regras gerais segundo as quais, na permanente
mutação dos fenômenos naturais concretos, sob iguais condições
surgem as mesmas conseqüências. As normas imutáveis da doutrina do
direito natural apenas podem ser as leis naturais. Quando a doutrina do

10 3
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

direito natural deduz da natureza normas imutáveis da conduta justa


(recta), o que ela faz é transformar regras do ser em normas do dever-
ser e produzir, assim, a ilusão de um valor imanente à realidade.
Se as normas imanentes à natureza são representadas como os fins
nlijectivos postos à natureza, por outras palavras: se a natureza é
interpretada como um todo ordenado com uma finalidade, se se
p:estime uma ordenação finalista imanente à natureza, a doutrina do
direito natural assume um carácter teleológico. Ora uma interpretação
teleológica da natureza apenas terminologicamente difere de uma
interpretação normativa. Fim em sentido objectivo é: o que deve ser
lealizado. Fim neste sentido: o que uma norma põe como devido
(devendo ser).
No entanto, não pode ser negado que a concepção segundo a qual
valm e realidade estão por qualquer forma essencialmente ligados entre
si, especialmente a concepção de que o valor é imanente à realidade, é
anliquíssima e ainda hoje se encontra muito espalhada. Serve isto para
esclarecer que tal concepção tem uma origem metafísico-religiosa, que
ela radica na ideia de que a natureza foi criada por uma autoridade
11 anscendente que incorpora em si o valor moral absoluto ou de que o
acontecer fáctico da realidade é dirigido por esta autoridade, de que, se
a natureza está sujeita a leis, estas leis são ordens da autoridade
transcendente e, portanto, normas - visão esta que, especialmente, está
na base da teologia cristã.
Se a natureza foi criada ou é regida por um Deus justo, então - mas
so então - podem ser reconhecidas normas nas leis desta natureza, pode
nesta natureza ser encontrado o direito justo, pode, a partir desta
natureza, ser deduzido o direito justo. Isto revela-se ainda mais
claramente numa doutrina teleológica do direito natural. A natureza
apenas pode ser interpretada como um todo organizado com uma
finalidade quando se admita que são postos certos fins ao acontecer
natural por parte de uma vontade transcendente. Só uma doutrina
teológica do direito natural pode ser teleológica.
Está fora de causa que a doutrina do direito natural foi dominante
nos séculos XVII e XVIII e que, após um recuo durante o século XIX, voltou
de novo ao primeiro plano da filosofia social e jurídica, acompanhada
da especulação metafísico-religiosa, no século xx, como seqüela das duas
guerras mundiais e da reacção contra o nacional-socialismo, contra o

104
A D O U TR IN A DO D IREITO NA TU R AL

fascismo e, especialmente, contra o comunismo; assim como está fora


de questão que esta doutrina do direito natural é de origem metafísico-
-religiosa. Seguindo a filosofia estóica já CÍCERO (l) ensinou que o direito
da natureza, que, diferentemente do direito positivo de Roma ou de
Atenas, é eterno e imutável, tem em Deus o seu autor, o seu promulgador
e o seu juiz. A G O ST IN H O vê o direito natural como a «lei eterna que,
enquanto razão ou vontade de Deus, prescreve a conservação da ordem
natural e proíbe a sua perturbação» (2). E pergunta: «Quem senão Deus
inscreveu a lei natural no coração dos homens?» (3) I s i d o r o d e
SEV ILH A (4) ensina: «Todo o direito ou é direito divino ou direito
humano. O direito divino é baseado na natureza, o direito humano no
costume». No Decretum Gratiani (5) declara-se que o direito natural
imutável veio à existência simultaneamente com a criação do homem
como ser racional (6). TO M Á S DE AQUINO ensina que o mundo é regido

(') CÍCERO, De R epublica, in, XXII, 33: «Est quídem vera lex recta ratio, naturae
congruens, diffusa in omnes, constans, sempiterna... huic legi nec abrogari fas est, neque
derogari ex hac aliquid licet, neque tota abrogari potest; nec vero aut per senatum aut
per populum solvi hac lege possumos, neque est quaerendus explanator aut interpres
eius alius, nec erit alia lex Romae, alia Athenis, alia nunc, alia posthac, sed et omnes
gentes et om ni tem pore una lex et sem piterna et im mutabilis continebit, unusque erit
communis quasi m agister et im perator omnium deus; ille legis huius inventor, disce-
pator, lator; cui qui non parebit, ipse se fugiet ac naturam hominis aspernatus hoc ipso
luet m axim as poenas, etiamsi cetera supplicia, quae putantur, effugerit».
(2) A g o s t in h o , Contra Faustum Manich. Lib. 22, C. 27: «Lex vero aeterna est ratio
divina vel voluntas Dei ordinem naturalem conservari iubens et perturbari vetans».
(3 ) AGOSTINHO, De serm Dei in monte 11, c. 9, n. 32: «Quis enim scripsit in cordibus
hominum naturalem legem nisi Deus? Cfr. A lo is S c h u h e rt, Augustins Lex-Aeterna-Lehre
nach Inhalt und Quellen. Beitráge zur Geschichte der Philosophie des Mittelalters. Bd.
xxiv, Heft 2, 1924, pp. 5, 12.
(4) Isidori Hispaniensis Episcopi Etymologiarum Libri XX. Liber V, Cap. II: «Omnes
autem leges aut divinae sunt, aut humanae. Divinae natura: humanae moribus constant,
ideoque hae discrepant, quoniam aliae aliis gentibus placent».
(5 ) Decretum Gratiani. Prima Pars, Distinctio V, I. Pars: «Naturale jus inter omnia
primatum obtinet et tempore et dignitate. Caepit enim ab exordio rationalis creaturae,
nec variatur tempore, sed immutabile permanet». Prim a Pars, Distinctio vin, II. Pars:
«Dignitate vero jus naturale sim pliciter praevalet consuetudini et constitutioní.
Quaecunque enim vel moribus recepta sunt, vel rescriptis comprehensa, si naturali juri
fuerint adversa, vana et irrita sunt habenda».
(6) Cfr. A. P. D’E n t iiè v e s , Natural Law, London, 1955, pp. 34 e s.

105
A JU S T IÇ A e o d i r e i t o n a t u r a l

pela Providência divina, isto é, pela razão divina, que esta regência
divina é a lei eterna, qüe as criaturas de Deus dotadas de razão
participam na razão divina e, portanto na Lei Eterna, na medida em que
recebem desta certas tendências naturais para acções e fins que
correspondem à mesma Lei Eterna. «Esta participação das criaturas
racionais na Lei Eterna chama-se direito natural» (’ ). O direito dedutível
das tendências naturais por Deús implantadas nos homens é o direito
natural. Este é de origem divina. E apenas porque é de origem divina
ele é absolutamente válido e, portanto, imutável. Esta validade absoluta
e imutável é um elemento essencial do direito natural. Ela é, tal como
a sua imanência na natureza, conseqüência apenas da sua origem
divina.
No entanto, houve quem, dentro da doutrina jusnaturalista, fizesse
a tentativa de tornar a validade do direito natural independente da
vontade de Deus. GRÓCIO (2) declara que o direito natural por ele descrito
valeria mesmo que se admitisse não haver Deus - acrescentando, porém,
que tal não poderia ser admitido sem incorrer no mais grave pecado.
Pois ele era um cristão e um crente, como aliás o eram todos os
representantes da doutrina clássica do direito natural, se bem que, ao

(') T o m á s d e A q u in o , Summa theologica, 1-n 9 1, Art. 1: «nihil est aliud lex, quam
quoddam dictamen practicae rationis in príncipe qui gubernat aliquam communitatem
perfectam. M anifestum est autem, supposito quod mundus divina providentia regatur,
ut in I. babitum est (q. 22, Art. 1 et 2) quod tota communitas universi gubernatur ratione
divina; et ideo ipsa ratio gubernationis rerum in Deo sicut in príncipe universitatis
existens, legis habet rationem; et quia divina ratio nihil concipit ex tempore, sed habet
aeternum conceptum, ut dicitur Proverb S, inde est, quod hujusrnodi legem oportet
dicere aeternam».
I II 9 1, Art. 2: «...omnia participant aliqualiter legem aeternam; inquantum scilicet
ex impressione eius habent inclination.es in proprios actus et fines. Inter caetera autem
rationalis creatura excellentiori quodam modo divinae providentiae subjacet, in
quantum et ipsa fit providentiae particeps, sibi ipsi et aliis providens: unde et in ipsa
participatur ratio aeterna, per quam habet naturalem inclinationem ad debitum actum
et finem; et talis participatio legis aeternae in rationali creatura iex naturalis dicitur...
Unde patet quod lex naturalis nihil aliud est quam participatio legis aeternae in rationali
creatura».
(2) G r ô c ío , De Jure Belli ac Pacis, Prolegom ena § 1 1 : «Et haec quidem quae iam
dixim us locum aliquem haberent etiam si daremus, quod sine sum m o scelere dari
nequit, non esse Deum, aut non curari ab eo negotia humana...».

106
A d o u t r in a do d ir e it o n a t u r a l

que parece, não tivesse consciência de que, sem a crença numa natureza
criada por um Deus justo, a aceitação de um direito justo imanente a
esta mesma natureza não seria possível nem coerente.
De resto, a crença numa natureza criada por um Deus justo não
implica necessariam ente a admissão de que o direito imanente à
natureza seja estabelecido ou posto pela vontade de Deus. Já T o m á s d l
A QUINO (l) ensinou que também o direito divino, isto é, o direito que
procede de Deus, ou é direito natural ou direito instituído (legislado).
Também no direito divino se prescreveriam muitas acções por serem
boas e proibiriam outras por serem más, enquanto acções há que são
boas por serem prescritas e outras que são más por serem proibidas.
Quer dizer: há normas de origem divina que prescrevem uma determi
nada conduta humana porque ela é em si boa ou má, normas, portanto,
cuja validade é independente da vontade de Deus. O valor de justiça que
elas constituem deve, segundo uma teologia orientada por esta doutrina
de Tomás, ser pensado como dado com a própria existência de Deus.
Segundo esta teologia (2), esse valor - como o próprio Deus - não é
criado - nem mesmo por Deus mas incriado.
Estas normas são direito natural na medidã em que são imanentes
à natureza de Deus, o qual, por sua própria natureza, é um Deus justo.
Como não são postas pela vontade de Deus, também não podem ser
modificadas pela vontade do mesmo Deus. São eternas, imutáveis.
Assim como um Deus, ao qual a justiça é imanente, não pode modificar
as normas da justiça, também não pode esse mesmo Deus criar uma
natureza que não seja justa. Se a esta natureza são imanentes as normas
da conduta justa, isso é assim apenas porque ela foi criada por um Deus
ao qual a justiça é imanente.

( 1) T o m á s d e A q u in o , Summa theologica ii-ii, 57, Art. 2: «jus divinum dicitur, quod


divinitus prom ulgatur: et hoc quidem partim est de his quae sunt naturaliter justa,
sed tam en eorum justitia hom ines latet; partim autem est de his, quae fiunt justa
institutione divina. Unde etiam jus divinum per haec duo distingui potest, sicut et jus
humanum: sunt enim in lege divina quaedam praecepta, quia bona; et prohibita, quia
mala: quaedam vero bona quia praecepta; et mala quia prohibita».
(2) Cfr. D eutsche Thomas Ausgabe, F. H. K E R L E , H eidelberg, München, A N TO N
P u s te t e , G raz-W ien-Salzburg, Bd. 18 , 19 5 4 , p. ro , e o com entário de A. F. U tz , OP,
op. cit., p. 4 0 3 e s.

10 7
A fU S T IÇ A E O D IR E IT O N A T U R A L

Como conciliar isto com a omnipotência de Deus, eis um problema


com o qual esta teleologia se tem debatido (l). Uma teoria científica do
direito apenas pode verificar que, sem a crença numa natureza criada
por um Deus justo, não é possível aceitar de modo coerente um direito
justo imanente à natureza. Deste modo, é indiferente, do ponto de vista
de lima teoria científica do direito, que este direito natural, segundo a
doutrina teológica, deva ser pensado como posto pela vontade divina ou
como dado com o próprio Deus, como já imanente a Deus.

TüN TA TIV A DE FU N D AR o D IREITO N A T U R A L N A NATUREZA H UM AN A

Que a doutrina do direito natural pressupõe, na verdade, as


normas da conduta recta (justa) pretensamente deduzidas da natureza
(» ns projecta sobre essa m esma natureza, mostram-no claramente as
tentativas de fundamentar o direito natural na natureza do homem,
sendo essa «natureza» do homem procurada já nas tendências deste, nas
suas inclinações e instintos, ou seja, nas suas pulsões, já na sua razão
ou nos seus sentimentos. Esta natureza do homem é, no essencial, a sua
natureza psíquica, não a sua natureza física: é a sua constituição
«interna».
Contudo, também devem ser tomadas em conta as circunstâncias
externas nas quais a natureza íntima do homem se manifesta exterior­
mente, sobre as quais o homem, por força da sua natureza, reage com
um comportamento externo. Tomadas também em consideração estas
circunstâncias externas, fala-se de uma «natureza das coisas» na qual,
todavia, o factor decisivo é a natureza do homem que se encontra
naquelas circunstâncias externas e que a elas reage, na sua conduta
externa, com as suas pulsões, a sua razão ou os seus sentimentos.
Contra a tentativa de deduzir as normas da recta conduta da natu­
reza do homem ergue-se, em prim eiro lugar, a principal objecção que
deve ser oposta a todo o direito natural em geral: que do ser não pode

(‘ ) É m uito significativo que T om ás diga daquela parte do ju s divinum constituída


pelo direito natural, isto é, pelo justo natural, que ela «está escondida aos hom ens», que
constitui um m istério. Som ente o direito posto (legislado) por Deus é acessível ao
conhecim ento humano. Cfr. a passagem citada supra, H-II, 57, Art. 2.
a D( iu t h i n a do nituirro naturai

derivar-se úm dever-ser, que de factos não podem deduzir se quaisquer


normas. Se a natureza do homem é a sua natureza empírica, a sua
efectiva constituição, tal como nos aparece na sua conduta interna e
externa, tal como é observada objectivam ente na realidade do ser
sociológico, não se pode concluir desta natureza real qual seja a conduta
ideal do homem, como é que o homem se deve conduzir, nem que ele
se deve conduzir como de facto se conduz, ou que ele se não deva
conduzir assim, quer dizer, se deva conduzir por qualquer outra
maneira.
Se da natureza real do homem se conclui para normas às quais esta
natureza real corresponde, uma tal conclusão não só é logicamente falsa
como conduz ainda a resultados praticamente impossíveis. Com efeito,
as normas assim obtidas têm de se contradizer mutuamente e não
podem, portanto, representar sequer uma ordem normativa da conduta
humana. É isto o que se torna bem patente sem pre que tentamos
fundamentar o direito natural sobre as tendências, as inclinações, os
instintos ínsitos no homem, em suma, sobre as suas pulsões.

