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RESUMO: Este artigo aborda o livro Nadja, de André Breton, um ícone do surrealismo,
onde a personagem que lhe deu o título é interpretada como a personificação da anima do seu
autor. A anima, segundo a psicologia analítica, é o arquétipo do feminino no inconsciente do
homem, e está relacionada aos aspectos irracionais e instintivos da psique, como a intuição e
a emoção, sendo também a via de acesso para sua interioridade. O encontro com ela permite o
contato com o inconsciente, algo de fundamental importância para o surrealismo, que o
concebeu com um campo de inspiração a ser descoberto e explorado de forma profunda e
irrestrita, como aconteceu em Nadja, personagem que encarnou não só o espírito do
movimento surrealista, mas também a anima de André Breton.
Não se trata, evidentemente, de uma pessoa qualquer, pois uma mulher que se
apresente em tais condições só pode ser um espírito da natureza, uma entidade
fantástica oriunda de outros mundos, o que nos remete inevitavelmente ao
inconsciente, pois ele também é representado em forma de bosques e florestas. O fato
de ser à noite reforça a ideia de algo vindo do desconhecido.
Para Breton (1999), um encontro como este não seria delírio e poderia de fato
acontecer.
Despida de pudores e moral civilizatória, essa mulher nua no meio do bosque,
perigosamente sedutora, aponta para os aspectos instintivos da feminilidade, ou seja,
à forma mais primitiva da anima, pela qual o autor já vinha sendo inconscientemente
atraído.
Logo adiante Breton (1999) fala da admiração pela atriz Blanche Derval,
destacando sua atuação na pele de uma personagem esculturalmente bela e perversa,
cujo papel ambivalente despertou-lhe uma atração especial.
Estes acontecimentos correspondem à primeira parte do livro, uma espécie de
prólogo que apresenta em suas páginas iniciais um panorama do surrealismo até
aquele momento, acrescidas de algumas reflexões e comentários sobre temas
pertinentes ao movimento.
A segunda parte, escrita em forma de diário, trata dos encontros com Nadja,
que ocorreram ao longo de 10 dias, durante o mês de outubro de 1926. A parte final,
escrita quatro meses depois, traz novas reflexões do autor sobre esta sua experiência,
que retrata um dos momentos mais inspirados e sublimes do surrealismo.
A seguir, o relato dos encontros entre André Breton e Nadja, dias em que a
beleza se tornou CONVULSIVA (BRETON, 1999).
4 de outubro de 1926
Ao fim de uma tarde ociosa e sombria, Breton caminha por Paris como um
flâneur, um passante que tem nas ruas um lugar de encontros e descobertas.
Neste seu passeio ele observa as pessoas a sua volta e constata em suas
expressões o quanto são incapazes de fazer a Revolução, numa evidente referência
aos anseios surrealistas de transformação radical do mundo.
Essa decepcionante constatação acontece há poucos instantes do seu fatídico
encontro com Nadja, que ocorre logo após ele passar por um cruzamento,
simbolicamente o lugar onde os opostos se encontram.
Foi neste momento que Nadja surgiu, destacando-se da multidão.
Caminhando em sentido oposto, ela vinha em direção a Breton.
Não por acaso este cruzamento fica diante de uma igreja, outra forma de
representar a anima, assim como a cidade, o lugar privilegiado para as experiências
surrealistas (é como se houvesse uma correspondência entre Nadja e a cidade de
Paris, amplamente retratada na obra através de suas praças, bares e ruas, mas também
através de seus dutos subterrâneos, que representam o inconsciente da personagem).
Este cenário, que tem a igreja e o cruzamento como pano de fundo, confere
um significado sagrado ao encontro, tornando o que antes era uma tarde ociosa e
sombria em um momento sublime.
Breton se refere a esta estranha, que o desperta pelo olhar, como alguém tão
frágil, que mal toca o solo ao pisar. Há nela algo que a diferencia de todos os demais,
ou seja, não se trata de uma pessoa comum, mas de alguém que parece provir de
outros mundos.
O encontro dá lugar a uma conversa casual, onde estabelecem o primeiro
contato. Nesta ocasião ele a descreve como uma pessoa de trajes simples e
maquiagem inacabada, mas, sobretudo, de um sorriso misterioso e olhos
extraordinários:
Nadja relata-lhe então dois episódios de sua vida pessoal: um namoro com um
rapaz que tinha dois dedos colados em cada uma das mãos, e que ela só foi perceber
muito tempo depois, ao encontrá-lo por acaso, quando já não estavam mais juntos, e
o fato de mentir aos pais, particularmente à mãe, dizendo-lhes que estava em um
convento em Paris.
