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NADJA E A ANIMA DE ANDRÉ BRETON

Fabio Massao Yabushita


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RESUMO: Este artigo aborda o livro Nadja, de André Breton, um ícone do surrealismo,
onde a personagem que lhe deu o título é interpretada como a personificação da anima do seu
autor. A anima, segundo a psicologia analítica, é o arquétipo do feminino no inconsciente do
homem, e está relacionada aos aspectos irracionais e instintivos da psique, como a intuição e
a emoção, sendo também a via de acesso para sua interioridade. O encontro com ela permite o
contato com o inconsciente, algo de fundamental importância para o surrealismo, que o
concebeu com um campo de inspiração a ser descoberto e explorado de forma profunda e
irrestrita, como aconteceu em Nadja, personagem que encarnou não só o espírito do
movimento surrealista, mas também a anima de André Breton.

PALAVRAS-CHAVE: Nadja. André Breton. Surrealismo. Anima. Psicologia.

Nadja, livro de André Breton publicado em 1928, é considerado uma das


principais obras do surrealismo, movimento de vanguarda que visava, através da
exploração do inconsciente, dissolver as barreiras entre arte e vida, e assim promover
a emancipação e liberdade do homem.
Considerado como um autêntico meio de conhecimento, o surrealismo foi um
modo de pensar e viver voltado aos continentes até então inexplorados, como o
sonho, a loucura, e tudo aquilo que fosse contrário ao cenário lógico (NADEAU,
2008).
O livro, que atende às principais reivindicações do movimento, apresenta
alguns recursos ‘antiliterários’ inovadores, como o uso de ilustrações e fotografias,
uma forma de privilegiar a subjetividade do olhar em detrimento da descrição
meramente narrativa dos fatos. As fotos, em sua maioria retratos de pessoas e
lugares, conferem veracidade à história, conciliando assim fantasia e realidade, pois
uma das propostas do surrealismo era justamente acabar com tais dicotomias,
eliminando, por exemplo, as fronteiras entre realidade interior e exterior.
Nesse sentido, Breton (2001) dizia acreditar na possibilidade de reunir estados
aparentemente contraditórios, como sonho e realidade, em uma espécie de realidade
absoluta, ou suprarrealidade, que se manifestaria através do insólito e do
maravilhoso.
Outra característica a ser destaca no livro foi a técnica chamada pelo autor de
observação neuropsiquiátrica, onde tudo o que acontecia deveria ser detalhadamente
relatado, sem preocupações com o estilo.
Isso mostra que sua escrita foi também uma experiência surrealista, ou seja,
não se trata de um livro sobre o surrealismo, mas de um livro verdadeiramente
surreal.
Nele, o autor relata seu breve romance com uma mulher misteriosa, chamada
Nadja, que ele conheceu por acaso, deambulando pelas ruas de Paris. Esse ser errante
e misterioso, dotado do mais elevado grau de liberdade, representa o espírito do
surrealismo, cujo movimento ganhou forma nessa inquietante e enigmática
personagem da literatura.
Embora Nadja se apresente como a encarnação dos ideais surrealistas,
principalmente em seus anseios de amor poesia e liberdade, ela também pode ser
vista como a personificação da anima de André Breton.
A anima representa as tendências psicológicas femininas no homem. Está
relacionada aos seus sentimentos e sensibilidade, conectando-o ao irracional,
instintivo e intuitivo, tendo, portanto, a função de relação e conexão com o
inconsciente. É através dela que o homem entra em contato com sua interioridade,
penetrando nos liames mais profundos da psique.
Enquanto elemento feminino ela pode se manifestar de forma encantadora,
como a deusa Afrodite, ou terrificante, como Lilith, a Lua Negra.
Santa e meretriz, amável e perigosa, são termos comumente atribuídos à
anima, que em suas mil faces é tanto a soror mystica dos alquimistas, quanto a bela
dos contos de fadas. Incontáveis são os seus atributos, porém, assim como a alma, ela
não pode ser definida, pois não se prende a nenhum conceito. O único meio de sabê-
la, é vivê-la, estar em contato e relacionar-se com ela, sentindo-a em todo seu
encanto e fascinação.
Antes de descrever o seu encontro propriamente dito com Nadja, e os
acontecimentos subsequentes, o autor nos adverte de que irá narrar episódios
marcantes de sua vida, fatos sobre os quais não teve controle algum, sentindo-se
diante dos mesmos como uma “testemunha assustada”, à mercê daquilo que ele
chamou de “mundo proibido das aproximações repentinas” e “petrificantes
coincidências” (BRETON, 1999).
Estes fatos, que no surrealismo são formas de desvelar o maravilhoso que
subsiste no real, são condizentes com a ideia de sincronicidade, termo criado por
Jung (1951/2007) para designar a ocorrência de eventos que se relacionam entre si de
forma acausal, sem o princípio da causalidade, porém, apresentando equivalência de
significados.
Inexplicável sob o ponto de vista lógico, a sincronicidade não depende da
vontade consciente do indivíduo para ocorrer, nem pode ser provocada por uma ação
deliberada. O que é preciso sim é uma sensibilidade, ou disposição interior, que nos
permita percebê-la como um fenômeno de natureza inusitada e surpreendente, algo
não muito diferente do maravilhamento provocado pelas “petrificantes
coincidências” constatadas em Nadja.
Nesse sentido, a deambulação pelas ruas, o espaço propício para as
experiências surrealistas, seria uma forma de favorecer o acaso e o imprevisível, e,
portanto, uma forma de se manter receptivo aos eventos sincronísticos.
Além das coincidências e dos acasos objetivos, que ocorreram praticamente
ao longo de todo o livro, há algumas passagens antecipando que algo maior estava a
caminho de acontecer na vida de André Breton, ou seja, no campo da alma a terra já
estava sendo preparada para receber a semente.
A atmosfera favorável para o encontro com a anima está indicada na
passagem em que o autor fala do desejo apaixonado de encontrar aquela que pode ser
descrita como a “Mulher da Floresta”, o ser encantado comumente representado em
lendas e contos de fada como uma pessoa bela e misteriosa, forma como também
costuma aparecer nas fantasias masculinas (em relação ao surrealismo, cito
especialmente a obra “Eu não vejo a [mulher] escondida na floresta”, de René
Magritte, que traz a imagem de uma mulher nua envolta de vários autores surrealistas
com os olhos fechados, entre eles André Breton).
“Sempre desejei incrivelmente encontrar à noite, num bosque, uma mulher
bela e nua, ou antes, como tal desejo uma vez expresso perde seu significado,
lamento incrivelmente não a haver encontrado”. (BRETON,1999, p. 39)