34. Se se admite que as pulsões observadas no homem são a «natu­


reza» do homem e são, portanto, naturais, se se conclui da existência de
uma pulsão para uma norm a por força da qual os homens se devem
conduzir tal como se conduzem determinados por ésta pulsão, um a
tal norma começa logo por ser supérflua. Com efeito, os homens
conduzem-sé de facto tal como são determinados pelas suas pulsões;
e é um contra-senso prescrever aos homens que se conduzam tal
como eles efectivam ente se conduzem sem qualquer comando nesse
sentido.
Em seguida im porta observar que as pulsões dos homens estão
em conflito umas com as outras, tanto dentro do próprio homem
singular, cuja conduta é muito frequentemente o resultado de pulsões
que mutuamente se contradizem, quer dizer, o resultado da mais
forte das duas pulsões em conflito, como ainda nas relações entre
os diferentes indivíduos, na medida em que a satisfação da pulsão de
um indivíduo é inconciliável com satisfação da pulsão de outro
indivíduo.
Um exemplo típico é o impulso da autoconservação que desempenha
um papel importante na doutrina do direito natural fundada sobre a

109
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

natureza do h om em . A ssim , por exem p lo , TOMÁS DE AQUINO (*) deduz


do im p u lso da a u to c o n se rv a ç ã o a p ro ib ição de d ire ito n a tu ra l do
su icíd io. O h o m em , p o rém , de facto , n ão tem sem p re e em to d a s as
circu n stân cias o im p u lso p ara co n se rvar a sua v id a m as tem tam b ém ,
em certas circu n stân cias, o im p u lso p ara pôr term o à m e sm a vid a. É o
que m o stram os caso s - que n ão são ra ro s - de su icíd io . Dos fa c to s
postos não se p o d e ria c o n c lu ir p a ra a n o rm a de q u e o h o m em d eve
con servar a su a v id a em todas as circu n stân c ias m as - se se p u d e sse
concluir p ara q u alq u er n o rm a - p a ra u m a n orm a seg u n d o a qual, sob
certas circu n stâncias, que ele p ró p rio determ inará, deve co n servar a sua
vida.
O im p u lso do h o m e m p ara c o n se rv a r a sua v id a a p e n a s p o d e ser
considerado com o «natural» p o rq u e e na m edida em que de facto existe.
Por isso, d e vem o s co n sid era r ig u a lm en te com o «natural» o im p u lso do
h om em , que em certas circu n stân c ias tam b ém de facto existe, p ara pôr
term o à p ró p ria v id a . Se, do facto de o h om em ter o im p u lso para, sob
certas circu n stân cias, co n se rvar a sua vid a, co n clu ím o s que o h o m em
deve, nestas circu n stân cias, co n se rvar a su a vid a, não n os p o d erem o s
recu sar a co n clu ir, do fa c to in e g á v e l de que o h o m em em d a d as
c ircu n stân c ias tem o im p u lso de p ô r term o à v id a , p a ra a n o rm a
segund o a q u al o h o m em em certas circu n stân cias d e ve p ô r term o à
vid a. O que tu d o sig n ific a , p o rém , qu e do facto do im p u lso «natural»
para a a u to co n servação - e p o r cau sa do im p u lso ig u a lm en te ex iste n te
e tam bém «natura», p a ra a autod estru ição - não po d em o s faz er d erivar
qualquer n o rm a de direito n atu ral u n ívo ca relativam en te à co n d u ta do
hom em p e ran te a su a p ró p ria vid a.
R e la tiv a m e n te às n o rm a s de ju stiç a que re g u la m a co n d u ta de
h om en s em face de ou tros h om en s, que p rescrevem u m d eterm in ad o
tratam en to d o s in d iv íd u o s, a p e n a s im p o rtam a q u e les im p u ls o s do
h om em que se e n d ere ça m a u m a con duta em face de ou tros h om en s.

(') Tomás d e Aquino, Summa theologica, Ii-ll 64, 5: «seipsum occidere est omnino
illicitum, triplici ratione: primo quidem, quia naturaliter quaelibet res seipsam amat;
et ad hoc pertinet quod quaelibet res naturaliter conservat se in esse et corrumpentibus
resistit quantum potest. Et ideo quod aliquis seipsum occidat est contra inclinationem
naturalem, et contra caritatem qua quilibet debet seipsum diligere. Et ideo occisio sui
ipsius seraper est peccatm mortale, utpote contra naturalem legem, et contra caritatem
existens».

110
A d o u t r in a d o d ir e it o n a t u r a l

O impulso de autoconservação do homem dirige-se, porém, à conserva­


ção e promoção da própria vida de cada homem e muito frequente­
mente apenas pode ser satisfeito a expensas da vida e da promoção da
vida dos outros. Quer isto dizer que a satisfação do impulso de autocon­
servação de um pode estar - e em muitos casos está - em conflito com
a satisfação do impulso de autoconservação dos outros. O problema da
justiça é: como resolver um tal conflito? Dos impulsos efectivamente
presentes e que se encontram em conflito, ainda que de todo em todo
fosse possível derivar uma norma, jamais seria possível fazer defluir
uma norma capaz de solucionar o conflito.

D iv e r s id a d e dos im p u l s o s ou t e n d ê n c ia s do h o m em e co n seq ü en te

im p o s s ib il id a d e d e n e l e s f u n d a r u m a d o u t r in a c o e r e n t e do d ir e it o

natural

35. Há impulsos dirigidos à conduta do homem em face de outrem


que - como o instinto da autoconservação - são de natureza egoísta.
Mas também há impulsos que são de natureza altruísta. O amor do
próximo, o desejo de viver com os seus semelhantes em paz e amizade,
de ser por eles considerado, a aversão a exercer violência sobre outrem,
resultam seguramente de impulsos que estão vivos em muitos homens.
Quem pode, porém, negar que em muitos homens também se encon­
tram vivos impulsos que se endereçam justamente à conduta oposta
e que, conhecidos pela moderna psicologia sob o nome de impulsos
agressivos, são reconhecidos como parte integrante da «natureza»
humana?
Se do impulso do amor do próximo existente em muitos homens se
conclui para o preceito do amor do próximo, do desejo de paz existente
em muitos homens se conclui para o preceito da paz, então deve admitir-
-se que do impulso agressivo igualmente existente e, portanto, igual­
mente natural se segue o preceito que nos manda conduzirmo-nos de
conformidade com este impulso. Haverá, porém, qualquer doutrina do
direito natural que esteja disposta a tirar uma tal conclusão? Pode uma
norma que prescreva que nos conformemos com o impulso do amor do
próximo valer ao lado de uma norma que prescreva que nos conforme­
mos com o impulso da agressão? E que dizer do impulso de domínio,
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

de tanta importância para a natureza humana, o impulso para se afirmar


enmo superior aos outros e, consequentemente, para subordinar os
outiosi1
(i claro que uma doutrina que pretende deduzir o direito natural, isto
é, o direito justo da natureza do homem não pode ver esta «natureza»
em todos os possíveis impulsos do homem mas apenas em determina­
dos impulsos, é evidente que ela tem de fazer, e efectivamente faz, uma
desti inça essencial entre os impulsos que se apresentam na realidade
Inrliial: a destrinça entre aqueles impulsos sobre os quais se pode fundar
uma norma que prescreva uma conduta conforme aos mesmos e
aquelotitros sobre os quais não pode ser fundada uma tal norma - quer
dizer, entre impulsos que devem ser seguidos e impulsos que não devem
sei seguidos, entre impulsos bons e maus (l ).
Se se considera o impulso como endereçado a um fim, se se admite
que o ser no qual vai ínsito o impulso protende com o seu impulso a
ícalizar um fim, este só pode ser um fim subjectivo, isto é, não um fim
que deva ser realizado, não um fim objectivo, mas apenas um fim que
este ser pretende realizar. Por aqui se mostra claramente que os fins que
uma doutrina teleológica do direito natural crê encontrar na natureza
apenas podem ser fins objectivos postos por uma autoridade transcen­
dente ao acontecer natural, o que quer dizer: apenas podem ser as
normas que o direito natural pressupõe.
Poderá escapar a qualquer espírito medianamente crítico que a
distinção entre impulsos bons e maus, entre os fins que os seres
pretendem realizar nos seus impulsos e os fins que eles devem realizar
nao pode ser encontrada nos próprios impulsos, que essa distinção é

(') Bastante característica sob este aspecto é a doutrina de T o m á s d e A q u in o , que


lunda o direito natural sobre instintos naturais. Em conexão com a passagem acima
( ilada da Summa theologica I-n, 9 1, Art. 1 e 2, diz ele: «Visto que todas as coisas, sujeitas,
como estão, à Providência divina, são regidas pela Lei Eterna, é claro que todas as coisas
participam da Lei Eterna num certo grau, a saber, na medida em que recebem dela certas
inclinações (instintos, impulsos) que vão dirigidas a tais acções e fins... Especialmente
as criaturas racionais têm uma certa parte na razão divina [que é a Lei Eterna], enquanto
recebem desta um a inclinação natural para aquelas acções e fins que são adequados.
Esta participação das criaturas racionais na Lei Eterna chama-se direito natural. A incli­
nação «natural» (naturalis inclinatio) é tão-só a inclinação conforme à Lei Eterna, ou seja,
a inclinação conform e ao direito natural».

112
A d o u t r in a d o d ir e it o n a t u r a l

pressuposta, ou seja, que são pressupostas as normas que prescrevem


que determinados impulsos devem ser seguidos e outros não devem ser
seguidos?

Éo CONCEITO DE «N ATU REZA » (IDEAL) QUE É DERIVADO DE N ORM AS ID EA IS E


n ão in v e r s a m e n t e

36. Só com base neste pressuposto pode fazer-se a distinção entre


impulsos «naturais» e «antinaturais», indispensável a uma doutrina do
direito natural fundada sobre a «natureza» do homem, pode o impulso
para a autoconservação ser declarado como natural e o impulso para a
autodestruição como antinatural, pode o impulso do amor do próximo
ser havido como natural e o impulsão da agressão como antinatural.
Como não pode ser negado que tanto o impulso da autodestruição como
o da autoconservação, tanto o impulso da agressão como o do amor do
próximo se apresentam na natureza como realidade factual, cai-se na
paradoxal distinção de uma natureza «natural» e uma natureza «anti­
natural».
Isso, porém, significa que o conceito de «natureza» sofre uma
mudança radical de significado. No lugar da natureza real, da natureza
tal como é, entra uma natureza ideal, a natureza como deve ser - de
conformidade com o direito natural. E, assim, não são de forma alguma
as normas de um direito ideal, do chamado direito natural, que a
doutrina do direito natural deduz da natureza, mas é uma natureza ideal
que esta doutrina deduz do direito por ela pressuposto como ideal, do
chamado direito natural, direito esse que tal doutrina tem de pressupor
para chegar ao seu conceito da natureza, da natureza boa, divina, do
homem.

Ta m bém a d o u t r in a ju s n a t u r a l is t a basead a na n a tu reza do h o m em

«n o r m a l » p o s t u l a u m a f u n d a m e n t a ç ã o t e o l ó g ic a

37. A esta objecção procuram escapar muitos dos representantes da


doutrina do direito natural esclarecendo que a natureza do homem da
qual são deduzidas as normas daquele direito é simplesmente a natureza

1x3
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

do homem normal, que a conduta «natural» é a conduta «normal», por


assim dizer a conduta média do homem, tal como pode ser de facto
observada. Quer dizer: a natureza para o direito natural seria, no
essencial, a mesma que a da ciência natural descritiva. Assim como tudo
na natureza, sob determinadas condições, se comporta - em regra - de
determinada maneira, assim também o homem se conduz - em regra -
sob determinadas condições, de determinada maneira.
A natureza do homem manifestar-se-ia nesta sua conduta regular,
normal. Seria a conduta da grande maioria dos homens. A regra que
constituiria esta natureza não seria na verdade uma regra que, como a
lei da causalidade segundo a sua antiga concepção, não admitisse
excepção alguma, mas as excepções estariam, por assim dizer, em
minoria (1).
De facto, uma tal regularidade da conduta humana, quer dizer, as leis
do acontecer social, que só aproximativamente se equiparam às leis
naturais formuladas segundo o princípio da causalidade, não podem ser
determinadas, ou pelo menos não podem ser determinadas a ponto de
ser possível fundar sobre tais regras uma ordem jusnaturalista da
sociedade humana. Regularidades com um tal alcance apenas é possível
observádas dentro de grupos localmente determinados e para períodos
de tempo delimitados. A estas regras damos nós a designação de
costumes dos homens - são os seus usos sociais, os mores.
Tais usos e costumes, porém, são demasiado diferentes nos diversos
tempos e lugares para que se possa falar de uma conduta natural, no
sentido de uma conduta normal dos homens in genere. Mas, ainda que
fosse possível averiguar uma tal regularidade da conduta humana, isto
é, uma regra ou regras segundo as quais os homens efectivamente se
conduzem, sempre e em toda a parte (tal como os corpos metálicos se
dilatam sob a acção do calor, sempre e em toda a parte), não seria lícito
derivar de tais regras do ser quaisquer regras de dever-ser, quaisquer
normas, não poderia o que é «normal» no sentido do ser valer como
«normal» no sentido do dever-ser.

(') Cfr. a exposição de U tz, op. cit., p. 437, o qual diz que o direito natural é uma
ordem dos «homens que vivem em sociedade segundo padrões médios» um a ordem «da
maioria no sentido democrático formal».

114
A d o u t r in a do d ir e it o n a t u r a l

Se apenas são tomadas em consideração as regularidades de conduta


que podem ser observadas dentro de grupos localmente delimitados e
dentro de períodos temporalmente definidos, então uma conclusão do
que é normal no sentido do ser para o que há-de valer como normal no
sentido do dever-ser somente é possível com base na pressuposição da
norma segundo a qual o homem se deve conduzir, dentro de um deter­
minado grupo, tal como há longo tempo costuma regularmente condu­
zir-se a maioria preponderante dos indivíduos deste grupo. Esta, porém,
é uma das muitas normas de justiça relativa que foram precedentemente
analisadas. Ela não exclui de forma alguma a possível validade de outras
normas de justiça que prescrevem uma conduta diferente da regular­
mente observada pela maioria dos membros do grupo e que, a apreciar­
mos por elas esta conduta regular da maioria que as viola, conduziriam
a um juízo de desaprovação da natureza humana.
A norma segundo a qual o homem se deve conduzir tal como
regularmente se conduz a maioria dos homens apenas poderia ser
apresentada como de direito natural se pudesse tratar-se de uma maioria
de toda a humanidade e pudesse conferir-se a esta norma validade
absoluta. O primeiro requisito a custo será possível e o segundo só é
possível sob o pressuposto de se acreditar que é da vontade de Deus que
o homem assim se conduza e que, portanto, na conduta regular da
maioria dos homens, e apenas nesta, mas já não na conduta da minoria,
se exprime a natureza do homem, a natureza que nele foi implantada
por Deus - que, por conseguinte, a natureza dos homens é em regra boa
e só excepcionalmente é má.
Efectivamente uma escola teológica defende esta tese. Mas nada há
de mais significativo do que o facto de uma outra escola, seguindo a
orientação de AGOSTINHO, defender a tese oposta: a tese pessimista de
que a natureza do homem está corrompido, de que, depois da queda
original, todos nós somos pecadores. Uma teoria científica do direito não
tem qualquer razão para se pronunciar a favor de uma ou outra das
doutrinas teológicas. Ela pode limitar-se à verificação de que também
a tentativa de fundar o direito natural sobre uma natureza «normal»,
sobre uma natureza média do homem, necessita de lançar mão de uma
fundamentação teológica da doutrina jusnaturalista.

115
A ju s t iç a e o d ir eit o n a t u r a l

0 D l H M ir o n a t u r a l c o m o d i r e i t o r a c i o n a l

38. Direcção proeminente dentro da teoria do direito natural,


UMMHlmente designada como «racionalista», é aquela cujos representan-
lt«M v ê e m n natureza do homem na sua razão e, consequentemente,
. p r o c u r n m deduzir da razão as normas de um direito justo. Eles admitem
que B dtas normas são imanentes à razão ou, o que vem a dar no mesmo,
que « I hz Ôo, como autoridade normativa, como legisladora, prescreve aos
h o m e n s a conduta recta, isto é, a conduta justa. Este direito natural surge
Hdsltn c o m o direito racional. O justo é o natural, porque é o racional.

( í ONTR a d i t o r i e d a d e d o c o n c e it o d e r a z ã o p r á t ic a . S u a o r ig e m t e o l ó -

u i c o -r e l i g i o s a

39 . Do ponto de vista da psicologia empírica, a função específica da


ruzAo é o conhecimento dos objectos que lhe são dados ou propostos.
O que nós designamos como razão é a função cognoscitiva do homem.
A normação, a legislação não é, porém, uma função do conhecimento.
C o m a fixação de uma norma não se conhece um objecto já dado, tal
c o m o ele é, mas exige-se algo que deve ser. Neste sentido, a normação
6 u m a função do querer, não do conhecer. Uma razão normadora é ao
m e s m o tempo uma razão cognoscitiva e querente, é, simultaneamente,
c o n h e c e r e querer. Estamos em face do conceito em si contraditório de
razâo prática, que desempenha um papel decisivo não só na teoria do
direito natural concebida como teoria do direito racional mas ainda na
é t i c a ('). Este conceito de razão prática é de origem teológico-religiosa.

C) Cfr. A l f R oss, Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis. Kopenhagen,


l.elpzig, 19 33, p. 19: «O conhecimento prático é um conhecimento que, pelo facto de
Ker conhecimento do fim último, do fundamento incondicionado da vontade, ao mesmo
tempo põe este fim para a vontade ou representa ele próprio este fundamento. Só que
esta definição é em si contraditória; pois todo o conhecimento é conhecimento de algo,
de algo que é ele próprio diferente do conhecim ento e é dado independentemente do
mesmo. Se é o próprio conhecimento, porém, que deve pôr o fim (representar o funda­
mento), então este fim (fundamento) não pode, pois, ser dado antes e independente­
mente do conhecimento - pelo que este não pode ser, consequentemente, conhecimento
deste fim (fundamento). E inversamente: se o conhecimento deve ser conhecimento do
fim, então não pode ele próprio pôr este fim . Uma coisa exclui a outra».

