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Religare 9 (2), 229-243, Dezembro de 2012

CRÍTICA BUDISTA DE NIETZSCHE

CRITICAL BUDDHIST OF NIETZSCHE

Derley Menezes Alves


Instituto Federal de Sergipe
_____________________________________________________________________________________
Resumo: O presente texto pretende tão somente ser uma primeira aproximação ao estudo das relações
entre Nietzsche e o budismo. A tese inicial a orientar nossa leitura é tomar o budismo como ponto de
partida e a partir daí desenvolver uma crítica da crítica apresentada por este filósofo quanto ao budismo
como religião decadente e niilista. Para o presente artigo consideramos principalmente a Genealogia da
moral e o Anticristo. Partimos da crítica ao ideal ascético e tomamos os pontos chaves dessa para
investigar se caberia enquadrar o budismo nesse contexto.

Palavras-chave: Budismo, Nietzsche, ideal ascético, religião.

Abstract: The present text is just a first attemp at the study of the relations between Nietzsche and
Buddhism. The mais thesis that guides this study is to take buddhism as a starting point and then develop
e critique of Nietzsche's critique of buddhism as a decadente and nihilistic religion. We took as reference
in this paper mainly the Genealogy of moral's and the Antichrist and take the critique of the ascetic ideal
and the aplication of that critique to buddhism.

Key words: Buddhism, Nietzsche, ascetic ideal, religion.

I - Introdução Nietzsche se insere na história


alemã de flertes e aproximações com a
Sabemos que a posição geral de cultura asiática. Basta que lembremos o
Nietzsche acerca do budismo é de interesse de Leibniz pelo
crítica quanto ao seu caráter ascético e confucionismo, os estudos críticos do
niilista. Budismo, junto com pensamento oriental feitos por Hegel,
cristianismo seriam religiões decadentes Schelling e a leitura mais generosa para
e niilistas, pois propõem algum tipo de com o oriente feita por Schopenhauer,
fuga ou negação da natureza própria do grande influência na formação de
ser humano – vontade de potência – Nietzsche. Não é novidade, pois, o
rumo a algo que Nietzsche identifica interesse alemão pelo oriente. Podemos
como nada (disfarçado sob epítetos dizer, entretanto, que a grande
como Deus ou Nirvana). Mesmo que dificuldade até o século XX em lidar
levemos em conta algumas passagens apropriadamente com oriente será
algo elogiosas ao budismo, sempre a falta de traduções ou mesmo
especialmente na comparação com o de boas traduções. É neste cenário que
cristianismo (notadamente n’O devemos situar o conhecimento de
Anticristo) o tom geral é de denúncia do Nietzsche acerca de qualquer coisa
caráter ascético do budismo em conexão classificada como “oriental”.
com a negação da sensualidade e da No que diz respeito aos
vida empreendida pelos sacerdotes, elementos de budismo efetivamente
grupo no qual, aparentemente, devemos conhecidos por Nietzsche para
incluir o Buda e seus monges fundamentar sua análise, localizamos
mendicantes. pelo menos duas posturas: (a) Nietzsche
tinha um bom conhecimento e contato
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com fontes diretas do pensamento da no sentido de se reconhecer paralelos


Índia pois teria inclusive aprendido entre o desenvolvimento filosófico
sânscrito em Leipzig (1865 e 1868) com indiano e o europeu do que um
o professor de Max Mueller, Hermann conhecimento aprofundado acerca deste
Brockhaus. Vemos esta tese em Guy assunto.
Welborn no livro the buddhist nirvana Até o presente tendemos em
and it’s westerners interpreters. Afirma favor da segunda posição, considerando
ainda este autor vários pontos de o caráter exíguo e secundário ocupado
contato entre teses nietzscheanas e pela Índia nas obras de Nietzsche. Basta
doutrinas budistas como, por exemplo: que se faça o exercício de conferir nas
eterno retorno e samsara, Zarathustra e obras deste autor o índice onomástico
a figura budista do boddhisatva e a em busca de nomes como Buda,
transvaloração dos valores como sendo budismo, brahmanismo, nirvana, etc.
equivalente a nirvana.1 (b) A segunda Outro ponto em favor dessa visão é a
postura localizamos no artigo de falta de traduções suficientes no
Graham Parkes, Nietzsche and asian período.
thought: influences, impacts and Considerando tudo isso, não
resonances.2 Neste artigo, Graham pretendemos fazer uma análise
aponta para o que ele chama de historiográfica ou apresentar
exigüidade da influência do pensamento documentos que comprovem uma
asiático sobre Nietzsche. Aponta ainda influência oculta do budismo sobre
para uma familiaridade de nosso autor Nietzsche. Partimos do pressuposto de
com grandes narrativas épicas indianas uma influência muito pequena e
como o Ramayana e o Mahabarata, bem queremos propor o seguinte exercício:
como um certo conhecimento acerca tomando o budismo como uma escola
das noções de kamma e renascimento. de pensamento enquadrada por
Além disso, a amizade com Paul Nietzsche de certa maneira, a saber,
Deussen pode ter exercido influência e como niilista e decadente, pretendemos
fornecido material para conversas e partir de teses budistas e analisar o
alguma leitura. limite ou eficácia deste enquadramento.
O problema é que, a despeito do Dito de outro modo: é possível uma
alegado conhecimento, leituras ou crítica budista da crítica de Nietzsche ao
interesses, a menção a idéias indianas budismo?
nas obras de Nietzsche é de fato escassa Devido ao caráter limitado deste
e podemos mesmo dizer que, de modo texto, escolhemos duas obras como
geral, tais referências raramente ocupam referência para expor a crítica de
o centro da reflexão quando ocorrem. Nietzsche ao budismo: O Anticristo e a
Para Graham tudo aponta para uma Genealogia da moral. Selecionaremos
leitura reduzida de livros sobre o destas obras passagens que mencionam
assunto e uma “compreensão pouco diretamente o budismo, outras que
firme” do pensamento de hindus e fazem referência ao brahmanismo e
budistas. O próprio Nietzsche reconhece passagens que podem ser aplicadas
em carta a Deussen, a propósito de seu também a estas religiões indianas, nas
olhar trans-europeu, muito mais uma quais se fala de religião e do ideal
abertura para os resultados de pesquisas ascético, sendo este último o tema da
terceira dissertação da genealogia. Estas
1 referências serão analisadas a partir do
As idéias de Weldon são reproduzidas aqui
através do artigo de Benjamin A. Elman, Cânone Páli, referencia para a tradição
“Nietzsche and Buddhsim”. In: Journal of the budista de modo geral e a theravada em
history of ideas, 1983. particular. Entre outras razões, podemos
2
The Cambridge Companion to Nietzsche.

