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​ u​ Feministas vs Marta

Silêncio fala alto o

​ por Élida​ ​ Lima


​ , #partidA feminista São Paulo

A fila de mulheres para adentrar o Senado Federal estava grande aquele dia.
Chegavam de lugares distintos do Brasil e vinham participar do ​Seminário Mulheres no
Poder​, cada qual integrante de algum partido, movimento ou onda desejosa de ver esse
cenário se tornar real: as mulheres no poder.

Nós, da ​#partidA feminista São Paulo​, deparamo-nos com a participação da então


Senadora Marta Suplicy, golpista, a história recente não deixa mentir: no dia anterior ao
Seminário, havia votado pela medida que ali chamávamos de AI-55, a congelar por 20 anos
investimentos em saúde, educação e necessidades básicas como o salário mínimo, projeto
maquiavélico também apelidado de PEC do Fim do Mundo.

No quarto de hotel na noite anterior, estávamos conversadas e convencidas:


viraríamos as costas para aquela que deixou as mulheres com o voto engasgado na garganta.

Na manhã do dia 14 de dezembro, depois de cruzar com Jair Bolsonaro atravessando


a rua e escrachá-lo (essa é outra história!), sentamo-nos na terceira fileira do auditório do
Senado Federal e aguardamos em prontidão e cúmplices: nos olharíamos para saber se
deveríamos permanecer durante toda a fala ou nos retirar.

Passada a palavra à Marta, levantamo-nos dos nossos lugares e viramos de costas (o


que também foi discutido: junto ao palco, passaríamos por suas seguranças). A ação seria
sutil, civil, não-agressiva e silenciosa, pois sabíamos que a via do discurso estava intoxicada.

Nem esperávamos que nosso silêncio falasse tão alto. Nos primeiros segundos de pé,
uma voz da platéia lança: "Parem com isso, somos todas iguais". Pelas nossas costas, outra
rebate: "Não somos iguais a ela!", e por aí segue, o auditório colocando para fora o que estava
atravessado: "Mulher que dá golpe em mulher?!", a que disse isso se juntava a nós. Ao
mesmo tempo, o auditório se esvaziava.

Marta, 71, não quebrou o protocolo, fez sua fala, procurando ignorar a movimentação
peculiar, mas com nervoso aparente. A surrealidade da cena se adensava à medida em que a
Senadora cumpria a fala machista e anti-feminista que havia preparado para o momento, a
culpar as mulheres pelo comportamento dos homens, "uma estratégia diferente" que
anunciou no início de sua fala:

"Nossas estratégias há muito tempo são as mesmas: nós falamos para as mulheres,
nós aumentamos o poder das mulheres nos partidos, nós criamos leis. Então o que eu

pensei? Nós estamos no momento de mudar a estratégia, eu acho que nós temos que focar
nos homens".

Imbuídas de espírito cênico, segurávamos os risos de escárnio e sabíamos, sem


precisar nos olhar, que deveríamos permanecer até o final de seus 15 minutos.

Mas o auditório deve ter rido, porque Marta rebateu: "​Não dá risada porque é
verdade. ​Nós fazemos seminário para as mulheres, aqui não tem um homem, desculpa, tem
um ou dois. Eu acho que acabou, na nossa pauta, 'seminário de mulher'. Que eles falem com
a veemência que nós falamos a nosso favor e que sejam protagonistas como nós somos".

De pé e sérias permanecemos durante os 16 minutos de sua fala, não sem tentarem


nos coagir a sentar, tanto vozes da audiência, quanto vozes oficiais do evento que vieram
pedir educadamente que, por favor, nos sentássemos. Não obtendo resposta ou olhar da
primeira abordada (eu), a moça da produção passou para a segunda, foi quando pus as mãos
nos ouvidos de Maurinete Lima, no que passou à terceira, Valquiria Rosa, que dali não se
moveria nem que Simone de Beauvoir ela mesma pedisse. Desistiu antes de encarar Cristina
Terribas, Luciana Busquets, Susy Laguárdia e a mulher de cor-de-rosa, integrante da União

Brasileira de Mulheres, que se juntou a nós dando as costas para a palestrante que oferecia
dados para dissuadir as mulheres de lutarem pelas mulheres:

"Eu li uma pesquisa do instituto Avon, que dá bastante apoio àquilo que falei. Nesta
pesquisa, 6 em cada 10 homens acreditam que poderiam melhorar suas atitudes em
​ também aparece que 44% dos homens afirmaram que ser
relação à mulher. Na pesquisa
chamado de ​ machista não o engajaria na luta pelo direito da mulher. E mais animador
ainda: 31% que se dizem ​ machistas gostariam de não ser, mas só não sabem como. Aí eu
pergunto: quantas de nós, esposas, filhas, mães, ensinamos no próprio lar o que são
posturas machistas?".

Em algum momento - de costas não percebemos porquê -, Marta fez o seguinte


comentário: "​Você está tão incomodada assim com a minha fala ou você foi posta aí de
propósito?​". Assistindo à gravação da TV Senado no YouTube - câmera fechada na Senadora,
evitando revelar o auditório - restam dúvidas se o desconforto foi motivado pela mulher da
platéia que se juntou a nós ou por outra da organização que tentava lhe avisar que seu tempo
acabava, rs.

​ Assim que terminou a fala com "​vamos à luta, muito obrigada", os poucos aplausos
foram abafados pelo brado das secundaristas: "À PEC, À PEC, À PEC EU DIGO NÃO, EU
QUERO INVESTIMENTO EM SAÚDE, EDUCAÇÃO". Viemos saber depois, pelas
estudantes, que haviam pedido a elas que não se manifestassem, mas que nossa intervenção
deu força para o grito, já que os cartazes que confeccionaram foram proibidos no auditório
do Senado. Censura, só parece?

O canto das secundaristas foi também o que liberou de nossas gargantas alguns
gritos. Sabíamos que era hora de sair dali. Os gritos amplos do público somavam-se aos
nossos: "Golpista!", "Não me representa!", "Golpista uma vez, golpista pra sempre!".

Saímos com sensação de dever cumprido e seguidas por três jornalistas, mulheres e
negras, que gravaram entrevistas conosco. Por ali ficamos na ante-sala do auditório até que
passasse por nós a Senadora Marta Suplicy seguida por duas dezenas de mulheres que
vieram de São Paulo no mesmo ônibus que nós e que agora revelavam suas alianças.

Na viagem de volta, algumas dessas mulheres vieram nos dizer coisas como: "nós que
estamos do lado errado", ou "nunca havia me achado feminista, mas agora quem sabe". Teria
nosso silêncio conseguido "romper a bolha" de que tanto falamos na esquerda? Sem
esperanças duradouras, mas com muitas potências liberadas, sabemos que temos lado e esse
sim, segue na luta.

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