116
A d o u t r in a d o d ir e it o n a t u r a l

Se analisarmos as coisas mais de perto veremos que a razão, da qual


o direito natural é deduzido, não é a razão empírica do homem tal como
ela efectivamente funciona, mas uma razão especial, a «recta» razão, a
razão, não como ela de facto é, mas como deve ser. Já CÍCERO define o
direito natural como produto da «recta razão», (r e c t a r a t io j, distinguindo
muito claramente uma razão recta, isto é, dirigida para o bem, de uma
razão não recta, quer dizer, dirigida para o mal. «As criaturas», diz ele,
«que receberam da natureza o dom da razão, receberam também a recta
razão e, com ela, a dádiva do direito» (’ ), que ele noutro lugar define
como «recta razão em consonância com a natureza» (2). Identifica,
contudo, esta natureza com Deus, pois declara Deus como o autor deste
direito eterno e imutável (3).
E, de facto, só à razão divina podem ser imanentes as normas
absolutamente válidas da justiça, só com referência à razão divina sé
pode fazer a afirmação contraditória de que ela é simultaneamente
função cognoscitiva e função voluntária, pois o princípio lógico que
exclui a contradição não é aplicável às afirmações relativas aos atributos
de Deus. Somente a razão divina pode ser razão «prática», isto é,
conhecimento legislador, só de Deus se pode afirm ar que conhecer e
querer são uma e a mesma coisa.

O c o n c e it o d e r a z ã o p r á t ic a e m Tomás de A q u in o

40. Que a razão do homem, de cuja natureza racional pode a


doutrina do direito natural deduzir as suas normas eternas e imutáveis,
é a razão de Deus no homem, constitui ensinamento explícito de TOMÁS
DE A q u i n o . Este distingue entre razão teórica e razão prática (r a t io
s p e c u la t iv a e r a t io p r a c t ic a ) . Como função específica da ra t io s p e c u la t iv a
designa: i .a d e f i n i t i o , 2.Qe n u n t ia t io , 3.Qs y llo g is m u s v e l a r g u m e n t a t io (4).

(1) C íc e ro , De Legibus, 1, xil, 33: «quibus e n im ratio .a n a tu ra data est, isd em etiam
recta ratio data est; ergo et lex, q u ae est recta ratio in iu b en d o et vetando; si lex, ius
quoque. Et o m n ib u s ratio; ius igitu r datu m est om nibu s».
(2) C íc e ro , De Republica, in, x x i i , 3 3 . Cfr. supra, p. 98, nota 1.
(3) C íc e ro , ibidem.
(4) T o m ás de A q u in o , Summa theologica, 1-11, 90. Art. x.

117

i m u iu ii i ii u ii i ii ii i ii i ii i íi i ii i ii u ii u ú u i i ii i ii u ii i ii i ii i ii ii
A JU S T IÇ A e o d i r e i t o n a t u r a l

Mas, como função da ratio practica designa já: ordenar, legislar,


estabelecer as normas que prescrevem a boa conduta, a conduta justa (1).
A lei é a regra e a medida do que deve ser feito e do que não deve
fazer-se (2).
Mas a razão prática humana não é em si e por si (secundum se) esta
regra ou esta medida. Essa regra ou essa medida são-no os princípios
nela postos - por Deus, evidentemente (3). A razão hum ana é razão
prática, quer dizer, legisladora, normadora, apenas na medida em que
nela domina a razão divina. A razão divina rege o mundo segundo uma
Lei Eterna que temos de pensar como imanente à mesma razão divina.
O homem criado por Deus tem razão na medida em que participa na
razão divina, da qual recebe o impulso para uma conduta em
conformidade com a Lei Eterna (+). «Nas coisas humanas diz-se que algo
é justo quando está conforme com a regra da razão e, como vimos, a
primeira regra da razão é o direito natural» (5). Ora o direito natural é
a participação das criaturas dotadas de razão na Lei Eterna. A razão cuja
regra é o direito natural é a razão divina (6).

(*) Summa theologica, ril, 17, Art. 1: «imperare est actus rationis, praeposito tamen
actus voluntatis». h i, 90, Art. 1: «Unde relinquitur quod lex sit aliquid pertinens ad
rationem».
(2) Summa theologica, 1-11, 90, Art. 1: «lex quaedam regula est et m ensura actuum,
secundum quam inducitur aliquis ad agendum, vel ab agendo retrahitur... Regula autem
et m ensura hum anorum actuum est ratio; quae est principiu m prim um actuum
humanorum... rationis enim est ordinare at finem , qui est prim um principium in
agendis...».
p) Summa theologica, 1-11, 9 1, Art. 3: «ratio hum ana secundum se non est regula
rerum; sed principia ei naturaliter indita, sunt regulae quaedam generales et mensurae
omnium eorum quae sunt per hom inem agenda...».
(+) Cfr. lugares citados na nota 1, p. 109.
(5 ) Summa theologica, 1-11, 95, 2: «In rebus autem hum anis dicitur esse aliquod
justum ex eo quod est rectum secundum regulam rationis: rationis autem prim a regula
est lex naturae».
(6) U t z , no seu comentário a Tomás, a pp. 444, acentua o «poder de criar direito da
razão prática do homem». Diz ele: «A doutrina do direito natural de S. Tomás vê na
sentença ou voz natural da razão prática o legislador segundo (mais próxim o a nós) dos
direitos humanos, o qual, por seu turno, nos reenvia para 0 Legislador Eterno que está
acima deste mundo». Se a razão prática do hom em é um legislador que está submetido
a um legislador mais alto, isto é, a Deus como legislador do mundo, a legislação operada
pela razão prática do homem só pode ser uma legislação delegada por Deus, quer dizer,

118
A d o u t r in a d o d ir e it o n a t u r a l

Por seu turno, a razão divina identifica-se com a vontade di­


vina {1).

apenas pode ser, em últim a análise, uma legislação através da razão divina, pelo que,
consequentemente, a razão do hom em só pode ser «prática», òu seja, legisladora, na
medida em que participe da razão divina, na medida em que seja a razão divina no
homem.
(') T o m á s d e A q u in o , Summa theologica, m i, 93, A rt. 4: «cum v o lu n tas Dei ipsa
essentia eius, n o n su b d itu r gu b ern atio n i divin ae, neque legi aeternae, sed idem est quod
lex aetern a. ...A lioquin , ratio n e su i ipsius, m ag is est d icen d o ip sa ratio».
A ideia em si contraditória de que a razão prática do homem desempenha ao mesmo
tempo um a função vo lu n tária e um a função cognoscitiva, aparece nas seguintes
passagens de T o m á s de A q u in o : Summa theologica, 11-11, 58, Art. 4, onde T o m a s
distingue entre ratio como potentia cognoscitiva e voluntas como vis appetitiva. Contra
a concepção de que «justitia non est in voluntate sicut in subjecto», sed «in rationc>\
diz ele: «Justitia autem non ordinatur ad dirigendum aliquem actum cognoscitivum: non
enim dicim ur justi ex hoc quod recte aliquid cognoscimus. Et ideo subjectum jusiitiar
non est intellectus vel ratio, quae est potentia cognoscitiva. Sed quia justi dicimui in
hoc quod recte aliquid agim us; proxim um autem principiüm actus est vis appetitiva;
necesse est quod justitia sit in aliqua vi appetitiva sicut in subjecto». T o m á s distingue
então a vontade, voluntas, enquanto appetitus rationalis, do appetitus sensitivus; afirma
da vontade que ela está «na razão»: «voluntas, quae est in ratione», e fala muiio
vagam ente da «propinquitas [voluntatis] ad rationem ». Se a ratio é um a potcnlin
cognoscitiva e a voluntas um a v is appetitiva, a voluntas não pode estar «in ratione»
O conceito de ratio pratica, porém , funda-se na im anência da voluntas na ratio.
Ver ainda Summa theologica, 1-11, 90, Art. 1: «in operibus rationis, est consideraic
ipsum actum rationis, qui est intelligere et ratiocinari; et aliquid per huiusmodi actum
constitutum. Quod quidem, in speculativa ratione, primo quidem est definitio; secundo,
enuntiatio; tertio vero, syllogism us vel argumentatio. Et quia ratio etiam practica ulilui
quodam syllogism o in operabilibus, ut supra (q. 13 a. 3) habitum est, secundum quod
Philosophus docet in Ethic. (lect. m): ideo est invenire aliquid, in ratione practic a, quod
ita se habeat ad operationes, sicut se habet propositio, in ratione speculativa, ail
conclusiones. Et huiusm odi propositiones universales rationis practicae ordinatae ad
actiones habent rationem legis. Quae quidem propositiones aliquando actualilri
considerantur, aliquando vero habitualiter a ratione tenentur». «Ratio habet vim
m ovendi a voluntate; ut supra (q. 17 a. 1) dictum est. E x hoc enim quod aliquis vull
finem, ratio im perat de his quae sunt ad finem. Sed voluntas de his quae im peranlui,
ad hoc quod legis rationem habeat, oportet quod sit aliqua ratione regulata. Et hoc modo
intelligitur quod voluntas principis habet vigorem legis; alioquin voluntas prínripis
magis esset iniquitas quam lex».
I-II, 9 1, Art. 3: «lex est quoddam dictamen practicae rationis. Similis autem processos
esse invenitur rationis practicae et speculativae: utraque enim ex quibusdam principii.s
ad quasdam conclusiones procedit, ut superius (Ibid.) habitum est. Secundum hoc, ergo,

119
m n n m i iii m n n m n n ii u iii iiu i iin im in n n m n i i i n n i

A JUSTIÇA E 0 DIREITO NATURAL


A DOUTRINA DO DIREITO NATURAL

41, Se a razão da qual a teoria do direito natural crê deduzir as suas Deus, que nos proporciona 0 conhecimento do bem e do mal(>)
lionnas justas é a razão divina no homem e não a razão empírica deste, A serpente diz à mulher: «Deus sabe que, quando vós comerdes deste
umti tal teoria não pode ser designada como racionalista. A doutrina do fruto, os vossos olhos se abrirão e vós sereis como Deus e sabereis 0 que
direito natural afirma descobrir estas normas - que não são criadas pelo é 0 bem e 0 que é 0 mal» (2). A essência de Deus reside em que ele sabe
h om em m as dadas na razão - através de uma análise da razão do 0 que é 0 bem e 0 que é 0 mal. E, por isso mesmo que 0 sabe, quer
hom em . Se esta razão fosse a razão humana empírica, 0 conhecim ento também que se faça 0 bem e evite 0 mal. O seu saber é 0 seu querer.
do direito natural teria de ser autoconhecimento do homem. Somente A sua razão é uma razão prática. É desta razão divina que 0 homem
Plltfto esta teoria teria carácter racionalista. - na queda original - se apropria.
Mas a doutrina do direito natural orientada pela teologia de T o m á s
DU AuiJlNO somente é coerente quando afirma que 0 direito natural
0 qual, embora não criado por Deus, pertence todavia à essência de A POSIÇÃO RACIO NALISTA DE GRÓCIO
Deus, (' imanente à razão divina - é conhecido ou descoberto por
Intermédio de um processo que ela designa como «autoconhecimento 42. O facto de a especulação ética se agarrar tão pertinazmente ao
de l)(‘iis» (') - pelo que tal doutrina ocupa uma posição estritamente conceito logicamente insustentável de razão prática não se explica só
metafísica. Se é a razão cognoscente que põe as normas que constituem pela influência que sobre ela exercem as representações teológico-
0 vnlor do bem e, consequentemente, 0 desvalor do mal, então a -religiosas.
distinção entre bom e mau é uma função do conhecimento (normador), Se as normas que constituem os valores morais, e especialmente 0
da razâo prática. valor justiça, defluem da razão e não de uma faculdade do homem
Na faculdade de distinguir 0 bem do mal se vê frequentemente a distinta da razão, da sua vontade, se numa norma moral, que liga a um
essência da razão prática. Nesta versão, 0 conceito remonta já ao mito determinado pressuposto uma determinada conduta como devida
da árvore da ciência. É 0 saborear 0 fruto desta árvore, proibido por (devendo ser), essa ligação se não opera através de um acto da vontade
dlcendum est quod, sicut, in ratione speculativa, ex principiis indemonstrabilibus
humana e, portanto - neste sentido -, não é arbitrária mas é tão inde­
lUtliraliter cognitis producuntur condusiones diversarura scientiarum, quarum cognitio pendente da vontade humana como a ligação entre causa e efeito na lei
non est nobis naturaliter indita, sed per industriam rationis inventa; ita etiam, ex natural, então não existe, sob este aspecto, qualquer distinção entre uma
prapeeptis legis naturalis, quasi ex quibusdam principiis communibus et indemonstra- lei física ou matemática e uma lei moral, então pode afirmar-se de uma
billbus, necesse est quod ratio humana procedat ad aliqua magis particulariter dispo- norma de justiça que se pretenda encontrar na razão que ela é tão
lienda, Et istae particulares dispositiones, adinventae secundum rationem humanam,
indiscutível como 0 enunciado segundo 0 qual 0 calor dilata os corpos
dlcuntur legis humanae, servatis aliis conditionibus quae pertinent ad rationem legis...».
Se a função da razão prática é a mesma que a da razão teorética, a saber, tirar metálicos ou 0 enunciado segundo 0 qual duas vezes dois são quatro.
conclusões do geral para 0 particular, então ela é uma função cognoscitiva e não uma 0 que pietende GRÓCIO com a sua afirmação de que as normas do
função volitiva. Se a razão prática'tem de, através de conclusões silogísticas, derivar direito natural seriam validas ainda que se pudesse dizer - 0 que, efecti-
normas particulares das normas do direito natural que lhe são dadas e que a ela apenas vamente não pode ser dito - que Deus não existe, é que a validade destas
cumpre conhecer, não poderá ser designada como uma razão legisladora, não poderá
normas é tão objectiva, isto é, que essas normas escapam tanto a toda
dizer-se dela: «imperare est actus rationis».
(') UTZ, op. cit., p. 403 e s, depois de acentuar que, segundo a teologia de S. T o m á s ,
a aibitrariedade e, portanto, são tão indiscutíveis como os enunciados
0 direito natural não é criado por Deus mas é fundado na própria essência de Deus, da matemática: «Por mais ilimitado que seja 0 poder de Deus, há no
esclarece finalmente: «No Ser divino e no autoconhecimento de Deus é que se
fundamenta em último termo a racionalidade do direito natural». Esta é, porém - olhada (') Genesis, 11, 9 .16 , 17.
do ponto de vista da razão empírica -, uma racionalidade altamente irracional, (2) Genesis, in, 4. 5.

120
121
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

entanto certas coisas às quais se não estende tal poder... Assim como
Deus não pode fazer com que duas vezes dois não sejam quatro, também
não pode fazer com que o que é essencialmente [quer dizer por
natureza] mau não seja mau» (*).

A razão p r á t ic a em K ant

43. Na ética de K a n t , qu e é co n stru íd a sobre o co n ceito de razão


prática e o cob re com a gran d e au torid ad e do seu nom e, acresce ainda
um outro m otivo. A K a n t im p o rtava , com o con ceito de razão prática,
«salvar» o d o g m a teo ló gico da lib erd ad e, q u e ele n ão p o d e ria d eixar
su b sistir em face da razão teorética (2).
Diz K A N T : «Afirmo que temos necessariamente de emprestar a todo
o ser racional que tem uma vontade a ideia de liberdade sob a qual, e
sob a qual somente, ele actua. Pois que em tal ser nós pensamos uma
razão que é prática, isto é, é dotada de causalidade com relação ao seu
objecto. [Quer isto dizer, como resulta de numerosas outras passagens:
uma razão que é legisladora, que dá ou fixa as leis). Ora não podemos
de forma alguma pensar uma razão que, com a sua própria consciência,
receba de outra origem qualquer orientação pelo que toca aos seus
juízos, pois de outro modo o sujeito não atribuiria à sua razão, mas a um

(') G r ô CIO, De Jure Belli ac Pacis, Lib. 1, Cap. I, Par. x, 5: «Est autem ius naturale adeo
im m utabile, ut ne a Deo quídem m utari queat. Q uam quam enim im m ensa est Dei
potentia, dici tam en quaedam possunt ad quae se illa non extendit, quia quae ita
dicuntur, dicuntur tantum, sensum autem qui rern exprimat nullum habent; sed sibi
ipsis repugnant: sicut ergo ut bis duo non sint quatuor ne a Deo quidem potest effici,
ita ne hoc quidem , ut quod intrínseca ratione malum est, m alum non sit».
(■“) K A N T , Krítik der reinen Vernunt, III, p. 3 3 1: «Se entretanto se vier porventura a
consentir num a faculdade transcendental de liberdade que dê começo às modificações
do mundo, esta faculdade terá de, pelo menos, estar fora do mundo (muito embora fique
sempre um a tem erária pretensão de, para além do conjunto de todas as intuiçôes
possíveis, se admitir ainda um objecto que não pode ser dado em qualquer percepção
possível). No próprio mundo é que jam ais será lícito atribuir às substâncias uma tal
faculdade, pois que então desapareceria em larguíssima medida a conexão (interligação)
segundo leis gerais dos fenôm enos que uns aos outros necessitantem ente se
determinam e a que chamamos natureza e com ela a característica da verdade empírica
que distingue a experiência do sonho». Cfr. também Grundlegung zur M etaphysik der
Sitten, iv, p. 448.