Não se trata, evidentemente, de uma pessoa qualquer, pois uma mulher que se
apresente em tais condições só pode ser um espírito da natureza, uma entidade
fantástica oriunda de outros mundos, o que nos remete inevitavelmente ao
inconsciente, pois ele também é representado em forma de bosques e florestas. O fato
de ser à noite reforça a ideia de algo vindo do desconhecido.
Para Breton (1999), um encontro como este não seria delírio e poderia de fato
acontecer.
Despida de pudores e moral civilizatória, essa mulher nua no meio do bosque,
perigosamente sedutora, aponta para os aspectos instintivos da feminilidade, ou seja,
à forma mais primitiva da anima, pela qual o autor já vinha sendo inconscientemente
atraído.
Logo adiante Breton (1999) fala da admiração pela atriz Blanche Derval,
destacando sua atuação na pele de uma personagem esculturalmente bela e perversa,
cujo papel ambivalente despertou-lhe uma atração especial.
Estes acontecimentos correspondem à primeira parte do livro, uma espécie de
prólogo que apresenta em suas páginas iniciais um panorama do surrealismo até
aquele momento, acrescidas de algumas reflexões e comentários sobre temas
pertinentes ao movimento.
A segunda parte, escrita em forma de diário, trata dos encontros com Nadja,
que ocorreram ao longo de 10 dias, durante o mês de outubro de 1926. A parte final,
escrita quatro meses depois, traz novas reflexões do autor sobre esta sua experiência,
que retrata um dos momentos mais inspirados e sublimes do surrealismo.
A seguir, o relato dos encontros entre André Breton e Nadja, dias em que a
beleza se tornou CONVULSIVA (BRETON, 1999).

4 de outubro de 1926

O encontro com a anima

Ao fim de uma tarde ociosa e sombria, Breton caminha por Paris como um
flâneur, um passante que tem nas ruas um lugar de encontros e descobertas.
Neste seu passeio ele observa as pessoas a sua volta e constata em suas
expressões o quanto são incapazes de fazer a Revolução, numa evidente referência
aos anseios surrealistas de transformação radical do mundo.
Essa decepcionante constatação acontece há poucos instantes do seu fatídico
encontro com Nadja, que ocorre logo após ele passar por um cruzamento,
simbolicamente o lugar onde os opostos se encontram.
Foi neste momento que Nadja surgiu, destacando-se da multidão.
Caminhando em sentido oposto, ela vinha em direção a Breton.
Não por acaso este cruzamento fica diante de uma igreja, outra forma de
representar a anima, assim como a cidade, o lugar privilegiado para as experiências
surrealistas (é como se houvesse uma correspondência entre Nadja e a cidade de
Paris, amplamente retratada na obra através de suas praças, bares e ruas, mas também
através de seus dutos subterrâneos, que representam o inconsciente da personagem).
Este cenário, que tem a igreja e o cruzamento como pano de fundo, confere
um significado sagrado ao encontro, tornando o que antes era uma tarde ociosa e
sombria em um momento sublime.
Breton se refere a esta estranha, que o desperta pelo olhar, como alguém tão
frágil, que mal toca o solo ao pisar. Há nela algo que a diferencia de todos os demais,
ou seja, não se trata de uma pessoa comum, mas de alguém que parece provir de
outros mundos.
O encontro dá lugar a uma conversa casual, onde estabelecem o primeiro
contato. Nesta ocasião ele a descreve como uma pessoa de trajes simples e
maquiagem inacabada, mas, sobretudo, de um sorriso misterioso e olhos
extraordinários:

“Jamais havia visto uns olhos assim”. (BRETON,1999, p. 61)

Nadja relata-lhe então dois episódios de sua vida pessoal: um namoro com um
rapaz que tinha dois dedos colados em cada uma das mãos, e que ela só foi perceber
muito tempo depois, ao encontrá-lo por acaso, quando já não estavam mais juntos, e
o fato de mentir aos pais, particularmente à mãe, dizendo-lhes que estava em um
convento em Paris.
O seu relato, que soa como algo aparentemente fortuito, e sem maiores
implicações, permite-nos levantar algumas questões:
Que tipo de relacionamento Nadja é capaz de manter com os homens? Afinal,
ela esteve tanto tempo com uma pessoa, mas sequer percebeu a deformidade de suas
mãos.
O modo como engana seus pais, escondendo-lhes o que realmente fazia em
Paris, seria uma forma de quebrar grilhões?
Na verdade, ela mesma não sabia o que fazia em Paris. Mas isso era
irrelevante, pois vivia entregue ao acaso, “livre de todos os liames terrestres”
(BRETON,1999, p.85).
Suas atitudes transgressivas mostram que Nadja representa o aspecto do
surrealismo que questionava a hipocrisia e os valores morais da sociedade moderna.
Religião, família e trabalho eram considerados meios de alienação, contra os quais o
surrealismo se insurgiu.

“A liberdade como aspiro é um permanente quebrar de grilhões”


(BRETON,1999, p.65).