O seu relato, que soa como algo aparentemente fortuito, e sem maiores
implicações, permite-nos levantar algumas questões:
Que tipo de relacionamento Nadja é capaz de manter com os homens? Afinal,
ela esteve tanto tempo com uma pessoa, mas sequer percebeu a deformidade de suas
mãos.
O modo como engana seus pais, escondendo-lhes o que realmente fazia em
Paris, seria uma forma de quebrar grilhões?
Na verdade, ela mesma não sabia o que fazia em Paris. Mas isso era
irrelevante, pois vivia entregue ao acaso, “livre de todos os liames terrestres”
(BRETON,1999, p.85).
Suas atitudes transgressivas mostram que Nadja representa o aspecto do
surrealismo que questionava a hipocrisia e os valores morais da sociedade moderna.
Religião, família e trabalho eram considerados meios de alienação, contra os quais o
surrealismo se insurgiu.
5 de outubro de 1926
6 de outubro de 1926
Envaidecido, Breton a convida para jantar. Sem que ele perceba, Nadja o
conduz para a praça Dauphine, um dos cenários do seu poema Peixe Solúvel.
Esta praça, com ares de lugar assombrado, é descrita pelo autor como um dos
pontos mais ermos e nocivos de Paris.
O dia declina.
A admiração por Nadja, que se mostra desconexa e incoerente, dá lugar ao
medo.
Assustada, ela avista uma multidão na praça praticamente deserta. O seu
discurso torna-se delirante, assumindo em alguns momentos o dom da vidência.
Ela então fala dos mortos, com a impaciência de quem os está aguardando, ou
com a certeza de quem os vê à sua volta:
“É verdade que fogo e água são a mesma coisa. Mas o que dizer dessa mão?
Como você a interpreta? Deixe-me ver melhor essa mão”. (BRETON,1999,
p.80)
7 de outubro de 1926
Breton amanhece com uma forte dor de cabeça, somatizando o que aconteceu
na noite anterior. Os sintomas físicos apontam para uma identificação com Nadja,
como se ele também tivesse vivido na pele toda aquela experiência perturbadora.
Embora não tenham marcado de se encontrarem neste dia, ele sente uma
vontade irresistível de vê-la novamente.
Percebe que Nadja precisa de sua ajuda, pois vinha passando por sérias
dificuldades financeiras. Na noite passada tremia de frio.
Sai então de casa, na companhia da mulher e de uma amiga, com a intenção
secreta de encontrá-la ao sabor do acaso.
Durante o passeio, ele a avista de relance, e corre em sua direção. Como não
se render a esta figura encantadora, que sempre aparece, como num passe de mágica?
Nadja, que está acompanhada de um homem, vai prontamente ao seu
encontro, deixando o outro para trás.
Dirigem-se a um café. Durante a conversa, esta femme fatale1 insinua os
meios aos quais poderia recorrer para conseguir dinheiro, referindo-se claramente à
prostituição.
Confessa-lhe que já havia sido flagrada contrabandeando cocaína de Haia,
numa tentativa frustrada de angariar mais dinheiro. A propósito, ela não esconde que
nesta ocasião uma quantidade da droga ficou inadvertidamente ‘esquecida’ em seu
chapéu. Naturalmente não lhe restou outra alternativa, senão destiná-la ao seu uso
pessoal.
Breton se compromete a entregar-lhe a quantia pedida logo no dia seguinte, o
que confirma que neste jogo de sedução a anima sempre consegue aquilo que quer.
Na despedida, ele lhe beija os dentes, e Nadja diz:
1 Dois exemplos clássicos que relacionam o poder de sedução da anima ao erotismo da meretriz
são as personagens do filme A Bela da Tarde (1967), de Luis Buñuel, onde uma mulher comum, bela e
rica, se prostitui em um bordel para fugir da monotonia de sua vida conjugal, e a personagem Lola Lola,
do filme O Anjo Azul (1930), a dançarina de cabaré que leva um austero professor à ruína. No ponto alto
do filme ele atende a um pedido seu, e aparece no espetáculo trajado de palhaço, onde é sumariamente
ridicularizado por todos, enquanto ela está nos braços de outro homem. Este filme mostra o quanto pode
prostitui em um bordel para fugir da monotonia de sua vida conjugal, e a personagem Lola Lola, do filme
O Anjo Azul (1930), a dançarina de cabaré que leva um austero professor à ruína. No ponto alto do filme
ele atende a um pedido seu, e aparece no espetáculo trajado de palhaço, onde é sumariamente
ridicularizado por todos, enquanto ela está nos braços de outro homem. Este filme mostra o quanto pode
ser trágico o encontro com a anima, se o indivíduo não souber lidar com a força avassaladora do
arquétipo.
