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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BAURU

Mantido pela Instituição Toledo de Ensino


CURSO DE DIREITO

GIOVANNA DE ÁVILA SILVESTRE

DIÁLOGOS ENTRE PSICANÁLISE E DIREITO:


UM PRISMA ORDENAMENTAL

BAURU
2018
CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BAURU
Mantido pela Instituição Toledo de Ensino
CURSO DE DIREITO

GIOVANNA DE ÁVILA SILVESTRE

DIÁLOGOS ENTRE PSICANÁLISE E DIREITO:


UM PRISMA ORDENAMENTAL

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Banca Examinadora do
Curso de Direito, Centro Universitário de
Bauru, mantido pela Instituição Toledo de
Ensino, para a obtenção do grau de
bacharel em Direito, sob a orientação do
Professor Antônio Calças.

BAURU
2018
GIOVANNA DE ÁVILA SILVESTRE

DIÁLOGOS ENTRE PSICANÁLISE E DIREITO:


UM PRISMA ORDENAMENTAL

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Banca Examinadora do
Curso de Direito, Centro Universitário de
Bauru, mantido pela Instituição Toledo de
Ensino, para a obtenção do grau de
bacharel em Direito, sob a orientação do
Professor Antônio Calças.

Banca Examinadora:

_________________________________
_________________________________
_________________________________

___/___/_____
RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo discorrer e demonstrar a relevância da


ciência da psicanálise para compreender as origens e necessidades do Direito,
desconstruindo a rigidez das normas para mergulharmos na urgência da sociedade
acerca dessa ferramenta. Tal estudo se faz necessário para que possamos, através
destes conhecimentos, utilizar de forma mais proveitosa as próprias normas, que
tanto moldam e guiam nossa vida em sociedade. É de suma importância a
compreensão da formação psicológica dos indivíduos em que as normas refletem,
pois, afinal, são o objeto final de colusão do Direito. Tentaremos, ao longo do
trabalho, afastar todo formalismo do Direito positivado, emoldurando-nos num
aspecto mais inconsciente das leis, de forma a atingir a psique, os desejos e a
necessidade de rédeas diretivas do indivíduo para que este possa conviver, ao
menos em termos, pacificamente em um coletivo, passando pelas lições de Sigmund
Freud e Jacques Lacan, demonstrando que o Direito encontra na disciplina
psicanalítica um prisma para ter observado todo o ordenamento presente, para,
então, atingirmos o germe conflituoso da natureza humana que urge a necessidade
de normas. Ao final, o que se pretende é lançar ao Direito uma alternativa diferente
do classicismo, da petrificação de verdades e, sobretudo, de aproximação para com
a justiça. A metodologia utilizada para a elaboração do presente trabalho consiste
em pesquisa bibliográfica relacionada às lições psicanalíticas em contraposição ao
direito, bem como artigos da internet que versam sobre o tema.

Palavras-chave: Direito. Psicanálise. Interdisciplinaridade.


ABSTRACT

This paper aims to discuss and demonstrate the relevance of the science of
psychoanalysis in order to understand the origins and needs of the law,
deconstructing the rigidity of norms in order to dive into the urgency of society about
this tool. Such study is necessary so that we can, through this knowledge, use more
profitably the norms themselves, which guide us in our lives in society. The
understanding of the psychological formation of the individuals in whom the norms
reflect is of paramount importance, since, after all, they are the final object of
collusion of the law. We will try, throughout the work, to remove all formalism from the
positive law, framing us in a unconscious aspect of the laws, in order to reach the
psyche, the desires and the need of directing reins of the individual so that he can
live, at least in terms, peacefully in a collective, passing through the lessons of
Sigmund Freud and Jacques Lacan, demonstrating that the law finds in the
psychoanalytic discipline a prism to have observed all the present order, to reach,
than, the conflicting germ of human nature that urges the need of standards. In the
end, what is intended is to launch into the law an alternative that is different from
classicism, petrification of truths and, above all, approximation to the justice. The
methodology used for the elaboration of the present work consists of bibliographical
research related to the psychoanalytic lessons in contraposition to the law, as well as
internet articles that deal with the subject.

Keywords: Law. Psychoanalysis. Interdisciplinarity


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................

2 DOS CONCEITOS FREUDIANOS....................................................................


2.1 O complexo de Édipo........................................................................................
2.2 O tabu, o totem, e o incesto.............................................................................
2.3 O indivíduo e sua inclusão no coletivo...........................................................
2.4 A transgressão das normas..............................................................................

3 DOS CONCEITOS LACANIANOS.....................................................................


3.1 O Real, Simbólico e Imaginário........................................................................
3.2 O discurso do mestre e o discurso do analista.............................................

4 A SIMBOLOGIA DA JUSTIÇA............................................................................
4.1 A balança............................................................................................................
4.2 A cegueira...........................................................................................................
4.3 A espada.............................................................................................................

5 O SENTIDO DA LEI...........................................................................................
5.1 O discurso da justiça........................................................................................
5.2 O Direito e a sublimação...................................................................................
5.3 A análise............................................................................................................

6 CONCLUSÃO......................................................................................................

REFERÊNCIAS...................................................................................................
8

1 INTRODUÇÃO

“Criada” em 1900 por Sigmund Freud, a psicanálise considera toda a


subjetividade e singularidade do indivíduo – do homem -, enquanto o Direito, desde
suas simbolizações grega e romana, prega a objetividade e sua aplicação de forma
indistinta à civilização. Nas universidades, a psicologia é meramente reduzida nas
grades curriculares ao ensino do Direito numa ou noutra disciplina – como as áreas
forense, ou destinadas ao direito familiar.
O que se articula no presente trabalho é uma tentativa de esboçar, ao menos,
um pouco do universo de possibilidades que abre a mandorla entre o Direito e a
psicanálise. Esta última, sempre relativa, dissecante e questionadora da natureza
das coisas, lança ao Direito, cujos princípios situam-se na construção da “moral” e
da “ética”, da “boa conduta”, de verdades prontas, encerradas em si mesmas –
objetivadas, impostas e positivadas –, a hipótese de abalo quanto ao seu formalismo
e estruturalismo.
Para tanto, utilizaremos da ótica trazida pela psicanálise, tanto por Freud
quanto por Jacques Lacan, para atingir a raiz do Direito e sua gênese na natureza.
Por que precisamos do Direito e das leis? O que é essa verdade blindada que o
absolutismo pretende? Como ela se sustenta dentro do inconsciente de cada um de
nós, enquanto cidadãos e enquanto operadores do Direito?
Pensa-se no Direito, pensa-se nas leis. A psicanálise vem alertar o Direito,
conforme se demonstrará adiante, que as palavras que estruturam as leis não
poderão, jamais, portar o “real significado normativo” que pretendem ostentar; vem,
ainda, escancarar a sua falha como justiça, e ao mesmo tempo, estender-se de
forma a instrumentá-la numa forma mais humana.
Ao final, o que se pretende é demonstrar como é frutífera a
interdisciplinaridade; nós, como membros de uma civilização e como agentes do
Direito, devemos compreender como reverbera na psique o próprio curso da vida,
para que se atinja o equilíbrio através das normas, justamente por serem
reguladoras deste mesmo curso, de forma a acrescentar à sociedade de forma
positiva.
9

2 DOS CONCEITOS FREUDIANOS

Sigmund Freud torna-se o pai da psicanálise enquanto estudante da Escola


de Viena no fim do século XIX e início do século XX.
A união do termo psique + aná + lysis carrega a pretensão de Freud de
“decompor as partes da alma”, que, antes de tudo, elabora um processo pelo qual os
processos mentais são investigados, de forma a atingir os níveis inconscientes.
Aliás, a “descoberta” do inconsciente foi a grande tacada do autor. O médico
neurologista, através da sua tratativa das histéricas – mulheres que, fixadas no
complexo da castração, eram tratadas como portadoras de uma doença que não se
originava da mente, mas sim, do corpo – sinalizou a possibilidade de uma instância
oculta, cuja força se manifestava pelas pulsões de morte e pulsões de vida.
No presente trabalho não se busca esgotar todas as lições de Freud. A
seguir, trataremos dos pontos que se demonstraram mais relevantes no curso da
pesquisa: a constituição psíquica “base” do sujeito e como o Estado se situa nessa
instância.

2.1 O complexo de Édipo

Para iniciar nossos estudos, por lógica, devemos partir da gênese do homem
e seus desejos. E ainda, devemos ir mais a fundo, analisando os traços animais
propriamente ditos.
Segundo a teoria psicanalítica, os laços sociais e afetivos que os humanos
perseguem são “aprendidos” no âmbito familiar, sua primeira “sociedade” – e, a isso,
citaremos (em rápidos esboços) o complexo de Édipo.
Introduzida por Freud em 1900, a teoria psicossexual trata-se de fenômeno
universal. A tese usa do mito grego de Édipo Rei (de Sófocles, obra teatral
produzida por volta de 428 a.C. que ilustra o parricídio e matrimônio de Édipo com
sua própria mãe, sendo desconhecida para os envolvidos sua ligação parental) para
indicar que as crianças desejam, inconscientemente, seus pais, tanto hostilmente
quanto amorosamente. Eles se tornam o objeto de desejo dos infantes: o menino
direciona sua libido para a mãe, voltando contra o pai sentimentos rivais (por este
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dormir com ela, por exemplo); a menina, por sua vez, direciona a libido para o pai,
tendo inconsciente rivalidade com a mãe. A teoria ainda se deslinda à frente, porém
podemos nos deter aqui para o presente trabalho.
Sendo este, então, o primeiro ponto dos desejos – o sexual (e ainda, do
propulsor da procriação) –, podemos dizer que, sem alguma forma de proibição, os
indivíduos cairiam em uma sucessão de incestos. Esta afirmação será
insistentemente negada, uma vez que a teoria psicanalítica segue exatamente esta
linha – a de buscar o “não” em nossos discursos, a singela mecha no consciente
que, ao se puxar, descobrem-se raízes. A própria negativa de um desejo já
pressupõe sua existência. A psicanálise tende a remexer o íntimo do ser, a pôr em
xeque a consciência, esta camada superficial, questionando nossa percepção
“comum”.
A partir deste ponto, com nossos valores morais e bons costumes, já
sabemos que tais relações entre familiares são inadmissíveis dentro de uma
sociedade politicamente “correta” e saudável. Aí, nos vemos diante da necessidade
da inibição, da criação de barreiras e proibições para que os indivíduos não
satisfaçam estes desejos inconscientes e tão latentes nas arestas mais invisíveis da
mente.
É sabido que é a impossibilidade de concretização do desejo, a ausência de
uma “ponte” de ligação entre o indivíduo e o objeto idealizado, de chegada ao gozo,
é o fato gerador dos recalques, das germinações e reverberações inconscientes e,
consequentemente, das neuroses e dos descompassos que vivemos (diariamente).
Assim, facilmente conclui-se que é da proibição – do “não” dito ao objeto idealizado
e desejado – que surgem os mais diversos desdobramentos no aparelho psíquico.

2.2 O tabu, o totem, a exogamia e o incesto

As restrições antiquíssimas dos povos, que se provaram em muitas partes do


globo e em diversas épocas, chamamos de tabu. Embora obscuras as fontes do
tabu, entende-se que deve ser seguido “às cegas”, sem questionamentos quanto à
sua veracidade. Freud, em sua obra “Totem e Tabu”, reúne apontamentos de
diversos antropólogos e sociólogos sobre as sociedades primitivas, realizando, por
11

fim, uma análise destas. O que se constatou (e assim continua a se constatar) é que
muitos tabus se perpetuam entre nossos interditos.
“As restrições do tabu são algo diverso das proibições religiosas ou morais.
Não procedem do mandamento de um deus, valem por si mesmas;
distingue-as das proibições morais o fato de não se incluírem num sistema
que dá por necessárias as privações, de forma geral, e fundamenta esta
necessidade. As proibições do tabu prescindem de qualquer
fundamentação; têm origem desconhecida; para nós obscuras, parecem
evidentes para aqueles sob o seu domínio. ” FREUD, p. 42-43

Em povos antigos (notadamente em tribos australianas, segundo Freud), para


seguirem tais ordens proibitivas, instituíram-se os totens.
“[...] Via de regra é um animal, comestível, inofensivo ou perigoso, temido, e
mais raramente uma planta ou força da natureza (chuva, água), que tem
uma relação especial com todo o clã. O totem é, em primeiro lugar, o
ancestral comum do clã, mas também seu espírito protetor e auxiliar, que
lhe envia oráculos, e, mesmo quando é perigoso para outros, conhece e
poupa seus filhos. Os membros do clã, por sua vez, acham-se na
obrigação, sagrada e portadora de punição automática, de não matar
(destruir) seu totem e abster-se de sua carne (ou dele usufruir de outro
modo). [...]” FREUD, p. 19-20.