Estas palavras de André Breton descrevem bem as aspirações de Nadja, que


ao se deixar conduzir por seus impulsos interiores, sem preocupações de ordem
estética ou moral, também se opôs à persona do homem moderno, construída a partir
de valores burgueses, que enalteciam a ordem e a racionalidade lógica dos fatos.
No campo psíquico, persona e anima ocupam posições diametralmente
opostas, pois uma está voltada para fora, atendendo às convenções sociais, enquanto
que a outra está voltada para dentro, visando o mundo interior. Em Nadja, esta
oposição atinge sua máxima expressão, pois ela jamais aderiu ao modo superficial e
mecanicista de se viver, tendo preferido caminhos que não visassem tão somente à
adaptação ao mundo exterior, mas a sua transformação, através de uma liberdade
radical e criadora.
Foi nesse sentido que Artaud (1983) abordou o surrealismo como uma
revolta, sobretudo contra o Pai, e todas as suas formas de manifestação.
Conformismo e obediência servil nunca foram atitudes condizentes com as ideias
surrealistas, sempre contrárias a todo tipo de moral e poder constituído. Isso Nadja
demonstra desde o início, sem nenhum pudor, mas com toda a graça que a vida lhe
confere.
Ao término deste primeiro encontro, ela demonstra descontração e bom
humor. Comove André Breton com algumas palavras poéticas, mostrando-se também
dotada de alto grau de intuição.
Quando se despedem, o autor, que iniciou o livro com a pergunta “Quem sou
eu?”, agora se dirige a ela, “Quem é você?”. Nadja responde sem hesitar, “eu sou
uma alma errante”. (BRETON,1999, p.67)
Emblemático, este desfecho tem um importante significado, pois representa o
momento em que a anima de André Breton foi constelada, assumindo as formas desta
inquietante figura, que deu corpo e vida ao espírito surrealista.

5 de outubro de 1926

Uma mulher encantadora, ou o surrealismo em corpo e alma

Encontram-se no dia seguinte no lugar marcado. Breton leva-lhe alguns de


seus livros. Sua aparência está diferente, mais elegante e bem trajada.
Neste segundo encontro ela fala de dois amigos, nos quais despertou
sentimentos quase que paternais. Um senhor de mais idade, cuja companhia lhe trazia
conforto e segurança, e outro que, em delírio, chamava-a pelo nome de sua filha, que
já havia morrido. Provavelmente a relação com estes senhores era de natureza
incestuosa, a manifestação de um amor subversivo e sem limites.
Ao saírem do café, Nadja descreve-lhe, acertadamente, sua esposa e o
ambiente em sua casa naquele exato momento, mostrando assim quão aguçada é a
sua sensibilidade. Esta é uma das características da anima, que muitas vezes se
apresenta com atributos mediúnicos, capazes de enxergar aquilo que os olhos não
podem ver.
Depois, propõe-lhe uma brincadeira, baseada em livres associações, dizendo-
lhe que é assim que vive. Embora aparentemente tenha resistido ao jogo, Breton
(1999), em nota, questiona se não seria essa a própria aspiração surrealista, sua “mais
avançada idéia-limite”.
Sua maneira de ser, avessa à censura e aos impedimentos morais que freiam o
livre fluir do inconsciente, contagia o autor, que vai sendo suavemente conquistado
por essa encantadora mulher, que desde o princípio vive na pele, e de forma
absolutamente espontânea, a tão almejada surrealidade.

6 de outubro de 1926

Delírios e visões: a anima e as profundezas do inconsciente

Depois das impressões iniciais, que despertaram no autor o desejo de penetrar


mais a fundo os mistérios deste ser enigmático, ambos vivem um dia denso e
perturbador. Embora a relação esteja ainda no início, ela já se mostra profunda o
suficiente para uma experiência desta ordem.
O encontro neste terceiro dia ocorre antes do horário previsto, em mais uma
“coincidência petrificante”. Diferente das outras vezes, Nadja não se mostra à
vontade, e confessa que chegou a pensar em não comparecer ao encontro, que se
tornara desconfortável e constrangedor.
Resolvem voltar para casa. No caminho, após travar uma luta interna consigo
mesma, Nadja fala do poder que ele exerce sobre ela, e de sua capacidade em levá-la
a fazer tudo o que ele quiser, talvez até mais do que imagina. Suplica-lhe então para
que não lhe faça nenhum mal.
Submissa, ela expõe toda sua fragilidade, encenando um jogo de sedução que
faz lembrar a serpente, em O Matrimônio do Céu e do Inferno, de William Blake
(1790 /2000):

“Agora a serpente se esgueira,


Em mansa humildade”

Envaidecido, Breton a convida para jantar. Sem que ele perceba, Nadja o
conduz para a praça Dauphine, um dos cenários do seu poema Peixe Solúvel.
Esta praça, com ares de lugar assombrado, é descrita pelo autor como um dos
pontos mais ermos e nocivos de Paris.
O dia declina.
A admiração por Nadja, que se mostra desconexa e incoerente, dá lugar ao
medo.
Assustada, ela avista uma multidão na praça praticamente deserta. O seu
discurso torna-se delirante, assumindo em alguns momentos o dom da vidência.
Ela então fala dos mortos, com a impaciência de quem os está aguardando, ou
com a certeza de quem os vê à sua volta:

“E os mortos, os mortos!” (BRETON,1999, p.78)