“A comunhão se passa em silêncio... A comunhão se passa em silêncio”
(BRETON,1999, p. 89).
Explica-lhe que esse beijo deu-lhe a impressão de algo sagrado, em que seus
dentes fizeram às vezes da hóstia, pois a anima quer vida, e a vida do corpo, assim
como a vida psíquica, se portam melhor e de forma mais saudável sem a moralidade
convencional (JUNG, 1935/2000).
8 de outubro de 1926
A Prostituta Sagrada
No dia seguinte ao beijo, Breton recebe uma carta de Aragon com uma
reprodução do quadro “A Profanação da Hóstia”, de Ucello. Um quadro de
interpretação difícil e intenções ocultas, como dirá o autor em nota.
Estes fatos, que trazem a hóstia e sua posterior profanação, mostram que
houve uma sincronicidade envolvendo o beijo e o quadro. Neste caso, o elemento
comum entre ambos é a ideia da prostitua sagrada, a sacerdotisa que nas culturas
matriarcais tinha a função ritual de conectar o homem com a deusa do amor e da
fertilidade (originalmente não era este o propósito do quadro, que em Nadja denota
algo de natureza sexual).
Nas tradições antigas, a sexualidade era parte dos rituais religiosos, sendo
uma forma de ligação com o divino.
Segundo Qualls-Corbett (1990), os atributos da prostituta sagrada, como
beleza, graça e sexualidade, derivam da reverência que ela presta à natureza
feminina, devotada à deusa.
Através dela o sexo torna-se um caminho para a espiritualidade. Uma forma
de autoconhecimento, onde o corpo é espiritualizado, e o espírito, corporificado.
A prostituta sagrada também está relacionada ao hierosgamos da alquimia, o
casamento sagrado, um forma de comunhão, que deve se passar em silêncio...
Com isso, ela não está mostrando só os seus dotes de uma prostituta profana,
a femme fatale que se entrega por dinheiro, ou simplesmente prazer, mas também
revelando o caminho para algo maior, onde o homem, através da deusa virginal,
descobre no corpo e na sexualidade os caminhos para a realização espiritual. Por isso,
a hóstia é o corpo sagrado, profanado pelo beijo, como bem disse Nadja, que na
condição de anima é também uma prova de fogo para as forças morais e espirituais
do homem (JUNG, 1935/ 2000).
9 de outubro de 1926
10 de outubro de 1926
“Veja só: tudo se esvai, tudo desaparece. É preciso que reste algo de nós...”
(BRETON,1999, p. 95)
11 de outubro de 1926
de outubro de 1926
Este será o último dia relatado em forma de diário. Haverá ainda referência ao
dia 13, e depois reflexões e comentários sobre Nadja, acrescidos de fotos e
ilustrações.
Neste encontro ela mostra o seu primeiro desenho, inteiramente profético e
revelador.
Trata-se de uma máscara retangular com um prego na testa, através do qual é
fixada, e de onde sai uma linha pontilhada com um gancho no meio e um coração na
extremidade.
No alto da imagem há uma estrela negra. Esta estrela é emblemática, pois soa
como um prenúncio do livro Arcano 17, que será escrito anos depois, e onde o autor
falará sobre o amor. A carta deste arcano chama-se “A Estrela”, e traz uma mulher
nua sob um céu estrelado, indicando que o caminho a ser percorrido implica no
encontro com o feminino.
Isso significa que a anima de André Breton, embora tenha se personificado
em Nadja, o acompanhará como uma estrela no céu, guiando-o em seu caminho (no
primeiro encontro ela já havia previsto uma estrela no caminho de André Breton).
Mais tarde, como se previsse a separação entre ambos, Nadja irá se referir a si
mesma como Melusina, a lendária figura que escondia por trás de uma deslumbrante
mulher, o horripilante corpo de uma serpente. Ao ter seu segredo descoberto
enquanto tomava banho, se vê obrigada a fugir e abandonar este mundo.
Enquanto imagem da anima, o mito mostra que o feminino, oriundo das
esferas profundas da psique, tem que partir em algum momento, e retornar às suas
origens, pois não pertence a este lugar, o mundo da superfície, mas àquele outro, o
mundo misterioso do inconsciente.
A imersão semanal de Melusina em um tanque de água tem esse sentido de
retorno às origens, onde a vida se renova, como um processo de morte e
renascimento.
Foi o que mostrou Nadja ao prenunciar sua partida durante o banho,
confirmando que o feminino sempre retorna para o lugar de onde veio, embora possa
voltar a se manifestar com um aspecto diferente, e nas mais diversas ocasiões (a
própria Melusina, em forma de pássaro negro, sempre retornava ao castelo para
anunciar a morte de alguma pessoa do seu círculo familiar).