O totem, hora transmitido pela mãe, hora pelo pai, era o que delineava as
relações dentro das tribos (e para com outras tribos, já que cada uma possuía seu
animal). “Em quase toda parte em que vigora o totem há também a lei de que
membros do mesmo totem não podem ter relações sexuais entre si, ou seja,
também não podem se casar. É a instituição da exogamia, ligada ao totem”.
(FREUD, p. 21)
Vejamos que o totem não era a proibição em si, mas uma “entidade” aceita
como imperiosa e dominante sobre determinado grupo. A exogamia foi ligada a ele.
Devemos levar em consideração que pouco sabemos sobre os primeiros grupos de
humanos, logo, não conseguimos prosseguir às mais puras raízes destas ideias,
uma vez que longo tempo se passou e muito se deformou depois de tantos milênios.
Ainda, não podemos arriscar dizer que o saber de que biologicamente é incoerente a
procriação entre seres cujos genes são familiares possa ser a fonte desta aversão à
união sexual entre consanguíneos – afinal, até onde seria capaz o pressentimento
natural, animalesco do homem? Existem vários casos que demonstram que as
proibições não se limitam a este fator – inclusive, nem se poderia exigir um cuidado
tão peculiar de povos tão primitivos, ainda mais se considerarmos a própria teoria
psicanalítica sobre a libido primitiva para tanto. Acerca dessa confusão entre o
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totemismo (principalmente quando o totem remete a um animal) e a exogamia,


Freud diz, conforme o trecho a seguir, que a criação do totem pode ser análoga ao
complexo de Édipo.
“[...] Se o animal totêmico é o pai, o teor dos dois principais mandamentos
do totemismo – os dois preceitos que constituem seu núcleo, não matar o
totem e não ter relações sexuais com uma mulher do totem – coincide com
o dos dois crimes de Édipo, que matou o pai e tomou a mãe por esposa, e
com os dois desejos primordiais da criança, desejos cuja repressão
insuficiente ou cujo redespertar forma o núcleo de talvez todas as
psiconeuroses. Se essa equiparação for mais que uma enganadora obra do
acaso, ela deverá nos permitir lançar alguma luz sobre a gênese do
totemismo em tempos imemoriais. Em outras palavras, conseguiremos
tornar verossímil que o sistema totêmico resultou das condições do
complexo de Édipo [...].” p. 203

Conclui-se que a lei ocupa, então, lugar simbólico dentro da psique humana
como o pai. Deve ser respeitada, não ferida, em prol da organização da sociedade e
sua boa convivência.
“A lei, contudo, retira força dela própria para exercer sua autoridade, na
medida em que não há fundamento externo que a justifique. Neste sentido,
é por exclusão de toda possibilidade física ou coercitiva que a lei se
constitui. Isto nos leva a crer que a autoridade é dada por um valor
simbólico, autoreferente, que tal objeto eleito ocupa.” (NILANDER, 2014)

Para elucidar de forma exemplificativa a estrutura edípica, temos vários casos


análogos (muitas vezes até mais cerimoniosos), mas para sintetizar, abordaremos o
caso dos zulus, destacando sua tradição limitante da relação entre marido e sogra.
Acerca do lugar do pai que a lei ocupa, tal estudo se faz necessário e será
explicitado apropriadamente em capítulo posterior.
Nesta tribo específica o homem deveria evitar a presença da sogra; não podia
encontrá-la, e se o fizesse por acaso, deveria fazer o possível para não olhá-la ou
comunicar-se com ela; era proibida até a menção de seus nomes um pelo outro.
A relação entre o marido e a sogra, na instituição familiar, não está amparada
pelo fator consanguíneo – este, inclusive, é outro ponto que refuta a ideia de que
apenas a consanguinidade limita a união sexual, reafirmando o fundamento da
exogamia ligada ao totemismo -, e são totalmente passíveis de análise psicanalítica
os motivos de tais costumes restritivos referentes ao contato de um com o outro.
Segundo a tese do complexo de Édipo, o menino tem como referência
afetuosa a mãe. Em sua vida adulta, o homem buscará mulheres que detém alguma
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semelhança a ela, de qualquer forma, pois essa foi a ideia que lhe foi agregada de
“mulher ideal” na infância.
Logo, o homem vê a mãe de sua esposa como outra mãe, mas além da que
não lhe é proibida (a biológica), gerando um caminho inconsciente de regresso ao
primeiro desejo. Sua atual esposa foi desejada, inicialmente, justamente porque ele
podia observar nela alguma semelhança à sua genitora. Isso o leva a uma mínima
ideia de desimpedimento de realização do desejo primitivo (incestuoso) que, se se
amparasse apenas pelos fatores de incompatibilidade genética, poderia se
concretizar com esta outra mãe, que não é sua mãe biológica, mas em muito se
assemelha a ela.
A sogra, por outro lado, segundo Freud:
“[...] As necessidades psicossexuais da mulher devem ser satisfeitas no
casamento e na vida familiar, mas ela é ameaçada pela insatisfação devida
ao fim prematuro da relação conjugal e à ausência de acontecimentos na
sua vida emocional. Ao envelhecer, uma mãe se protege disso mediante a
empatia com seus filhos, a identificação com eles, ao tornar suas as
vivências emocionais deles. [...]” p. 38

Em seus escritos, Freud afirma que a criança é, até certa idade, objeto de
desejo de seus genitores. Não são inconscientemente considerados como indivíduos
– não possuem individualidade propriamente dita -, mas são admitidos como uma
mera extensão dos desejos destes adultos que o geraram. “Tal empatia com a filha
chega facilmente ao ponto de a mãe também se enamorar do homem amado por
ela” (FREUD, p. 39).
Ao passo em que o homem vê na sogra um ideal que deseja, a sogra se
coloca inconscientemente na posição de desejante da filha – ou melhor, dos próprios
desejos dela. A proibição ocorre para que não se desfaça o laço matrimonial
permitido e já concretizado, e talvez, até para preservar certa integridade moral
deste núcleo familiar hipotético. Reprimidos os desejos de ambos, afloram os
sentimentos negativos de raiva, ciúme e suas variáveis, dos dois lados da relação.
A exogamia totêmica das tribos australianas citadas por Freud impedia não
somente a união sexual entre consanguíneos, mas entre todos os membros de um
mesmo clã. Isto porque houve uma substituição do fator que une os membros de
uma tribo: do sanguíneo pelo totêmico. É uma forma muito útil de aplicação das
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restrições sexuais (cite-se, ainda, das pulsões), e principalmente, por ter sido
agregada ao totem, exercia uma grande força psíquica nos indivíduos da tribo.
“[...] Os nomes com que designam o parentesco não consideram o laço
entre dois indivíduos, mas entre um indivíduo e um grupo; pertencem, na
expressão de L. H. Morgan, ao ‘sistema classificatório’. Isto significa que um
homem chama de ‘pai’ não apenas seu genitor, mas também qualquer outro
homem que, conforme os estatutos da tribo, poderia ter desposado sua mãe
e se tornado seu pai; chama de ‘mãe’ qualquer outra mulher que, sem ferir
as leis da tribo, poderia ser sua mãe; chama de ‘irmãos’ e ‘irmãs’ não só os
filhos de seus pais verdadeiros, mas também os de todas as pessoas
referidas que com ele mantêm relação parental no grupo, e assim por
diante. Os nomes de parentesco que dois australianos dão um ao outro,
portanto, não indicam necessariamente consanguinidade entre eles, como
em nossa linguagem; indicam laços sociais, não físicos. [...]” FREUD, p. 26

Nas próprias palavras do autor, o casamento grupal é um “exagero nas


medidas para evitar o incesto”, limitando além da consanguinidade as opções de
parcerias sexuais dos indivíduos que ao totem se submetem.
Entretanto, se nos remetermos a outro autor célebre da psicanálise, Lévi-
Strauss, lançaremos à questão uma luz. Para Barreiros: Commented [G.S.1]: http://acfportugal.com/cartaacf/carta18b
.htm; acesso em 09-01-18
“[...] a proibição do incesto é, antes de mais, a conjunção da natureza e da
cultura. Significa isto que contém uma impar coordenação entre
universalidade e particularidade. É universalmente proibido, embora as
proibições de que é alvo sejam variáveis, em grau, de acordo com os
diversos sistemas de parentesco. A universalidade e a particularidade
assumem, deste modo, dois domínios empírica e etnologicamente
identificáveis: a descendência e a aliança – ‘a natureza atribui a cada
indivíduo determinantes veiculados pelos seus pais efectivos, mas não
decide em nada quais serão esses pais’ (Lévi-Strauss 1982: 70). Quem o Commented [GdÁ2]: tem um apud aqui... verificar se a
decide é a cultura sob a forma do fenómeno da aliança.” formatação está OK

Dessa forma, pode-se inferir que tais mecanismos foram necessários para
que se atingisse certa unidade, no sentido de que houve identificação psicológica do
indivíduo com o grupo – grupo este que se movimentaria como um, com
necessidade de comunicação, de tecer relações, sendo que deste ponto poderíamos
criar um rol infinito de necessidades verificáveis tanto num indivíduo quanto num
grupo psicológico, correlacionados. Na citação abaixo, Ènriquez faz menção a um
dos termos que, noutras páginas do presente trabalho, se demonstrará central à
simbolização da justiça – a igualdade. Vejamos:
“[...] O laço libidinal é originário e é ele que permite o reconhecimento da
existência do outro. É justamente porque ele não existe no tempo da horda
que a horda permanece uma horda e não uma civilização ou uma
instituição; é porque ela é regida pala violência pura que os outros não
podem aceder à existência. O crime cometido em conjunto, fazendo do
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chefe um pai (pelo fato do remorso) o constitui em outro (em objeto de amor
e de ódio) e instaura o reconhecimento mútuo, a criação do outro
generalizado. [...] Por este discurso de amor igualitário, ele cria o grupo, e
cada um de seus membros vai introjetar o líder como objeto ideal e vai
substituir seu próprio ideal do eu pelo ideal encarnado nesta figura
transcendente. O amor que é dado, retorna. Não há, então, grupo sem pai,
grupo sem a obrigação infinita da dívida do direito à existência e do direito
ao sentido. E, como todos os homens têm, neste momento, o mesmo ideal,
eles poderão se identificar mutuamente e também se amar.” Commented [GdÁ3]: pag 11

É aqui que se situa a grande importância da obra da Freud às analises


pretendidas. Todos os “eventos mentais”, se assim nos dermos a liberdade de
denomina-los, têm lugar na vida palpável, e se escondem na subjetividade de
nossas relações e discursos.