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listar a antiguidade amplamente Reconhecemos, entretanto, que há um


reconhecida do Cânone, o fato de terreno a mais a ser explorado, no que
grandes porções do mesmo existirem diz respeito a tradição mahayana, mas
em outras tradições, como é o caso dos um estudo desta envergadura foge aos
ágamas chineses, o que sugere uma base nossos objetivos e conhecimentos
comum a partir da qual as várias escolas imediatos.
se desdobraram e por fim o fato de que
a leitura de Nietzsche acerca de II – Nietzsche: considerações gerais
budismo, conforme Graham Parkes
aponta na resenha ao livro de Freny Referências ao budismo são
Mistry, Nietzsche and Buddhism se encontradas ao longo da obra de
constituiu em grande parte de fontes Nietzsche. Nosso ponto principal é a
vinculadas ao Cânone Páli.3 Nosso genealogia, mas antes disso, vamos
objetivo é cotejar passagens do cânone passar uma vista d’olhos por algumas
que fazem referência a temas analisados destas outras referências.
por Nietzsche, de modo que possamos No parágrafo 20 do anticristo há
pelo menos matizar o enquadramento uma comparação entre budismo e
feito por este autor quanto ao budismo. cristianismo, ambas consideradas por
Temas como ascetismo, nibbana, e Nietzsche religiões niilistas, sendo que
principalmente a noção de niilismo.4 o budismo leva uma certa vantagem na
comparação:
3
“Na introdução Mistry documenta
cuidadosamente as principais fontes a partir das O budismo é mil vezes mais realista do
quais Nietzsche formulou sua concepção do que o cristianismo – ele carrega a
Budismo e aponta ‘a ambivalência marcada’ herança da colocação fria e objetiva dos
que caracteriza as referências explícitas de
problemas, ele vem após séculos de
Nietzsche ao Buda e suas doutrinas. Os
principais textos são (na ordem provável em que contínuo movimento filosófico, o
foram encontrados por ele): Carl Koeppen's Die conceito de “deus” já foi abolido
Religion des Buddha (Berlin, 1859), M. quando ele surge. O budismo é a única
Coomaraswamy's Dialogues and Discourses of religião realmente positivista que a
Gotama Buddha (London, 1874), Max Müller's
história tem a nos mostrar (...) ele já não
Essays II: Beiträge zur vergleichende
Mythologie und Ethnologie (Leipzig, 1869), fala em combater o pecado, mas sim,
Hermann Oldenberg's Buddha: Sein Leben, fazendo justiça à realidade, em
seine Lehre, seine Gemeinde (Berlin, 1881), e combater o sofrimento.5
H. Kern's Der Buddhismus und seine Ainda neste mesmo parágrafo
Geschichte in Indien (Leipzig, 1884). Ao longo
20, Nietzsche aponta dois dados
da obra, a autora especula de modo inteligente
acerca das fontes de Nietzsche para fisiológicos que seriam fundamento
compreensão de idéias budistas específicas, para o budismo e que ele e alguns de
citando passagens relevantes em traduções seus leitores conheceriam por
inglesas e então avaliando a qualidade de tais experiência: suscetibilidade a dor e
textos mediante comparação com as escrituras
hiperespiritualização caracterizada
budistas corespondentes.” Fonte: Nietzsche and
como demasiada permanência entre
Early Buddhism, a Review of Nietzsche and
Buddhism: Prolegomenon to a Comparative conceitos e procedimentos lógicos.
Study, by Freny Mistry, and Nietzsche and Como conseqüência se produziria um
Buddhism: A Study in Nihilism and Ironic prejuízo do instinto pessoal em nome do
Affinities, by Robert G. Morrison, In: impessoal. Destas condições resulta
Philosophy East and West, Vol. 50, N.2 (April
2000) pp. 254-267.
4
No que diz respeito aos cânones chinês e tem feito estudos comparativos dos vários
tibetano e suas relações com o Cânone Páli, cânones disponíveis.
5
recomendamos o trabalho do monge theravada O Anticristo, par. 20. tradução Paulo César de
de origem alemã Bhikkhu Analayo, pois este Souza.

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uma depressão contra a qual o Buda budismo seja uma escolha


combate de modo higiênico, ou seja, recomendada, afinal tal superioridade
“vida ao ar livre, as andanças, não fez de Nietzsche um budista.
moderação e escolha de comida”. Devemos entender este elogio no
Ausência de oração, ou de coação, contexto de uma comparação com o
combate a estados insalubres dentre os cristianismo. Cito aqui para encerrar o
quais se encontra o ressentimento, aforismo 134 de A gaia Ciência
egoísmo como dever. segundo o qual o budismo resulta de
Na comparação com o uma longa dieta baseada no arroz: “e à
cristianismo vemos mais uma valoração lassidão generalizada que disso
positiva de Nietzsche ao mostrar que o resultou”. Temos também o aforismo
budismo é um movimento pacífico que 347 do mesmo livro: “as duas religiões
tem início nas classes elevadas (a noção mundiais, o budismo e o cristianismo,
de ariya ou nobre deslocada do sangue podem dever sua origem, e mais ainda a
para o resultado de um estilo de vida) súbita propagação, a um enorme
no qual a “jovialidade, o sossego, a adoecimento da vontade”. Passemos
ausência de desejos são o objetivo agora a genealogia da moral.
supremo, e o objetivo é alcançado” (21)
No cristianismo, por outro lado, III – Nietzsche: Genealogia e ideal
tudo gira em torno dos sujeitados e ascético
oprimidos; o tédio se combate com o
que ele chama de “casuística do pecado, A terceira dissertação começa
autocrítica, inquisição da consciência”. pela definição de ideais ascéticos. Tais
Tem-se também o cultivo de forte afeto ideais são formas de negar ou diminuir
para com o Deus mediante a oração e a vida ou a vontade em nome de uma
àquilo que é mais elevado e inatingível recompensa de natureza supramundana,
a não ser mediante algo independente por exemplo, o paraíso cristão. No
do indivíduo e que se chama graça. A primeiro parágrafo da terceira
higiene do corpo é vista como dissertação, Nietzsche aponta vários
manifestação de sensualidade. tipos humanos e o que significaria para
Ressentimento e sentimento de tais tipos o ideal ascético. Destacamos
vingança são cultivados vigorosamente duas figuras fundamentais para nosso
mediante perseguições a todos que debate: o sacerdote e o santo. Para o
apresentam desvios de comportamento e primeiro, os idéias ascéticos são a
pensamento. legitimação do poder e instrumento de
Por fim, a ultima coisa a apontar dominação; para os últimos uma
no anticristo é a visão de Nietzsche de desculpa para hibernar, para repousar no
que o budismo é uma religião de nada ou deus.
homens tardios, raças bondosas que se Entendemos que a crítica
tornaram super espirituais, ou seja, o apresentada nessa caracterização pode
budismo é adequado para civilizações se estender ao budismo, uma vez que há
em ocaso, cansadas, ao passo que o uma referência ao nada, o que implica
cristianismo é tende a agregar bárbaros que se fala também de tradições
com sede de domínio, ação, conquista. orientais e suas técnicas de
Vemos, portanto, que de acordo concentração ou meditação, cujos
com Nietzsche o budismo é, junto com objetivos são vistos ou mesmo descritos
o cristianismo, uma religião de tipo como algo similar a alcançar um estado
niilista com a diferença de apresentar de sono profundo, ou sono sem sonhos.
algumas vantagens. Nem por isso Nos Upanishades encontramos uma
devemos supor que para nosso autor o caracterização positiva do sono sem

