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A fila de mulheres para adentrar o Senado Federal estava grande aquele dia.
Chegavam de lugares distintos do Brasil e vinham participar do Seminário Mulheres no
Poder, cada qual integrante de algum partido, movimento ou onda desejosa de ver esse
cenário se tornar real: as mulheres no poder.
Nem esperávamos que nosso silêncio falasse tão alto. Nos primeiros segundos de pé,
uma voz da platéia lança: "Parem com isso, somos todas iguais". Pelas nossas costas, outra
rebate: "Não somos iguais a ela!", e por aí segue, o auditório colocando para fora o que estava
atravessado: "Mulher que dá golpe em mulher?!", a que disse isso se juntava a nós. Ao
mesmo tempo, o auditório se esvaziava.
Marta, 71, não quebrou o protocolo, fez sua fala, procurando ignorar a movimentação
peculiar, mas com nervoso aparente. A surrealidade da cena se adensava à medida em que a
Senadora cumpria a fala machista e anti-feminista que havia preparado para o momento, a
culpar as mulheres pelo comportamento dos homens, "uma estratégia diferente" que
anunciou no início de sua fala:
"Nossas estratégias há muito tempo são as mesmas: nós falamos para as mulheres,
nós aumentamos o poder das mulheres nos partidos, nós criamos leis. Então o que eu
pensei? Nós estamos no momento de mudar a estratégia, eu acho que nós temos que focar
nos homens".
Mas o auditório deve ter rido, porque Marta rebateu: "Não dá risada porque é
verdade. Nós fazemos seminário para as mulheres, aqui não tem um homem, desculpa, tem
um ou dois. Eu acho que acabou, na nossa pauta, 'seminário de mulher'. Que eles falem com
a veemência que nós falamos a nosso favor e que sejam protagonistas como nós somos".
"Eu li uma pesquisa do instituto Avon, que dá bastante apoio àquilo que falei. Nesta
pesquisa, 6 em cada 10 homens acreditam que poderiam melhorar suas atitudes em
também aparece que 44% dos homens afirmaram que ser
relação à mulher. Na pesquisa
chamado de machista não o engajaria na luta pelo direito da mulher. E mais animador
ainda: 31% que se dizem machistas gostariam de não ser, mas só não sabem como. Aí eu
pergunto: quantas de nós, esposas, filhas, mães, ensinamos no próprio lar o que são
posturas machistas?".
Assim que terminou a fala com "vamos à luta, muito obrigada", os poucos aplausos
foram abafados pelo brado das secundaristas: "À PEC, À PEC, À PEC EU DIGO NÃO, EU
QUERO INVESTIMENTO EM SAÚDE, EDUCAÇÃO". Viemos saber depois, pelas
estudantes, que haviam pedido a elas que não se manifestassem, mas que nossa intervenção
deu força para o grito, já que os cartazes que confeccionaram foram proibidos no auditório
do Senado. Censura, só parece?
O canto das secundaristas foi também o que liberou de nossas gargantas alguns
gritos. Sabíamos que era hora de sair dali. Os gritos amplos do público somavam-se aos
nossos: "Golpista!", "Não me representa!", "Golpista uma vez, golpista pra sempre!".
Saímos com sensação de dever cumprido e seguidas por três jornalistas, mulheres e
negras, que gravaram entrevistas conosco. Por ali ficamos na ante-sala do auditório até que
passasse por nós a Senadora Marta Suplicy seguida por duas dezenas de mulheres que
vieram de São Paulo no mesmo ônibus que nós e que agora revelavam suas alianças.
Na viagem de volta, algumas dessas mulheres vieram nos dizer coisas como: "nós que
estamos do lado errado", ou "nunca havia me achado feminista, mas agora quem sabe". Teria
nosso silêncio conseguido "romper a bolha" de que tanto falamos na esquerda? Sem
esperanças duradouras, mas com muitas potências liberadas, sabemos que temos lado e esse
sim, segue na luta.