2.3 O indivíduo e sua inclusão no coletivo

Independentemente do que possamos concluir com as teorias psicanalíticas


sobre o surgimento e a necessidade de leis dentro da sociedade, é necessário
questionarmos se sequer é possível fazermos indagações sobre indivíduos que não
estão inclusos dentro de um grupo, tribo ou, simplesmente, uma sociedade. É
possível falarmos em “lei” na hipótese de um homem solitário?
Para respondermos a este questionamento precisamos levar em conta três
estruturas psíquicas, conceituadas por Sigmund Freud: o ID, o ego e o superego.
Inicialmente, temos que o ID se caracteriza pela “voz” inconsciente presente
na psique. É onde a moral e tudo que se constrói numa vida em sociedade não
chega a tocar ou influenciar. Dentro do ID está a libido pura, ligado aos desejos e
aos instintos mais naturais presentes no homem, vigendo o “princípio do prazer”. É
dentro do ID que ocorrem os processos dos quais desconhecemos
conscientemente, mas os seguimos em todas as ações.
O superego é a “voz” que contrapõe o ID. É onde resta o “princípio do dever”,
que reinam a moral, os julgamentos, a cultura, os bons costumes, as noções de
ética, sendo, portanto, fruto de construção e aceitação social. Cita-se Miguel Reale,
que de forma analógica, define: "[...] que sem a distinção entre ser e dever ser não
se compreendem de maneira clara a razão da obrigatoriedade do Direito e a própria
natureza da vida jurídica. [...]" REALE. Commented [GdÁ4]: , p. 453 (pdf 484)
16

Há possibilidade da completa ausência de um outro? As constatações de


Freud acerca da estruturação da psique dizem que não.
O ID e o superego são mesclados na “voz” consciente – o ego. É no ego que
estão a memória, a percepção, os pensamentos e tudo que facilmente podemos
notar dentro de nossas mentes. Nele, fazemos nossos juízos de valor, medimos
nossas ações e nos situamos no mundo externo, vigendo o “princípio da realidade”,
“vinculando as representações verbais às que lhe são correspondentes” (FREUD, p.
13).
Se cremos que, conforme nossa cultura e construção moral, o bem-estar
coletivo deve ser superior ao desejo de um único indivíduo, sabemos que o
superego é essencial para frear determinados impulsos do ID, e este processo de
freio é efetuado dentro do ego.
Segundo Freud, o superego representa aquilo de “ideal no ego” – inclusive,
sendo digno de nota, importante que se frise que neste momento já houve a
castração simbólica, posto que o indivíduo já foi impossibilitado de atingir o gozo por
algo alheio a si e ao objeto. Conforme dito acima, trata-se daquilo que o exterior
espera e aceita do ID por diversos fatores, ou seja: é do superego que partiu a
primeira ideia de totemismo, associado como de forma umbilical à vida em conjunto
e todas as construções psíquicas que disso poderiam advir.
Se o superego é uma consequência da convivência do indivíduo com outros –
que ele identifica como seus iguais e, portanto, volta para estes os seus impulsos do
ID -, não vislumbramos a possibilidade de investigação de um indivíduo que possua
apenas o ID como estrutura psíquica – já que, sem o superego, quais valorações
seriam feitas no ego? -. Este seria um homem selvagem, solto à toda sorte na
realidade, sem qualquer inserção em coletivo e que viveria, inclusive, sem os
complexos que formariam a personalidade. Sem isso, sua própria sobrevivência
seria duvidável. E, conforme já exposto, a viabilidade disto é mínima, senão
inexistente. Podemos concluir, então, que a necessidade de convivência com
outros identificados como iguais é inegável para que urjam os impulsos do ID, as
valorações do ego e as objeções e ideais perseguidos pelo superego.
Trazendo para este ponto os conceitos edípicos, sabe-se que é o superego
quem interdita o gozo, a chegada ao objeto de desejo; é a própria castração, o
17

castrador e o impedimento ao incesto, nos remetendo, portanto, à imagem do pai


(ao nome-do-pai, conforme Freud), e culminando na lei propriamente dita, por ser
justamente ela quem delineia e delimita o desejo. Ou seja: não da cultura (daquele
outro cuja face não se indica) parte a castração, mas sim da metáfora paterna
(conforme os seguintes estudos sobre a teoria lacaniana, que complementam os
presentes).
“Se o Direito tem uma relação direta com o gozo, significa que suas ações e
o desenvolvimento dos atos e fatos jurídicos e julgamentos não estão
apenas na ordem da objetividade. Há, pois, outras razões determinantes na
vida do Direito e em sua aplicabilidade que não estão apenas no mundo
visível e aparente. [...] Del Vecchio conclui dizendo que é preciso conhecer
os processos psíquicos para compreender a origem do Direito. E uma vez
estabelecidas as leis, elas se dirigem à consciência de cada um e requer
obediência, e assim, regressam ao mesmo espírito que as originou: 'o
Direito desenvolve-se inteiramente na ordem dos factos psíquicos; e à
mesma pertencem ainda, por certo aspecto, os ideais que nos servem de
critério estimativo nas normas jurídicas positivas'.” Commented [GdÁ5]: http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/ha
ndle/1884/2272/Tese_Dr.%20Rodrigo%20da%20Cunha.pdf pag 36
acesso em 12/02
Tendo a lei, o Direito e a justiça conceitos indissociáveis na atual conjuntura
psicológica estudada, não podemos nos apegar aos nomes, sendo certo dizer que
quando falamos de um, automaticamente nos referimos aos outros dois, da mesma
forma. Ainda, é justo afirmar que, inconscientemente, a lei, definitivamente, atua em
igualdade à figura paterna, castradora e reguladora do gozo. A lei – o Direito e a
justiça – é, portanto, o pai inconsciente de uma comunidade.
E de tal afirmação podemos tecer duas ideias.
Inicialmente, consoante os estudos do totemismo, seus motivos e exemplos,
sobretudo no tocante ao seu caminhar lado-a-lado com o Complexo de Édipo,
sabemos que é do pai que parte uma “referência de ideal”, um outro cujos aspectos
diferem do ID (e, portanto, da essência inconsciente da mente do analisante),
castrando-o, ditando que este não atingirá o objeto e o gozo. É o pai que castra,
dormindo com a mãe; é o pai que diz o não ao desejo. E é assim que se instaura a
competitividade do filho para com seu pai em relação à mãe – ao objeto de desejo.
O combate psicológico é inevitável. E assim o é com a lei. Isto explica, como
simples exemplo, a perpétua insubordinação de diversos indivíduos que, durante o
curso de suas vidas, têm problemas em seguir normas – não somente do Direito,
inclusive –, e se percebem presos (e compreendamos também pela prisão
18

penitenciária) em situações flagrantemente neuróticas, repetindo os mesmos atos,


com discursos semelhantes a gravações histéricas e até mesmo variações entre os
níveis de loucura mais leves aos casos mais psicóticos.
Não falemos de mera insubordinação, de mera teimosia infantil, tampouco de
rebeldia infanto-juvenil. Trata-se, em verdade, de formação natural da mente, como
amplamente demonstrado pelas teorias freudianas. E é justamente por isso, por ser
um processo que todos – todos – passamos que se faz extremamente relevante
uma ressignificação da figura paterna que a Lei vem desenvolvendo nas ultimas
gerações. Se o papel do Direito é o de ser aplicado a todos, sem distinções ou pré-
conceitos, assim deve ser feito, porém, considerando o inconsciente que irá
interpretar este papel.
Inclusive, acerca das gerações, é importante que se destaque o grande
aumento de psicopatologias – 35 vezes nas últimas duas décadas, numa pesquisa
realizada somente com crianças, em 2014 – nos tempos atuais, o que só se pode Commented [GdÁ6]: http://www.psiconlinews.com/2014/10/a
-epidemia-de-doenca-mental-por-que.html
concluir pelo acúmulo de sintomas e neuroses que estão sendo transmitidos dos acesso em 04/02/18

pais para os filhos.


Contribui Julio Cezar Braga:
“Absorvendo a marca contemporânea da sociedade, em que não se permite
a falta, em que o afeto vira moeda em relações cada vez mais
contabilizadas, lançadas a crédito e a débito, o Direito acaba ensejando
uma intensa judicialização monetária dos afetos no âmbito das famílias em
uma sociedade de relações cada vez mais líquidas, como sustenta Bauman
(2009, p.65).” Commented [GdÁ7]: Braga, p. 5
tem um apud!!

Por isso tanto se afirma e reafirma a necessidade de uma ressignificação da


Lei: para que ela auxilie e garanta, verdadeiramente, o desenvolvimento saudável do
ser humano, que tanto é prezado pela própria Constituição Federal Brasileira e pelos
Direitos Humanos. E esta é nossa primeira ideia.
A segunda ideia instiga uma releitura da frase-prima, sem a necessidade de
alterar qualquer termo ou ordem destes: a do papel de pai inconsciente que a Lei
vem desenvolvendo perante seu “filho” – a sociedade. A de pai ausente, que surge
para dizer o não aos desejos, para castrar o sujeito; que não lhe presta auxílio, que
não lhe ensina valores essencialmente humanos, mas sim, socialmente aceitos
perante as formas de governo e políticas, de forma arquitetada; que desfigura a
19

justiça propriamente dita, já que, em suas nuances, desconsidera as diferenças


sociais e circunstâncias pessoais. Tal linha de raciocínio será dissecada nas
próximas páginas do presente trabalho.

2.4 A transgressão das normas

Para tratarmos dos efeitos das transgressões e suas reverberações


inconscientes, devemos novamente retornar à questão tabuística abordada por
Freud.
Se há um desejo latente no indivíduo, consideramos que, neste ponto de
partida existe a possibilidade de duas ramificações: a do sim, que é o atendimento e
realização desse desejo; e a do não, que é sua inibição e consequente interiorização
desse desejo. Sabemos que, inconscientemente, um desejo germinado não
“desaparece”, mas é recalcado e passa por “mutações” psicopatológicas – a
metáfora e a metonímia são exemplos, que serão estudados nas páginas seguintes
dentro da temática lacaniana.
Consideremos a hipótese de atendimento ao desejo – seja ele qual for, dentro
dos limites do tabu. Para isso, há a consequência dessa ação, uma penalidade, que
é justamente a força psíquica inerente ao tabu (e não somente dele, como podemos
observar por simples menção ao Direito Penal vigente).
“O castigo para a violação de um tabu era originalmente deixado para uma
instância interior, de efeito automático. O tabu ferido vinga a si mesmo. Mais
tarde, quando surgiram ideias de deuses e espíritos com os quais o tabu
ficou associado, esperava-se que a punição viesse automaticamente do
poder divino. Em outros casos, provavelmente devido a uma ulterior
evolução do conceito, a própria sociedade assumiu a punição dos infratores,
cuja conduta pôs em perigo os companheiros. Assim, os mais velhos
sistemas penais da humanidade podem remontar ao tabu.” FREUD, p. 45

O tabu possui uma característica que nos remonta ainda mais ao seu caráter
inconsciente, que é o da sua transmissibilidade. O próprio transgressor toma para si
o tabu, revestindo-se dele. Aquele que é impuro é totalmente capaz de transmitir a
outros suas impurezas, tal qual o próprio instante em que o tabu é desrespeitado.
Dito isto sob a perspectiva dos povos antigos, vemos que:
“Fica igualmente claro por que a violação de determinados tabus envolve
um perigo social, que tem de ser conjurado ou expiado por todos os
20

membros da sociedade, a fim de não prejudicar a todos. Se substituímos os


desejos inconscientes pelos impulsos conscientes, tal perigo existe
realmente. Ele consiste na possibilidade da imitação, em virtude da qual a
sociedade logo se desagregaria. Deixando impune a violação, os outros se
dariam conta de querer agir da mesma forma que o transgressor.” FREUD,
p. 63

A própria possibilidade de imitação é uma forma de transmissibilidade do


tabu. Aquele que o transgride deve ser imediatamente punido, sob pena de criar o
risco de outros indivíduos (também possuindo desejos que, caso atendidos, possam
ferir algum tabu), observando tal feito, possam imitá-lo, já que não há qualquer
barreira considerável que separe o homem de seu objetivo desejado. Mas, se este
objetivo se torna tabu, se é posto dentro de uma redoma proibitiva onde todos que
se aproximem demais se tornam eles mesmos um tabu, há uma grande proteção
sobre este núcleo.
Das hipóteses de transgressão ao totemismo, conforme vimos, a que
podemos considerar como a mais intrínseca ao seu fundamento seria a de matar o
animal totêmico. Porém, verificou-se em diversas tribos – e dentre os semitas,
estudados por W. Robertson Smith, citado por Freud em “Totem e Tabu” (p. 203-
214) – a existência de cerimônias onde a carne do animal totêmico poderia ser
consumida pelos integrantes do grupo, desde que o animal fosse sacrificado por
todos os membros, expiando-os de qualquer prejuízo ou punição (fosse ela de
qualquer natureza, inclusive animista ou religiosa).
As cerimônias estudadas, em sua grande maioria, eram uma forma do clã se
“sociabilizar” com sua entidade maior, sua divindade. O animal totêmico era tido
como o ancestral de todos os membros daquele coletivo em questão. Partilhavam,
com ele, do mesmo sangue e da mesma natureza. Por isso, matar o animal totêmico
era considerado derramamento de sangue de todo o clã; comê-lo, então, seria
canibalismo propriamente dito. Entretanto, se respeitados os preceitos cerimoniosos
de sacrifício e ingestão, nem a divindade e nem o clã seriam prejudicados – muito
pelo contrário, eram cerimônias muitas vezes periódicas, tidas como uma forma de
aproximação e respeito para com o totem, fortalecendo o laço entre os próprios
membros do clã e seu deus; acreditavam, ainda, que tais cerimônias eram
21

necessárias para que o totem continuasse guiando e protegendo o grupo contra


possíveis tempos de fome ou doenças.
Se considerarmos que o animal totêmico ocupa, segundo a psicanálise
freudiana, o lugar do pai no inconsciente, concluímos que a ingestão e o sacrifício da
carne do pai, do deus, era uma realmente uma forma de fortalecimento dos
membros. Estes, que se achavam em igualdade à divindade, garantiam sua
semelhança com ele, e poderiam, então, conviver com ela sem temê-la (no
inconsciente, veríamos como o medo da castração).
“A psicanálise nos revelou que o animal totêmico é de fato o sucedâneo do
pai, e com isso harmoniza-se a contradição de que normalmente é proibido
mata-lo, mas o assassínio torna-se ocasião de festa, de que o animal é
morto e, no entanto, pranteado. A postura afetiva ambivalente, que ainda
hoje caracteriza o complexo paterno em nossas crianças e frequentemente
prossegue na vida adulta, se estenderia também ao sucedâneo do pai, o
animal totêmico.” (FREUD, p. 215-216)