Através destas ocorrências perturbadoras, Nadja parece penetrar no Hades, a


mitológica terra dos mortos, que em termos psicológicos representa o inconsciente.
Portanto, a ida a esta praça, opressiva, mas de um enlace irresistível, é como
uma nekyia, a descida ao mundo subterrâneo. Assim, André Breton está sendo
mansamente conduzido pela sua anima, que o chama para um mergulho no
inconsciente, pois uma de suas funções é justamente conduzir o ego aos estratos mais
profundos da psique (a propósito, o Manifeto do Surrealismo diz que sua ideia é
recuperar nossa força psíquica através de “uma descida vertiginosa ao interior de nós
mesmos”, p.166).
Neste episódio Nadja também revela uma característica atribuída à mulher, a
capacidade de entrar em contato com os espíritos, e de interceder junto aos deuses em
favor dos mortais, como as sacerdotisas, bruxas e feiticeiras,
Considerando-se que a mulher está menos contaminada pelo racionalismo
lógico masculino, ela acaba tendo maior abertura e receptividade ao irracional. É o
caso das médiuns e videntes, como a Mme. Sacco, que no livro previu uma Helena
na vida de André Breton.
De fato, pouco tempo depois de sua previsão ele veio a se interessar pelo
trabalho de Hélène Smith, uma pessoa que se dizia médium e capaz de entrar em
contato com espíritos e marcianos. Produziu um material muito rico em termos de
relatos e ilustrações que teriam sido obtidos junto a entidades sobrenaturais. Publicou
um livro com a ajuda de Theodore Flournoy, o mesmo que apresentou os escritos de
Ms. Miller a Jung. Os surrealistas se interessaram muito pelo seu trabalho,
considerando-a a musa da psicografia.
Como previu a vidente francesa, uma Helena cruzou o caminho de André
Breton. Mas não só isso, pois, como disse Nadja, “Helena sou eu”.
Trata-se, seguramente, de uma identificação com a Helena de Tróia,
considerada a mais bela das mulheres, causa de uma épica guerra travada em nome
do seu amor, disputado por Páris e Menelau.
Psicologicamente, Helena representa o estágio da anima relacionada ao
romantismo, a paixão e a sexualidade, mas também o desejo levado às últimas
consequências.
O que levou Breton a estar ali com Nadja foi justamente o seu poder de
sedução, porém, as coisas tomaram outra direção.
Assim, pode-se dizer que neste lugar o inconsciente está em intensa atividade,
e que a loucura será um desfecho possível se o ego não suportar o encontro com a
anima.
Há um personagem nesta cena que ilustra esta possibilidade. É o bêbado,
acompanhado de longe por uma mulher, que fica lhes gritando obscenidades. Uma
presença incômoda para Breton, como uma sombra a lhe perseguir.
Esta figura desvalida, que faz lembrar um mendigo, pode não ser apenas parte
deste cenário sombrio, uma peça do jogo que se passa neste lugar vazio e opressivo,
mas também a imagem do homem arruinado pela sua anima, a exemplo dos casos de
pessoas que passam a viver no mais absoluto abandono após traições e desilusões
amorosas.
As visões não cessam. O vento nas árvores torna-se azul...
Eles então saem dali, e se encaminham para o cais.
Nadja, toda trêmula, continua sendo levada pelos seus delírios. Agarra-se a
uma grade, como se estivesse presa. Diz já ter pertencido ao séquito de Maria
Antonieta.
Atravessam a ponte do Sena, e então ela tem uma nova e poderosa visão: uma
mão de fogo sobre o rio.

“É verdade que fogo e água são a mesma coisa. Mas o que dizer dessa mão?
Como você a interpreta? Deixe-me ver melhor essa mão”. (BRETON,1999,
p.80)

Em Nadja, a mão aparece em várias situações, como na foto da luva de mulher,


em referência ao episódio em que Breton ganhou uma luva de bronze de uma
admiradora, e no desenho de uma mão com uma cabeça feminina. Sua função é
simbolizar a ligação com a anima. Esse é o sentido da visão de Nadja, que indaga a
Breton se ele consegue vê-la também.
Diante de todo esse fervilhar, Breton é apena uma testemunha assustada. Sua
atitude de declamar uma poesia de Baudelaire para distraí-la soa ingênua, fazendo-a
se sentir ainda mais ameaçada.
Finalmente, à meia-noite, sentam-se diante de um chafariz. Nadja faz uma
analogia entre o movimento das águas, que sobem e descem, e os pensamentos dela e
de Breton, que vão e voltam, indefinidamente. A água torna-se então uma fonte
regeneradora, principalmente pelo seu movimento circular, que jorra para cima, e
depois desce, voltando às origens.
O encontro se encaminha para o fim. Antes, um desconhecido que já havia lhe
pedido em casamento, passa por eles várias vezes, o que a faz se lembrar da filhinha,
uma criança que arranca os olhos das bonecas para ver o que há por detrás deles. O
autor então fala de outra característica sua: o poder de atração sobre as crianças.
Onde ela está, as crianças se agrupam, reunindo-se ao seu redor (esta sua postura está
de acordo com a proposta surrealista de um retorno à infância, e seu estado de
maravilhamento perante o mundo).
Este é o seu aspecto fada, dócil e sorridente, que em nada lembra aquela
mulher atemorizada por suas visões.
A noite poderia terminar assim, com ambos apaziguados pelas águas
tranquilas que jorram da fonte. Porém, um friso no azulejo de um bar despertou-lhe
novo temor, e ante a iminência de mais um delírio paranoico, resolvem voltar para
casa, e se encontrar dois dias depois.

7 de outubro de 1926

A anima como femme fatale

Breton amanhece com uma forte dor de cabeça, somatizando o que aconteceu
na noite anterior. Os sintomas físicos apontam para uma identificação com Nadja,
como se ele também tivesse vivido na pele toda aquela experiência perturbadora.
Embora não tenham marcado de se encontrarem neste dia, ele sente uma
vontade irresistível de vê-la novamente.
Percebe que Nadja precisa de sua ajuda, pois vinha passando por sérias
dificuldades financeiras. Na noite passada tremia de frio.
Sai então de casa, na companhia da mulher e de uma amiga, com a intenção
secreta de encontrá-la ao sabor do acaso.
Durante o passeio, ele a avista de relance, e corre em sua direção. Como não
se render a esta figura encantadora, que sempre aparece, como num passe de mágica?
Nadja, que está acompanhada de um homem, vai prontamente ao seu
encontro, deixando o outro para trás.
Dirigem-se a um café. Durante a conversa, esta femme fatale1 insinua os
meios aos quais poderia recorrer para conseguir dinheiro, referindo-se claramente à
prostituição.
Confessa-lhe que já havia sido flagrada contrabandeando cocaína de Haia,
numa tentativa frustrada de angariar mais dinheiro. A propósito, ela não esconde que
nesta ocasião uma quantidade da droga ficou inadvertidamente ‘esquecida’ em seu
chapéu. Naturalmente não lhe restou outra alternativa, senão destiná-la ao seu uso
pessoal.
Breton se compromete a entregar-lhe a quantia pedida logo no dia seguinte, o
que confirma que neste jogo de sedução a anima sempre consegue aquilo que quer.
Na despedida, ele lhe beija os dentes, e Nadja diz:

1 Dois exemplos clássicos que relacionam o poder de sedução da anima ao erotismo da meretriz
são as personagens do filme A Bela da Tarde (1967), de Luis Buñuel, onde uma mulher comum, bela e
rica, se prostitui em um bordel para fugir da monotonia de sua vida conjugal, e a personagem Lola Lola,
do filme O Anjo Azul (1930), a dançarina de cabaré que leva um austero professor à ruína. No ponto alto
do filme ele atende a um pedido seu, e aparece no espetáculo trajado de palhaço, onde é sumariamente
ridicularizado por todos, enquanto ela está nos braços de outro homem. Este filme mostra o quanto pode
prostitui em um bordel para fugir da monotonia de sua vida conjugal, e a personagem Lola Lola, do filme
O Anjo Azul (1930), a dançarina de cabaré que leva um austero professor à ruína. No ponto alto do filme
ele atende a um pedido seu, e aparece no espetáculo trajado de palhaço, onde é sumariamente
ridicularizado por todos, enquanto ela está nos braços de outro homem. Este filme mostra o quanto pode
ser trágico o encontro com a anima, se o indivíduo não souber lidar com a força avassaladora do
arquétipo.
“A comunhão se passa em silêncio... A comunhão se passa em silêncio”
(BRETON,1999, p. 89).

Explica-lhe que esse beijo deu-lhe a impressão de algo sagrado, em que seus
dentes fizeram às vezes da hóstia, pois a anima quer vida, e a vida do corpo, assim
como a vida psíquica, se portam melhor e de forma mais saudável sem a moralidade
convencional (JUNG, 1935/2000).

8 de outubro de 1926

A Prostituta Sagrada

No dia seguinte ao beijo, Breton recebe uma carta de Aragon com uma
reprodução do quadro “A Profanação da Hóstia”, de Ucello. Um quadro de
interpretação difícil e intenções ocultas, como dirá o autor em nota.
Estes fatos, que trazem a hóstia e sua posterior profanação, mostram que
houve uma sincronicidade envolvendo o beijo e o quadro. Neste caso, o elemento
comum entre ambos é a ideia da prostitua sagrada, a sacerdotisa que nas culturas
matriarcais tinha a função ritual de conectar o homem com a deusa do amor e da
fertilidade (originalmente não era este o propósito do quadro, que em Nadja denota
algo de natureza sexual).
Nas tradições antigas, a sexualidade era parte dos rituais religiosos, sendo
uma forma de ligação com o divino.
Segundo Qualls-Corbett (1990), os atributos da prostituta sagrada, como
beleza, graça e sexualidade, derivam da reverência que ela presta à natureza
feminina, devotada à deusa.
Através dela o sexo torna-se um caminho para a espiritualidade. Uma forma
de autoconhecimento, onde o corpo é espiritualizado, e o espírito, corporificado.
A prostituta sagrada também está relacionada ao hierosgamos da alquimia, o
casamento sagrado, um forma de comunhão, que deve se passar em silêncio...
Com isso, ela não está mostrando só os seus dotes de uma prostituta profana,
a femme fatale que se entrega por dinheiro, ou simplesmente prazer, mas também
revelando o caminho para algo maior, onde o homem, através da deusa virginal,
descobre no corpo e na sexualidade os caminhos para a realização espiritual. Por isso,
a hóstia é o corpo sagrado, profanado pelo beijo, como bem disse Nadja, que na
condição de anima é também uma prova de fogo para as forças morais e espirituais
do homem (JUNG, 1935/ 2000).

9 de outubro de 1926

A inversão na relação ego e anima

No dia anterior, por um ‘descuido’ de Breton, que se dirigiu ao lugar errado,


os dois não se encontraram.
O mal entendido pode ser visto como uma defesa inconsciente do ego contra a
presença invasiva da anima, pois o seu poder e magnetismo é tanto que pode
fragilizar o indivíduo a ponto dele não se sentir preparado ou capaz de dar a resposta
emocional que ela exige. É como se o encontro com a anima também gerasse medo e
insegurança.
A propósito, o autor já vinha se questionando sobre os seus sentimentos por
Nadja:

“É imperdoável que continue a vê-la se não a amo. Ou talvez ame?”


(BRETON,1999, p. 85)

Quanto a Nadja, depois do desencontro do dia anterior, resolve ligar para


Breton, que não estava. A pessoa que a atendeu pergunta-lhe onde ele poderá
encontrá-la, e então ela responde, de forma irreverente e precisa:

“Não sou encontrável”.

Pouco tempo depois do telefonema chegou um recado para Breton, pedindo-


lhe que se dirigisse a um bar no final da tarde. Havia nela o desejo insistente de vê-lo
ainda naquele dia.
Estes são os primeiros indícios de que está em curso uma inversão na relação
entre ambos, pois o autor irá se tornar cada vez menos dependente de Nadja, que por
sua vez demonstrará uma crescente necessidade de sua presença e proteção.
Durante o encontro ela recebe a quantia prometida, e chora.
Mostra algumas cartas para Breton do amigo que a tirou da prisão, na ocasião
do contrabando, o que o deixou bastante enciumado. Esta pessoa, presidente do
Tribunal da Justiça, há poucos dias presidiu o júri de uma mulher acusada de
envenenar o amante.
Neste encontro ocorreram algumas coincidências curiosas, como se a
presença de Nadja tornasse o ambiente propício para eventos de natureza incomum.
Estes episódios, e tantos outros constatados ao longo do livro, serviram para
contestar o pensamento lógico e linear que caracterizava a visão de mundo
dominante, cujo modelo de pensamento era empregado nos romances tradicionais
para retratar e descrever os fatos através de suas relações objetivas, fiéis ao nexo
causal.
Ao surrealismo importava o fantástico e o inexplicável, ou seja, os domínios
da irracionalidade, o que permite um paralelo com as manifestações emocionalmente
intensas da anima, que em seus mistérios nos convence das coisas mais
inacreditáveis para que a vida seja bem vivida (JUNG, 1935/2000).