122
A d o u t r in a do d ir e it o n a t u r a l

impulso, a determinação da Faculdade de julgar. Aquela (a razão) tem


de ver-se a si própria como autora dos seus princípios, independente
mente de influências estranhas; e, consequentemente, como razão
prática, ou como vontade de um ser racional, deve ser vista por este
mesmo como livre; quer dizer, a vontade deste ser apenas sob a ideia
da liberdade pode ser uma vontade própria e tem de, portanto, num
intuito prático, ser concedida a todos os seres racionais» f1).
A vontade é livre, pois a razão prática é livre e a razão prática é
vontade A razão prática é livre, pois ela é ao mesmo tempo a razão
teorética, a razão cognoscente, a razão judicante. E a razão judicante é
livre, porque o juízo é uma função específica desta razão enquanto
faculdade do conhecimento e de nenhuma outra faculdade, pois a
Faculdade de julgar é uma potência da razão cognoscente e apenas desta
razão. Nisso consiste a sua «liberdade».
A questão é a de saber se os juízos de realidade (entitativos) que a
razão emite com base no seu conhecimento dos factos não são de uma
natureza completamente diferente da daqueles que ela emite com base1
no seu conhecimento das normas postas através de actos de vontade, se
«liberdade», da razão, que consiste em o julgar ser a sua, e apenas sua,
função específica, não será, perante os seus juízos, algo de completa
mente diferente da liberdade da vontade, que consiste em esta não ser
causalmente determinada. Contudo, estas questões podem aqui ser

(1) K a n t , Grundlegung zur M etaphysik der Sitten, iv, p. 448. - K ritik der reinen
Vernunft, 111, p. 5 2 1: «Mas a questão de saber se a própria razão, nesta actividade através
da qual prescreve leis [práticas - que dizem o que deve acontecer], não será por seu
turno determinada por outras influências e se aquilo que, por referência aos estím ulos
(impulsos) sensitivos, se chama liberdade, não poderá ser também natureza com relação
a causas eficientes mais altas e mais distantes, não interessa sob o ponto de vista prático,
pois nós apenas começamos por perguntar à razão pelo preceito da conduta; antes é uma
questão simplesmente especulativa que nós, na medida em que a nossa intenção se dirija
a um fazer ou a um não fazer (omissão), podemos pôr de lado. Nós reconhecem os,
portanto, a liberdade prática através da experiência como um a das causas naturais, a
saber, como uma causalidade da razão na determ inação da vontade, ao passo que a
liberdade transcendental exige a independência desta própria razão (com vista à sua
causalidade para dar começo a um a série de fenôm enos) de todas as causas determi
nantes do mundo dos sentidos e, nessa medida, parece ser contrária à lei natural e logo
à experiência possível». Quer dizer: a razão é, na verdade, causa de efeitos, m as ela
própria não é o efeito de um a causa. A razão é livre.

12 3
niIIIIk-,.

#
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

d eixad as de parte. Em todo o caso, K a N T parece ter havido por mais


H pn ren te e natural, por menos atacável, a «liberdade» da razão em face
l i o s s e u s juízos do que a liberdade da vontade. Para poder atribuir à
v o n t a d e a «liberdade» da razão frente aos seus juízos, ou seja, portanto,
H l i b e r d a d e da razão cognoscente, K a n t tem de identificar a vontade
com n r a z ã o . A razão identificada com a vontade é a razão prática (l ),
KANT acentua repetidas vezes que a razão prática é vontade. Diz ele:
«A v o n t a d e n ã o é senão razão prática» (2). Ele equipara a «razão prática»
A « v o n t a d e » aditando à expressão «razão prática», entre parêntesis, a
ptilnv ni « v o n t a d e » (3). E somente porque vê na razão prática a vontade é
(jut* e l e p o d e figurar esta razão como legisladora. Diz da razão que ela
« p r e c e l t u a c o m o se deve agir» (4) e remete para aquilo «que a razão nos
p i f s c r e v e » (S). Somente a razão, diz ele, prescreve ao ser racional o dever-
M«*r (f‘). Seria necessária uma metafísica dos costumes para investigar as
f o n t e s d o s «princípios práticos que residem na nossa razão» (?). A lei
m o r a l v a l e para nós homens «pois que ela emanou da nossa vontade
e n q u a n t o inteligência e, portanto, do mais íntimo de nós mesmos»
(d u n o s s a própria ipseidade - aus unserem eigentlichen Selbst) (8).

(') TO MÁ S de A q u in o , Summa theologica, I-II, 17 ; Art. 1: «Radix libertatis est volun-


tHH, NÍcut subjectum; sed sicut causa, est ratio: ex hoc enim voluntas libere potest ad
d i v p r u ferri, quia ratio potest habere diversas conceptiones boni. Et ideo philosophi
(lellntunt liberum arbitrium, quod est liberum de ration judicium; quasi ratio sicut causa
libertatis». A raiz da liberdade é efectivam ente a vontade, mas a causa da liberdade é a
rmiAo.
(*) K a n t , Grudlegung zur M etaphysik der Sitten, iv, p. 4 12 .
(i) K an t, op. cit., p. 4 41.
p) KANT, M etaphysik der Sitten, VI, p. 216.
(’ ) KANT, op. cit., p. 218.
((l) KANT, Grundlegung zur M etaphysik der Sitten, IV, p. 460.
(>) K an t, op. cit., p. 390.
(H) K a n t , op. cit., p. 4 61. É no facto de a lei moral emanar da vontade do homem
tmquanto inteligência que consiste a autonomia da vontade, que K a n t (op. cit., p. 440)
proclama como o mais alto princípio da moralidade. E a razão prática do homem que,
(Ir conformidade com este princípio da autonomia, é o legislador moral. Sob este aspecto
pureee a razão prática de K a n t distinguir-se da ratio practica d e T o m á s de A q u in o , o
qual na razão prática do hom em apenas vê a participação na razão de Deus, que é o
legislador moral.
Mas K a n t não pode manter o princípio da autonom ia m oral do homem, pois que
- precisamente através da razão prática do hom em - procura demonstrar a existência

124
A d o u t r in a d o d ir e it o n a t u r a l

K a n t reco n h e ce que as n o rm as ap en as p o d em ser p o stas através de


um acto da vo n ta d e. Diz: «As leis em an a m da vontade...» (q.

de Deus como o suprem o legislador moral. Na sua Kritik der Urteilskraft (v, p. 444) diz:
«Ora, como não consideram os o homem como fim da criação senão enquanto ele é um
ser moral, temos... para referir os fins naturais a uma causa inteligente do mundo, tal
como é postulado pela estrutura da nossa razão, um princípio que nos permite pensar
a natureza e atributos desta primeira causa como último fundamento, no reino dos fins...
A partir deste princípio, assaz determinado, da causalidade do prim eiro Ser, teremos de
0 pensar não só como inteligência e legislador da natureza mas também como legislador
em geral num reino moral dos fins».
Não é, portanto, a inteligência do homem como vontade, ou a vontade humana como
inteligência, mas a inteligência de Deus como vontade, ou a vontade de Deus como
inteligência, donde, em último termo, em ana a lei moral; não é o homem, mas Deus, o
Primeiro Ser, que é o legislador moral.
Na Grundlegung zur M etaphysih d er Sitten (iv, p. 455) diz-se: «O dever-ser moral é,
portanto, um querer próprio e necessário [do homem] como membro de um mundo
inteligível, e apenas é pensado por este como dever-ser enquanto ele se considera
simultaneamente como um membro do mundo dos sentidos». Para o homem enquanto
ser inteligível não há qualquer dever-ser, não valem (vigoram ), portanto, quaisquer
imperativos, pois o querer identifica-se com o dever-ser. Mas, um tal ser inteligível, cujo
querer é um dever-ser para o ser empírico, apenas pode ser Deus.
K a nt diz tam bém (op. cit., p. 414 ): «Portanto, para uma vontade divina e, em geral,
para uma vontade sagrada (santa) não vigoram quaisquer imperativos; o dever-ser está
aqui deslocado, pois o querer já por si mesmo é necessariamente conforme à lei» [isto é,
ao dever-ser]. Segundo a Kritik der Urteilskraft (v, p. 444), temos de pensar Deus, este
Primeiro Ser, «como omnisciente», «como omnipotente», «como sumamente bom e justo».
Se temos de aceitar Deus como o supremo legislador moral, então os deveres morais não
podem ser caracterizados ou, pelo menos, não podem ser suficientemente caracterizados
como comandos que emanam da razão própria do homem, mas têm de ser considerados
como comandos de Deus ou, pelo menos, também como comandos de Deus.
Na verdade, diz K a n t na M etaphysih d er Sitten, VI, p. 4 9 1, «que na ética, como pura
filosofia prática da legislação interior, apenas são concebíveis as relações morais do
homem em face do homem: que espécie de relações, porém, intercedem entre Deus e o
homem, isso supera inteiram ente os lim ites da m esma ética e é-nos absolutamente
incom preensível». Mas em Religion innerhalb der Grenzen d er blossen Vernunft, vi,
p. 6, diz: «A moral, portanto, conduz inevitavelm ente à religião, através da qual aquela
se estende à ideia de um legislador m oral poderoso fora do honem »; e, a pp. 15 3 :
«A religião é (subjectivamente considerada) o conhecimento de todos os nossos deveres
como ordens divinas». E ém Kants Opus posthumurn (apresentado e prefaciado por Erich
Adickes, Kant-Studien, N.Q 50, 1920, p. 802) encontra-se esta frase: «Na razão prática
moral reside o im perativo categórico segundo o qual devem os considerar todos os
deveres humanos como ordens divinas».
(') K a n t , M etaphysik der Sitten, iv , p. 226.

125
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

Por conseguinte, K a n t apenas pode manter a sua tese de que a razão


prescreve ao homem a lei moral pelo facto de identificar a razão,
enquanto razão prática, com a vontade. Mas, por outro lado, ele distin­
gue muito claramente a razão como faculdade do conhecimento da
vontade como faculdade apetitiva. Isto resulta já da passagem acima
citada em que ele parte da ideia de um «ser racional que tem uma
vontade» e, assim, pressupõe a razão e a vontade como duas faculdades
distintas do homem. Fala ocasionalmente do homem como de um «ser
que possui razão e uma vontade» (1). Razão e vontade, não razão como
vontade. «A razão como faculdade prática», diz K a n t , é a razão como
faculdade «que deve ter influência sobre a vontade» (2).
Mas a razão apenas pode exercer influência sobre a vontade se razão
e vontade são duas faculdades distintas, não quando sejam idênticas. Na
sua Kritik der praktischen Vernunft (3 ) afirma K a n t que, na sua utiliza­
ção prática, «a razão se ocupa dos fundamentos (razões) determinantes
da vontade». Logo, a razão, mesmo na sua utilização prática, não é
vontade: ela «ocupa-se» da vontade e dos seus motivos determinantes,
quer dizer, procura conhecer a vontade como um objecto que lhe é dado.
«A vontade», diz-se noutro ponto, «é portanto a faculdade de apetência,
considerada não tanto (como o arbítrio) com referência à acção como
antes ao motivo determinante do arbítrio para a acção; e não tem ela
mesma propriamente qualquer motivo determinante [quer dizer: é
livre], mas é a própria razão prática, na medida em que pode determinar
o arbítrio» (4). «Somente um ser racional tem a faculdade de agir
segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou tem uma
vontade. Como para derivar modos de agir das leis se exige a razão, a
vontade não é, pois, senão a razão prática» (5), O conceito de razão
prática é, portanto, o resultado de uma confusão inadmissível de duas
faculdades do homem essencialm ente distintas uma da outra e até
distinguidas pelo próprio K a n t .
K a n t concede que «em ú ltim a a n álise a p en a s se pode tra tar de u m a
e m esm a razão, a q u al som en te n a su a a p lica çã o [com o razão teo rética

(') K a n t , Grundlegung zur.M etaphysik d er Sitten, iv , p. 395.


(2) K a n t , op. cit., p, 396.
(3 ) K a n t , Kritik der praktischen Vernunft, v , p. 15.
(4) K a n t , M etaphysik der Sitten, v i , p. 2 13 .
(5) K a n t , Grundlegung zur M etaphysik der Sitten, iv , p. 4 12 .

126
A d o u t r in a d o d ir e it o n a t u r a l

ou prática) tem de ser d istin g u id a » (1). S e a p en a s h á uma razão, então,


em am bas as su as a p licaçõ es, ela a p en a s pode conh ecer; e, n esse,caso ,
apen as pode d istin gu ir-se por re fe rên c ia aos seu s objectos, os ob jectos
do co n h ec im e n to , sen d o razão te o ré tic a q u a n d o o co n h e c im e n to se

( ') K a n t , op. cit., p. 39 1. Se, como afirm a K a n t , a razão teorética e a razão prática
são uma e a m esma razão e ambas são faculdades do conhecimento, então não é possível
considerar algo como verdadeiro ou afirmá-lo como existente do ponto de vista da razão
prática que não seja lícito considerar como verdadeiro ou afirm ar como existente do
ponto de vista da razão teorética - como a existência de Deus, a imortalidade da alma
e, sobretudo, a liberdade da vontade.
K a n t diz (Kritik der Urteilskraft, v, p. 456): «A realidade de um Suprem o Autor da
lei moral é, portanto, suficientem ente dem onstrada apenas para efeitos do uso prático
da nossa razão, sem que algo seja teoreticamente definido quanto à existência (Dasein)
do mesmo Suprem o Autor». Quer dizer: a afirmação de que Deus existe e dá a lei moral
apenas é verdadeira do ponto de vista da razão prática, m as não do ponto de vista da
razão teorética.
K a n t distingue expressam ente (op. cit., p. 461 e ss.) duas espécies de «convicções
de verdade» («Fürwahrhaltens»): temos por verdadeiro aquilo que é demonstrado, mas
para toda e qualquer dem onstração exige-se «que ela não persuada mas convença».
«Uma dem onstração que se destine a convencer pode... ser de duas espécies... No
prim eiro caso, é fundada sobre princípios suficientes para o juízo determ inante
(definidor); no segundo, em princípios suficientes sim plesm ente para o juízo reflexivo.
No último caso, ela nunca pode, fundando-se sim plesm ente em princípios teoréticos,
agir sobre o convencimento; mas já se toma por base um princípio prático da razão (que
tèm uma validade geral e necessária), pode seguramente aspirar (ter pretensões) a um
convencim ento bastante para fin s m eram ente práticos, isto é, a um convencim ento
moral» - o que quer dizer: pode ser.havida por verdadeira.
«Relativamente à existência do Prim eiro Ser como Deus, ou da alma como espírito
imortal, não é possível à razão hum ana qualquer dem onstração de intenção (natureza)
teorética, ainda que para operar tão-só um grau mínimo de convicção» (Fürwahrhaltens)
(op. cit., p. 466). «Pelo contrário, o fim suprem o a realizar por nós, aquilo através de que
e através de que somente, podemos alcançar a dignidade de sermos nós próprios o fim
de uma criação, é um a ideia que tem para nós, para efeitos práticos, realidade objectiva,
e é um facto (Sache); mas, porque não podemos atribuir realidade a este conceito no
plano teorético, ele é. sim ples m atéria de fé para a razão pura e com ele são-no
igualm ente Deus e a im ortalidade como pressupostos sob os quais, e sob os quais
somente, nós podem os, segundo a estrutura da nossa (humana) razão, pensar a
possibilidade daquele efeito do uso conform e à lei da nossa liberdade. Ora a convicção
(Fürwabrhalten) em assuntos de fé é uma convicção com um intuito meramente prático,
quer dizer, é crença moral, que nada dem onstra para o conhecimento teorético, mas
apenas dem onstra para efeitos do conhecim ento puro prático, dirigido à observância
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

dirige ao ser, aos factos da realidade, e razão prática quando o conhe­


cimento se dirige ao dever-ser, às normas postas pela vontade e aos
valores constituídos por estas normas. Se a razão teorética e a razão
pratica são uma e a mesma razão, esta não pode, como teorética,
conhecer e, como prática, realizar uma função completamente distinta,
ou seja, querer.
Se bem que K a n t designe a ética com o nome de «ciência», de
• conhecimento da razão», e a distinga da ciência física pelo facto de esta
«se ocupar da natureza com as suas leis», ao passo que aquela se ocupa
das leis segundo as quais tudo deve acontecer e, portanto, das normas
das normas da moral - e, sendo assim, tanto a ética como a física
apenas possam conhecer um objecto que lhes seja dado, afirm a no
entanto que é a ética que dita leis ao homem enquanto ser dotado de
i a/.ao. A filosofia moral «aplicada ao homem, não vai buscar, o mínimo
(|iic seja, ao conhecimento do mesmo homem (antropologia), mas dita-
lhe, enquanto ser racional, leis a priori» (’ ). O conhecimento da razão
designado como ética ou filosofia moral é legiferante. A ética e a moral,
o conhecimento e o seu objecto são, assim, identificados. É esta a
conseqüência do conceito de razão prática. Tal conseqüência revela-se
também no facto de K a n t , assim como identifica a ética com a moral,
identificar a ciência jurídica com ò direito. Diz ele: «O conjunto das leis
para as quais é possível uma legislação externa chama-se teoria do
direito (Jus). Se uma tal legislação é efectiva (wirklich), aquela será uma
teoria do direito positivo» (2).
K a n t diz na verdade que o fundamento da vinculatividade das
normas morais «não deve ser procurado na natureza do homem ou das

dos deveres...» «A fé (como habitus, não como actus) é a form a moral de pensar da razão
no ter por verdadeiro aquilo que é inacessível à razão teorética» {op. cit., p. 471).
•Assim , a distinção de K a n t entre razão teorética e razão prática revela-se, em
última análise, como sendo uma variante da teoria da dupla verdade, que na filosofia
(la idade Média desempenhou um importante papel- a teoria de que algo que é falso
secundum fid em et theologiam pode ser verdadeiro secundum rationem et philosophiarn.
Fista teoria foi propugnada essencialmente com o fim de defender a filosofia contra os
ataques da teologia. Em K a n t ela tem função inversa: a de defender a teologia contra
a filosofia.
j 1) K a n t , Grundlegung zur M etaphysik d er Sitten, IV, p. 389.
(2) K a n t , M etaphysik der Sitten, v i , p. 2 2 9 .