Ao matar o animal totêmico e ingeri-lo, os membros do clã não mais se


sentiriam subordinados a ele; pelo inconsciente, os membros se sentiriam
igualmente na posição do pai – que é o almejado pelo menino quando consideramos
o complexo de Édipo; basicamente, a detenção da autoridade e do poder.
Conforme Nilander:
“Foi somente através desse crime que o chefe da horda se transformou em
pai, donde se deduz que o pai só existe morto, em sua negativa, enquanto
ser mítico, e que, nessa função, incita o amor e a culpa. Assim, inscrição do
pai morto, por isso negativo, é o que confere e legitima a sua função,
ganhando, pois, uma existência simbólica que só emerge com a sua
ausência.
O lugar do pai é organizado simbolicamente, por excelência, destituído,
então, de quaisquer atributos naturais. É, pois, referenciado a uma
autoridade simbólica que, por sua vez, cumpre a função de inscrever um
valor simbólico que inaugura uma regra, uma lei, que serve como
obrigação.” (2014)

Esta exceção cerimonial é a chave para deslumbrarmos os porquês psíquicos


do desenvolvimento do totemismo em religião e, posteriormente, em leis. Inclusive,
não se pode deixar de citar a extensa gama de “leis” que permeiam a ciência – não
é somente no Direito que as encontramos; as da física, da química, das línguas, da
natureza, da biologia, enfim, toda ciência acaba por desembocar num princípio
supremo e orientador, assim denominado de lei.
22

Conforme Freud, o desvio entre o sujeito e o objeto desejado (ou idealizado)


culmina no recalque, no deslocamento ao inconsciente, o que se desdobra em
neuroses. As neuroses são manifestadas pelas inibições, pelos sintomas e pelas
angústias. Segundo Coppus: Commented [GdÁ8]: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scri
pt=sci_arttext&pid=S0101-48382013000100002; acesso em 09-01-
“ [...] a causa do desejo se refere a um gozo perdido que insiste 18
continuamente pelos caminhos enviesados da pulsão e reivindica seus
direitos na fantasia neurótica. A incompletude, presente no campo do
desejo, é exatamente o que o gozo pretende eliminar. [...]”

O destaque se dá à certeza de que a proibição não destrói o desejo. As


pulsões se enveredam na constituição desejante do sujeito, de forma que esta
nunca repousa, mas sempre se mascara.
Aqui, devemos realizar rápidas considerações acerca do binômio pulsão de
vida x pulsão de morte, onde se traz a dualidade da natureza humana, baseada no
amor x ódio.
À primeira, também denominada de Eros, Freud liga a ideia de que a vida
implica duração e, naturalmente, preza por sua preservação; o instinto (impulso) de
preservação da espécie é inerente aos que a ela integram. À segunda, Tânatos,
fala-se em destruição do objeto, de agressão ao exterior, ao sadismo.
É neste ponto, exatamente, que se fixam mais problemas acerca da forma
que o Direito e a sociedade vêm caminhando – em descompassos. Por sua atuação
falha como metáfora paterna, sendo literalmente um “pai inconsciente da
sociedade”; pela relação dilacerante que se deixa criar simbolicamente para com
cada um de seus “filhos”, leia-se, os cidadãos, filhos de uma pátria, aqueles a quem
o Direito fala. Nas palavras de Cyro Marcos da Silva: Commented [GdÁ9]: apud da Lijeane Santos, pag 51

“O sujeito de que o Direito nos fala é o sujeito de direitos e deveres. Ele tem
sua descrição dada pela via da instância do eu, imaginária, consciente,
moldado segundo o ordenamento jurídico vigente. É a pessoa que via de
regra é capaz, tem pleno gozo de suas faculdades mentais, é consciente,
entende o caráter criminoso ou não de seus atos e é capaz de determinar-
se de acordo com este entendimento. Tem direito à vida, à integridade
física, corpórea, à sua imagem, à sua honra, à sua moradia, à saúde, a isto,
aquilo e aquil’outro. Tem também seu elenco de deveres, uma lista de
obrigações de dar, fazer e abster-se diante de determinadas situações.
Enfim, é acreditado como regulável, normatizável, passível de proteção
jurídica e exortado ao cumprimento de modelos de ações que lhe garantem
estar representado por significantes mestres, tais como cidadão livre,
proprietário, possuidor, detentor, sucessor, marido, mulher, filho, criança,
adolescente, consumidor, autor, réu, litisconsorte, indiciado, contribuinte,
etc. tudo regido por uma ética kantiana do imperativo categórico, tendo
23

como pano de fundo reminiscências de uma ética dos bens. Ora se vê


jungido a comportar-se de determinada forma, plausível e idealizadora de
um modelo que a todos sirva, praticando e agindo diante do outro como
seria idealizável para o outro diante de si...”.

Se os desejos não se dissolvem, mas através do sistema de metonímias e


metáforas se mantém latentes, não se pode olvidar que, ao dizermos que o ato de
matar alguém gera consequências negativas, o desejo não estará instantaneamente
destruído. A pulsão de morte e a pulsão de vida irão continuamente emanar.
Conforme os estudos que se farão a seguir acerca das considerações
lacanianas, este significante, em verdade, será ligado a outro significante, deixando
rastros nos discursos do indivíduo, que será consequentemente levado às metáforas
dos significados, que se substituem, mas nunca abandonam o significante acústico
primário (o próprio desejo de morte). O artigo 121 do Código Penal foi citado acima
mormente por ser o que mais se espelha à pulsão de morte, ao parricídio, crimes
estes que hoje estão sancionados pela lei. Entretanto, a gama de possibilidades
exemplificativas é extensa. Poderíamos citar, inclusive, o próprio incesto, tão
amplamente estudado e defendido por Freud como sendo um dos primeiros focos a
que se dirigem as pulsões que, ainda bebês, já manifestamos.
Por isto, diz-se: o Direito que ignora o inconsciente que o percebe, que o
interpreta, que o vive e que por ele é controlado (ou que carece da ferramenta
adequada para ouvi-lo e compreendê-lo) é um Direito inútil. De nada vale a norma
cuja função, muitas das vezes, é a de gerar sintomas e neuroses à comunidade que
a respeita – ou ainda, que a teme, mas na primeira oportunidade (de retorno do
recalque), poderia lhe apunhalar e de sua carne comer para se sentir em
“igualdade”; é a norma que vive à constante margem da transgressão da pulsão de
morte e, por consequência, do desequilíbrio de toda a coletividade. “O Direito vem a
ser uma condição e não uma consequência da moral”. Commented [GdÁ10]: celso garcia, p. 1

Nesta mesma linha, argumenta Eugene Enriquez:


“[...] os homens, tendo idealizado tanto este Estado onipotente, digno
sucessor do chefe da horda, responderão a seu apelo, pois ‘a guerra torna
a vida interessante’ e ela abre as portas, neste momento, à pulsão de
destruição, habitualmente recalcada ou canalizada e a deixa suscetível de
exprimir-se com toda sua força. [...] A civilização guarda nela uma
barbárie, amordaçada em tempos de paz, mas que se solta assim que o
Commented [GdÁ11]: Psicanálise e ciências sociais., pag
interdito de matar muda para a obrigação do assassinato.” 16
24

Isto é, em verdade, nada mais que a metáfora do rebanho que, temeroso à


tormenta, corre em direção ao precipício. E estes precipícios têm nome no meio
jurídico: as lacunas. Não precisamos mais nos sujeitar ao assassinato do pai para
que busquemos um senso de igualdade e justiça aplicados – temos a ciência da
inconsciência como ferramenta à favor do Direito.
25

3 DOS CONCEITOS LACANIANOS

A teoria psicanalítica não se obsta às conclusões freudianas; esta, em


verdade, passou por algumas reformulações por outros autores igualmente célebres,
e um destes autores foi Lacan, nascido no mesmo período em que a própria
psicanálise – 1901 -, cuja contribuição é, certamente, imensurável para a temática.

3.1 O Real, o Simbólico e o Imaginário

Jacques Lacan, ao longo do desenvolvimento de seus escritos e seminários,


apresentou o nó borromeano e o enlace de três registros primordiais à realidade
humana – o Imaginário, o Simbólico e o Real –, baseados sobretudo às influências
de Freud, Hegel, Saussure e Lévi-Strauss. O nó se fundamenta, essencialmente, à
ideia de que as três inscrições estão ligadas e literalmente entrelaçadas, de forma
que, se alguma delas se desata, o nó é completamente desfeito.
Apenas nos humanos é observada a existência do Simbólico, restando
ausente nos demais animais. O “aprendizado” nos animais, mesmo instintual, é feito
em grande parte pelo mimetismo – pela capacidade de imitação, o que se realiza,
segundo Lacan, na inscrição do Imaginário, posto que esses seres não detém a
capacidade de inserir-se numa cultura estruturada, de interpretar o Real e, então,
repetir comportamentos simbólicos. Tal constatação fica clara quando conceituamos
(ou, pelo menos, assim tentamos) as três dimensões lacanianas, de maneira a
destacar as informações que se demonstraram mais relevantes à sua interlocução
com o estruturalismo do Direito.
Para a compreensão do que seria o Imaginário, nos remetemos aos estudos
freudianos acerca do ID, do ego e superego, passando até mesmo pelos conceitos
trazidos pela teoria do Complexo de Édipo, sendo a instância do Imaginário a fase
de identificação do ID com superego, leia-se, com a expectativa idealizada do ser, o
próprio ego. É o local onde todas as imagens se refletem no ego, denominada por
Lacan como sendo o “estádio do espelho”, restando superadas as ideias de
onipotência (que, na perspectiva edípica, significa a castração pelo nome-do-pai),
dividindo seu resultado em “eu ideal” (momento anterior à introdução ao superego e
26

à castração) e “ideal do eu” (e aqui, posterior a estas). É na instância do Imaginário


que ocorrem os processos de identificação do sujeito com o objeto.
O Simbólico (ou “ordem simbólica”) é onde se desenvolve a própria linguagem
– que, segundo Lacan, é a essência do inconsciente, organizado de forma estrutural
e métrica. É a instância incontrolável, que para definição o professor importou os
conceitos saussurianos de signo, significante e significado. O significante seria uma
“imagem acústica”, onde seria “acoplado” o significado. Nas letras de Lijeane
Santos:
“[...] O signo é organizado sob algumas leis: a imagem acústica é
consciente; o signo é arbitrário quando mencionado, mas não arbitrário na
relação significante, significado; o significante é ligado ao significado tal
como uma folha de papel tem suas duas faces; há uma linearidade entre os
significantes que, dentro de uma comunidade de falantes, são imutáveis
enquanto trazidos por indivíduos (mas não em uma coletividade) e
transmitidos de geração a geração. [...]
Lacan localiza o significante na dimensão do Simbólico, sustentando que
somente a análise pode isolá-lo como tal. “Lacan irá estender
gradativamente sua concepção do significante até que ela passe a designar
não apenas as palavras verbalizadas, mas tudo aquilo que pode se
estruturar segundo o significante, desde o fonema até as locuções
compostas: o significante pode se referir à palavra, à frase, ao fonema e a
tudo o mais que se possa se estruturar sob o mesmo modo que o
significante lingüístico”. (apud 158 JORGE, Marco Antonio Coutinho. Op.
Cit., p. 81.) [...] ” Commented [GdÁ12]: Lijeane Santos pag 72

O Real é o que foge ao discurso. Dentre tantas lições dadas por Lacan, o
Real é a mais complexa delas, conceituada pelo que é impossível de se atingir,
sobretudo pelo discurso, por ser exatamente a sua falta. Como este é construído
pelo Simbólico (linguagem) e pelo Imaginário, seu fundamento é a interpretação, a
perspectiva; o discurso é feito na constante expectativa de que o ouvinte
compreenderá exatamente aquilo que o dito quer transpassar, porém, os signos (os
significantes e os significados) sempre são meras tentativas de se tocar o Real, o
desejo, o não-dizível, não-capturável. A compreensão do indivíduo 1 do signo x
nunca será a mesma do indivíduo 2 sobre o mesmo signo. Para Santos, “não há um
entendimento de forma plena, baseado em um consenso, porque as palavras geram
significados que transcendem a compreensão de quem as usa e de seus
destinatários. A linguagem é, por si, equívoca, sem significantes unívocos.” Commented [GdÁ13]: Lijeane Santos, p 75.
27

Não obstante, devemos ainda nos debruçar sobre os conceitos do Simbólico


para melhor compreensão do discurso. As ideias de metonímia e metáfora são
essenciais para sua construção.
Retomando o que sabemos sobre o signo, a metáfora é a substituição de um
significado pelo outro dentro de uma significação, ou seja, é o acoplar de um
significado num significante cujo significado deveria ser outro que não aquele
“original”. Por outro lado, a metonímia é a ligação de um significante a outro, sempre
nos remetendo e nos revelando o que nos falta, sendo este o campo de ação do
desejo e seu próprio deslizamento, sua capacidade de “metonificar-se” pelas
pulsões na vida do indivíduo analisante. Para Cunha, que toma a aba freudiana do
pulsar ad eternum do desejo:
“A necessidade pode e deve ser satisfeita. A vontade às vezes. O desejo
nunca. É que é impossível satisfazê-lo. Ele sempre demandará outra
satisfação. Ele parece acabar ao ser realizado, mas logo reinventa outra
demanda. Não é possível de ser satisfeito porque é assim a nossa estrutura
psíquica. Nosso destino é querer sempre mais e às vezes nem sabemos o
quê. Paradoxalmente não ter tudo o que desejamos é exatamente o que
nos faz viver. A nossa incompletude e o inexorável vazio são a nossa força
motriz. O desejo é assim, estamos sempre tentando satisfazê-lo. Esse é o
destino.”