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sonhos, conforme o Mandukya incapacidade de viver de modo


Upanishad: “Nesse campo do sono sem afirmativo e saudável. Além desse
sonhos, o indivíduo se torna indiviso, reconhecimento, há também o
uma massa indiferenciada de ressentimento dirigido aqueles que são
consciência, consistindo de seu oposto, os que vivem de modo
contentamento e nutrindo-se desse afirmativo. Contra o guerreiro nobre,
contentamento.” 6 poderoso e afirmativo, o sacerdote
Para os filósofos este ideal emaciado e ansioso pela morte.
torna-se interessante na medida em que Entretanto, é importante notar, a
nele se percebe uma liberdade quanto a renúncia da vida feita pelo asceta é
deveres e obrigações. Aproximando-se aparente. Segundo Nietzsche ela é o
desses ideais que apresentam-se como resultado de um instinto de cura e
elevados, o filósofo se eleva também e proteção de uma vida que degenera. O
torna-se mais fecundo e concentrado não do asceta é na verdade um sim
devido às virtudes cultivadas nesse disfarçado, dito de outro modo. A
contexto como: humildade, castidade e promessa de uma vida melhor torna a
pobreza que impõem freios num vida suportável e tal promessa se liga à
orgulho indomável e suscetível e numa idéia de que é possível tornar-se digno e
sensualidade caprichosa. A aliança merecedor pela via do sacrifício.
entre filosofia e idéias ascéticos foi um A solução do sacerdote ascético
suporte fundamental para que aquela ao cuidar do rebanho dos doentes é
justificasse sua existência. Os filósofos, protegê-los dos sãos bem como da
cientes de sua inferioridade em relação inveja que eles sentem dos sãos. Esta
aos ideais aristocráticos viram aqui uma inveja toma a forma de ressentimento e
forma de compensar isto, o paciente do ressentimento precisa de
desenvolvendo formas de sentir-se um agente culpado no qual descarregar
dignos, fortes, superiores. seus afetos. A estratégia do sacerdote é
Nesta passagem do texto mudar a direção do ressentimento
Nietzsche menciona os brâmanes como afirmando ser o próprio doente o
exemplo de filósofos, estes mais antigos culpado.
filósofos que desenvolveram métodos Esta terapêutica do sacerdote
terríveis de ascetismo, como jejuns e não se configura como cura eficaz ou
mortificações. Tais técnicas visam o salvação. Embora ele se veja como
domínio de si mesmo, algo que pode curador e salvador, na verdade trata-se
fazer com que o dominador assuma um apenas de combater os sintomas da
ar de dignidade aristocrática. A doença, o que Nietzsche chama de
conclusão a que chega Nietzsche é que desprazer do sofredor. Os adjetivos
o ideal ascético valoriza a vida que se para descrever o asceta são: consolador,
volta contra si mesma, que nega a si aliviador, mitigador e narcotizante. Tais
mesma. O sentido da vida é ser negada adjetivos são aplicados imediatamente à
em nome de uma outra existência tradição cristã. Nietzsche, porém, não se
superior, celestial. Esta negação da restringe ao cristianismo. É lícito
parte do sacerdote significa que ele afirmar que sua análise aplica-se não só
reconhece sua doença e fraqueza, sua ao cristianismo, mas também a seus
aparentados judaísmo e islamismo, bem
6
como ao budismo. Todas estas religiões
Parágrafo 5, tradução de Luiz Fernando
seriam formas de combater a depressão
Mingrone visualizada no site:
http://www.yogashala.org.br/index.php/livros- ou a tristeza dos fisiologicamente
sagrados/vedanta/50-mandukya-upanishad.html, travados.
dia
5/10/12 às 10:25.

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O tratamento dessa doença se dá envolvido na união mística é criticado