128
A DOUTRINA do DIREITO NATURAL

circunstâncias do mundo em que ele está posto, mas a priori, tão-


somente nos conceitos da razão pura» ('). Parece assim que ele - pelo
menos no domínio da ética - rejeita uma argumentação jusnaturalista.
Mas como, segundo K a n t , a razão pura, para a qual - e não para a razão
prática - ele aqui remete, é a faculdade cognoscitiva do homem e, nesta
medida, pertence à sua natureza, e como ele, segundo resulta de uma
passagem acima citada, presume que os princípios práticos «residem na
nossa razão», existe, pois, um parentesco muito estreito entre a sua ética
e a doutrina jusnaturalista do direito racional. Este parentesco assenta
sobre o conceito de razão prática, comum a ambas as doutrinas.

O s e n t im e n t o ju r íd ic o c o m o f u n d a m e n t o e f o n t e d o d ir e it o NATURAL

44. Partindo da ideia de que o homem, em últim a análise, não é


determinado na sua conduta pela razão mas pelo sentimento, fez-se
recentemente a tentativa de deduzir normas de justiça válidas do
sentimento jurídico (Rechtsgefühl) do homem e, assim, manter em pé
a doutrina do direito natural, ameaçada pelo positivismo relativista que
conduz à «dúvida e ao cepticismo» (2).
Com a expressão «sentimento jurídico» são designados, conforme
as duas significações diferentes que a palavra «direito» tem no uso
corrente da linguagem, a saber, direito positivo e justiça, dois fenômenos
diferentes que devem manter-se distintamente separados. Se o «senti­
mento» em questão se refere ao direito no sentido positivo, então
designa-se por tal expressão a atitude psíquica que se manifesta na
desaprovação ou aprovação com que um indivíduo que vive sob uma
ordem jurídica positiva reage, respectivamente, a um tratamento anti-
jurídico ou a um tratamento conforme ao direito da sua própria pessoa,
especialmente, e também das demais.
Poder-se-ia logo objectar que esta reacção não provém tanto de uma
emoção sensitiva como de uma emoção apetitiva. Se se diz do «senti­
mento jurídico» que ele «exige» o respeito pelo nosso próprio direito,

(') K a n t , Grundlegung zur M etaphysik der Sitten, IV, p. 389.


(2) H e l m u t C o i n g , D ie obersten Grundsiitze des Rechts. Ein Versuch zur
Neugrundung des Naturrechts. Heidelberg, 1947, p. 7, 1 1 .

129
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL

mas «impele» também ao reconhecimento do direito dos demais (x),


com tal significa-se, então, que o «sentimento jurídico» se exprime
numa exigência (Forderung) e portanto, é mais um desejo ou vontade
que um sentimento. Como uma ordem jurídica apenas pode conferir
direitos estatuindo os correspondentes deveres, o chamado sentimento
jurídico é o desejo ou vontade de se ser tratado de um modo conforme
e não contrário ao direito.
Mais importante para a apreciação de uma tentativa de fundamentar
uma doutrina do direito natural no sentimento jurídico é o facto de que
a desaprovação do tratamento contrário ao direito é em geral mais
intensa do que a aprovação do tratamento conforme ao direito, e,
sobretudo, o facto de que, como só um sentimento jurídico observável
em todos os homens pode servir de base a normas de justiça dotadas
de validade geral, apenas pode entrar em linha de conta a desaprovação
da injustiça que é praticada contra cada um de nós. Um ZO LA, que
se revolta contra a injustiça feita a um D r e y f u s , é um fenôm eno
muito mais raro do que um M lC H A E L K O H LH A A S, que luta pelo seu
próprio direito. A m aioria dos homens deixa a desaprovação do
tratamento injusto dos outros a esses outros. Uma das máximas de L a
ROCHEFOUCAULD reza assim: «Lam our de la justice n'est que la crainte
de souffrir 1’injustice» (2).
Mas importa sobretudo ter em conta que neste chamado sentimento
jurídico se não manifesta uma natureza do homem da qual possa ser
deduzido um direito natural. Não só porque o direito aqui tomado em
consideração não é um direito natural mas um direito positivo, como,
em primeira linha, porque a norma contra cuja violação o sentimento
reage desaprovadoramente e a cuja observância reage com aprovação
não é imanente a este sentimento e, portanto, não pode ser deduzida
dele - como uma norma de direito natural. A norma é do conhecimento
do indivíduo que reage com o seu sentimento; ela é conhecida por ele,
não sentida. O direito que aqui importa considerar não é - como um
direito natural deduzido de um sentimento jurídico - a conseqüência
deste mesmo sentimento jurídico, mas, precisamente ao contrário, esse

(J) COING, op. cit., p. 22, 23. Diz o autor a pp. 2 1 : o sentim ento jurídico «quer» ver
o ideal realizado; e, a pp. 24: o sentim ento jurídico «exige» tratamento igual.
(2) L a R o c h e f o u c a u l d , M aximes, 1665, N.Q78.

130
A DOUTRINA do DIREITO NATURAL

sentimento jurídico é conseqüência do direito-positivo. Somente por


isso é que este chamado sentimento jurídico, melhor, a exigência por ele
formulada, pode ter um conteúdo univocamente determinado - deter­
minado, a saber, através da ordem jurídica positiva.
Na segunda significação o chamado sentimento jurídico é um
sentimento de justiça. Este manifesta-se na desaprovação com a qual um
indivíduo reage a um tratamento de si próprio e, por vezes, também dos
outros, que ele - sem fazer acepção do direito positivo - considera como
injusto, e na aprovação com que ele reage a um tratamento que
considera justo. É evidentemente com este sentimento jurídico que se
relaciona a tentativa de uma nova fundamentação do direito natural
quando se afirm a que ele é um «sentimento original» inato em cada
homem e que o «princípio fundamental» que ele «visa» (a «verdade
fundamental» para que «tende») é a justiça (1 ).
Quando alguém reage emocionalmente contra um determinado
tratamento de si próprio ou de outrem, considerando-o injusto - v. g.,
contra o facto de ele ou qualquer outro serem excluídos do gozo dos
direitos políticos por pertencerem a uma determinada raça fá-lo
porque assume como pressuposto a norma de justiça segundo a qual
todos os homens devem ser tratados por igual, quer dizer, sem que se
faça acepção da sua raça. Esta norma não é imediatamente imanente ao
sentimento que desencadeia a reacção contra o tratamento considerado
injusto. Ela tem de estar já na consciência desse alguém quando se dÉi
a reacção contra um tratamento que a contraria. Não pode, portanto, ser
deduzida do mesmo sentimento.
Se, porém, se pergunta pela fonte de que provém a pressuposta norma
de justiça, quer dizer, se se pergunta por que é que alguém pressupõe esta
norma como válida e, por isso, considera como justo o tratamento igual
de todas as pessoas, sem acepção da sua raça, e exige um tal tratamento,
tem de constatar-se, no entanto, que esta pressuposição é de raiz
emocional, e não de origem racional. Ora podemos designar esta origem
emocional da representação (ideia) do que é justo como sentimento
jurídico - no sentido de sentimento de justiça. Este sentimento jurídico,
porém, não pode ser o fundamento de um direito natural. Com efeito, ele
é muito diferente e contraditório nos diferentes indivíduos.

(') COING, op. cit., pp. 22, 29.


A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

É inegável que, se o sentimento jurídico de uns exige ou postula o


Igual tratamento de todas as pessoas sem acepção da sua raça, o senti­
mento jurídico de outros exige ou postula um tratamento desigual,
tomando em consideração a raça. Estes sentimentos jurídicos dos
homens são tão diversos e tão contraditórios entre si como as normas
de justiça que anteriormente analisámos.
Também não pode negar-se que os sentimentos jurídicos dos homens
dentro das diferentes sociedades são muito diversos e se modificam
substancialmente no decorrer da evolução. Não pode especialmente
i».‘giir-se que até na mesma sociedade e no mesmo momento histórico
os sentimentos jurídicos dos indivíduos pertencentes a diferentes
categorias sociais e a diferentes profissões são diversos e podem, através
dns suas exigências, entrar, como de facto entram, em conflito, precisa­
mente porque as normas de justiça pressupostas por estes indivíduos,
11$ quais se apresentam como sendo os ideais radicados nos seus senti­
mentos de justiça, são muito diferentes e contraditórias. Um socialista
pertencente à classe trabalhadora, com fundamento no seu sentimento
|ur!dico, desaprova muito decididamente a ordem jurídica sob a qual é
obrigado a viver como injusta organização exploradora, enquanto uma
pessoa pertencente à classe possuidora, à classe que é privilegiada por
psta ordem jurídica, aprova como justa, com base no seu sentimento de
justiça, precisamente esta mesma ordem.
Se se admite que o sentimento jurídico tem uma parte essencial na
criação do direito, que, portanto, uma ordem jurídica positiva corres­
ponde ao sentimento jurídico do grupo dominante, do qual ela emana,
então apenas podemos explicar o facto dê estarem em vigor ordens
jurídicas que são tão fundamentalmente divergentes, como uma ordem
jurídica capitalista e uma ordem jurídica comunista, uma ordem jurídica
democrática e uma ordem jurídica autocrática, pela circunstância de
serem diferentes os sentimentos jurídicos dos homens que afeiçoam ou
modelam essas mesmas ordens jurídicas. Sim, até o sentimento jurídico
de uma e mesma pessoa pode reagir de modo muito diferente, por
forma a contradizer-se. Um indivíduo pode, enquanto soldado raso,
desaprovar como injusto, segundo o seu sentimento jurídico, o melhor
tratamento dado aos oficiais, por este chocar contra a norma de justiça
por ele pressuposta, segundo a qual todos devem ser tratados por igual.
Uma vez promovido ele próprio a oficial, pode, com base no seu senti­
A DOUTRINA DO DIREITO NATURAL

mento de justiça, aprovar como justo este tratamento diferenciado


porque agora - determinado emocionalmente - pressupõe a norma de
justiça segundo a qual cada um deve ser tratado de acordo com a sua
posição ou patente.
A tentativa que se faça de, a partir do sentimento jurídico dos
homens, recolher certos princípios supremos a fim de modelar ou afei-
çoar o direito positivo e, portanto, obter critérios seguros para a sua
apreciação ou valoração, apenas poderia - de todo em todo - resultar se
fosse possível demonstrar um determinado conteúdo do sentimento
jurídico que fosse igual em todos os homens, se o sentimento jurídico
de todos os homens postulasse o mesmo tratamento em iguais
circunstâncias. Essa tentativa falha desde logo porque não é possível
revelar um tal conteúdo, porque o sentimento jurídico dos homens
postula o tratamento que se coaduna com qualquer uma das muitas
normas de justiça entre si tão divergentes. Ela choca-se contra o mesmo
facto com que esbarra a tentativa de formular uma norma «abstracta»
de justiça prescrevendo um tratamento determinado que apresente um
elemento comum aos diferentes tratamentos postulados pelas diferentes
normas de justiça concretas. No fundo trata-se da mesma tentativa (‘ ).
Sobretudo, porém, nenhum direito natural pode ser fundamentado
pela via de uma dedução efectuada a partir do sentimento jurídico dos
indivíduos. O facto de um determinado tratamento ser postulado pelo
direito natural significa que este tratamento é objectivamente justo. Ora
do facto de os indivíduos terem o sentimento subjectivo de que um
determinado tratamento é justo e, portanto, em sua opinião, deve ser
aplicado, não se segue que tal tratamento seja objectivamente justo

(') COiNG diz a pp. 24: o sentim ento jurídico «exige tratam ento igual. Só onde
reconhece diferenças é que ele permite um tratamento tam bém diferente e reconhece
o princípio: «a cada um o seu». Pondo inteiramente de parte o facto de este princípio
apenas ser um dos muitos princípios da justiça que resultam dos diferentes sentimentos
jurídicos, o certo é que os diversos sentimentos de justiça, ou seja, as normas de justiça
deles decorrentes, reconhecem diferenças muito diversas como essenciais. Somente um
sentimento jurídico postula tratamento igual: o sentimento jurídico do indivíduo que
pressuponha a norm a de justiça segundo a qual todas ns pessoas devem ser tratadas por
igual em todas as circunstâncias. Todos os outros sentimentos jurídicos postulam trata­
mento desigual. Mas sem dúvida que a custo se encontrará alguém cujo sentimento
jurídico não perm ita tomar em conta uma qualquer espécie de desigualdade.

133
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL

- isto ainda que os sentimentos jurídicos de todos os indivíduos fossem


iguais, quer dizer, postulassem como justo o mesmo tratamento nas
mesmas circunstâncias. O sentimento, incluindo o sentimento jurídico,
é um facto da ordem do ser; e de um facto da ordem do ser não pode
seguir-se qualquer norma de dever-ser. Ora nesta nova fundamentação
do direito natural trata-se de obter normas, normas de justiça, «princí­
pios supremos do direito».

O JU SN ATU RALISM O NADA DEM O N STRA, POIS CONDUZ A RESULTADOS D IV ER ­


GENTES CONSOANTE O PRESSUPO STO DE QUE PARTE

45. Como o escopo da doutrina do direito natural é a justiça, são as


normas de um direito justo, e como não há - ao contrário do que julgam
os representantes desta doutrina - apenas uma mas muitas normas de
justiça, muito diferentes umas das outras e opostas entre si, como além
disso, a norma ou normas da justiça não são, tal como supõem os
jusnaturalistas, imanentes à natureza e, portanto, não podem ser nela
encontradas ou dela deduzidas mas são pressupostas pelos mesmos
jusnaturalistas, estes têm de, conforme a norma de justiça que pressupo­
nham, chegar a resultados muito diversos e entre si contraditórios (’ )
- facto que a história da doutrina do direito natural confirm a e que
desde sempre foi oposto à mesma doutrina.
É perfeitamente compreensível, por isso, que a doutrina do direito
natural falhe completamente em face dos dois problemas de justiça
decisivos do nosso tempo: - a questão: democracia ou autocracia e
a questão: economia livre (capitalismo) ou economia planeada (socia­
lismo).
Se se crê, porque assim se pressupõe, encontrar na natureza a norma
de justiça da liberdade (como autodeterminação), declarar-se-á a
democracia e um sistema de economia livre com a garantia da proprie­
dade individual como a única ordem social natural, isto é, justa. Se se
crê, porque assim se pressupõe, encontrar na natureza a norma de
justiça que postula a satisfação das necessidades econômicas de todos,

(') Cfr. o meu estudo: «The Natural-Law Doctrine before the Tribunal of Science»
in: What is Justice, pp. 13 7 e ss.