O que é a falta? É o próprio desejo. Só se deseja o que não se tem. E é nesta


falta que se registra o próprio Real. “O fato é que, como vimos, os discursos são
feitos para falhar; todos eles falam do impossível”. É pelo Imaginário que nele Commented [GdÁ14]: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?sc
ript=sci_arttext&pid=S1413-03942009000200007 acesso em 10/02
tentamos nos situar, enquanto sujeitos eternamente simbólicos, perseguindo um
sentido que o Real é incapaz de suportar, onde tentamos compulsivamente (sendo
aqui mera redundância usar a palavra “inconscientemente”) captar tal demanda nos
discursos dados.

3.2 O discurso do mestre e o discurso do analista

Passemos, então, a abordar outro tópico essencialíssimo que nos foi passado
por Lacan: o da espécie dos discursos.
Ao todo, são quatro espécies: o discurso do mestre; do analista; da histérica;
e do universitário. Cada um deles possui suas particularidades quanto à sua forma
28

de transmissão e recepção. Nos bastaremos ao estudo dos dois primeiros, que se


demonstraram relevantes ao presente trabalho.
Inicialmente, se adiante que o Direito está intrinsecamente inserido no
discurso do mestre. Tal formato se define, principalmente, pela soberania do falante,
pelo seu totalitarismo, absolutismo, sendo o seu transmissor o único detentor da
verdade. O mestre é aquele que aliena o ouvinte à sua própria ciência. E não
somente o Direito e a lei assim o são, mas também o seu ensino nas faculdades.
Tomemos como grande exemplo o próprio Direito Positivo, como Reale diz, que “não
admite lacunas”. É a intransponibilidade de uma verdade. Commented [GdÁ15]: reale, pag 416 (pdf 447)

É aqui que se verifica mais uma de suas falhas. Claro que, como toda ciência,
existem preceitos mínimos a serem seguidos, de forma que não se perca o objeto
perseguido numa determinada busca por uma “verdade”. Entretanto, retirar do
sujeito a sua capacidade de raciocinar, jogando a ele determinados conceitos
“comprimidos”, é desconsiderar todo o seu sistema interpretativo, sobretudo
inconsciente.
Conforme as próprias palavras de Lacan:
“[...] nenhuma evocação da verdade pode ser feita se não for para indicar
que ela só é acessível por um semi-dizer, que ela não pode ser inteiramente
dita porque, para além de sua metade, não há nada a dizer”. Commented [GdÁ16]: Seminario 17, pag 49

Recordemo-nos de seus textos acerca da instância do Imaginário, por


exemplo, onde o sujeito sempre percebe o outro com uma expectativa de que este
seja igual a ele (estádio do espelho e seus processos de identificação) e, por isso,
recebe o discurso tal como lhe é passado – mas que, tal expectativa, em verdade,
nunca passa disso. Tais palavras se “encaixam” às consequências de um discurso
do mestre; daquele que desconsidera a subjetividade do intérprete.
“Porque a verdade não é toda e não pode ser apreendida tal como
imaginavam os positivistas e os jusnaturalistas, isolando-a ou mistificando-
a, respectivamente, não se pode ignorar que os saberes não são
autônomos nem subsistem sem os outros. A compreensão da
complexidade do objeto epistêmico é a primeira aproximação que se pode
fazer com seu próprio conceito, porque não há como fazer uma simples
descrição do objeto com apenas uma ou, no máximo, duas versões dele,
como pretendeu a Filosofia da Consciência. O objeto é múltiplo, complexo,
com sua apreensão determinada não somente pelo que ele é em si, mas
por tudo aquilo que ele não é, além de ser condicionado pelo sujeito do
conhecimento e pelo momento histórico vivido.” Commented [GdÁ17]: Lijeane Santos, pag 19
29

Ao mesmo passo, não podemos esquecer que não se calca apenas na


criação de angústias no sujeito pelas duras palavras da lei que se fala em falha. O
prejuízo pelo mau uso (ou ainda, pelo uso inconsequente) dos signos é tanto da lei
quanto do sujeito que por ela é atingido.
A lei também possui uma expectativa de compreensão, que inevitavelmente
será frustrada ao atingir determinada porcentagem da população. Infelizmente, neste
ponto, não há a desenvoltura-chave de que “os desiguais serão tratados na medida
de sua desigualdade”, já que, como princípio constitucional, fala-se em norma de
abrangência geral – o que, de outra forma, não poderia ser.
Como discurso do mestre, na constante tentativa de moldar o homem e seus
desejos em prol do bem-estar coletivo, da convivência e da “paz mundial”, a lei se
esquece que a falta persiste e desliza no sujeito.
Porém, falamos da lei, somente, e do Direito qual conhecemos, em sua forma
acadêmica e epistêmica. E quanto à justiça?
A justiça, também se adiante, se situa no discurso do analista. Este é o
avesso do discurso do mestre.
Nesta forma, a subjetividade do sujeito é considerada, e não somente isso,
mas também o próprio analista (discursor) sabe que não sabe todo o saber. É
somente nesta posição que é possível desvendar o que corre por baixo dos atos
falhos, das faltas no discurso, e por consequência, encontrar o verdadeiro sentido
das coisas. Aqui, a intenção do discurso do analista é fazer com que o desejo do
paciente seja exposto através dos vazios de seu próprio discurso – literalmente,
como um discurso carente de significado.
“Essa forma de dizer, que chamamos de uma arte do bem dizer, não
resguarda uma função estilística que se encerra em si própria, ela
conclama ao paciente a produção de seu próprio saber, não ficando este
refém do significado do outro. Para tanto, o analista nessa formação
discursiva deve ocupar semblante de a, vestígio do Real que o Simbólico
não dá conta de representar, objeto causa do desejo [...].” Commented [GdÁ18]: http://www.scielo.br/pdf/pusp/v25n1/
08.pdf pag 4

Contudo, existem observações a serem feitas. A definição ou conceito de


justiça clama por uma mínima delineação. Veremos, ainda, que suas linhas podem
se convergir à ótica psicanalítica.
30

4 A SIMBOLOGIA DA JUSTIÇA

Após todas as lições de Lacan apreendidas, utilizemos do Imaginário,


compulsando a imagem da deusa Iustitia, divindade romana que representa a
justiça, visando atingir o seu Simbólico, (sempre) tentando ir de encontro ao Real,
adequando-o à realidade (ao cenário) tal qual o percebemos no Direito
contemporâneo.
"Por ser a Justiça um alvo a ser atingido, surgiu a noção do Direito como
algo que traça uma direção, como comportamento enquanto dirigido para o
ideal personalizado em poderosa divindade. Nessa intuição, o elemento
mítico se entrelaça, de maneira prodigiosa, com a experiência humana
empírica." Commented [GdÁ19]: reale, pag 503 (ou 534 do pdf)

Consideremos os seus três elementos essenciais, a seguir.

4.1 A balança

Em nossas vidas cotidianas, vamos de encontro à justiça quando verificamos


que há equilíbrio entre a causa e o efeito imediatamente percebidos. Quando,
lançando à balança simbólica tão mundial e historicamente conhecida, seus dois
lados se alinham, restando a igualdade.
Deve-se dar destaque aos termos “equilíbrio” e “igualdade”. Conforme
Adriano Ferreira, abrindo de forma paralela a compreensão da forma grega da
deusa - Thémis:
“No caso grego, a primeira palavra surgida para designar o direito seria
thémistes, ou aquilo ordenado por Thémis, inspirada por Zeus. Essa palavra
continuaria a ser usada transmitindo a ideia de regra imperativa (direito
objetivo). Depois, a palavra díkaion, aquilo proferido por Diké, surgiria para
designar o direito Real, derivado dos julgamentos. Por fim, a palavra popular
que designava o direito grego era íson, significando igualdade ou equilíbrio.
Sua origem é o equilíbrio entre os pratos da balança, indicativo do momento
em que Diké poderia proferir sua decisão.” Commented [GdÁ20]: https://www.ebradi.com.br/noticias/os-
simbolos-e-as-palavras-do-direito/262 acesso em 11/02/2018
Falamos de causa e efeito, porém, existem outros binômios que poderiam ser
suscitados, como abstrato e concreto, o bem e o mal, as próprias pulsões de vida e
de morte freudianas, que igualmente exprimem o que se compreende por justiça.
Reale, por sua vez, contribui com o termo “harmonia aritmética”. Commented [GdÁ21]: pag 502 (533 do pdf)
31

4.2 A cegueira

Não é necessário que se indiquem as inúmeras citações e autores que a


ligam à imparcialidade, à premissa de que a cegueira traria efeito positivo (sobretudo
se nos lembrarmos do dito popular de que “quem vê ‘cara’ não vê coração”); é o
berço do sentimento de que somos todos iguais perante a lei – ou pelo menos,
deveria ser. Deveríamos ser.
E aqui se verifica um ponto importante. A cegueira que vem tomando (e que,
no presente trabalho, pretende-se estampar) o Direito, a lei e a própria possibilidade
de se fazer justiça, no sentido de que esta tem deixado de enxergar o que, muitas
vezes, precisa ser visto: a subjetividade. Lijeane Santos, nos remetendo aos totens
estudados por Freud, diz que sua premissa era a de que “‘todos têm o mesmo
desejo do que eu’ e não respeitar esse fato é voltar ao tempo do pai da horda”. Para
Reale:
“Nenhum sociólogo, ao voltar sua atenção para o fenômeno do Direito, tem
a preocupação de pôr normas ou de interpretar as que vigoraram em uma
coletividade, tendo por fim a sua aplicação. O jurista, ao contrário, somente
encontra plenitude com sua visão da realidade social, na medida e
enquanto ela alberga regras, normas, preceitos, imperativos, o que tudo
demonstra quanto deve andar informado o jurista das investigações da
História e da Sociologia , muito embora sem se subordinar aos seus
‘campos de pesquisa’.” Commented [GdÁ22]: Reale, Pag 76 (pdf 107)