10 de outubro de 1926

A anima como inspiração e fogo criativo: o legado de Nadja

Neste dia encontram-se para jantar.


A facilidade com que Nadja desperta o interesse dos homens, principalmente
os de raça negra, é evidenciada pelo garçom que se mostra fascinado por ela.
Comicamente, ele se atrapalha todo ao servi-los, catando migalhas imaginárias na
mesa e deixando o vinho cair, isso sem falar nos pratos quebrados.
Nadja volta a falar do seu “Grande amigo”, o senhor do júri. Não fosse ele,
“seria hoje a última das putas”, conforme ela mesma confessa.
A forma como este respeitoso senhor a trata, colocando-a na cama para ouvi-
la pacientemente, repreendendo suas más condutas, e elogiando suas boas ações,
confirma a relação paternal, anteriormente referida como algo de natureza incestuosa.
Certo dia avistou-o sentado em um banco na estação do metrô, e percebeu o quanto
ele estava envelhecido e cansado. Talvez fosse a hora de deixá-lo e seguir adiante,
mas, como dirá Breton, Nadja se recusa a andar em linha reta.
Durante a caminhada, Nadja, que parece alheia e distante, vê uma mão traçar
um risco luminoso no céu.
Volta a falar da mão de fogo, e diz que esta mão é ele, André Breton.
Segue-se um silêncio, e o autor tem a impressão de que os olhos dela se
encheram de lágrimas.
Nadja então se põe na sua frente, chamando-o com quem chama por alguém
em um castelo vazio:

“Andre? André?... Você vai escrever um romance sobre mim”. (BRETON,1999,


p. 95)

De forma poética, antecipando o que destino lhes reserva, professa:

“Veja só: tudo se esvai, tudo desaparece. É preciso que reste algo de nós...”
(BRETON,1999, p. 95)

Sugere-lhe um pseudônimo associado ao fogo, pois o fogo sempre aparece


quando se trata dele.
O fogo seria então a inspiração, as energias ativas da criação, como diz
William Blake (1794/2004), em seu poema O Tigre:

“Em que distantes profundezas ou


céus ardeu o fogo de teus olhos?
Em que asas ele ousa voar?”

Suas palavras soam iniciáticas, como se conduzissem Breton ao reino do


inconsciente.
A entrega ao fogo seria então um ato de sacrifício, e por isso a mudança de
nome, como acontece nos ritos primitivos de iniciação, uma forma de se desprender
do ego mundano para que algo maior e mais profundo possa nascer. Isso mostra que
sua proposta traz, implicitamente, um conhecimento oriundo de uma natureza
arcaica, da qual Nadja é a sua portadora, pois a anima, como disse Jung (1935/2000),
costuma trazer consigo um saber secreto ou uma sabedoria oculta, que neste caso está
relacionada a um processo de transformação do ego.
Embora a relação entre ambos esteja ardente como o fogo, Nadja prevê sua
partida. Assim, para que o autor entenda como ela vive, compara-se ao banho da
manhã, quando sente seu corpo nu distanciar-se enquanto observa a superfície da
água, numa sutil referência ao que irá lhe acontecer em breve.

“Sou um pensamento no banho num quarto sem espelhos” (BRETON,1999, p.


95).

Ao termino do encontro, o autor percebe nela ares de Demônio. Está escuro, e


ele se assusta ao vê-la tremer de frio.
Esta será uma de suas últimas manifestações enquanto arquétipo do feminino,
pois a partir deste momento começará a prevalecer o seu lado humano- o pessoal
contrapondo-se ao suprapessoal-, ou seja, Nadja deixará de ser a portadora da
projeção da anima, que ao longo destes encontros contribuiu para que o autor
buscasse um diálogo criativo com o inconsciente, inspirando-o a escrever esta que é
uma das mais belas e bem sucedidas obras do surrealismo.
Nesta ocasião a anima, personificada na figura de Nadja, cumpriu com sua
função de propiciar o desenvolvimento da personalidade através do mergulho e
descoberta do mundo interior, o mundo irracional das emoções, da intuição e da
imaginação, justamente aquilo que propunha o surrealismo ao buscar a poesia
escondida sob o véu de todas as coisas.

11 de outubro de 1926

O inevitável desenlace: muito próximos do fim

A partir deste dia começa a se tornar mais explícito o descontentamento de


Breton em relação a Nadja. Queixa-se do seu atraso, e ao caminharem nota o quanto
estão distantes um do outro. Impacienta-se com suas brincadeiras.
Nadja mostra-lhe o hotel, com ares de prostíbulo, em que ficou hospedada
quando chegou a Paris, e que se chamava Esfinge, o nome da terrível criatura que
cruzou o caminho de Édipo, e que devorava aqueles que não decifravam o seu
enigma.
Em termos psicológicos, é uma imagem do inconsciente em seu aspecto
devorador, principalmente diante da racionalidade do pensamento lógico, que não
percebe o ardil por trás do enigma, fácil de ser respondido até por uma criança, como
observou Jung (vale ressaltar que Édipo lançou-se ao abismo, de onde veio a Esfinge,
que para lá retornou. O abismo em que ambos se lançaram poderia ter sido o destino
de Breton, desde o instante que atravessou o caminho de Nadja).