134
A DOUTRINA DO DIREITO NATURAL

a sua segurança econômica, defender-se-á como natural, quer dizer,


como justa, apenas uma ordem social que realize este ideal, mesmo
quando ela ou precisamente porque ela apenas alcança este resultado
pela via da economia planeada, através da estatuição da propriedade
colectiva dos meios de produção e por processos autocráticos.
Efectivamente, da natureza deduziu L o c k e a democracia, F i l m e r a auto
cracia, C uM BEKLAN D a propriedade individual, M o r e l l y a propriedade
colectiva. Com os métodos do direito natural e pelo que respeita à
questão da justiça pode demonstrar-se tudo e, portanto, nada.

A DO UTRIN A DE UM D IREITO NATURAL VARIÁVEL

46. A objecção irrespondível de que a doutrina do direito natural


ainda não pôde, até ao presente, formular normas da recta conduta c.oin
carácter geral, válidas em todas as circunstâncias, sempre e em toda a
parte - quer dizer, de que não foi capaz de estabelecer um direito natural
imutável -, conduziu à teoria de um direito natural variável.
Admite-se que as regras da conduta social dos homens sobre as quais
um direito natural pode ser fundamentado não são invariáveis como as
leis naturais formuladas pela ciência da natureza, mas se modificam
com as transform ações da vida social, das circunstâncias políticas e
econômicas. Com isso poderá significar-se que também a natureza do
homem, tal como se manifesta nas circunstâncias políticas e econômicas
em mutação e ao reagir a estas circunstâncias, sofre modificação; que,
portanto, não há qualquer natureza imutável do homem e, conseqüente
mente, também não há qualquer direito natural dedutível de tal natu
reza e imutável, mas apenas um direito natural variável, quer dizer,
diferente nas diferentes épocas, nos diferentes lugares e dentro de
sociedades diferentes. É esta a versão radical da teoria de um direito
natural variável. Com esta teoria, porém, apenas se pode significar que,
ao lado da natureza imutável do homem, há ainda uma natureza
mutável e que, portanto, assim como daquela se deduz um direito natu
ral imutável, desta se pode deduzir um direito natural variável.
Contra a teoria de um direito natural variável vale desde logo a
mesma objecção que se formula contra a teoria de um direito natural
invariável: que, de uma natureza humana variável, tal como de uma

135
■Illll

A JUSTIÇA E 0 DIREITO NATURAL

nii In re/a humana invariável, enquanto factos, nenhuma norma pode ser
deduzida, que as regras variáveis do ser da conduta social do homem,
tlio pouco como as leis naturais invariáveis, podem ser transformadas
(«in regras de dever-ser. Se a natureza do homem não é invariável, se dela
uno podem ser deduzidas quaisquer normas invariáveis - ou até quais­
quer normas, pura e simplesmente - sobre a conduta recta, não pode
lniver um direito natural que possa servir como critério de medida firme,
iibsoluto, para a apreciação ou valoração do direito positivo, mas terão
de existir diferentes direitos naturais, possivelmente contraditórios
entie si, ou seja, normas de justiça que apenas constituem valores
lelativos. Ora este é justamente o ponto de vista do positivismo relati-
ví.sla. A teoria de que não existe um direito natural imutável mas apenas
um diieilo natural variável não pode contrapor-se, como pretende, a este
positivismo relativista; pois, abandonando a ideia de justiça absoluta e,
<onsequentemente, negando-se a si própria enquanto doutrina do
diieilo natural, coloca-se no plano deste positivismo {l).

47. É por isso compreensível que um direito natural variável geral­


mente apenas seja apresentado como um sistema de normas situado ao
Indo ou por baixo do direito natural imutável. São distinguidas duas
naturezas do homem ou duas camadas da natureza humana, das quais
lima (' imutável e a outra mutável, para fundar sobre a primeira o direito
natural invariável e sobre a segunda o direito natural variável.

(') O direito natu ral cu ja n o va fu n d am en ta ção é v isad a p o r C o in g no seu trabalh o


nriimi referido é u m direito n a tu ra l v a riá v e l. C o in g, op. cit., p. 1 1 5 , con ced e que, com a
«liim.sformação da v id a social» se tra n sfo rm a tam bém o sentim ento ju ríd ico e, com ele,
ns «critérios» pelos qu ais deve ser a ferid o o valo r de um a ord em ju ríd ica. C om isto ele
uliiimlona com o se m o strou - o terren o de toda a p o ssível dou trina do direito natural.
A posição ju sn atu ralística, qu er dizer, a p o ssib ilid ad e de retirar do sen tim en to ju ríd ico
crilcrios firm es, ob jectivo s, pro cu ra ele m an tê-la afirm an d o que os v alo re s qu e serv em
i'diiio critérios de m ed id a são na verd ad e v ariáv eis m as existem ind epen dentem en te dos
ind ivíd u os qu e fo rm u la m os ju íz o s de v a lo r - não são criad o s p o r eles m as a p en as
encontrados, «descobertos» (p. 116 ). C o m o é isto p o ssív el se os valo res, com o C o in g, a
pp, 1 1 , afirm a, são dad o s no s e n tim e n to do h om em , se, com o ele diz, o sen tim en to
jurídico do h o m em «quer v e r realizad os», estes valores, se ele «postula» u m tratam en to
justo? Se assim é, então é bem o p ró p rio in d ivíd u o que fo rm u ta os ju ízos de valo r quem ,
com 0 seu «sen tim en to ju ríd ico», põ e os valo res, para depois - na su a «consciên cia» do
direito - os conhecer.

136
A D O U TRINA DO D IREITO N A T U R A L

A s s im U t z (*), p o r e x e m p lo , n a su a in te rp re ta ç ã o de T o m á s de
AQUINO, d istin g u e en tre u m a «natureza h u m an a geral, isto é, a essên cia
esp e cífic a do h om em », q u e é im u tável, e so b re a qual se co n stró i u m
«direito n atu ral en ten d id o no sentido gen érico», u m direito natural «em
si» - o d ireito n atu ral im u tá vel - e u m a n a tu re z a h u m an a «concreta»
que se tra n s fo rm a «de co n fo rm id ad e com a situ aç ão h istó rica» , q u er
dizer, com as circu n stân c ias p o líticas e ec o n ô m ica s em m utação, u m a
natureza h u m an a sobre a qual se constrói u m d ireito natural em sentido
co n creto. E ste se ria u m d ireito qu e h a v e ria de ser d e sco b erto «na
situação real (Sachbestand) concreta», que resu lta «hic et nunc da análise
do real» (2).

(') UTZ, op. cit., pp. 4 01 e s.


(2) Pode duvidar-se que apareça em T o m á s este conceito de um direito natural
variável. Na Summa theologica, Il-n, 57, Art. 2, diz-se: «Aquilo que é natural ao possuidor
de uma natureza im utável tem de ser o mesmo sem pre e em toda a parte. A natureza
do homem, porém, é mutável. Por isso, aquilo que é natural ao homem pode, por vezes,
falhar» («illud, quod est naturale habenti naturam im m utabillem , oportet quod sit
semper et ubique tale. Natura autem hominis est mutabilis; et ideo id quod naturale est
homini, potest aliquando deficere»).
Mas T o m á s entende aqui por mutabilidade da natureza do hamem - em oposição
à im utabilidade da natureza de Deus, como é patente - o facto de que o hom em não é
sempre bom mas, por vezes, é mau, quer dizer, a circunstância de que a sua natureza
pode mudar-se do bem para o mal. T o m á s explica: «Assim , a igualdade natural exige
(Sicut naturalem aequalitatem habet) que ao depositante seja restituído o depósito; e,
se a natureza hum ana fosse sempre uma natura recta [quer dizer: dirigida para o bem],
tal seria sem pre observado». «Como, porém por vezes acontece que a vontade hum ana
‘depravatur’ [quer dizer: se volta para o mal], surgem casos em que o depósito não deve
ser restituído, para que o homem 'perversam voluntatem haben s’ [quer dizer: o homem
cuja vontade se voltou do bem para o mal] o não use mal; como, por exemplo, quando
um louco furioso ou um inimigo do Estado reclama as suas armas em depósito». («Sicut
naturalem aequalitatum habet ut deponenti depositum reddatur: et si ita esset quod
natura hum ana sem per esset recta, hoc esset sem per servandum . Sed quia quandoque
contingit quod voluntas hominis depravatur, est aliquis casus in quo depositum non est
reddendum, ne horao perversam voluntatem habens male eo utatur: ut puta si furiosus
vel hostis relpublicae arma deposita reposcat»).
Quer dizer: a natureza do homem, à qual corresponde a norma segundo a qual deve
ser restituída a um indivíduo a coisa por ele depositada, é a natura humana recta, a
natureza boa do homem, a natureza como ela deve ser, não como ela de facto é. Como
norma fundada sobre esta natureza do homem, tal norma, porém, é sempre válida, pois

137
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL

Um direito que resultasse exclusivamente de uma análise da situação


concreta seria um direito conforme com a norma de justiça que postula
sejam tomadas em consideração todas as possíveis desigualdades
- norma esta que, no domínio do direito positivo, conduz a uma livre
descoberta do direito (Rechtsfindungj, não limitada por quaisquer
normas gerais do mesmo direito positivo p). Um tal direito natural é de
facto variável. Ele varia de caso para caso e apenas se manifesta nas
normas jurídicas individuais que são constituídas pelas decisões dos
casos concretos. Na medida em que o direito natural, em último termo,
tem de ser aplicado nas decisões dos casos concretos, um tal direito é
inteiramente inconciliável com um direito imutável que deve necessaria­
mente ser formulado em normas gerais.
Um direito natural «concreto», deduzido de uma situação concreta
e vertido numa norma individual, é tão impossível como um direito
natural abstracto, vertido em normas gerais em que são transformadas
certas regras de ser (Seinsregeln) observáveis na realidade social. Um
caso concreto apenas pode ser decidido justamente através de uma
norma individual na medida em que o confrontamos com uma norma
geral que o órgão que profere a decisão aplica. Se esta norma não pode

ela não se refere de form a algum a ao caso de um homem que tem uma má natureza,
porque tem uma vontade má.
Se a natureza do hom em da qual devem ser deduzidas as norm as de um direito
natural é a boa naturera do homem, então o facto de esta boa natureza do homem se
poder transform ar em má não pode servir de argumento a favor de um direito natural
variável. Ao mesmo resultado se chega quando se não analise o exem plo apresentado
por T omás do ponto de vista da natureza do hom em a quem deve ser restituída a coisa
depositada. A norma segundo a qual o depósito deve ser restituído ao depositante é
tão-só a aplicação da norma geral segundo a qual devemos cumprir as nossas promessas,
pois uma coisa só está «em depósito» se o depositário da coisa promete restituí-la ao
depositante quando este o deseje.
A não aplicação desta norm a resulta da norm a segundo a qual ninguém deve
cooperar para um a má acção. U m a norm a lim ita a validade (Geltung) da outra. No
entanto, a inversa tam bém é possível: que a validade da norm a segundo a qual não
devemos ajudar alguém numa má acção seja limitada através da norm a segundo a qual
devemos cum prir as nossas promessas. Da natureza não é possível deduzir a qual das
duas possibilidades se deva dar a preferência. Se am bas as normas são pressupostas
como válidas, então a prim eira apenas pode valer dentro dos lim ites traçados pela
segunda, e isto logo desde o início, sem que tenha de se admitir qualquer modificação.
(') Cfr. supra, n.Q23, al. a).

138
A d o u t r in a d o d ir e it o n a t u r a l

ser qualquer norma do direito positivo - e não o podè ser dentro do


sistema da livre descoberta do direito tem de ser, pois, uma norma
geral de outra espécie, uma norma geral de justiça - ainda que, para
cada caso, seja uma diferente norma de justiça.
U t z , com efeito, também diz: «Naturalmente a análise da situação real
é apreciada segundo normas»; e verifica que «estas normas são tomadas
da natureza em si». Elas são, porém, as normas do direito natural geral
imutável. É portanto este, e não qualquer direito natural variável, que,
por força desta teoria, deve ser aplicado através de uma análise da situação
concreta a realizar «hic et nunc». Direito natural «variável» são-no as
normas individuais através das quais, em aplicação das normas gerais
do direito natural imutável, são decididos os casos concretos.

48. Aos mesmos resultados negativos no que toca à possibilidade de


um direito natural variável conduz uma análise crítica daquela teoria
que distingue entre uma «camada» imutável e uma «camada» mutável
na natureza do homem e crê poder fundamentar sobre esta segunda
camada da natureza humana um direito natural variável válido, ao lado
do direito natural imutável p). Com efeito, esta teoria é acompanhada
da reserva de que as camadas variáveis da natureza humana radicam em
último termo no núcleo imutável da mesma natureza humana e que,
portanto, nas normas variáveis do direito natural são aplicadas as
normas imutáveis do mesmo direito natural.
Esta teoria reporta-se a uma alocução do Papa Pio XII (2), na qual se
diz: «O estudo da história e da evolução do direito desde tempos
remotos ensina que, por um lado, uma transformação das condições
econômicas e sociais (e muitas vezes até das condições políticas) exige
novas formas dos postulados de direito natural, com as quais já se não
coadunam os sistemas até então dominantes; mas, por outro lado, ensina
também que, apesar destas transformações, as exigências fundamentais
da natureza reaparecem sempre e se transferem com maior ou menor
premência de uma geração à outra».

(') Cfr. o estudo «Wandelbares Naturrecht» in: Orientierung. Katholische Blàtter fiir
weltanschauliche Inform ation, N.° 16, Zürich, Agosto 1956, pp. 1 7 1 e ss.
p) Feita em 1 3 de Outubro de 19 55 perante os membros do Centro Italiano di Studi
per la Ríconciliazione Internazionale. Citada apud Orientierung, 1956, N.B 15, p. 174.

139
A ju s t iç a e o d ir e it o n a t u r a l

Se, nas «novas formas dos postulados de direito natural», ou seja,


portanto, no direito natural variável, reaparecem sempre as «exigências
limdiimentais da natureza», ou seja, pois, o direito natural imutável,
eutflo é sempre e apenas este direito natural imutável que é aplicado; e
m> porque e na medida em que ele é aplicado nestas «novas formas» é
que estas podem ser designadas como «de direito natural».

T a m i i í .m não p o d e j u s t i f i c a r -s e a d o u t r in a ju s n a t u r a l is t a pela su a

I 1INÇÀO

49 . Se se reconhece que falhou e, do ponto de vista de uma con-


ccpçüo que não seja metafísico-religiosa, tem necessariamente de falhar
a tentativa da doutrina do direito natural de encontrar na natureza e
dela deduzir, portanto, critérios absolutos que sirvam para apreciar a
elaboração do direito positivo, ou seja, normas de justiça absolutamente
válidas, então não se poderá justificar esta doutrina alegando que ela
exerce de facto uma influência benéfica, porque de carácter reformador,
sobre a elaboração do direito positivo, isto é, alegando que a doutrina
do direito natural tem conduzido a um melhoramento ou aperfeiçoa­
mento do direito positivo modelado sob a sua influência (').
O «melhoramento» só pode consistir no facto de o direito modificado
sob a influência de uma doutrina do direito natural ser transformado
de um direito - mais ou menos - injusto em um direito - mais ou
menos - justo. Na aceitação deste pressuposto, porém, reside um juízo
de valor que pressupõe uma norma de justiça: precisamente aquela
norma de justiça mandada observar pela doutrina do direito natural sob
cujo influxo o direito positivo sofreu transformação.
Se temos de admitir que há doutrinas jusnaturalistas muito diferen­
tes e contraditórias entre si e que, portanto, o juízo de valor que aqui
importa considerar apenas tem um carácter altamente relativo, então

(') D ENTRÉVES, op. cit., p. 46, diz: «O real significado da noção de direito natural
parece residir antes na sua função do que na própria doutrina». Cita M a in e que, na sua
obra Ancient Law (18 6 1), afirm a que o direito rom ano era superior ao direito hindu
porque aquele, e já não este, fora m odelado sob a influência da doutrina do direito
natural. «A teoria do direito natural havia-lhe dado um tipo de excelência diferente do
que é usual».
A DOUTRINA DO DIREITO NATURAL

não poderá negar-se que a transformação de um direito positivo operada


sob a influência de uma determinada doutrina do direito natural não
representa necessariamente um melhoramento, mas antes possivel­
mente um retrocesso, do ponto de vista da norma de justiça de uma
outra doutrina do direito natural.
A afirmação de que a doutrina do direito natural exerceu sobre a
rnodelaçâo do direito positivo uma influência benéfica, porque de
carácter reformador, conduz, portanto, à tautologia: quando um direito
positivo foi moldado de conformidade com a norma de justiça de
determinada doutrina do direito natural, tal direito positivo é justo - no
sentido desta norma de justiça.
Se tomarmos em consideração a relatividade dos valores de justiça
que os diferentes sistemas de direito natural instituem, então não
poderemos falar de uma influência «vantajosa», ou «desvantajosa»
exercida pela «doutrina do direito natural» ou pelo «direito natural»
sobre a elaboração do direito positivo, mas apenas poderemos indagar,
com exclusão de todo e qualquer juízo de valor, se a função das dife­
rentes doutrinas jusnaturalistas consistiu efectivamente em transformar
- segundo um qualquer ideal de justiça - o direito positivo vigente ou
- inversamente - em manter este direito positivo - enquanto conforme
a um qualquer ideal de justiça - com a configuração que, em cada caso,
ele apresentava; se a sua função teve efectivamente um carácter dinâ­
mico, isto é, reformador (num sentido alheio a valores), ou mesmo
revolucionário, ou um carácter estático, isto é, conservador.

