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Amazônia
pré-colonial
Por Eduardo Góes Neves
E
m 1542, “no domingo depois da Ascensão de Nosso
Senhor”, na primeira viagem de navegação realizada por
europeus pelo rio Amazonas, frei Gaspar de Carvajal,
cronista da expedição chefiada por Francisco de Orellana,
narra que chegaram os expedicionários famintos a uma aldeia locali-
zada no alto de uma barranca, que, por parecer pequena, foi por eles
saqueada. Nessa aldeia, de acordo com Carvajal, “havia muita louça
de diversas feituras, tanto jarros como vasos enormes de mais de
vinte e cinco arrobas, e outras vasilhas pequenas com pratos, tigelas
e candeeiros dessa louça da melhor que já se viu no mundo, porque
a de Málaga não se iguala a ela. (...) Ela é toda alisada e esmaltada de
todas as cores, tão vivas que espantam”.
A chamada “aldeia da louça” deveria estar localizada às margens
do rio Solimões, em algum ponto entre a atual cidade de Coari e a foz
do rio Negro. A descrição indica que a louça que Carvajal comparou
favoravelmente à de Málaga pertence ao que os arqueólogos chamam
de tradição policroma da Amazônia. Cerâmicas da tradição policroma
são encontradas em uma ampla área que vai, com interrupções, desde a
ilha de Marajó até o sopé dos Andes, na Colômbia, Peru e Equador.
Cerâmicas policromas (ver foto ao lado) são de impressionante
EDUARDO G. NEVES
ARQUEÓLOGO fotografa trincheira escavada no sítio Hatahara, em Iranduba, AM. Nas paredes
vêem-se inúmeros cacos de cerâmica e terra preta. Esses fragmentos foram depositados ali
para a construção de uma tumba há cerca de mil anos
FERNANDO CHAVES
U p d a te d f r o m th e D e c e m b e r 199 6 i s s u e 55
EDUARDO G. NEVES
AS DUAS FOTOS FORNECEM UMA COMPARAÇÃO entre depósitos arqueológicos. O provável é de cerca de 1.600 anos. Terras pretas surgem na Amazônia central a
depósito sem terra preta (esq.) está localizado no sítio Açutuba, às margens do partir do século IV, estando relacionadas ao aparecimento de aldeias sedentárias e
rio Negro, e foi datado em cerca de 2 mil anos. O depósito com terra preta (dir.) ocupadas por populações mais numerosas. Mais a direita, o exemplo do mapeamento
foi escavado no sítio Hatahara, localizado às margens do rio Solimões. Sua idade feito por arqueólogos em uma área de terra preta no Sítio Lago Grande.
beleza, com grande diversidade de formas resultantes, por exemplo, da manipula- periferia da bacia, em áreas distantes da
e de padrões decorativos, que variam de ção de informações para a obtenção de calha principal do rio Amazonas, em
acordo com a região. Como conseqüência, recursos nas metrópoles européias, para regiões como alto Xingu e alto rio Negro.
coleções com essas cerâmicas compõem que realizassem novas expedições. O Paradoxalmente, as áreas adjacentes ao
acervos de importantes museus nacionais exemplo maior desse tipo de manipu- rio Amazonas – atualmente ocupadas por
e estrangeiros. Conhecemos, porém, ain- lação seria a própria lenda das mulheres povos caboclos descendentes de índios e
da muito pouco sobre o modo de vida das guerreiras contra as quais Orellana e seu de imigrantes que vieram do Nordeste
sociedades que produziram tais objetos. grupo teriam lutado, as amazonas, que para a região na época da borracha – estão
Os dados históricos são escassos: as pou- acabaram por dar nome ao rio. lotadas de sítios arqueológicos, alguns dos
cas descrições disponíveis para os séculos Outros arqueólogos tendem a aceitar quais de grande porte.