pela diminuição do sentimento vital da por Nietzsche que não vê nada aí além
seguinte maneira: evitar o que produz da versão oriental de algo já visto em
afeto, não amar nem odiar. Em termos Epicuro: o hipnótico sentimento do
psicológicos temos aqui “santificação”, nada, o repouso no mais profundo sono,
“renúncia de si”, em termos de ausência de sofrimento, em suma – para
fisiologia “hipnotização”, um tipo de os sofredores e profundamente
hibernação, uma redução do desgraçados é lícito enxergar nisso o
metabolismo. A suposta elevação bem supremo, o valor entre os valores,
espiritual resultante destes isto tem de ser considerado positivo por
procedimentos seria tão somente um eles, sentido como positivo mesmo.
equívoco, o resultado de se confundir No parágrafo 18 da genealogia,
fisiologia e psicologia. Nietzsche analisa as formas
Segundo Nietzsche, a suposta desenvolvidas pelo sacerdote para
redenção alcançada em decorrência de combater os estados depressivos. Trata-
exercícios espirituais não teria nada em se de meios inocentes e meios culpados.
si de verdadeiro além de ser um fato No campo dos inocentes ele cita duas
etnológico. O que há de real nisso é que modalidades: atividade maquinal e
se trata de técnicas comuns a várias pequena alegria. As atividades
civilizações e que podem se reduzir a maquinais aliviam o sofrimento da
algum tipo de hipnose auto-induzida e existência, pois desviam o foco do
interpretada com cores as mais sofrimento para as atividades
agradáveis. repetitivas. O que está em jogo é a
impessoalidade e o esquecimento de si,
O estado supremo, a própria redenção, perder-se de si no ato mecânico e
aquela hipnotização e quietude total repetitivo. Em seguida temos a pequena
enfim alcançada, é para eles o mistério alegria que é uma forma controlada de
em si, para cuja expressão não bastam exercício da vontade, e consiste em
sequer os símbolos mais elevados, causar alegria a alguém, o amor ao
sendo retorno e refúgio no fundo das próximo, a ajuda entre os sofredores.
coisas, sendo desprendimento de toda Tal estratégia tem o objetivo de
ilusão, sendo “saber”, “verdade”, “ser”, provocar um sentimento de
sendo libertação de todo fim, todo ato, superioridade devidamente
todo desejo, sendo estar além também domesticado. Na tradição cristã
do bem e do mal.7 percebemos isso na formação de grupos
Esta redenção pensada como de ajuda mútua, a base da formação do
além do bem e do mal é algo comum da comportamento de rebanho, que tira a
mentalidade indiana segundo Nietzsche, atenção do indivíduo de sua aversão a si
brâmane assim como budista. E não se mesmo fazendo com que este mergulhe
chega a isso pela via da moralidade, nos assuntos do rebanho. Segundo
somente pela unio mystica, uma vez que Nietzsche, indivíduos fortes tendem ao
a redenção é o “ser um com Brahma, isolamento, todo gregarismo é
que não permite aumento de perfeição, característica de fracos e doentes.
tampouco na diminuição de erros: pois No que diz respeito aos meios
o Brahma, com o qual ser um constitui a culpados (par. 19) eles são marcados
redenção, é eternamente puro” por uma tentativa de produzir um
(Shankara conforme Paul Deussen). O excesso de sentimento como forma de
aspecto de sono profundo porém, combater a dor surda. Nietzsche chama
de descarga súbita de afeto, algo que
provocaria uma momentânea fuga da
7
Genealogia da Moral, parágrafo 17.

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dor. Parece que esta descarga de afeto crítica de Nietzsche. Lembramos que
seria algum tipo imperfeito de catarse, não se trata de uma oposição do tipo
ou uma catarse dirigida a si mesmo, ao certo e errado, mas sim de perceber se o
invés de dirigida ao personagem trágico. enquadramento feito por Nietzsche do
Mais uma vez, combatem-se os budismo é completamente aplicável ou
sintomas com o agravante de que tal se é possível tomar a tradição budista
combate é causa de agravamento da como referência e a partir daí
doença. empreender uma crítica desse
Este agravamento ocorre porque enquadramento e até onde esta crítica
o sacerdote se vale do sentimento de pode se estender, supondo que seja
culpa ou pecado como origem do viável.
sofrimento. Isto faz com que o
sofrimento seja o resultado do pecado, IV - Budismo
uma punição. Para o pecador, a culpa é
a causa do sofrer e o pecado passa a ser, Vamos tentar agora estabelecer
portanto o fundamento interpretativo de um diálogo entre estes antípodas. O
todas as ações e tal fundamento primeiro ponto do nosso comentário diz
contamina a vida individual. É preciso respeito a noção de ascetismo, práticas
estar atento, perceber os meandros e ascéticas ou mortificações. Nietzsche
recantos do pecado para superá-lo menciona tais práticas no contexto do
mediante o ascetismo, a via para a que ele chama de bramanismo, algo
expiação da culpa: quanto mais dor talvez incorreto, uma vez que os
voluntária, melhor. Com uma tal praticantes mais rigorosos das
disciplina, pretende-se domesticar o mortificações eram os samanas, grupo
doente, enfraquecendo-o. O resultado heteróclito do qual o Buda e os seus
disso é a histeria religiosa, agravamento eram membros.
da doença resultante do próprio No pensamento indiano, os
tratamento. Identifica-se casos como a ascetas, por força de suas mortificações
histeria das bruxas, o sonambulismo e e meditações, pretendem adquirir certas
mesmo certas práticas comuns em habilidades ou poderes (siddhis) de
algumas igrejas pentecostais em nossos modo que seriam capazes até mesmo de
dias. subjugar os deuses tradicionais. Embora
A conclusão disso tudo é que o não haja uma menção direta ao budismo
sacerdote é uma figura perniciosa aqui, somente ao bramanismo, práticas
responsável por muitos males ao longo similares fazem parte também do
da história da humanidade e sendo um horizonte budista, de modo que é
fato etnológico, podemos afirmar que possível enquadrar o budismo nesse
não apenas o sacerdote judeu e sua comentário de Nietzsche, uma vez que
contraparte cristã, mas todo sistema que para este, também é possível a aquisição
defende uma renúncia à vida em nome de poderes ou de controle sobre si
de algum tipo de benefício em outro mesmo ou mesmo superioridade perante
mundo faz parte desse horizonte. Sejam os deuses como decorrência de tais
escravos e pobres doentes, sejam nobres práticas. Basta lembrar a freqüência
cansados da vida, todos comungam dos com que, no cânone, divindades
mesmos ideais, todos anseiam o aparecem diante do Buda ou de algum
mergulho no nada. A este desejo de arahant e prestando homenagem, pedem
nada Nietzsche chama de niilismo. instrução.
Vamos passar agora a uma O budismo, na medida em que
apreciação da tradição budista levando emerge no contexto espiritual do
em consideração os temas abordados na bramanismo herda tais noções e teria