Ca rá cter e m in e n t e m e n t e c o n s e r v a d o r d a s d o u t r in a s ju s n a t u r a l is t a s .

R elação en tre o d ir e it o natural e o d ir e it o p o s it iv o .

50. Uma tal indagação revela que as doutrinas jusnaturalistas, tais


como foram efectivamente apresentadas pelos seus representantes mais
destacados, serviram principalmente para justificar as ordens jurídicas
existentes e as suas instituições políticas e econômicas essenciais como
harmônicas com o direito natural e tiveram, portanto, um carácter
inteiramente conservador. Revela ainda que a ideia de um direito
natural só excepcionalmente desempenhou uma função reformadora
ou mesmo revolucionária e que, quando tal sucedeu, nos fins do
A JUSTIÇA e o d ir e it o n a t u r a l

século x v i i i , na Am érica e na França, surgiu imediatamente um


movimento espiritual dirigido contra esta doutrina do direito natural,
movimento esse que encontrou a sua expressão característica na
chamada escola histórica do direito, precursora do positivismo jurídico
que veio a dominar no século XIX.
O carácter eminentemente conservador da doutrina do direito natural
é conseqüência da posição tomada pela maioria dominante dos seus
representantes, e especialmente pelos clássicos, na questão, decisiva para
toda a doutrina, das relações entre o direito natural e o direito positivo (1).
a) Da ideia de um direito natural como uma ordem recta da conduta
humana imanente à natureza e dela dedutível segue-se que um direito
positivo, isto é, um direito artificialmente criado pelos homens, é
completamente supérfluo e que um tal empreendimento, quando apesar
de tudo seja tentado, apenas pode ser pernicioso em razão do perigo que
lhe vai adstrito de se afastar do único direito justo, que é o direito natu­
ral. Nada há de mais significativo do que o facto de nenhum jusnatura-
lista ter tirado esta conseqüência, mas antes todos terem acentuado, o
mais expressamente possível, a absoluta necessidade de um direito
positivo (z).

(') Cfr. os meus trabalhos: «Die Idee des Naturrechts», Zeitschrift fü r õffentliches
Recht, 7. Bd., 1927, pp. 2 2 1 e ss. e: «Naturrecht und Positives Recht. Eine Untersuchung
ihres gegenseitiges Verhãltnisses». Internationale Zeitschrift fü rT h eorie des Rechts, II.
Bd., 2. Heft, 1928, pp. 7 1 e ss.
(2) Muito digno de nota sob este aspecto é TOMÁS DE A q u in o , o qual, na Summa
theologica, responde decididam ente no sentido afirmativo à questão: «Utrum sit aliqua
lex humana» (i-ll, 9 1, Art. 3) e à questão: «Utrum fuerit utile aliquas leges poni ab
hominibus» (1-11, 95, Art. 1). Em relação à prim eira pergunta diz ele: «necesse est... quad
ratio humana procedat ad particulares quasdam legum sanctiones»; e em relação â
segunda pergunta: «Quia inveniuntur quidam protervi, et ad vitia proni, qui verbis de
facili moveri non possunt: necessarium fuit quod per vim vel metum cohiberentur a
maio, ut saltem sic m alefacere desistentes, et aliis quietam vitam redderent, et ipsi tan­
dem, per huiusmodi assuetudinem, ad hoc perducerentur quod voluntarie facerent quae
prios metu implebant, et sic fierent virtuosi. Huiusmodi autem disciplina, cogens metu
poenae, est disciplina legum. Unde necessarium fuit ad pacem hominurn et virtutem,
quod leges ponerentur... Dicendum quod homines bene dispositi melius inducuntur ad
virtutem m onitionibus voluntariis quam coactione; sed quidam m ali dispositi non
ducuntur ad virtutem , nisi cogantur».
Cfr. também as passagens citadas no meu trabalho What is Justice?, p. 385, tiradas
de M e la n c h t h o n , Ethicae Doctrinae Elementorum Libri Duo, 1560.

142
A DOUTRINA DO DIREITO NATURAL

b) Se - em contradição com a ideia do direito natural - se admite a


necessidade de um direito positivo, então segue-se daquela ideia - assim
enfraquecida - que um qualquer direito positivo apenas pode ter vali­
dade e, por conseqüência, apenas pode pretender ser observado, na
medida em que coincida com o direito natural, que um direito positivo
não conforme com o direito natural é nulo e que, portanto, ninguém lhe
deve obediência. Esta tese é, na verdade, sustentada em princípio pela
maioria dos jusnaturalistas. Ao mesmo tempo, porém, são apresentados
argumentos que visam a tornar um conflito entre o direito natural e o
direito positivo, quer pura e simplesmente im possível, quer muito
improvável, e a garantir, neste último caso, a validade do direito positivo.
Este objectivo é conseguido através da ideia de que o direito natu­
ral delega no direito positivo, de que da natureza se deduz a norma
segundo a qual devemos obedecer ao direito positivo. Este é mais ou
menos identificado com o direito natural, pelo que fica excluído, ou
então reduzido a um mínimo, qualquer conflito entre os dois. Esta
tendência revela-se já claramente na teoria do direito natural da Stoa
assim como na teoria do direito, essencialmente influenciada por aquela,
da prim itiva teologia cristã.
c) Segundo a doutrina da Stoa o direito natural é a expressão da
razão divina. Esta é não apenas transcendente como também imanente,
enquanto o homem nela participa ou, pelo menos, nela pode e deve
participar. Nesta participação efectiva, ou moralmente postulada, da
razão humana na razão divina discerne a Stoa a «natureza do homem».
Que esta natureza não é a natureza real mas a natureza ideal do
homem mostra-o o facto de a Stoa admitir duas naturezas do homem:
uma perfeita, boa, e uma imperfeita, má - e, correlativamente, dois
direitos naturais: um direito natural perfeito e um direito natural
imperfeito. O direito natural perfeito, o único que é direito natural no
sentido próprio e originário de absoluta justiça divina, é uma ordem
universal que vincula todos os homens de igual modo dotados da razão
divina, que não reconhece quaisquer diferenças de nação, raça ou classe,
qualquer propriedade individual nem, portanto, qualquer diferença
entre ricos e pobres, qualquer relação de domínio privado ou público,
nem Estado nem escravatura. Mas esta ordem somente vigorou durante
a idade de oiro, a idade do homem perfeito. O direito natural perfeito
corresponde à natureza perfeita do homem.

143
A JUSTIÇA E o DIREITO NATURAL

Esta, porém, voltou-se para o mal e, por conseguinte, a idade de oiro,


e com ela o direito natural perfeito, pertencem definitivamente ao
passado. A depravação dos homens no decurso dos períodos históricos
que se seguiram à idade de oiro torna necessário o direito positivo como
uma ordem coactiva estatuidora de sanções, com as suas instituições do
listado, das diferenças de classes e de categorias, da propriedade privada,
dus diferenças entre os que possuem e os que nada têm, dos livres e dos
escravos, etc. Esta ordem do direito positivo, que se contrapõe ao direito
untural da idade de oiro, resulta da depravação da natureza do homem
e, nesta medida, é também direito natural - não um direito natural
perfeito, mas um direito natural imperfeito. Sendo, não obstante, um
direito da natureza, é, como tal, justo. Chamou-se a este direito natural
um direito natural «relativo».
É, porém, fácil de ver que o direito positivo, que directamente se
contrapõe ao direito natural originário, não é sequer direito natural, que
o conceito de um direito natural imperfeito representa uma contradição
intrínseca. O mesmo vale dizer também, como ainda veremos, do
conceito hoje de novo frequentemente usado de um direito natural
relativo (').
A teoria de um duplo direito natural é uma ideologia em si mesma
contraditória cujo propósito essencial é a justificação do direito positivo
em cada caso. Tem um carácter totalmente conservador. Este carácter
conservador explica-se pelo facto de o estoicismo ser a filosofia de uma
classe superior, isto é, de uma classe possuidora, que estava de acordo,
de uma maneira geral, com a ordem social existente que a essa classe
conferia privilégios.
d) Dos estóicos recebeu a Igreja Cristã a teoria das duas natu­
rezas do homem e do duplo direito natural. O mito bíblico do Paraíso
Perdido formou a ponte de passagem entre a teologia cristã e a filosofia
pagã.
Na verdade, na teologia do primitivo cristianismo, que era a religião
de uma classe inferior, isto é, não possuidora, tinha pouco cabimento
uma doutrina do direito natural que vê uma ordem justa (recta) na
natureza enquanto realidade empírica. Efectivamente a natureza - o
«mundo» da teologia cristã, o reino do terreno ou do mundanal, por
A d o u t r in a do d ir e it o n a t u r a l

oposição ao celestial ou supraterreno - é fundamentalmente má. Afasta­


mento deste mundo, ascese, é o postulado moral desta teologia que
- como a filosofia platônica - assume em face da realidade da natureza
uma atitude inamistosa e na realidade social apenas vê o reino de Satã
- e, portanto, a negação radical de uma ordem divina justa (recta) - em
oposição ao vindoiro reino de Deus.
À medida, porém, que o cristianismo se torna a religião de
uma classe elevada, de uma classe possuidora, à medida que ele se
torna mesmo numa religião do Estado e o clero cristão se trans­
form a numa casta privilegiada, modifica-se esta atitude de repúdio
da teologia em face da natureza enquanto realidade empírica do
homem e da sociedade humana. Agora a Igreja segue o exemplo da
Stoa. O mundo, ensina ela, não é mau em si; apenas se tornou mau
através do pecado original. Só anteriormente a este, no Paraíso do
primeiro homem, que vivia em estado de inocência é que tinha vali­
dade o direito natural divino e perfeito da igualdade, da liberdade e
da comunidade do amor. Desde que, porém, a natureza humana
se voltou do bem para o mal, desde que o pecado veio ao mundo,
tornou-se necessário o direito positivo com todas as suas instituições
contrárias ao direito natural próprio do estado de inocência paradisíaco.
Não fora o pecado original, ainda hoje teria validade o direito natural
originário.
Contudo, também o direito positivo vigente após o pecado original
é, como tudo o que existe, querido por Deus e direito natural, pois
corresponde à natureza do homem modificada segundo a vontade do
mesmo Deus. Assim como esta se modificou do bem para o mal, assim
também o direito natural perfeito se transformou num direito natural
imperfeito. Mas esta transformação operou-se segundo a vontade de
Deus. O direito positivo, no qual se exprime o direito natural imperfeito,
é a conseqüência do pecado querida por Deus e, simultaneamente, a
pena por ele estabelecida. Não é, verdadeiramente, um direito natural
perfeito, mas é, não obstante, um direito natural - se bem que imper­
feito. Não é, por certo, absolutamente justo, mas é, apesar de tudo,
relativamente justo.
Se tal direito, porém, apenas é relativamente justo, então não é um
direito natural, pois este - se pretende ser algo de diferente do direito
positivo - só pode valer enquanto absolutamente justo. Tal como o

145
....

A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL

estoicism o, ta m b ém a te o lo g ia cristã, com a su a te o ria in trin se ca m en te


c o n tra d itó ria de u m d u p lo d ire ito n a tu ra l, v is a e s s e n c ia lm e n te u m a
ju stificação co n se rv a d o ra do d ire ito p o sitiv o (!).
ej De u m a fo rm a a in d a m a is d e cisiv a , p o rq u e n ão reco rre à teo ria
de u m d u p lo d ire ito n a tu ral, e x c lu i H o b b es todo e q u a lq u e r c o n flito
entre d ireito n a tu ral e d ireito p o sitiv o . E ste - e n sin a H obbes - n u n ca
pode e n tra r em c o n flito co m a ra z ã o n em , p o rta n to , co m o d ireito
n atu ral, p o is o d ire ito n a tu ra l e o d ire ito p o s itiv o estã o e m c o rre la ­
ção u m co m o ou tro. O d ire ito n a tu ra l co n tém o d ire ito p o s itiv o e o
direito p o sitiv o é parte in te gra n te do d ireito n atural. A o b ed iên cia ou

(') Cfr., a propósito: E r n s t T r o e l t s c h , «Das stoisch-christliche Naturrecht und das


moderne profane Naturrecht». H istorische Zeitschrift, 106. Band, 1 9 1 1 , pp. 237 e ss.; e:
o mesmo Autor, Die Soziallehren d er christlischen Kirchen und Gruppen. Gesammelte
Schriften, 1 9 1 2 ,1 . Bd., pp. 52 e ss., 162. T r o e l t s c h fala de uma «dupla moral» do estoi­
cismo. Diz ele, op. cit., p. 105: «Além disso o pensam ento da dupla moral tem o seu
paralelo e o seu antecedente no estoicismo, cujo rigorism o perante a vida igualmente
obrigava a admitir uma moral superior e uma moral inferior, uma virtude perfeita e uma
virtude média. O paralelism o não passou desapercebido. O Pedagogo de Clemente
(ill 1 1 ) e os O fícios de Am brósio (l 36-37) acolheram a distinção fazendo referência
expressa aos estóicos».
-- A dupla moral no dom ínio da ética corresponde à dupla verdade no dom ínio da
filosofia da natureza. Cfr. supra, p. 13 2 , nota 1.
- No seu trabalho «Das stoisch-christliche Naturrecht...», p. 2 5 1, diz T r o e l t s c h :
«O direito natural da Igreja surge então com o predom ínio da autoridade, da humilde
subm issão à força, da sujeição, apenas suavizada pelo patriarcalism o, aos poderes
dominantes na esfera do Estado, da fam ília, da vassalia, da servidão. Neste contexto, ele
aparece como castigo de Deus e intervenção divina na história e adquire frequentemente
uma feição inteiram ente positivista como arbitrária instituição divina».
Especialm ente a doutrina luterana do direito natural tem, segundo T r o e l t s c h ,
carácter conservador. A p. 256 do op. cit. afirm a «que o direito natural luterano assumiu
a configuração de um predom ínio, radicalm ente conservador, dos poderes dominantes
e de uma resignação patriarcal ao sistem a das classes ou categorias sociais e das
profissões, não tendo o genuíno e interior cristianism o do amor nada a ver, no fundo,
com todas as coisas políticas e sociais, nada mais lhe cumprindo senão sujeitar-se a elas
e viver nas suas form as 0 espírito do amor, de acordo com as faculdades de cada um.
Esta essência do luteranism o perm aneceu idêntica a si mesma até aos nossos dias: um
direito natural do predom ínio da força ou do poderio, radicalm ente conservador e
patriarcal, e um a profunda indiferença político-social da atitude genuinamente religiosa
que, nas circunstâncias actuais, se m anifesta como im potência político-social da Igreja
luterana».

146
A DOUTRINA DO DIREITO NATURAL

sujeição ao direito positivo é uma exigência do direito natural (l ).