 de outubro de 1926

O caminho da estrela e as outras faces da anima

Este será o último dia relatado em forma de diário. Haverá ainda referência ao
dia 13, e depois reflexões e comentários sobre Nadja, acrescidos de fotos e
ilustrações.
Neste encontro ela mostra o seu primeiro desenho, inteiramente profético e
revelador.
Trata-se de uma máscara retangular com um prego na testa, através do qual é
fixada, e de onde sai uma linha pontilhada com um gancho no meio e um coração na
extremidade.
No alto da imagem há uma estrela negra. Esta estrela é emblemática, pois soa
como um prenúncio do livro Arcano 17, que será escrito anos depois, e onde o autor
falará sobre o amor. A carta deste arcano chama-se “A Estrela”, e traz uma mulher
nua sob um céu estrelado, indicando que o caminho a ser percorrido implica no
encontro com o feminino.
Isso significa que a anima de André Breton, embora tenha se personificado
em Nadja, o acompanhará como uma estrela no céu, guiando-o em seu caminho (no
primeiro encontro ela já havia previsto uma estrela no caminho de André Breton).
Mais tarde, como se previsse a separação entre ambos, Nadja irá se referir a si
mesma como Melusina, a lendária figura que escondia por trás de uma deslumbrante
mulher, o horripilante corpo de uma serpente. Ao ter seu segredo descoberto
enquanto tomava banho, se vê obrigada a fugir e abandonar este mundo.
Enquanto imagem da anima, o mito mostra que o feminino, oriundo das
esferas profundas da psique, tem que partir em algum momento, e retornar às suas
origens, pois não pertence a este lugar, o mundo da superfície, mas àquele outro, o
mundo misterioso do inconsciente.
A imersão semanal de Melusina em um tanque de água tem esse sentido de
retorno às origens, onde a vida se renova, como um processo de morte e
renascimento.
Foi o que mostrou Nadja ao prenunciar sua partida durante o banho,
confirmando que o feminino sempre retorna para o lugar de onde veio, embora possa
voltar a se manifestar com um aspecto diferente, e nas mais diversas ocasiões (a
própria Melusina, em forma de pássaro negro, sempre retornava ao castelo para
anunciar a morte de alguma pessoa do seu círculo familiar).
Isso significa que o indivíduo não pode permanecer identificado com a anima,
aprisionado por suas projeções. É preciso que ele se diferencie dessa figura,
entendendo que ela é uma personificação do seu mundo interior, uma manifestação
do inconsciente que não deve ser confundida com o seu ego, nem tampouco com a
pessoa que é a sua portadora. Assim, o indivíduo pode se libertar de suas projeções,
assimilado-as como algo oriundo de sua psique.
Em seguida, Nadja lhe pergunta quem teria matado a Górgona, numa
provável referência à Medusa, a terrível criatura que tinha a cabeça forrada de cobras,
e que transformava em pedras quem olhasse diretamente para ela.
Psicologicamente, a Medusa representa o horror da consciência frente ao
inconsciente, algo a ser combatido pela lógica racional, como fez Perseu ao cortar-
lhe a cabeça com sua espada, um símbolo do poder discriminatório da razão que se
impõe através do pensamento lógico e objetivo.
O autor confessa que já não consegue mais acompanhar seu solilóquio,
seguido de longos silêncios que tornam sua fala intraduzível. Percebe-se que não há
mais entendimento entre eles.
Resolvem pegar um trem e sair de Paris.
Na estação despertam a atenção das pessoas, e Nadja diz que é devido à
chama que ambos têm no olhar. Faz referências elogiosas aos olhos de Breton e o
convida para um passeio na floresta naquela noite (seria ela a mulher bela e nua que
um dia ele desejou encontrar na floresta?).
No entanto, o horário os faz desistirem de ir à floresta. Já não há mais no
autor o ímpeto em seguir cegamente os ditames de sua anima.

Símbolos, metáforas e imagens surreais

A partir deste ponto, e nas páginas seguintes, o livro assumirá um tom mais
reflexivo, deixando de ser escrito em forma de diário. Haverá também uma presença
maior de fotos e ilustrações, denotando a importância do uso de outras formas da
linguagem, menos conceitual e mais imagética, o que está de acordo com a
linguagem do inconsciente, inteiramente simbólica e metafórica.
O autor então se questiona quem teriam sido eles diante da realidade, essa
mesma realidade que agora está adormecida aos pés de Nadja, como um cão vadio.
Afinal, onde poderiam viver em paz, entregues ao furor dos símbolos?
“Do primeiro ao último dia tomei Nadja por um gênio livre, algo como um
desses espíritos do ar que certas práticas de magia permitem momentaneamente fixar,
mas em caso algum submeter”. (BRETON,1999, p. 105)