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buscado dar sentido à vida defendendo várias escolas de pensamento indiano a


uma dignidade e superioridade que idéia de que existe uma entidade
resultaria do autocontrole, do domar a si imutável subjacente aos fenômenos
mesmo. Perguntemos: as práticas mutáveis e transitórios, é comum
budistas se encaixam de fato nessa chamar tal ente de “eu” ou atman. Este
crítica de Nietzsche? “eu” está, em nossa condição comum,
Uma resposta definitiva a esta obscurecido pela ignorância, que o faz
pergunta é algo que foge ao escopo perambular pelas várias reencarnações.
desse trabalho, de modo que A libertação deste ciclo de repetições
mencionaremos alguns elementos potencialmente sem fim se dá pela
possíveis para uma resposta. No “redescoberta” deste “eu” e de sua
contexto budista, é importante afirmar natureza pura e luminosa e isto se dá
que tais práticas não têm como objetivo principalmente mediante práticas
um desligamento de si, algum espirituais que tem o poder de levar o
distanciamento da miséria da vida indivíduo à libertação. Descobrir a
pessoal, como a crítica nietzscheana natureza verdadeira do eu leva ao
sugere. A idéia é que o indivíduo esteja reconhecimento que o fundo
atento a si mesmo, ao que acontece em permanente por trás da personalidade é
sua mente, apenas atento, sem julgar o princípio impessoal, ou seja, brahman.
como bom ou ruim e este é o caminho Ao identificar-se como brahman, o eu
para a superação do sofrimento. O inferior (personalidade mutável) é
sofrimento não se supera fugindo dele superado como ilusão e o eu verdadeiro
em algum tipo de sono ou coma, mas ou superior se redescobre como o
encarando a dinâmica da mente brahman imutável.
sofredora de perto, pela prática daquilo Isto quer dizer que o yogue ou o
que no budismo se chama vigilância ou seguidor dos Upanishades pretende
atenção plena. Para que tal prática surta recuperar uma união perdida com o
efeito, não é preciso que se viva numa supremo impessoal que está para além
caverna, distante das pessoas, basta que das divindades. Dentro da tradição
se cultive uma privacidade para a indiana temos também outras formas de
prática, que se viva sem ser arrastado libertação como por exemplo a união
passivamente pelo que acontece dentro com Brahma como divindade pessoal
ou fora de nós. ou a formação de um vínculo
Ao mencionar práticas ascéticas devocional pessoal com uma divindade
e suas conseqüências e fundamento, qualquer de modo a conduzir o devoto a
Nietzsche fala claramente do budismo e um paraíso ou uma boa reencarnação
do bramanismo como assemelhados. É humana.
importante notar, porém, a existência de O ascetismo budista é de
profundas diferenças nas práticas ditas natureza bastante diversa.8 Não há no
hindus ou do yoga em relação às
práticas budistas, tanto no que diz 8
Os textos mais importantes acerca da
respeito ao seu fundamento metafísico
meditação que se encontram no Cânone Páli são
(ou sua ausência) quanto aos objetivos o Satipatthana Sutta, Majjhima Nikaya 10, bem
pretendidos por tais práticas. como sua versão mais extensa encontrada no
Correndo o risco de todos os Digha Nikaya 22, o Maha-satipatthana Sutta. É
problemas e imprecisões de uma comum se traduzir em português como “Os
quatro fundamentos da atenção plena”. O
abordagem abreviada, eis aqui uma
professor Ricardo Sasaki, do Centro de Estudos
tentativa de diferenciar budismo e Buddhistas Nalanda opta pela palavra vigilância
bramanismo, para nos atermos à ao invés de atenção plena como tradução do
terminologia de Nietzsche. É comum a termo sati (mindfulness em inglês).
Considerando as imagens usadas para descrever

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budismo a suposição de um eu Embora as caracterizações negativas de


permanente a ser redescoberto, mas um nibbana sejam mais conhecidas e
fluxo insubstancial que produz, pela comuns no ocidente, logo no primeiro
energia das ações, os sucessivos sermão temos uma lista de qualidades
renascimentos (não se fala em positivas atribuídas a nibbana.
reencarnação) e todo sofrimento daí Há um pequeno sutta no
resultante. Portanto, não se busca no Anguttara Nikaya que nos ajuda a
budismo a reunião com a divindade compreender melhor ainda o que é
pessoal ou impessoal, admite-se até a nibbana, chamado Nibbana Sutta (AN,
possibilidade de paraíso, mas como 9.34).10 Trata-se de um discurso
objetivo menor porque passageiro, ou proferido pelo discípulo erudito do
mesmo um renascimento como deva, ou Buda, Sariputta. A primeira sentença do
deus. Deuses no budismo são criaturas sutta não deixa espaço para dúvidas
que foram humanos um dia e por força quanto ao modo como nibbana é
de méritos adquiridos renasceram como concebido e compreendido dentro da
divindades de vida muito longa, mas tradição budista: “Este Nibbana é
também impermanente. prazeroso, amigos”. Esta frase chama
Outro elemento budista atenção para um aspecto importante do
importante nessa diferenciação é a ensinamento budista, algo que
atitude do Buda diante das práticas aparentemente não foi percebido pela
ascéticas. Logo no primeiro discurso leitura predominante do budismo do
dado, o Buda apresenta uma separação século XIX, a saber, a idéia de que não
radical em relação à tradição ascética na há uma condenação irrestrita do prazer.
qual foi formado.9 Buda afirma ter A grande meta do budismo é
percebido o caráter infrutífero das caracterizada como prazer, ou seja, de
práticas ascéticas tradicionais e que modo positivo, como algo agradável.
descobriu um caminho intermediário Temos como complemento a isto o MN
para a libertação, algo entre os prazeres 139 onde se diz: A pessoa não deve
sensórios e o rigor dos ascetas. Buscar a buscar os prazeres sensoriais que são
felicidade num desses extremos baixos, vulgares, grosseiros, ignóbeis e
(prazeres sensoriais e auto- que não trazem benefício. Isto sugere
mortificações) é algo doloroso, ignóbil que há o reconhecimento do caráter
e que não traz benefício. O caminho prazeroso quanto aos sentidos, embora
proposto pelo Buda contrasta com este tal prazer seja de ordem inferior e
descrito por ser um caminho que prejudicial.
origina visão, conhecimento, conduz à Voltando ao nibbana sutta temos
paz, ao conhecimento direto, à alguém perguntando a Sariputta: Mas
iluminação, a nibbana. O objetivo do que prazer pode haver aqui, amigo,
caminho budista foi descoberto pelo
Buda após o abandono do ideal ascético
10
típico de algumas tradições indianas. Anguttara Nikaya, The Book of Nines, 34.
Em sua recente tradução do AN, Bhikkhu Bodhi
usa happiness (felicidade) ao invés de
sati ao longo do cânone, conforme menciona prazeroso. Thanissaro traduz como pleasant, que
Analayo em seu livro Satipatthana: the direct podemos traduzir como agradável ou como
path to realization, (um vaqueiro que vigia as prazeroso, esta sendo a opção de Michael
vacas para que elas não pisem nos campos Beisert na sua tradução. Independente destas
prestes a serem colhidos, por exemplo) variações a idéia fundamental permanece, qual
entendemos ser vigilância uma tradução melhor. seja, nibbana é uma percebido como algo que
9
Samyutta Nikaya, parte V – Mahavagga, proporciona felicidade, algo agradável, o que
Capítulo XII (56 Saccasamyutta – discursos não nos põe distantes do termo prazer,
conexos acerca das verdades) 11: Pondo em entendido de modo mais amplo do que prazer
movimento a roda do dhamma. SN 56.11. dos sentidos.