A sobrevida da justiça se demonstra nos crescentes números de escândalos


de corrupção nos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, bem como na
civilização do país, são apenas um reflexo do que vem ocorrendo mentalmente às
pessoas que caminham no mundo todo, de forma venenosa e sorrateira (o que soa
verossímil até mesmo à pulsão de morte). Esta justiça cega é falha justamente
porque se aplica a todos indistintamente, na vã esperança de que todos sejamos
intima e inconscientemente idênticos uns aos outros. A venda se perdeu da
imparcialidade e caiu à ignorância da individualidade e pluralidade.
Aliás, outro aspecto que se observa é a ironia no cenário que se pretende na
atual conjuntura. Como poderia uma justiça, portadora de um poder insuperável e
supremo, do discurso do mestre, única dona da verdade e, portanto, distante e
superior ao “restante” do povo, pregar a igualdade? É gritante a posição de
32

castrador que toma o Estado numa simples e corriqueira frase como “nos
submetemos ao Poder Estatal”. Nesta circunstância, o símbolo acaba por se perder
à margem dos olhos inúteis, teimosos, podendo-se falar até em narcísicos,
enfeitiçados pelo eco de sua própria soberania e capacidade de poder julgar, tal
como um deus.
Lacan aduz:
“Tomemos a dominante do discurso do mestre, cujo lugar é ocupado por
S1. Se a chamássemos de a lei, faríamos algo que tem todo seu valor
subjetivo e que não deixaria de abrir a porta para um certo número de
observações interessantes. É certo, por exemplo, que a lei - entendamos a
lei como lei articulada, a própria lei em cujos muros encontramos abrigo,
essa lei que constitui o direito - não deve certamente ser considerada
homônima do que pode ser enunciado em outro lugar como justiça. Pelo
contrário, a ambiguidade, a roupagem que essa lei recebe ao se autorizar
na justiça é, precisamente, um ponto em que nosso discurso talvez possa
indicar melhor onde estão os verdadeiros propulsores, quero dizer,
aqueles que permitem a ambiguidade e fazem com que a lei continue
sendo algo que está, primeiramente e sobretudo, inscrito na estrutura. Não
há mil maneiras de fazer leis - estejam ou não animadas pelas boas
intenções e a inspiração da justiça - porque há, talvez, leis de estrutura
que fazem com que a lei seja sempre a lei situada nesse lugar que chamo
de dominante no discurso do mestre.” Commented [GdÁ23]: Lacan, Jaques, 1901-1981 O seminário,
Livro 17: o avesso da psicanálise 1969-1970 f Jacques Lacan ; texto
estabelecido por Jacques-Alain Miller ; [versão brasileira de Ari
Assim, a falácia da lei (desta que falamos em corruptível ao ego, ao poder) é Roliman ; consultor, Antonio Quinet]. -Rio de Janeiro : Jorge Zahar
Ed., 1992. (O campo freudiano no Brasil) Tradução de: Le
seminaire.re de Jacques Lacan, livre XVII : 11envers de la
a de que esta age em nome da justiça. O Estado baseado em dominação, em psychanalyse. Bibliografia. Anexos ISBN 85-7110-235-X
estrutura, transpõe sua ação repressora, impeditiva de gozo do sujeito. pag 41!!

De toda sorte, não há objeções quanto à inevitabilidade – tanto da castração,


quanto da necessidade de uma norma que regule o gozo, instituída através do poder
estatal.
A venda desempenha aqui o que se remete à ideia da igualdade de
percepção do discurso. Santos acresce:
“Uma verdade só é uma verdade em relação a uma determinada realidade.
Não há autonomia na verdade e os exemplos cotidianos se multiplicam para
provar tal afirmação. [...] No caso do Direito, vendar quer dizer, também,
perder as rédeas que levam ao conhecimento crítico.” Commented [GdÁ24]: Lijeane, pag 23

A verdade do mestre, absoluta, retém para si o saber, o domínio de conceitos


preconceituados que devem ser aplicados e reproduzidos de forma indistinta e
desenfreada à humanidade, deixando de observar a relatividade inerente à
apreensão dos signos.
33

4.3 A espada

No estudo da simbologia da espada verificamos seu caráter dominador,


sobretudo de ação, sendo esta uma palavra-chave para seu significado. Carl C.
Jung, outro ilustríssimo nome dentro dos tecelões da psicanálise, narra em “O
Homem e seus Símbolos” que a “lança e a espada são armas que simbolizam a
função cortante e penetrante do intelecto”, da razão. Commented [GdÁ25]: Pag 292

As dos cavaleiros e guerreiros antigos, como muito conhecemos das histórias


e estórias d’outro tempo, sempre eram retiradas da bainha ante a sua necessidade
frente a uma ameaça; a algo que tenha valor negativo, que represente algum
possível prejuízo a quem serviam.
Dentro da vida psicanalítica, sabe-se que as neuroses são repetições,
padrões inscritos no ser desejante, de forma incessante. É o retorno do recalcado
que prejudica o desenvolvimento do indivíduo, sobretudo na superação de seus
traumas, no progresso em sua busca por uma vida melhor, podendo até mesmo
fazer com que o ser faça o caminho totalmente inverso; tudo isso, numa busca
distorcida por um desejo que havia sido expulso da consciência e se deformou nas
metonímias e metáforas do Simbólico.
O problema que se enfrenta na simbologia da espada é a questão do poder,
porque afinal, é dela que nascem as ameaças contra o outro; é a força que se
exerce em nome de uma suposta justiça. Porém, como exposto anteriormente,
desacredita-se no senso de igualdade à medida em que o agente que deveria
empregá-la não se encontra dentro do próprio contexto que pretende inserir.
A espada que empodera quem a empunha é a da repressão; a do discurso do
mestre, que dita as leis, que impõe verdades. Não obstante, referido símbolo ainda
nos remeteria ao falo, costumeiramente confundido com o órgão genital masculino
simplesmente, mas que representa, essencialmente, a castração no complexo
Édipo. Não foi da fenomenologia das histéricas que brotaram as ideias primeiras de
Freud, por conta de suas complicações quanto à castração?
Dissertam Ferreira, Silva e Carrijo sobre a releitura lacaniana do tema:
34

“[...] Em outros seminários, a castração simbólica seria representada pelo


Φ (fi maiúsculo) – o Phallus, que seria o organizador da rede linguística
para o sujeito da neurose; sendo que o - φ (menos fi, minúsculo) seria
reservado à castração imaginária, que busca ser preenchida pelas chama-
das “insígnias fálicas” do poder, da aparência, etc. [...]” Commented [GdÁ26]: http://www.scielo.br/pdf/pusp/v25n1/
08.pdf - pag 3
E Lacan ensina, mencionando o triângulo edípico (pai)-falo-mãe-criança:
“Ora, se trocas afetivas, imaginárias, se estabelecem entre a mãe e a
criança em torno da falta imaginária do falo, o que é seu elemento
essencial da coaptação intersubjetiva, o pai, na dialética freudiana, tem o
seu, é tudo, ele não o troca nem o dá. Não há circulação alguma. O pai
não tem função alguma no trio, exceto a de representar o portador, o
detentor do falo - um ponto, é tudo.” Commented [GdÁ27]: https://joaocamillopenna.files.wordpre
ss.com/2013/10/lacan-o-seminario-livro-3-as-psicoses.pdf

Assim, considerando que a lei e o Estado ocupam simbolicamente o pai, Lacan, Sem 3 – pag 358

temos estampada a urgência da ressignificação da ação da justiça por estes meios.


É no discurso do mestre que se encontra o que mencionamos acerca do “pai
inconsciente da civilização”, usando seu falo – leia-se, a espada da justiça – numa
intenção de auto empoderamento, de possuir a verdade, de castrar o sujeito do
Direito e o sujeito da psicanálise.
Retornando aos cavaleiros, veremos que a espada também traz consigo a
luta; a guerra; a vontade de mudança; é uma intenção de quebra, de cindir algo; é a
própria ação da justiça e sua lâmina – cortante. E a cisão, pelo viés dos tratamentos
psicanalíticos, se encontra aqui: a quebra das repetições e das neuroses, buscando
ressignificá-las (retirar o afeto destas). É a função cortante do intelecto, conforme
mencionou Jung, no sentido de aplicar a razão sobre a pulsão.
E é somente através da quebra do padrão neurótico é que se pode atingir o
equilíbrio – um dos principais fundamentos da justiça – do indivíduo.
35

5 O SENTIDO DA LEI

Mas então, como se poderia fazer justiça? Questionemos ainda, igualmente


pertinente: qual o objetivo da psicanálise clínica – e do analista?

5.1 O discurso da justiça

É no rompimento – na cisão causada pela espada simbólica, do falo da


justiça, em sua ação fiel – que age o que Lacan denomina de “ato analítico” em seu
seminário 15 (que, inclusive, carrega o termo como título), relacionando a palavra e
o corte. O embate se dá justamente dentro da estilística do discurso do analista
através da manipulação da letra. Sobre esta última, sintetiza Sônia Vicente: Commented [GdÁ28]: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?sc
ript=sci_arttext&pid=S1519-94792004000100010 acesso em
“[...] no discurso analítico, o diferencial é o desejo do analista como causa, 10/02/18
o que nos permite dizer que o inconsciente se produz nos tropeços do
standard, na sua falha, quando menos se espera. É assim que, no
imperativo ético de dizer tudo, produz-se a hiância que situa a experiência
analítica no registro do ato. Dessa forma, a análise acontece passando do
standard, enquanto necessário, ao ato analítico, enquanto contingente.”

Se o Real é o vazio, o furo e a falha, é justamente sobre este aspecto que


deve agir a análise. A intenção do método da livre associação é, ao final, a de fazer
com que o indivíduo encare seus desejos nos interditos e enfrente as significações
negativas que estão a eles atribuídos. É um verdadeiro convite à responsabilização
de suas pulsões.
“O analista faz a convocação, convoca a ação do uso da palavra, para
poder operar conforme a letra de gozo, o singular de cada sujeito. O lugar
do analista como operante na economia de gozo, na economia libidinal,
convoca-o a interpretar um sujeito para que ele possa comparecer
(parecer) pela fala, (falasser), pelo dizer, estabelecendo uma parada num
ser cuja consistência está para-ser. Dito melhor, o corte, a sessão curta, o
silêncio, são uma convocatória (convocação - oratória) à modalidade de
gozo libidinal que nada mais é que uma manifestação sintomática de uma
estrutura.” Commented [GdÁ29]: http://www.scielo.br/pdf/pusp/v25n1/
08.pdf pag 4

Assim, quando a espada é empunhada no discurso do analista, a lâmina que


cinge o discurso do analisante simboliza a arte do bem dizer; é o correto uso das
palavras que objetivam, sempre, os nós que originam as angústias no ser, deixando
de recalcá-las, elaborando-as à cura da neurose.
36

Nesta posição, a espada não exerce poder; esta se localiza como objeto a, o
verdadeiro modus operandi do analista.
Por força de todo o exposto, tecemos algumas conclusões.
Muito embora se lute contra o termo “verdade”, é inútil buscar qualquer
sinônimo que se desvista dos mesmos significantes (por serem, estes, dependentes
de significados que são inerentes exclusivamente ao leitor). Porém, tenta se seguir à
risca o que se busca pelo emprego da “verdadeira justiça” – o equilíbrio e a
igualdade, termos que, anteriormente no presente trabalho, apresentaram-se como
centrais à noção de justiça.
Considerando a espada como o ato analítico, o ponto focal do discurso do
analista, esta não poderia se desvencilhar do que se apresenta como “símbolo
fálico”; igualmente, não poderia o Estado desmembrar-se da metáfora paterna que
se acopla inconscientemente em cada um dos homens – e tampouco poderia; a
ideia de “controle em prol do bem-estar coletivo” é inerente à integração do homem
à cultura e à família (superego freudiano). Não se discute, aqui, a questão de uma
abolição paterna, mas sim como esta figura poderia ser mais proveitosa, como a
relação entre “pai e filhos” poderia ser mais frutífera, conduzindo os indivíduos à um
real equilíbrio. Reale, mencionando Hans Kelsen (autor da conhecida Teoria Pura do
Direito), narra:
"[...] O Direito é visto como um sistema escalonado e gradativo de normas,
as quais atribuem sentido objetivo aos atos de vontade. Elas se apoiam
umas nas outras, formando um todo coerente: recebe umas das outras a
sua vigência (validade), todas dependendo de uma norma fundamental,
suporte lógico da integralidade do sistema. As normas jurídicas não são
comandos ou imperativos, no sentido psicológico do termo, como se atrás
de cada preceito houvesse alguém a dar ordens, mas sim, enunciados
lógicos que se situam no plano do dever ser." Commented [GdÁ30]: Reale, pag 457 (pdf 488)

Logo, o discurso do Direito e da lei devem, em verdade, calcar-se numa


estilística diferente da que se apresenta como a do mestre. Esta, como já exposto,
apresenta-se como auto empoderadora; a do analista, como “farejadora” do Real.
A cegueira, por sua vez, deve objetivar o próprio ego, atingindo a quebra do
narcisismo masoquista (do imperialismo, do absolutismo); um analista que não se
desfaz do próprio ego durante a experiência clínica acaba se retendo como
semblante do objeto a no discurso. E é justamente este aspecto que se pode
37

peneirar da lei que ostenta o discurso do mestre, quando esta se auto afirma através
do poder: nesta forma, retém-se o objeto a - o desejo (do falo, de lugar do pai).
“É sempre bom iniciar tal elucidação partindo de um ponto bem conhecido,
mas nem sempre verificável: o de que o Sujeito Suposto Saber é antes de
tudo um lugar. O bom analista reconhece que esse é um lugar transitório e
que ser semblante de a só torna-se possível quando o analista desloca-se
dessa posição, dada pelo analisando na transferência, em um movimento
de ‘des-ser’, que por sua vez é inevitável, ficando-lhe apenas o lugar de
resto. Como o analista ocupa um papel nessa passagem na fantasia do
analisando, se seu narcisismo não tiver ainda sido encarado, o analista
pode custar a sair desse lugar, afinal, o ‘resto’ nem sempre cheira bem.