Não vão m uito menos longe aqueles jusnaturalistas que declaram
como teoricamente possível um conflito entre direito natural è
direito positivo mas praticamente consideram afinal tal possibilidade
como excluída, pois que só um detentor do poder completamente
privado da razão ou desejoso de provocar a dissolução da comunidade
jurídica poderia estabelecer normas contrárias ao direito natural (2).
O facto de uma ordem jurídica positiva ser duradoira e globalmente
eficaz e, assim, constituir um a comunidade jurídica, depõe no sentido
de que ela não é contrária ao direito natural. Na medida em que uma
tal eficácia é condição da validade do direito positivo, também este
argumento conduz, em último termo, a uma identificação do direito
positivo com o direito natural. A mesma identificação é ainda a
conseqüência da tese segundo a qual, perante um direito positivo em
vigor, subsiste sempre a presunção de que ele corresponde ao direito
natural p). Ao mesmo resultado se chega quando se afirme o princípio
do suum cuique como sendo a norma de justiça do direito natural (4).
Com efeito, este princípio - conforme se mostrou - apenas é aplicável
sob a condição de se pressupor uma ordem jurídica positiva - e, na
verdade, qualquer ordem jurídica positiva, de tal forma que todo e
qualquer direito positivo pode ser considerado como harmônico com
este princípio.
f) A questão de saber se um direito positivo no seu todo ou uma
determinada norma deste direito corresponde ao direito natural ou o

(') H o b b e s , De Cíve, cap. XIV, sec. 10: É im possível «que qualquer lei civil [i. é,
positiva] que não tenda a um a reprovação por parte da Divindade... seja contra a lei da
natureza»; e L e v i a t h a n , Parte II, cap. XXVI: «A lei da natureza e a lei civil ji. é, o direito
natural e o direito positivo) contêm-se uma à outra e têm a m esma extensão... A lei da
natureza.:, é um a parte da lei civil em todos os Estados do mundo. Reciprocam ente,
portanto, a lei civil é uma parte dos ditames da natureza... todo o súbdito do Estado
concordou em obedecer à lei civil... e, portanto, a obediência à lei civil é tam bém parte
da lei da natureza». Cfr. tam bém o meu estudo «The Natural Law-Doctrine before the
Tribunal o f Science», publicado no meu trabalho: What is Justice?, pp. 14 4 e ss.
(2) Sic PUFENDORF; cfr. What is Justice?, pp. 14 5 e ss.
(3) Sic PUFENDORF; cfr. op. cit., p. 137 .
p) Tom ás d e A q u in o , Sum m a theologica, 11-11, 58, Art. 1 1 ; relativam ente a
PUFENDORF, cfr. «The Natural Law Doctrine before the Tribunal o f Science», op. cit.,
pp. 14 7 e ss.

147
A JUSTIÇA E O DIREITO NATURAL

gu ntrn d lz é u m a questão de interpretação do direito positivo. A decisão


dn q u e s tã o de saber se um direito positivo ou uma sua determinada
n o r m a d e v e s e r considerada como válida ou nula por motivo do seu
C e n f r o n t o c o m o direito natural cabe, por conseqüência, àquela pessoa
qUC è c o m p e t e n t e para fazer uma interpretação autêntica do direito
p o i l t l v o . Ora competência para tanto poderá tê-la qualquer pessoa
i u b m e t i d a a o direito positivo; mas a interpretação também pode ser
r e n e r v a d a à própria autoridade que estabelece ou põe o mesmo direito
p o u l t l v o . Se s e verifica a prim eira hipótese, corre-se o risco de uma
c o m p l e t a anarquia. No caso de se verificar a segunda, a decisão no
M entid o d e q u e o direito positivo contradiz o direito natural está pratica­
m e n t e f o r a d e causa ou, pelo menos, a sua possibilidade fica reduzida
a u m m ín im o .
Ora os jusnaturalistas revelam pronunciada tendência para reservar
Ô autoridade criadora do direito positivo a interpretação deste mesmo
direito ('). Por vezes ensina-se, na verdade, que deve recusar-se obediên­
cia a um direito que seja contrário ao direito natural, mas esta exigência
é substancialmente limitada, na medida em que não é considerada como
vinculante quando à recusa da obediência vai ligado escândalo ou
perigo (2). Nesta orientação se situa também a atitude de repúdio que
os jusnaturalistas em geral assumem perante o chamado direito de
resistência (3).
Finalmente, deve referir-se a doutrina que procura garantir a validade
do direito positivo perante um direito natural em contradição com ele
reduzindo a função deste último à de uma simples «ideia crítico-nor-
mativa» (4). O direito natural, trazido ao confronto com o direito posi­

(") Sic H o b b e s e PUFENDORF, cfr. op. cit. pp. 146 e ss. T o m á s de AQUINO, Summa
theologica, i- ii , 96, Art. 6.°; IHI, 60, Art. 6.°.
p) Sic T o m á s de A q u in o , Summa theologica, IHI, 104, A rt. 6.°, cfr. também: 1-11, 96,
Art. 4.°; II-II, 12 , Art. 2,a.
(3 ) Cfr. «The Natural-Law Doctrine before The Tribunal of Science», op. cit., pp. 148
e ss.
p) É esta a doutrina jusnaturalista dos Reformadores segundo a interpretação feita
pelo teólogo protestante E m il B r u n n e r , Gerechtigkeit, eine Lehre vort den Grundgesetzen
der Cesellschaftsordnung, 1943, p. 1 1 0 . Cfr. o meu trabalho: «Die Idee der Gerechtigkeit
nach den Lehren der christlichen Thelogie», Studia Philosophica. Jahrbuch der
Schweizerischen Philosophischen Gesellschaft, vol. xm , 19 53, p. r99.

148
A D O U TRIN A DO D IR EITO N A T U R A L

tivo, poderia na verdade servir de medida ou critério de apreciação para


o efeito de decidir se este direito é justo ou injusto, mas não poderia pôr
em questão a sua validade.
Do exposto resulta que a doutrina do direito natural, que, de
conformidade com a sua mesma ideia, tem de recusar toda a validade
ao direito positivo enquanto tal —na sua efectiva apresentação reforçou
substancial e plenamente a autoridade deste mesmo direito.

IMPROCEDE AIN D A A JUSTIFICAÇÃO DA DOUTRINA JUSN ATURALISTA COM BASE


EM QUE EXISTE O PROBLEM A DA JUSTIÇA (ABSOLUTA). - SIGNIFICADO MORAL
DO POSITIVISM O RELATIVISTA

5 1. Por vezes acredita-se em que a doutrina do direito natural, que


tenta resolver o problema da justiça absoluta, pode ser justificada pelo
facto de tal problema existir e de o positivismo jurídico relativista não
ter aptidão para o resolver (').
Não deve negar-se que existe o problem a da justiça absoluta no
sentido de que os homens têm e provavelmente sempre terão a neces­
sidade de justificar a sua conduta como absolutamente boa, absoluta­
mente justa; e também se não recusará que o positivismo jurídico
relativista não pode fornecer uma tal justificação. Porém, do facto de que
uma necessidade existe, não pode concluir-se que tal necessidade pode
ser satisfeita pela via do conhecimento racional - que o problema pode
ser resolvido por esta via. Antes, a ciência pode mostrar que ele não
pode ser resolvido desse modo, porque não há nem pode haver justiça
absoluta para um conhecimento racional; que se trata de um problema
insolúvel para o conhecimento humano - problema esse que, portanto,
deve ser eliminado do domínio deste conhecimento. A tarefa do
conhecimento científico não consiste apenas em responder às perguntas
que lhe dirigimos mas também em ensinar-nos quais as perguntas que
lhe podemos dirigir com sentido.
O afastamento do positivismo jurídico e o regresso à doutrina do
direito natural também não podem ser justificados pelo facto de aquele,
ao contrário deste, nos não fornecer quaisquer critérios para a aprecia­

(') D ’E n t r é v e s , op. cit., p . 1 4 .


A JU S T IÇ A E O D IR EITO N A TU RAL

ção ou valoração do direito positivo e, portanto, nos deixar sem recurso


quando se apresenta a questão decisiva de saber se um a ordem jurí­
dica positiva deve ser mantida, reform ada ou afastada pela força (l ).
Enquanto teoria relativista dos valores, também o positivism o fornece
critérios para a apreciação ou valoração do direito positivo na configu­
ração que ele, em cada caso, apresenta (2). Apenas sucede que estes
critérios têm um carácter relativo.
A circunstância de que este relativism o nos «deixa em apuros»
significa que ele nos obriga a tomar consciência de que a decisão da
questão nos pertence, porque a decisão da questão de saber o que é justo
e o que é injusto depende da escolha da norma de justiça que nós
tomamos para base do nosso juízo de valor e, por isso, pode receber
respostas muito diversas; significa que esta opção apenas pode ser
feita por nós próprios, por cada um de nós, que nenhum outro - nem
Deus, nem a natureza, nem ainda a razão como autoridade objectiva -
a pode fazer por nós. É este o verdadeiro sentido da autonom ia da
moral.
Deixados em apuros pelo relativismo sentem-se todos aqueles que
não querem tomar sobre si esta responsabilidade, que desejam alijar a
escolha pondo-a a cargo de Deus, da natureza ou da razão. Em vão se
voltam para o direito natural. Na verdade, quando se trata de efectuar
tal escolha ou opção, as diferentes doutrinas do direito natural dão
respostas tão variadas e divergentes como o positivismo relativista. Elas
não poupam o indivíduo, não o libertam da responsabilidade da escolha.
Porém, cada uma destas doutrinas jusnaturalistas dá ao indivíduo a
ilusão de que a norma de justiça que ele escolhe ou pela qual opta
provém de Deus, da natureza ou da razão, pelo que é dotada de validade
absoluta, excluindo a possível validade de uma outra norm a de justiça
que se lhe oponha ou a contradiga - e, por esta ilusão, muitos fazem um
total sacrificium intellectus.

(’ ) Cfr. D 'E n tré v e s, op. cit., pp. 95 e ss.


(2) Sobre a questão de saber em que sentido isso é possível, cfr. supra, pp. 3 e ss.

150
A D O U T RIN A DO D IR EITO N A T U R A L

F un d am en tação d a v a l id a d e d o d ir e it o p o s it iv o seg u n d o a d o u t r in a

ju s n a t u r a l is t a e s e g u n d o a T e o r ia P u r a do D ir e it o

52. Tem-se oposto à teoria jurídica positivista da Teoria Pura do


Direito que ela própria apenas é uma teoria jusnaturalista, pois que vê
o fundamento de validade do direito positivo na por ela chamada norma
fundamental, ou seja, afinal, numa norma que se situa ela própria fora
do direito positivo (').
É verdade que a norma fundamental não é um a norma do direito
positivo, isto é, de uma ordem coactiva globalmente eficaz posta através
da legislação ou do costume. Este é, porém, o único ponto em que existe
uma certa semelhança entre a teoria da norm a fundam ental e a do
jusnaturalismo. Em todos os outros pontos as duas teorias estão em
diametral oposição uma à outra.
A teoria do direito natural pergunta pelo fundamento de validade do
direito positivo, quer dizer, se e por que uma ordem jurídica positiva
vale, e dá a esta pergunta uma resposta categórica, isto é, absoluta
(incondicional), já afirmando que ela vale porque o seu conteúdo corres­
ponde ao conteúdo do direito natural e, por isso, é justo, já afirmando
que ela não vale, porque o seu conteúdo contradiz o conteúdo do direito
natural. O fundamento de validade do direito positivo é essencialmente
vinculado ao seu conteúdo. O direito positivo é válido porque tem um
determinado conteúdo e, por isso mesmo, é justo; não é válido porque
tem o conteúdo oposto e, por isso mesmo, é injusto. Nesta determinação
do conteúdo do direito positivo através do direito natural, situado para
além do direito positivo, reside a essencial função desse mesmo direito
natural.
Também a Teoria Pura do Direito pergunta pelo fundamento de
validade de uma ordem jurídica positiva, isto é, de uma ordem coactiva
criada pela via legislativa ou consuetudinária e globalmente eficaz.
Porém, não dá a esta pergunta uma resposta categórica, isto é, incondi-
cionada, mas tão-só uma resposta hipotética, isto é, condicionada. Ela

( ') D ’E n t r é v e s , op. cit., p, 1 0 8 , opina que a norm a fundam ental de Kelsen «nada
m ais é senão um a proposição de direito natural», pois que através dela se vem a
reconhecer «que o critério últim o da validade do direito se situa para além do m esmo
direito».
A JU S T IÇ A E o D IREITO NA TU RAL

dl/: Sr consideramos o direito positivo como válido, então pressupomos


d norma segundo a qual nos devemos conduzir tal como prescreve a
pi Imeila constituição histórica em conformidade com a qual foi criada
il oídtMii jurídica positiva. Esta norma é designada pela Teoria Pura do
IMieito como norma fundamental. Não é uma norma estabelecida
através do acto de vontade de uma autoridade jurídica, isto é, uma
norma positiva, mas uma norma pressuposta pelo pensamento jurídico.
A m u i pressuposição é a condição sob a qual uma ordem de coacção
nlmlit pela via legislativa ou consuetudinária e globalmente eficaz é
runsiderada como válida - como objectivamente válida.
A imi iiiii fundamental determina tão-só o fundamento de validade,
uno o conteúdo de validade do direito positivo. Este fundamento de
Viilldiide ó completamente independente do conteúdo de validade.
A noi ma fundamental abandona a determinação do conteúdo do direito
punitivo ao processo, determinado pela constituição, da criação positiva
du direito. A determinação do conteúdo do direito positivo é função
oilgtnãria e própria deste mesmo direito. A questão de saber se o
í unleúdo jurídico definido através do processo de direito positivo é justo
ou Injusto nada importa para a sua validade.
A norma fundamental de uma ordem jurídica positiva não é de
lui mu alguma uma norma de justiça. Por isso, o direito positivo, isto é,
umti ordem coactiva criada pela via legislativa ou consuetudinária e
globalmente eficaz, nunca pode estar em contradição com a sua norma
lundumental, ao passo que esta mesma ordem pode muito bem estar em
contradição com o direito natural, que se apresenta com a pretensão de
«cr u direito justo.
Por conseqüência, a norma fundamental da Teoria Pura do Direito
UíUi pode ser - como o direito natural - um critério de apreciação do
direito positivo e também não pode, consequentemente, ter a função
(|(te ao direito natural cumpre exercer em face do mesmo direito
positivo e em razão da qual a teoria jusnaturalista é contraposta à teoria
du direito positivo: a função ético-política de justificação. Com efeito, o
dltcilo positivo ou, mais exactamente, a sua estatuição, apenas pode ser
justificado através de uma norma ou ordem normativa com a qual ele
possa não só estar de acordo como também em desacordo.
A teoria do direito natural é uma teoria jurídica dualista, pois,
segundo ela, ao lado do direito positivo há um direito natural. A Teoria
A D O UTRINA DO D IREITO NA TU R AL

Pura do Direito, porém, é uma teoria jurídica monista. Segundo ela, só


existe um direito: o direito positivo. A norma fundamental definida pela
Teoria Pura do Direito não é um direito diferente do direito positivo: ela
apenas é o seu fundamento de validade, a condição lógico-transcen-
dental da sua validade (*) e, como tal, não tem qualquer carácter
ético-político, mas apenas um carácter teorético-gnoseológico.

(l) D 'E n tré v cs, op. cit., p. 107, observa: «...há, e tem de haver, um ponto no qual a
norma fundamental... é convertida num facto»; ela «apenas pode ter um sentido para
o jurista... na medida em que os comandos do soberano sejam de facto obedecidos». Esta
não é uma descrição correcta do significado que tem o momento da eficácia segundo a
teoria da norma fundam ental. A norma fundam ental não é de form a alguma transfor­
mada em facto. Um facto não pode ser o fundam ento de validade de um a ordem
normativa. A norm a fundam ental refere-se apenas a um a ordem coactiva regular e
globalmente eficaz. Esta eficácia não é o seu fundamento de validade.

153
ÍNDICE

Nota Preambular 7

I. AS NORMAS DA JUSTIÇA

í. Noção de justiça 41
3. O juízo de valor não pode incidir sobre normas 42
4. Objecto do juízo de valor fundado na justiça. Validade da norma
positiva e norma de justiça 44
5. A norma e o conceito 48
6. Silogismo normativo e silogismo teorético 49
7. Concludência normológica e fundamentação da validade 50
8. Tarefa da ciência perante as normas de justiça 51
9. Tipos de normas de justiça 52
10. A fórm ula do «suum cuique» 53
1 1 . A regra de oiro 54
12. O imperativo categórico de Kant 56
13. Outra fórm ula vazia de conteúdo 63
14. O costume como constitutivo do valor justiça 63
15. O meio termo aristotélico 64
16 . O princípio retributivo como princípio de justiça 66
17. O princípio da equivalência entre prestação e contraprestação
como princípio de justiça 7i
18. Proporcionalidade entre prestação e contraprestação e cômputo
do sálãrio 72
19. Análise do princípio de justiça comunista formulado por Marx 74
20. O preceito do amor do próximo 78
22. A ideia de liberdade como fundamento da justiça 81
23. O «contrato social» e o ideal de justiça da democracia liberal 83
24. Justiça e igualdade. A igualdade como conseqüência lógica da
generalidade da norma 84
25. A Ideia de Justiça em Platão 94
26. Justiça e amor de Deus: a Justiça divina 96
27. Justiça e felicidade 98

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