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onde nada é sentido? Ao responder, contato com o mundo impuro das


Sariputta confirma a idéia de que cidades. Ao abandonar sua casa, ele na
realmente nada é sentido e apresenta os verdade saiu de um local distante e
prazeres sensoriais relacionados com os dirigiu-se para grandes centros urbanos
prazeres resultantes da concentração do período em busca de professores,
meditativa (jhanas). O praticante que afinal os samanas viviam de esmolas e
realiza o primeiro jhana sente êxtase e para esmolar é preciso uma cidade com
felicidade nascidos do afastamento e é pessoas dispostas a doar e que percebam
devido a isto que prazeres sensoriais nisso algum benefício. Além disso, o
serão percebidos por ele, nesse estado, Buda travou contato com reis,
como aflitivos e tormentosos. O que governantes, nobres e burgueses,
ocorre é que uma referência de prazer aconselhando e recebendo estas pessoas
melhor aparece como critério para como seguidores. Logo é preciso
avaliar as anteriores. Esta idéia difere da contextualizar o abandono e a fuga do
noção de paraíso e salvação porque tais mundo. O budismo lembra muito,
estados só se realizam plenamente após quanto a este ponto os pré-socráticos,
a morte, no outro mundo, enquanto que que eram participantes ativos da
os estados felizes e prazerosos falados sociedade na qual estavam inseridos.
pelo budismo podem ser Quanto ao tema já mencionado
experimentados aqui e agora como dos prazeres sensoriais, temos ainda um
resultado do treinamento gradual sutta, agora do Samyutta Nikaya que
preconizado pelo Buda. pode nos esclarecer. Trata-se do sutta a
As duas referências canônicas flecha (SN 36.6). Dado o fato de que
apresentadas sugerem que nibbana, a tanto um praticante do budismo quanto
libertação, o estado no qual nada é um não praticante experimentam
sentido, o nada criticado por Nietzsche sensações agradáveis, desagradáveis e
não é pensado de forma triste ou neutras, surge a pergunta: qual a
negativa. Desde o primeiro sermão há a distinção, a disparidade, a diferença
idéia de que isto é felicidade verdadeira entre o nobre discípulo instruído e a
e prazer. Embora haja uma crítica ao pessoa comum não instruída? A
prazer sensorial, tal crítica situa-se no resposta do sutta é que a pessoa sem
contexto da intensidade do desejo instrução nos ensinamentos do Buda
provocado por tais prazeres, que experimenta as sensações dolorosas de
representa em ultima instância forma duplicada, adicionando angústia
sofrimento. O budismo pensa os estados mental a sensação dolorosa, como uma
mentais que suas práticas propõem, não pessoa que foi atingida por uma flecha e
como a negação do prazer, mas como em seguida por outra.
estados de prazer diferentes e melhores Vitimada dessa forma, surge na
do que os prazeres sensoriais. E como mente aversão pelo que é doloroso, e
dissemos tais estados não são uma dessa aversão, um desejo de fuga do
promessa futura apenas, ao longo da doloroso. Como não se sabe de
prática, mesmo que não se experimente nenhuma alternativa além do prazer
nibbana ou os jhanas, algo de agradável sensorial, ele passa a ser visto como
e prazeroso será sentido. solução para todos os problemas. Ao
Uma última observação quanto à buscar o prazer como escapatória, a
identificação de nibbana como inação e pessoa sente as coisas de modo apegado
sono sem sonhos. O Buda nunca se (apego como contraparte da angústia
afastou do mundo como costumamos mental que duplica a sensação
entender esta frase, isolando-se numa dolorosa).
caverna e cortando para sempre o

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O discípulo do Buda, diante das sentados ou fazendo qualquer coisa.


mesmas experiências, não duplica a dor Não há, portanto, atividade maquinal
corporal com a dor mental. Ele sente como um perder-se na atividade, é
uma sensação – uma corporal e não preciso estar atento num nível
mental. A sensação dolorosa não é totalmente diverso de nossa atenção
seguida de aversão e, portanto, não há ordinária e desenvolver este traço de
busca de satisfação nos prazeres atenção até que ele esteja presente em
sensoriais como uma fuga. Ele entende todos os momentos.
a natureza impermanente dos prazeres Tal vigilância deve ser cultivada
sensoriais e o perigo de engajar-se na na prática formal da meditação sentado
busca pelos mesmos. Em conclusão, mediante a observação da respiração,
tudo é experimentado por ele com bem como durante a meditação
desapego. Isto reforça o que dissemos andando, quando devemos observar
antes, a saber, no budismo há um cuidadosamente o processo do andar,
escalonamento dos prazeres, não um tanto em seus aspectos físicos quanto
abandono completo dos mesmos ou da mentais. Com o tempo, estas situações
noção de prazer como algo a ser formais de esforço deliberado deixam
buscado. O prazer não é o problema, a de ser as únicas instâncias de vigilância
mente apegada é o problema. O e o praticante é capaz de perceber
budismo pretende, pois, mudar o modo mesmo em sua vida cotidiana a
como experimentamos as coisas que nos dinâmica dos estados mentais, do
acontecem e a meditação é o caminho, desejo, etc. Neste sentido, percebe-se
treinamento que torna tudo isso que não se foge de si mesmo com a
possível. Vamos falar agora, meditação budista, mas ocorre um
brevemente sobre o tema meditação. mergulho em si mesmo com uma
Entendemos que o tema da grande atenção aos processos que aí
meditação insere-se, pelo menos ocorrem. Ao encarar a si mesmo, a tese
parcialmente, no contexto da crítica de budista é que se percebe a ausência de
Nietzsche da atividade maquinal. substancialidade de si e do mundo e a
Podemos dizer, em primeiro lugar, que natureza insatisfatória das coisas.
no budismo não há atividade maquinal Percebe-se a dinâmica do sofrimento e
neste sentido e visando produzir os este reconhecimento torna possível a
resultados descritos por ele. O que mais libertação do mesmo.
se assemelha a atividade maquinal, que Quanto à vida gregária como
talvez até mesmo externamente sugira desdobramento do ideal ascético e a
isso, seriam as várias técnicas de existência deste gregarismo nas
meditação andando e as regras de vestir sociedades budistas, temos duas
e portar-se dos monásticos (vinaya). observações a fazer. Em primeiro lugar,
Entretanto, a recomendação dada pelo um estudo das sociedades budistas e
Buda ao se fazer estas coisas, expressa suas dinâmicas próprias, para além dos
entre outros no MN 10, Satipatthana textos sagrados que as fundam é um
Sutta, é que elas sejam feitas cultivando tema deveras extenso e fora do escopo
uma qualidade chamada de sati, palavra deste trabalho. Em segundo lugar,
pali que pode ser traduzida em podemos analisar a possível existência
português como vigilância, atenção de um gregarismo similar ao cristão
plena, plena conscientização (conforme dentro da comunidade monástica, uma
discutido na nota número 9). Sem vez que ela é o modelo e a referência
adentrar na etimologia, a idéia geral é para os leigos. Em seguida investigar
que sejamos capazes de estar atentos ou nos conselhos dados para os seguidores
vigilantes, estejamos andando ou leigos a existência de traços do que