O processo de queda do sujeito suposto saber – o analista – seria o


equivalente a uma castração simbólica para o paciente, possibilitando o
acesso ao resto da operação da transferência – lugar do desejo (a).
Simbolicamente, a castração corresponde à queda do pai e, assim,
permite ao analisante ultrapassá-lo.” Commented [GdÁ31]: http://www.scielo.br/pdf/pusp/v25n1/
08.pdf - pag 3

Não se fale aqui em ultrapassar a lei, mas sim de se encontrar em patamar de


igualdade para com ela, para que a balança mantenha seus pratos alinhados. Da
mesma forma, não se fala em anular a castração (e consequentemente a insígnia
fálica), mormente porque não se vislumbra tal possibilidade na psique. A castração
ocorre noutra instância, na da infância, que precede (muito) a introdução do
indivíduo à noção de cultura, por exemplo, que também castra. Assim, não se
discute a possibilidade de anarquia, noutro exemplo.
Se o ideal perseguido pela justiça é o equilíbrio e a igualdade, não se pode
inferir que, um dia, a completa harmonia se revelará à humanidade. Superadas as
ingenuidades inerentes à utopia, reafirma-se a necessidade da lei e do Direito, posto
que, se o contrário fosse, cair-se-ia na inutilidade das normas; porém, para que as
mesmas normas se aproximem mais da necessidade humana, é necessário que se
reforme sua metodologia.
Reforma, no sentido de que os valores da justiça devem ser mantidos em
fidelidade pelo Estado. Tanto na elaboração das regras pelos princípios
Constitucionais, pelos Direitos Humanos, quanto pela sua aplicação, ensino, manejo,
sempre em estrita atenção à individualidade. Para Santos: Commented [GdÁ32]: Lijeane, pag 100

“Talvez a justiça, extraída desta implicação do sujeito com sua própria


verdade, esteja na possibilidade de se tornar ele responsável eticamente
pelas leis de sua comunidade. A justiça seria, então, a diminuição da
sujeição para a ascensão da responsabilidade ou, dito de outra forma, a
menor incidência do discurso do mestre e a ênfase de um discurso do
analista. Justiça é a possibilidade concreta de se questionar as verdades,
38

ao invés de simplesmente aceitá-las. A transformação de um discurso


imposto para um discurso construído por subjetividades respeitadas.”

E prossegue que “é a tentativa de sobrepor a responsabilidade ao arbítrio”. Commented [GdÁ33]: Pag 102!

Que “mesmo após a difusão da Psicanálise pelo mundo, o Direito, em larga escala,
continua a ignorá-la apostando, ainda, no tecnicismo inerente à interpretação.” Commented [GdÁ34]: Pag 103

É aqui que deve surgir o “verdadeiro” símbolo da balança, no sentido de que:


a verdade, esta só pode ser dita pela metade. É equilíbrio entre a norma, da lei, e da
interpretação que a ela será dada, pela coletividade e pelo individual; entre o dito e o
recebido; entre a verdade e a não-verdade; é a rendição à noção de que a
linguagem, por portar o Simbólico, jamais atinge o Real, posto que este é a própria
falha no discurso; enquanto isto, o Direito, de forma simétrica, possui suas lacunas.
Este é o binômio central tratado pelo discurso do analista enquanto espada da
justiça.
“[...] esse nó do semi-dizer, indicando o que dele corresponde
propriamente à interpretação, ao que articulei sobre a enunciação sem
enunciado, sobre o enunciado com reserva da enunciação. Indiquei que
estavam aí os pontos axiais, de equilíbrio, os eixos de gravidade próprios
da interpretação, por onde nossa contribuição deve renovar
profundamente o que corresponde à verdade.” Commented [GdÁ35]: Lacan Seminario 17 – pag 49

E não somente admitir a falha e a lacuna, mas também compreendê-la como


intrínseca e estruturante do sujeito (BRAGA, p. 7) para quem o Direito fala; como
evidência de que o Real – o desejo – está ali, enveredado nos espaços do vazio.
Ainda, apreender que, com o recalque (o impedimento ao gozo, o não), fala-se em
metonímia, processo dos significantes, e metáfora, processo dos significados entre
os significantes; a lacuna recalcada do presente momento será, inevitavelmente, a
lacuna do próximo instante.
Assim, o desejo vive por metamorfosear-se no ser; e tal qual deve ser o
Direito, justamente por ser constantemente construído e capaz de tais feitos. O
equilíbrio será atingido, portanto, no ponto onde o discurso do Direito forma
mandorla (forma que se delineia no encontro entre as bordas de dois círculos
espelhados) com o indivíduo.

5.2 O Direito e a sublimação


39

O Simbólico não tampona a falta – não compreende o Real. O Real é o


indizível, o impenetrável.
Da mesma forma, as lacunas dificilmente abandonarão a lei, por mais que
esta se escreva incessantemente; e, como já se sabe: o Real também é aquilo que
não se cessa, que não para de se inscrever no sujeito, que sempre falha em
capturar. Assim, tal qual o furo no discurso é o Real, as lacunas do Direito ocupam a
mesma fórmula.
Consideremos a lei como a própria letra escriva, grafada, estruturada. Um
acúmulo de letras que deve(riam) transmitir ao leitor certo sentido de interpretação,
orientando-o a um ideal que deixa de comportar sua subjetividade. Este ideal, tendo
em vista toda a ressignificação do Direito, em estrita observação aos símbolos da
justiça fundamentados nos capítulos anteriores, se se considerassem que o saber
(toda a verdade) sempre foge à interpretação completa e, por conseguinte, toda a
constituição psíquica do homo sapiens sapiens, poder-se-ia reorientar este discurso
do mestre que vem reproduzindo o Estado na contemporaneidade, de forma que
este possa transformar-se num discurso do analista.
Sabe-se que o Direito é o que surge do sentido da lei – desta como discurso.
E qual poderia ser o sentido do discurso do analista, que não o de busca ao furo – à
lacuna?
Se o Direito é capaz de se extrair das decisões promulgadas diariamente nos
processos judiciais, formando o que denominamos de “jurisprudências” (“[...] A
qualquer momento quando faltar base a alguma decisão, logo podemos recorrer a
outro campo para justificar a prudência senão a jurisprudência. [...]”); que, com Commented [GdÁ36]: celso garcia, p.4

frequência, enunciados e súmulas são editados pelos Egrégios Tribunais; das


diversas modalidades de portarias que podem emitir os menores órgãos da
administração pública, igualmente normas escritas, portanto, fontes do Direito,
estamos diante de inscrições que não se cessam justamente porque toda a
infinidade de circunstâncias possíveis no curso da vida do homem e da sociedade
escapa à lei. E não é essa constante e fugidia inscrição o próprio Real?
Assim, quando a lei passa a portar o discurso do analista, se o sentido da lei é
o Direito, temos que o Direito é, analogicamente, o próprio ato analítico.
40

“[...] O ato analítico deveria permitir que o sujeito, após se haver engajado
na via do seu discurso, pudesse apropriar-se daquele elemento lacunar à
sua história (concebida por Lacan enquanto homóloga a uma cadeia
discursiva). Em linhas gerais, aquilo que o psicanalista francês designou a
palavra plena seria, pois, a materialização desse instante fecundo no qual
o sujeito viria a assumir para si, como efeito do dispositivo analítico,
aquela parte do seu discurso que se lhe apresentava sempre de modo
falhado.” Commented [GdÁ37]: http://www.scielo.br/pdf/pusp/v26n3/
1678-5177-pusp-26-03-00423.pdf pag 3 acesso em 11/02/18

É instigar o sujeito a tomar controle de seus desejos; de tomá-los à


consciência e de ressignificá-los. O Direito, tal qual os processos da metonímia, tem
a capacidade de deslizar pelo ordenamento jurídico, o que pode ser uma vital
ferramenta na perseguição contra as angústias no sujeito – e na comunidade.
Lijeane Santos acrescenta: “A busca pela segurança jurídica continua, mas
não ignorando a insegurança que é nela inerente”. Assim, a justiça se faria pelo Commented [GdÁ38]: pag 108

completo equilíbrio entre o Estado e o(s) sujeito(s) que a ele se submete(m), no


sentido do Direito produzido pela lei redigida com a consciência do semi-dizer. O
que se propõe, em outras palavras, é a constante construção do Direito, seja através
das normas (lei) ou outra, de forma a alcançar a justiça, ao menos, num pequeno
momento.
Neste momento, onde se escancara ao sujeito pulsional a sua falha – a sua
falta -, a psicanálise lança uma luz, uma porta de emergência ao analisante: a
sublimação da pulsão.
Lacan, em seu seminário 7, em releitura de Freud, narra que “a miragem do
eu e a formação de um ideal” é o que se caracteriza pela libido objetal, esta que se Commented [GdÁ39]: pag 124

dirige à própria imagem e, portanto, narcísica e imaginária; a sublimação seria a


satisfação dessa pulsão, porém, noutro alvo que não fosse aquele primeiro (e,
portanto, cujo gozo é impedido pelo superego), mas sim em outro que acrescente à
comunidade, quando há no sujeito a queda do objeto idealizado (mediante a perda
do objeto a, na análise). Freud dá como exemplos as artes, a construção científica,
contribuições éticas e morais. “Quando, então, uma civilização quer se perpetuar
(não recair num mundo onde só as pulsões teriam o direito de reger), ela é forçada a
recalcá-las, reprimi-las ou, ao menos, canalizá-las.” E prossegue: Commented [GdÁ40]: Eugene enriquez pag 16

“É necessário [...] que as pulsões agressivas, que as pulsões de morte, não


se derramem no seio da comunidade (por isso o crime é constantemente
sancionado) e que elas possam ser canalizadas seja no trabalho produtivo
(a concorrência econômica), seja nas guerras organizadas contra os
41

inimigos exteriores. Uma civilização, uma cultura, necessita de paz para


poder prosperar.” Commented [GdÁ41]: eugene enriquez pag 16

Não é a sublimação a única saída à perda do objeto libidinal; a que mais


abordamos, no presente trabalho, foi o recalque, que é a expulsão do desejo da
consciência à inconsciência, posteriormente sendo traduzidas pelo sujeito nos
sintomas, o que se cita como mero exemplo de valoração negativa (e, portanto,
prejudicial ao ser).
Entretanto, se o equilíbrio fosse o princípio norteador do ordenamento, os
danos de uma figura paterna castradora que exibe o Estado à sociedade desejante
certamente seriam diluídos, à medida em que este, portador do discurso do analista,
consideraria como “verdade” a “desigualdade” inerente ao inconsciente de cada um
dos homens, abandonando a falácia da homogeneidade da língua e carregando,
agora, a premissa de que “os desiguais serão tratados na medida de sua
desigualdade”. É com a sublimação, a canalização da pulsão, que se veria
empunhada a bandeira da evolução cultural e sociológica.

5.3 A análise

Considerando as teorias explicitadas e interdisciplinadas ao longo do presente


trabalho, esclarece-se que, o que se pretende, em verdade, é psicanalisar uma
possível resposta coerente à simbolização da justiça que possa dar o Estado
enquanto portador do nome-do-pai, perante a sociedade que ao seu poder se
submete.
Foram, ainda, amplamente demonstradas a impossibilidades de um indivíduo
que não se apoie na castração para que haja um distanciamento das pulsões com
relação à consciência. A paz coletiva, tão idealizada, seria inalcançável num grupo
onde não se verificasse, por exemplo, a interdição do incesto e a figura do pai.
A lei que hoje se escreve, sem dúvidas, origina-se daí. “O Direito surge como
uma exigência da civilização, ou seja, o desenvolvimento da civilização impõe
restrições às pulsões e ao gozo, e repousa sobre a supressão dos instintos.” Commented [GdÁ42]: http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/h
andle/1884/2272/Tese_Dr.%20Rodrigo%20da%20Cunha.pdf pag 35
42

Na obra “A Lei – uma abordagem a partir da leitura cruzada entre Direito e


Psicanálise" de Philippi, corroborando com o exposto, lê-se:
“Com efeito, argumenta Kant, a liberdade que faculta ao homem ser um
legislador no reino dos fins o torna, igualmente, um animal indeterminado,
que pode fazer qualquer coisa. Essa ausência de limite — uma
característica marcante da espécie humana — força, portanto, os indivíduos
a submeterem sua liberdade não apenas às leis morais que os obrigam em
consciência; mas, também, a uma legislação exterior, cuja finalidade
consiste justamente em viabilizar a coexistência dos arbítrios; pois apenas
onde a liberdade é limitada, o ser humano pode ser realmente livre.
Certamente, acrescenta o autor, não se deve tomar da experiência que os
homens possuem, por máxima, a violência e a crueldade que os levam a
fazer a guerra antes da organização de um poder exterior.” Commented [GdÁ43]: pag 226 e 227 (do arquivo pdf são as
folhas 237/238)

E como pode, então, o Direito se valer da psicanálise?