XVI e XVII indicam que as margens do os relatos dos cronistas como retrato fiel Para tentar compreender melhor essa
rio Amazonas e alguns de seus afluentes do modo de vida local. Para esses arqueó- questão, uma equipe formada por arque-
eram ocupados por populações densas logos, a Amazônia era densamente ocu- ólogos brasileiros e americanos iniciou,
que viviam em grandes aldeias com até pada nessa época, sendo que o processo em 1995, o Projeto Amazônia Central
alguns milhares de pessoas. de colonização européia teria levado em (PAC). A área de pesquisa apresenta
De acordo com tais fontes, essas algumas décadas a um drástico declínio grande diversidade paisagística, sendo
sociedades estavam integradas regional- demográfico, resultante da propagação de marcada por dois tipos básicos de ecos-
mente por extensas redes de comércio e doenças, da guerra e da escravidão.
tinham um padrão de organização po- Prova maior desse declínio demográ- EDUARDO GÓES NEVES, doutor em arqueologia
O AUTOR
lítica hierarquizado. Essas informações fico seria o fato de que – com exceção dos pela Universidade de Indiana, é professor do Mu-
não são, no entanto, aceitas por todos povos tikuna que vivem no alto Solimões seu de Arqueologia e Etnologia da Universidade
os arqueólogos. Para alguns autores, os – a maior parte das terras indígenas na de São Paulo. Trabalha no Amazonas desde 1990
e coordena desde 1995 o Projeto Amazônia
relatos dos cronistas seriam exagerados, Amazônia brasileira está localizada na Central.
EDUARDO G. NEVES
sistema: rios de águas pretas e rios de da bacia Amazônica já eram habitadas, ciadas a grupos que produziam cerâmica,
águas brancas (ver quadro na pág. XX). incluindo locais próximos às planícies há cerca de 2.500 anos. O significado
Os levantamentos e escavações reali- aluviais dos grandes rios, mas também desse hiato não está ainda claro: seria ele
zadas até o momento indicam que a região áreas de terra firme, distantes dos rios resultante de um viés de amostra, que
é ocupada há cerca de 8.500 anos. As principais, como a serra dos Carajás. As estaria impedindo a localização de sítios
datas foram obtidas no sítio Dona Stella, poucas evidências disponíveis indicam ocupados nesse período? Uma possibi-
onde artefatos de pedra lascada, incluindo que os primeiros habitantes tinham um lidade para esse viés seria que os sítios
uma ponta de projétil, foram localizados modo de vida organizado em economia relativos a esses períodos encontram-se
em meio a depósitos arenosos enterrados diversificada, baseada na caça, pesca e agora submersos, devido a oscilações
a mais de 1 metro de profundidade. Essas coleta. Análises pedológicas (do solo) e nos níveis dos rios durante o Holoceno.
informações são compatíveis com dados paleobotânicas em andamento, juntamen- Ou, por outro lado, refletiria de fato uma
provenientes de outras partes da Amazô- te com o levantamento de outros sítios interrupção duradoura no processo de
nia, onde o início da ocupação humana se enterrados em areais, procuram entender ocupação humana na área?
deu há pelo menos 11 mil anos. a extensão e o aspecto econômico dessas Uma característica notável da arqueo-
ocupações mais antigas. logia amazônica é o início precoce da
Ocupação Descontinuada Após as evidências iniciais de ocu- produção cerâmica, com datas que estão
AS OCUPAÇÕES INICIAIS foram caracte- pação, há aparentemente um grande entre as mais antigas da América do Sul,
rizadas por uma rápida colonização de hiato cronológico, com duração de alguns recuando a mais de 5.500 anos, ou mesmo
diversos tipos de ambiente, de modo que, milhares de anos, só interrompido pelo 7 mil anos, nos sambaquis litorâneos e
há cerca de 8 mil anos, diferentes partes súbito aparecimento de ocupações asso- fluviais do Pará, nas regiões do estuário
Terra de Histórias
NA ÁREA DE PESQUISA do PAC, a ma-
nifestação mais visível de modificações
antrópicas ocorridas no passado são o
EDUARDO G. NEVES
Não está ainda claro por que as terras física, uma vez que, por exemplo, a cronológica na qual esses solos parecem
pretas são tão estáveis, mas é provável presença de milhares de fragmentos surgir por toda a região a partir de cerca
que tal estabilidade resulte da associação cerâmicos nos depósitos diminui tanto de 2 mil anos atrás. A única exceção
entre fatores naturais – o próprio solo – e a velocidade de percolação como a ve- vem do atual estado de Rondônia, onde
fatores culturais – fragmentos de cerâmi- locidade de evaporação da água, além depósitos de terra preta foram datados
cas, carvão resultante de fogueiras, ossos de criar uma espécie de “esqueleto” que em cerca de 4 mil anos.