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Nietzsche chamou de espírito de interioridade. A vida em comunidade é


rebanho. um auxílio para o desenvolvimento
Em primeiro lugar, já o individual.
dissemos, está o fato de que o Buda não Falemos agora do leigo. Em que
se portava como um escapista. Ele pesem os vários desenvolvimentos
viveu e pregou em proximidade de locais ao longo de toda história do
grandes centros, travou contato com a budismo, é possível dizer algo acerca do
nova classe dos comerciantes, que se papel do leigo. Inicialmente, de acordo
conta entre seus principais apoiadores, com os textos mais antigos, não se fala
atendia e aconselhava reis (como, aliás, de um acesso exclusivo a nibbana como
era comum entre os samanas). A prática exclusividade monástica.
comum dos monges sempre foi um tipo
misto de vida, indo da reclusão das Eu não elogio o modo errôneo de
chuvas ao contato com os leigos para prática seja dos que moram em família
instruí-los e receber deles apoio na ou daqueles que abandonaram o lar;
forma de esmolas. Tudo isto regulado pois seja um chefe de família ou quem
pelas regras de conduta do vinaya que haja abandonado o lar, aquele que adota
reduzem a possibilidade de abusos o modo errôneo de prática, por meio
pontuais da parte deles. desse modo errôneo de prática, não
Em segundo lugar, ressaltamos cumpre o caminho verdadeiro, o
que o Buda elogiava a reclusão como o Dhamma que é saudável. Eu elogio o
melhor estilo de vida para se realizar modo correto de prática seja dos que
seu objetivo de iluminação. Sabemos já moram em família ou daqueles que
que tal reclusão não se traduz num abandonaram o lar; pois seja um chefe
afastamento total e completo da de família ou quem haja abandonado o
convivência dos homens, a única época lar, aquele que adota o modo correto de
de reclusão absoluta é durante as prática, por meio desse modo correto de
monções, o chamado vassa ou retiro das prática, cumpre o caminho verdadeiro, o
chuvas, que dura três meses. Depois Dhamma que é saudável.11
disso, temos os monges indo e vindo
pelas cidades, ensinando e praticando. Na seqüência deste sutta, o Buda
Este elogio de uma vida reclusa compara a atividade do leigo ou do
associado ao caráter extremamente ordenado com agricultura e comércio
interiorizado da meditação e das respectivamente e o critério de
realizações meditativas sugere para nós avaliação não é o pertencimento a
que não há no budismo o elogio da vida algum dos grupos, mas os frutos e o
gregária ou a idéia do espírito de sucesso das respectivas empreitadas.
rebanho. Em algum ponto de sua prática Portanto, do ponto de vista dos textos
você vai ter que se retirar mesmo que do cânone páli, é lícito dizer que os
isto ocorra num mosteiro, as leigos podem realizar o mesmo objetivo
oportunidades de vida de rebanho são que os monges, talvez não com a
bastante reduzidas pois há um controle mesma rapidez, supondo disposições
formal do que se fala e de quando se equivalentes de ambos. É preciso
fala. esclarecer, entretanto que ao longo da
Em terceiro lugar, é importante história se desenvolveu entre os leigos
ressaltar que o estudo, o aprendizado, se um budismo com pouca ou nenhuma
dá coletivamente e que a amizade ocupa
um lugar fundamental dentro da prática 11
Citação do cânone colhida no link:
budista. A aplicação do ensinamento, http://nalanda.org.br/payutto/valor-e-atributos-
entretanto, se dá na esfera da unicos-do-nibbana. Trata-se do Majjhima
Nikaya 99, Subha Sutta.

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ênfase na meditação ou no nibbana e vigilância como prática básica dentro do