As mudanças poderiam ser iniciadas, como defende Lijeane Santos, na
própria forma de lecionar o Direito nas universidades, abandonando o discurso do
mestre, deixando aberta a porta da verdade inerente à subjetividade do aluno, ao
seu próprio questionamento, restando o Direito sujeito, sobretudo, ao pensamento
crítico. Um “engessamento” de verdades, considerando tudo o que a psicanálise nos
expõe acerca da mutabilidade dos desejos, da libido, das pulsões, dos símbolos,
não deixam dúvidas de que o trabalho deverá ser incessantemente necessário e
revisto. Por que não, então, democratizar a construção do Direito através das
pessoas que, recorrendo à graduação, podem representar a “esperança” da justiça
futura?
Relembremos a infindável inscrição do Real (do desejo) na linguagem e nos
discursos, conforme nos ensinou Lacan. Não seria possível, através da difusão da
construção do Direito pelos seus operadores, tentar suprir os furos do Direito?
"[...] O que acontece, porém, é que, por outro lado, jamais o dever ser
poderá converter-se totalmente em ser. Para que haja dever ser, é
necessário que o ser jamais o esgote totalmente. É por isso que afirmamos
haver entre ser e dever ser um nexo de implicação e polaridade, o que torna
compreensível a complementariedade dialética própria do Direito." (REALE,
p. 470) Commented [GdÁ44]: (ou 501 do pdf)

As normas, tal qual o Simbólico, são compostas pela palavra, pela letra; não
devemos, ainda, esquecer do deslizar do desejo pelos significantes. A questão da
meia-verdade abordada pelo autor deve ser considerada quando de suas edições.
Pelo Simbólico ser frustrado e o Real intocável, o que se poderia fisgar do
43

emaranhado da interpretação e prevalecer como valores dentro da dialética Estado-


indivíduo?
Argumentamos no presente sobre os valores simbólicos trazidos pela
imagem da justiça. Relacionamos tais valores aos discursos lacanianos do mestre e
do analista, comparando-os em seus desenrolares: a destituição da superioridade
para que se tome a igualdade, no sentido de dar ao sujeito a produção de sua
verdade e seu próprio caminho rumo ao equilíbrio. Por que não, então, fomentar um
valor intrinsecamente humano (e, comportando a subjetividade advinda da
interpretação do Real) em cada um daqueles que hoje, em nossa sociedade,
operam o Direito? Philippi, diz, analogicamente, referenciando a Escola Sociológica:
“[...] reconhece na multiplicidade da expressão da vontade dos grupos
sociais o sujeito da lei, pode-se dizer que esta, muito embora tenha
estimulado uma resposta mais pluralista do direito para a pergunta sobre o
autor da lei, mantém, contudo, operante a remissão ao Um — ou seja, o
grupo que cria espontaneamente a lei! Assim, esclarece Gérard Timsit, ‘... a
Escola Sociológica, nomeando a Lei de Todos, não abandona a ideia que a
Lei em sua estrutura é apenas a Lei de um só.’”

A desconstrução do estruturalismo do Direito, tal como qualquer movimento


de rompimento de uma zona de conforto, é incômoda e soa destrutiva. Porém, com
Freud em “Mal-Estar na Civilização”, podemos ver a esperança que deposita o autor,
em suas entrelinhas, na pulsão de vida, como sendo esta a responsável pelo sentido
de integração, de unidade, de reconhecimento com o outro e sentimento de amor
para com este. Em suas palavras:
“A analogia entre o processo civilizatório e o caminho do desenvolvimento
individual é passível de ser ampliada sob um aspecto importante. Pode-se
afirmar que também a comunidade desenvolve um superego sob cuja
influência se produz a evolução cultural. [...] o pai primevo não atingiu a
divindade senão muito tempo depois de ter encontrado a morte pela
violência.” Commented [GdÁ45]: https://cei1011.files.wordpress.com/20
10/04/freud_o_mal_estar_na_civilizacao.pdf pag 47

E assim, digamos, o sinthoma tem persistido até os dias atuais; na posição de


Estado-tirano, o indivíduo (sujeito) inveja seu poder (o falo) e tentará toma-lo, a favor
da pulsão de morte, o que facilmente o leva, por exemplo, à transgressão das
normas. Através da ressignificação da metáfora paterna do Estado, deixando este
de ostentar um caráter nocivo, ameaçador, surdo à subjetividade – possibilitamos
que os operadores do Direito criem o Direito dentro de suas lacunas.
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"[...] a leitura cruzada entre direito e psicanálise [...], aponta um percurso


diferente, uma outra possibilidade de pensar o laço social — e os seus
limites simbólicos — que contempla a especificidade dos sujeitos
inconscientes, não para mantê-los em estado de subserviência ao Pai e à
Lei posta em seu nome, mas para que eles possam resgatar o valor da
sublimação — uma forma peculiar de satisfação na qual o que está em jogo
não é o objeto, enquanto um bem capaz de satisfazer o desejo, mas a
própria Coisa, como signo do vazio estrutural a partir do qual é possível
pensar a criação." Commented [GdÁ46]: philippi, pag 306 (pdf 317)

Não somente os formandos em Direito poderiam passar a carregar o ideal de


igualdade no longo e denso processo que se sugere de ressignificação da justiça
como símbolo à sociedade. Todo e qualquer agente que se munir da fé pública
poderia, da mesma forma, compreender a ética que implicam os estudos
psicanalíticos, de forma a adaptar seus meios de operação e, sobretudo, de
consideração e escuta ao subjetivo do próximo – mesmo que se saiba que este,
realmente, jamais compreenderemos.
Com a democratização da criação do Direito, ao passo em que se admite a
derrota frente aos desejos que se inscrevem incessantemente nos furos dos
discursos e às infinitas lacunas que fracassa o absolutismo pretendido pelo Estado,
descentraliza-se o poder; o Estado, então, desveste-se do excesso deste, deixando
a posição do pai que ameaça castrar o indivíduo a qualquer sombra do desejo. Ao
perder o objeto de pulsão de morte, podemos vislumbrar a possibilidade de dar-se o
lugar à pulsão de vida, que é potencialmente integrativa – e eis a igualdade,
novamente, como valor. E não seria essa mais uma válvula de escape que encontra
a sublimação das pulsões: a humanidade?
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6 CONCLUSÃO

Fala-se em interdisciplinaridade, sobretudo no que tange à sua aplicação, na


prática.
Pelos estudos freudianos acerca do totem, vimos que é indissociável a
civilização do arquétipo de um ideal em forma de instituição. O futuro da
humanidade, diga-se desta forma, depende do desenvolvimento íntimo de cada
indivíduo. O micro se aplica à perspectiva macro, e vice-versa. Tudo em prol da boa
convivência com o outro; são nestas pequenas e próximas relações que subsistem o
Direito.
Entretanto, foram necessárias gerações e gerações que atravessaram
momentos de completa entrega às pulsões de morte (ao parricídio) para que se
pudesse engendrar a instituição – esta, agora, baseada no princípio de integração
da sociedade, sob a posição de ideal a ser perseguido: o amor ao outro. Este, que
percebe e sustenta o sujeito.
Não obstante, vê-se ameaçado o equilíbrio, novamente, quando
consideramos que a castração movimenta o aparelho psíquico do indivíduo, fazendo
com que a pulsão (o desejo) torne por reaparecer noutra forma. Lacan nos ensinou
todo o processo de “dissecação” do discurso, tanto do mestre, que retém para si a
verdade e coloca a lei num patamar de superioridade, quanto do analista, este que
possui um saber, mas procura, através do próprio discurso, pinçar o desejo entre as
palavras do analisante, justamente por saber que seu saber não é todo o saber.
O Direito, como sentido da lei, emana das palavras. E, nos conceitos
lacanianos e saussurianos, vimos que as palavras são a própria estrutura do
inconsciente. Como poderia, então, a lei simbolizar a justiça?
Dissertou-se acerca da simbologia dos três elementos centrais de Iustitia,
deusa romana que prevalece em nossas filosofias. A balança, como símbolo do
equilíbrio e da igualdade; como referência aos binômios que se encontram no curso
da vida e precisam ser “pesados”. A cegueira que, desvirtuada por um discurso do
mestre, deixa de considerar a possibilidade das diferenças que inevitavelmente se
constatam na sociedade e no indivíduo (sobretudo pelos estudos desenvolvidos pela
psicanálise); que deixa de considerar que a verdade nunca é completa – e, portanto,
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falha como símbolo. E, finalmente, a espada, que quando empunhada pelo mestre,
toma seu caráter castrador, fálico e auto empoderadora.
Ainda, demonstraram-se as possibilidades de interlocução entre as
disciplinas, de forma a lançar uma hipótese de reformulação (e desconstrução)
estrutural das normas. O Direito, tal qual o discurso, não se livra (e nem se livrará)
de suas faltas. As lacunas do Direito se justificam na medida em que todas as
circunstâncias possíveis são, como o Real, inimagináveis.
Se a justiça pudesse portar um discurso, baseado no ideal de igualdade, esta
teria como finalidade a busca pelo Real (desejo recalcado); somente neste caminho,
que nunca se cessa, encontraremos o que falta à sociedade e o que o Direito pode
(e deve) respaldar. O discurso do analista, quando posto à favor da justiça,
simboliza-se como a espada – a cisão, de forma a escancarar a lacuna que nos
deixou a lei escrita. O que tal ação pretende, ainda, nos abre as portas para as
hipóteses de sublimação, forma descrita por Freud como sendo “a menos danosa”
às pulsões, consistentes no desvio da libido a outro objeto.
Objetivando o equilíbrio da sociedade, é necessário que seja confiado aos
operadores do Direito o próprio discurso do analista; são os agentes da lei (em sua
concepção generalizada do termo) que poderiam, se assim pode-se dizer,
“aproximar” a relação entre Estado x indivíduo. É através da sublimação coletiva, da
justiça distribuída como ideal, integrativa, em total consideração ao particular, que o
equilíbrio se firmaria; o homem que analisa a lacuna para transparecer sua falta é
aquele que age em nome do equilíbrio, que promove o analisante a tomar as rédeas
de seus desejos. É a promoção da igualdade e do gozo, sublimado, à evolução.
Finalmente, aqui, manifeste-se a esperança que temos para os próximos
capítulos da evolução humana, de sua construção cultural e civilidade, sobretudo no
que tange a uma renovação de valores quanto à “ética”, que contribui, e muito, a
psicanálise quanto trazida ao diálogo.
O Direito, como o Real, não pode deixar de ser (in)escrito.
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REFERÊNCIAS

BRAGA, Julio Cezar de Oliveira. Do interesse da psicanálise para o direito na


contemporaneidade. ECOS - Estudos Contemporâneos da Subjetividade, v. 3, n.
1. 2013. p. 143-151. Disponível
em:<http://www.uff.br/periodicoshumanas/index.php/ecos/article/viewFile/1028/825>.
Acesso em: 10 jan. 2018.

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2. dezembro, 2005. p. 153-174. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-
14982005000200001>. Acesso em: 20 Jun. 2017.

FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 11: Totem e tabu, contribuição à


história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). Tradução Paulo
César de Souza. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 441 p. Tradução
de: Gesammelte Werke, volumes VIII, IX, X e XIV.

______. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, volume XIX: O ego e


o ID e outros trabalhos (1923-1925). Imago. 170 p. Tradução de: Das ich und das
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GARCIA, Célio. Direito e Psicanálise. Revista da Faculdade de Direito


Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, v. 24, n.
17. outubro, 1976. p. 62-67. Disponível
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NILANDER, Célia. A Lei e o Desejo: Interlocução entre o Direito e a


Psicanálise. Jusbrasil. 2014. Disponível
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