Isso significa que o indivíduo não pode permanecer identificado com a anima,
aprisionado por suas projeções. É preciso que ele se diferencie dessa figura,
entendendo que ela é uma personificação do seu mundo interior, uma manifestação
do inconsciente que não deve ser confundida com o seu ego, nem tampouco com a
pessoa que é a sua portadora. Assim, o indivíduo pode se libertar de suas projeções,
assimilado-as como algo oriundo de sua psique.
Em seguida, Nadja lhe pergunta quem teria matado a Górgona, numa
provável referência à Medusa, a terrível criatura que tinha a cabeça forrada de cobras,
e que transformava em pedras quem olhasse diretamente para ela.
Psicologicamente, a Medusa representa o horror da consciência frente ao
inconsciente, algo a ser combatido pela lógica racional, como fez Perseu ao cortar-
lhe a cabeça com sua espada, um símbolo do poder discriminatório da razão que se
impõe através do pensamento lógico e objetivo.
O autor confessa que já não consegue mais acompanhar seu solilóquio,
seguido de longos silêncios que tornam sua fala intraduzível. Percebe-se que não há
mais entendimento entre eles.
Resolvem pegar um trem e sair de Paris.
Na estação despertam a atenção das pessoas, e Nadja diz que é devido à
chama que ambos têm no olhar. Faz referências elogiosas aos olhos de Breton e o
convida para um passeio na floresta naquela noite (seria ela a mulher bela e nua que
um dia ele desejou encontrar na floresta?).
No entanto, o horário os faz desistirem de ir à floresta. Já não há mais no
autor o ímpeto em seguir cegamente os ditames de sua anima.
A partir deste ponto, e nas páginas seguintes, o livro assumirá um tom mais
reflexivo, deixando de ser escrito em forma de diário. Haverá também uma presença
maior de fotos e ilustrações, denotando a importância do uso de outras formas da
linguagem, menos conceitual e mais imagética, o que está de acordo com a
linguagem do inconsciente, inteiramente simbólica e metafórica.
O autor então se questiona quem teriam sido eles diante da realidade, essa
mesma realidade que agora está adormecida aos pés de Nadja, como um cão vadio.
Afinal, onde poderiam viver em paz, entregues ao furor dos símbolos?
“Do primeiro ao último dia tomei Nadja por um gênio livre, algo como um
desses espíritos do ar que certas práticas de magia permitem momentaneamente fixar,
mas em caso algum submeter”. (BRETON,1999, p. 105)
“És tu Nadja? É verdade que o além, todo o além esteja nesta vida? Não te ouço.
Quem vem lá? Serei eu apenas? Serei eu mesmo?” (BRETON,1999, p.138).
O amor surrealista
Na terceira parte, escrita após quatro meses de interrupção, Breton relê sua
história com o coração curvado pelo peso de uma nova emoção.
Retoma os lugares pelos quais passaram, e percebe o quanto estão diferentes,
da mesma forma que o seu modo de ver também já não é mais o mesmo.
Se no início do livro foram os olhos de Nadja que lhe chamaram a atenção,
agora são os olhos provocantes da estátua de uma mulher, que em sua pose imutável,
finge apertar furtivamente a liga de sua meia.
Em nota o autor faz então a última referência a Nadja, relatando o dia em que
viajavam de carro, quando ela buscou tapar-lhe os olhos, enquanto ele dirigia,
convidando-o a existir para todo o sempre, um para o outro, no olvido de um beijo
interminável. Uma prova trágica de amor.
No final, a história vivida por eles é contada para uma outra mulher, que
Breton conheceu depois de Nadja, e que no livro é chamada apenas de “Tu” (Toi).
Trata-se de uma pessoa sem nome, também maravilhosa, que não conhece o
mal, a não ser por ouvir falar, e que não é nenhum enigma, e nem nunca será.
Com suas mãos erguidas para o alto, apontando ”AS ALVORADAS”, ela
recebe um pouco desta chuva ao ouvi-lo contar sua história. Esta é uma cena que faz
lembrar a esperança anunciada por Nadja, que em sua reclusão forçada, repousa
agora em algum lugar frio e distante, uma estrela intocável, plantada no coração do
finito. (BRETON,1999)
“Que a grande inconsciência viva e sonora que inspira meus próprios atos
probantes disponha para sempre de tudo que sou”. (BRETON,1999, p.147)
f.massao@psicologiajunguiana.psc.br
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRETON, A. Nadja. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1999.
JUNG, C. G. Sincronicidade (Obras Completas vol. VIII/3). 15. ed. Petrópolis: Ed.
Vozes, 2007.
JUNG, C. G. et al. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,
1964.
JUNG, E. Animus e Anima. 10. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1995.