sim com vistas ao acumulo de méritos treinamento budista tende a dificultar
como observa Gombrich em seu livro formas de perder-se ou alienar-se no
Theravada Buddhism. fazer algo ou na vida da comunidade.
Uma vez que leigos Por outro lado, partindo para a
normalmente são chefes de família, eles historicidade das várias comunidades
não seguem o mesmo código de conduta budistas não é de espantar que existam
dos monges. Esta dimensão de códigos versões do espírito de rebanho ou de
de conduta pode ser enquadrada na formas de controle sacerdotal. Falar
crítica que Nietzsche faz ao forte traço disto foge das atuais capacidades deste
de moralização comum a budismo e que escreve, pois envolve uma análise
cristianismo. É importante, entretanto, detalhada da história do budismo
que se perceba a moralidade como parte theravada e das causas que motivaram o
da prática, não como a expressão de surgimento do mahayana, as duas
regras imutáveis ou imposições, mas grandes denominações que abrigam
como parte do treinamento gradual grande variedade de visões e práticas
apresentado nos textos mais antigos. em nossos dias.
Ao compararmos a idéia de Nietzsche e Buda, pelo exposto
preceitos ou treinamentos com a idéia parecem ser pensadores incomunicáveis
de moralidade ocidental cristã, cujas intuições mais fundamentais
percebemos que existem diferenças. Em parecem completamente opostas. Ou a
primeiro lugar note-se que do ponto de vida é sofrimento ou é vontade de
vista cristão há um ser supremo potência cujo sentido é se afirmar, se
sancionador de regras imutáveis e que expandir. Se tomarmos esta polarização
cobra a desobediência perante tais como modelo, nada se pode fazer além
regras. No caso do budismo tudo se da disjuntiva ou...ou. Podemos pensar
traduz na forma de uma dinâmica nos conteúdos destes termos e
impessoal de ações e conseqüências perguntar: que significa sofrimento?
numa seqüência causal. A idéia é que o Que é vontade de potência? Que é vida?
indivíduo adote a moralidade como O erro do budismo para
treinamento, e não como seguir padrões Nietzsche seria negar a vida, identificar
absolutos de comportamento. Espera-se, a felicidade com o nada, a aniquilação
pois, que os resultados apareçam à ou nadificação do nibbana. Vimos que
medida que o treinamento se consolida. do ponto de vista canônico, nibbana não
Quedas não são vistas como efeitos de é algo simplesmente negativo, desde o
entidades maléficas, são o resultado das primeiro sermão se apresenta como um
escolhas associadas ao kamma de casa ideal de felicidade e libertação do
um e não há, pelo menos nos texto em sofrimento. O problema do sofrimento é
páli, a idéia de uma graça que nos dá o problema da impermanência.
um empurrão em direção a Sofremos porque desejamos e tudo que
conformidade com a norma divina. desejamos sempre se acaba sem saciar o
A conclusão que chegamos desejo. A prática que conduz ao fim do
depois destas breves apresentações é de sofrimento é freqüentemente
que não há, considerando os textos do apresentada em termos de um prazer de
cânone páli uma ênfase numa ordem mais elevada, o que não nega o
dependência da comunidade que possa prazer dito inferior, mas o coloca em
se traduzir num espírito de rebanho perspectiva, apontando a maior
conforme caracterizado por Nietzsche possibilidade de conseqüências
como o espírito alienado de si na vida prejudiciais advindas dos mesmos,
em comum. Basta lembrar que a notadamente a busca renovada por

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aquilo que já provamos antes e não BODHI, Bhikkhu (trans.). The middle
percebemos como insatisfatório. length discourses of the Buddha: a
Nossa conclusão final é, translation of the Majjhima Nikaya.
portanto, a de que o enquadramento Massachusetts: Wisdom Publications,
nietzscheano, marcado por uma ênfase 2005;
no caráter pessimista e niilista do ____________________. The
budismo não corresponde connected discourses of the Buddha: a
completamente ao que encontramos em translation of the samyutta Nikaya.
textos budistas representativos e Massachusetts: Wisdom Publications,
fundamentais para várias tradições 2000;
diferentes. Entendemos, além disso, que ____________________. The
o contexto de comparação com o numerical discourses of the Buddha: a
cristianismo de modo a equivaler estas translation of the Anguttara Nikaya.
tradições é imperfeito, pois as Massachusetts: Wisdom Publications,
diferenças são muito grandes. A 2012;
ausência de um Deus criador e de uma ELMAN, Benjamin. Nietzsche and
entidade alma imutável muda muita Buddhism. In: JSTOR: Journal of the
coisa. Se o ideal ascético produz History of Ideas, Vol. 44, N.4 (Oct-
pessoas submetidas absolutamente ao Dec., 1983), pp. 671-686.
jogo de poder sacerdotal, temos o Buda GOMBRICH, Richard F. Theravada
recomendando constantemente: Buddhism: a social history from ancient
Benares to modern Colombo. New
“Portanto, Ānanda, sejam como ilhas York: Routledge, 2006;
para vocês mesmos. Sejam seu próprio LOY, David (review). Nietzsche and
refúgio. Não temos recurso a mais Buddhism: A study in nihilism and
ninguém para refúgio. Segurem-se ao ironic affinities by Morrison, Robert G.
Dhamma como a uma ilha. Segurem-se In: Asian Philosophy, Vol. 8 Nº2 (July
fortemente ao Dhamma como refúgio. 1998) pp. 129-131;
Não busquem outro refúgio. Quem quer _____________________ What the
que, Ānanda, seja agora ou depois que Buddha thought. London: Equinox,
eu tiver ido, for como ilhas para si 2009;
mesmos, refúgios para si mesmos, não MOAD, Omar. Dukkha, Inaction and
buscará refúgio externo – são esses, Nirvana: Suffering, Weariness, and
Ānanda, entre meus discípulos que Death? A look at Nietzsche’s criticisms
alcançaram o cume mais alto! Mas of Buddhist philosophy. In: The
devem ser afeitos ao progresso”.12 Philosopher, volume LXXXXII Nº1;
MORRISON, Robert G. Response to
Graham Parkes review. In: Philosophy
East and West, Vol. 50, nº2 (April
Referências Bibliográficas 2000) pp 267-279;
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da
ANALAYO. Satipatthana: the direct moral. Tradução: Paulo César de Souza.
path to realization. Cambridge: São Paulo: Companhia das Letras,
Windhorse Publications, 2003; 2009;
ARGY, Anne-Gaelle. Nietzsche e o NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo.
brahmanismo. In: Revista trágica: Tradução: Paulo César de Souza. São
estudos sobre Nietzsche, Vol. 3, n.1, PP. Paulo: Companhia das Letras, 2007;
56-70; PARKES, Graham. Nietzsche and early
Buddhism, a review. Philosophy East
12
Digha Nikaya 16, Mahaparinibbana Sutta, O
Grande Discurso do Parinibbana.

242
Religare 9 (2), 229-243, Dezembro de 2012

and West, Vol. 50, nº2 (April 2000) pp.


254-267;
_______________ Nietzsche and East
Asian Thought: Influences, impacts and
resonances. In: Cambridge Companion
to Nietzsche, Cambridge: CUP, 1999;
_______________ Reply to Robert
Morrison. In: Philosophy East and
West, Vol. 50, nº2 (April 2000) pp. 279-
284.

Sobre o autor:
Mestre em filosofia pela Universidade
Federal do Paraná, professor do
Instituto Federal de Sergipe.

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