de animais em restos de comida – nas mantém a estrutura do solo. Manchas de Poucos trabalhos foram realizados
matrizes dos sítios arqueológicos. terra preta podem variar desde poucos com o objetivo de entender o ritmo e uma
Essa combinação entre fatores na- metros quadrados até centenas de hecta- eventual direção no processo de formação
turais e culturais é de certo modo uma res. Do mesmo modo, sua profundidade de sítios com terra preta ali. As informa-
síntese da própria Amazônia e promove, pode variar desde 30 cm até 200 cm. ções disponíveis até o momento parecem,
por um lado, a fertilização do solo, que é A distribuição das terras pretas é bas- no entanto, indicar que esses sítios surgem
enriquecido por carbono, fosfato, cálcio tante ampla na Amazônia. Os dados da concomitantemente na parte central e
EDUARDO G. NEVES
e outros elementos químicos, ao mesmo Amazônia central, combinados com os no baixo Amazonas, sendo difícil ainda
tempo em que garante sua estabilidade de outras áreas, indicam uma tendência determinar se houve ou não uma área
EDUARDO G. NEVES
cavada por arqueólogos para fazer uma secção
transversal da vala. A linha que divide os montes
de terra é o indício de que a topografia original do
território foi alterada pelos índios.
de origem. No alto Amazonas, as datas lo VIII ao X. Esses dados indicam que o da região. A hipótese mais plausível
parecem ser um pouco mais recentes, processo de formação de depósitos de terra para explicar essa mudança seria uma
indicando que tais processos ocorreram preta não foi uniforme, variando de acordo transformação no modo de vida das po-
ali posteriormente. com a intensidade da ocupação, o grau pulações, ligada à adoção de economia
Apesar de estar intimamente asso- de sedentarismo e a própria densidade mais dependente da agricultura. De fato,
ciada à ação humana, a formação inicial demográfica dos assentamentos. embora o início do processo de domesti-
de solos de terra preta não foi um pro- Na Amazônia central, sítios com terra cação de plantas tenha ocorrido bem cedo
cesso deliberado, mas sim resultado de preta surgiram há cerca de 1.600 anos, em na América do Sul, há quase 10 mil anos,
ocupação humana em assentamentos áreas cuja ocupação humana se estabele- é comum que apenas muito depois desse
sedentários por longos períodos de tem- ceu muito antes. Levantamentos realiza- período inicial a agricultura tenha ocupa-
po. A deposição constante de refugos dos em áreas de campinarana (campina do papel preponderante como atividade
orgânicos, restos de comida, carvão etc. parcialmente coberta por mata) mostram produtiva, inclusive na Amazônia.
pode ter sido o mecanismo responsável a ocorrência de sítios pré-cerâmicos,
pela formação dos depósitos. associados a artefatos de pedra bifaciais, Ambiente Fatídico
No sítio Osvaldo, localizado junto ao datados em 8 mil anos. Posteriormente, há AS EVIDÊNCIAS DE FORMAÇÃO de terra
lago do Limão, entre os rios Solimões e cerca de 2.300 anos, surgem evidências preta na Amazônia oferecem elementos
Negro, na Amazônia central um depósito de ocupações associadas a grupos que para que se critiquem algumas das pre-
de cerca de 70 cm de espessura, associado produziam cerâmica em estilo semelhante missas do determinismo ambiental. Em
a uma grande quantidade de fragmentos ao encontrado no baixo Amazonas. Tais primeiro lugar, indicam a ocorrência de
cerâmicos, formou-se durante um período ocupações são, no entanto, menores e sítios sedentários, ocupados por dezenas
de algumas gerações no século VII. menos densas quando comparadas às dos ou centenas de anos, ao contrário do
Processo mais rápido foi observado no sítios com terra preta. padrão de mobilidade de assentamentos
sítio Lago Grande, localizado na várzea O surgimento dos sítios com terra previsto pelas hipóteses deterministas.
do rio Solimões (ver mapa acima), onde a preta representa uma mudança de escala Em segundo lugar, a grande densidade
formação de terras pretas ocorreu do sécu- e intensidade no processo de ocupação de vestígios cerâmicos, verificada, por