Você está na página 1de 2

DN Opinião

A força do silêncio
28 DE JANEIRO DE 201700:01
João César das Neves

Martin Scorsese fez um filme muito barulhento chamado Silêncio. Adaptação do romance
homónimo de Shusaku Endo (1966), relata a história maravilhosa dos mártires Ichizo, Mokichi, padre
Garupe e uma multidão de missionários e fiéis do Japão em meados do século XVII, numa das mais
impiedosas e esmagadoras perseguições da história da Igreja. Scorsese, que fez Jesus descer da cruz
em A Última Tentação de Cristo (1988), é fascinado com o fenómeno da apostasia e centra a atenção
no drama de dois padres que abandonaram a fé sob tortura. O filme constitui uma bela obra
cinematográfica e uma profunda reflexão sobre as questões da fé, perseguição religiosa e apostasia,
mas tem três problemas principais.

O primeiro é histórico. O protagonista, padre português Sebastião Rodrigues, é fictício, mas o enredo
baseia-se na vida verdadeira de Cristóvão Ferreira, superior interino da província japonesa da
Companhia de Jesus que apostatou sob tortura a 18 de Outubro de 1633. A sua renúncia gerou na
época grande consternação em toda a Igreja e várias missões para o converter, como a relatada no
filme. A fiabilidade da descrição é grande, mas omite que existiram "três tentativas específicas de
contactar Ferreira e persuadi-lo a renunciar à sua apostasia" (Cieslik, Hubert [1973] "The Case of
Christovão Ferreira". Monumenta Nipponica vol. 29, n.º 1, p. 44): o padre Marcello Mastrilli S.J.
martirizado a 17 de Outubro de 1637, o japonês Pedro Kibe S.J., martirizado em Julho de 1639, e o
padre Antonio Rubino S.J. e quatro companheiros, martirizados em Março de 1643. Apenas num
segundo grupo de dez companheiros de Rubino, chegados ao Japão em 1643 e presos ao
desembarque, terão existido abjurações. Também teria sido digno mencionar que o próprio Ferreira
renunciou à apostasia e morreu mártir em 1650, segundo relatos que a crítica histórica considera
aceitáveis (op. cit. p. 46-48).

O segundo problema é moral. O filme baseia-se num falso dilema ético, a torturante escolha do
padre entre abandonar a fé ou entregar os seus fiéis à tortura. O sacerdote recomenda
repetidamente a apostasia para os crentes se livrarem do suplício e a voz do próprio Jesus apoia a
falácia dos perseguidores e sugere a renúncia. A conclusão parece ser que os apóstatas são-no por
generosidade e os mártires insensíveis e fanáticos. Mas a verdadeira escolha, como a vêem os
crentes, coloca-se entre o tormento da fossa e o horror ainda maior de uma vida sem fé, sem
esperança, sem Cristo. Foi por fervorosa dedicação à salvação dos cristãos japoneses que os mártires
sofreram, e os apóstatas cederam, não por amor ao próximo, mas por fraqueza. Deus, na sua infinita
misericórdia, perdoa sempre que lhe pedimos, como o filme comoventemente manifesta, mas não
confunde o bem com o mal.
O terceiro problema é de consistência lógica. O tema do filme é supostamente o silêncio de Deus;
mas Ele não só aparece ao padre Rodrigues, mas fala explicitamente mais de uma vez. Além disso, é
estranho que o protagonista, recriminando tantas vezes o Senhor por não lhe responder, descure as
formas habituais de Deus falar aos seus fiéis: a Bíblia, palavra de Deus, praticamente ausente do
filme, e o testemunho dos irmãos, que neste caso clama com toda a força a presença divina.

No entanto, os inquisidores fazem um diagnóstico correcto da fraqueza do padre Rodrigues, o seu


orgulho. A fé humilde dos camponeses japoneses vence a fúria dos perseguidores de uma forma que
a arrogância intelectual do sacerdote não é capaz. Rodrigues sente que o sofrimento lhe dá direito a
uma revelação particular, sem entender que esse mesmo sofrimento, unido à paixão de Cristo,
constitui a maior revelação divina.

Ao contrário do que o inquisidor japonês afirma, a fé não foi derrotada pelo solo hostil do Japão. O
argumento de Ferreira a favor dessa tese baseia-se num trocadilho anacrónico, que só funciona em
inglês, entre filho (son) e sol (sun). Cristo não precisa de tradução e a fé nipónica, semeada por São
Francisco Xavier, resistiu às mais terríveis perseguições e permanece hoje bem presente. O filme
explica porquê.

O verdadeiro problema não é o silêncio de Deus, mas o ruído que reina no nosso interior. O cardeal
Robert Sarah acaba de publicar um livro ainda não traduzido sobre o tema: A Força do Silêncio
contra a Ditadura do Barulho (Fayard, Paris, Out/2016). Como prefeito da Congregação para o Culto
Divino e Disciplina dos Sacramentos, o prelado guineense pode ser considerado o responsável
máximo pela oração de toda a Igreja. Cumprindo a sua missão, este volume constitui uma belíssima
terapia para os males da sociedade contemporânea: "O silêncio não é uma ausência. Pelo contrário,
ele é a manifestação de uma presença, a mais intensa de todas as presenças. O descrédito criado
sobre o silêncio na sociedade moderna é o sintoma de uma doença grave e inquietante. As
verdadeiras questões da vida colocam-se no silêncio." (p. 36).

Você também pode gostar