O livro traz uma imagem com os olhos de Nadja, que aparecem


quadruplicados em uma montagem. O número 4, e seus múltiplos, como o 16,
designam a totalidade, como se o inconsciente possuísse uma estrutura quaternária (a
importância simbólica dos números também está presente no fato dos encontros
terem ocorrido ao longo de 10 dias, no mês 10 -outubro-, e de Nadja ter sido avistada
pela primeira vez a 10 passos de Breton, pois o 10 é o número da perfeição, resultado
da soma de 1+2+3+4).
Portanto, a foto mostra que a anima é um caminho indispensável para se
alcançar a plenitude, pois ela é que conduz o homem à sua interioridade.
Mas Nadja, embora seja a portadora desta projeção tão poderosa, também é
uma pessoa comum, como se vê quando o autor diz que ela o tomou por um deus,
acreditando que ele pudesse ser o sol.
Este fato mostra que Nadja também projetou seus conteúdos inconscientes
sobre Breton, vislumbrando nele o seu animus, ou seja, a personificação masculina
do inconsciente da mulher.
O autor, que diante dela já havia se sentido aterrado aos pés da Esfinge, se
questiona quem é a “verdadeira Nadja”, essa criatura, inspirada e inspirante, que
vagueia à noite pelas florestas em busca de vestígios de pedras, e que elegeu a rua
como único campo válido de experiências.
Como se estivesse diante de um enigma, ele diz que “é possível que a vida
peça para ser decifrada como um criptograma”. (BRETON,1999, p. 107)
Assim, considerando-se que a anima é também o arquétipo da vida, Nadja é
parte deste criptograma a ser decifrado, como o retrato de uma mulher contemplada
por alguém que se deixa fechar à noite num museu, para poder vê-la no escuro,
sozinho, com a luz de uma lanterna.
Breton então menciona o dia em que resolveu afastar-se definitivamente dela.
Foi no início de uma tarde do dia 13 de outubro, depois que ela lhe contou um
episódio onde foi violentamente agredida por um homem, a quem recusou sua
companhia por julgá-lo baixo demais. Aos gritos de socorro, manchava-o
propositadamente com seu sangue, enquanto empreendia fuga do lugar.
A decisão de não mais vê-la o fez chorar demoradamente, como há muito não
chorava. Todos os canais emocionais se mostraram abertos, como se trouxessem à
tona algo que há muito tempo vinha procurando dentro de si, e que finalmente
encontrou naquele momento.
Suas lágrimas, que pareciam redimi-lo do inevitável sofrimento que seria sua
vida se decidisse continuar com ela, soam como uma resposta ao enigma que fora
Nadja, uma resposta emocional que jamais se deixaria reduzir a conceitos ou a
linguagem lógica e racional, algo do qual o surrealismo sempre procurou se
desvencilhar.
Na hora do adeus, ela ainda lançou uma dúvida no ar, porém, sua partida foi
mesmo em definitivo, o que dependeu unicamente dele. Sua atitude confirma que ele
libertou-se de suas projeções, conscientizando-se das mesmas.
Psicologicamente, isso significa que a consciência foi ampliada pela
integração da anima à personalidade de Breton, não mais identificado com Nadja,
mas capaz de viver, apesar dela, ou mesmo, graças a ela, pois a anima, com sua
forma própria de vida, não só vive por si mesma, como também é aquela que nos faz
viver (JUNG, 1935/2000)
Embora tenha decido se afastar, ele ainda a reencontrou em várias ocasiões,
porém, não mais com o mesmo ímpeto e fervor de antes.
Sua vida continuava sendo governada pela intuição, o que ainda maravilhava
o autor, que tentava fornecer-lhe os meios necessários para sua subsistência. Comer e
dormir eram apelos mundanos aos quais Nadja parecia não se importar. A ela
interessava apenas a presença de Breton, dando pouca ou nenhuma atenção às suas
palavras.
O autor retoma o romance entre os dois através de algumas ilustrações que
Nadja fez para ele, como “A Flor dos Amantes”, e o “retrato simbólico dela e meu”,
onde ela se representou como uma sereia. Seguem-se a estes desenhos uma série de
fotos que reúnem objetos antropológicos com obras de arte moderna (entre estes
objetos estão uma estátua de arte primitiva, com formato fálico e o corpo nu, com a
inscrição “eu te amo, te amo”, e o quadro “Mas os homens nada saberão”, de Max
Ernest, que traz no alto uma imagem alusiva ao ato sexual, e no centro, uma mão).
Este trecho do livro, que concilia o arcaico e o novo, fornece outra
perspectiva sobre os dias que passaram juntos, permitindo uma leitura menos
conceitual e muito mais simbólica do que foram estes encontros.
Assim, as imagens apresentam não só uma visão surrealista do romance
vivido por eles, mas também expressam o encontro de André Breton com sua anima,
presente na temática dos desenhos de Nadja, como “o sonho do gato” e “a saudação
do diabo”.
Após apresentar os desenhos, fotos e ilustrações, o autor prossegue em suas
explanações, admitindo que eles já não se entendem mais, e que ela deixou de
manobrá- lo como antes. Sem se deixar iludir pela sua teia de ilusões, ele consegue
pensar nela de forma consciente e reflexiva.
O autor então compreende que nunca esteve à altura do que Nadja lhe
propunha, mas isso pouco importa, pois, mais importante do que satisfazer-lhe os
desejos, era viver no amor a realização de um milagre, algo que ele conseguiu
realizar.
Neste ponto Breton é informado de que Nadja enlouqueceu e foi internada no
sanatório de Vancluse. Eis o signo de sua partida, semelhante ao destino de
Melusina, e de todos aqueles seres élficos por quem os homens se apaixonam
loucamente, mas que um dia partem para nunca mais voltar.
Como disse Jung (1935/2000), sabedoria e loucura aparecem na natureza
élfica como uma coisa só, principalmente quando estão relacionadas à anima.
Ao abordar sua internação, à qual ele não poupou críticas, o autor questiona a
psiquiatria e seus métodos coercitivos de tratamento.
Esta segunda parte do livro termina de forma obscura, trazendo alguns
questionamentos bem intrigantes. Ao grito de “quem vem lá?”, o autor responde:

“És tu Nadja? É verdade que o além, todo o além esteja nesta vida? Não te ouço.
Quem vem lá? Serei eu apenas? Serei eu mesmo?” (BRETON,1999, p.138).

A qual além o autor se refere? Possivelmente ao inconsciente, cuja linguagem


simbólica tem uma natureza prospectiva, ou teleológica, onde o futuro é antecipado,
principalmente com a finalidade de compensar as atitudes unilaterais da consciência,
complementando-a com o seu oposto.
Quanto à pergunta “quem vem lá?”, podemos dizer que ela aponta para a
anima enquanto destino a ser revelado por meio do símbolo, como uma estrela no
céu, “uma estrela em cuja direção você ia”. (BRETON,1999, p.67)
Nesse sentido, a anima, enquanto personificação do inconsciente, é também o
destino do homem, pois, por trás do jogo cruel do destino humano, se esconde um
propósito secreto que nos conduz ao Mysterium Coniunctionis, uma união misteriosa
que a alquimia representa através da conjunção, ou casamento sagrado, entre o sol e a
lua. Assim, é em direção a anima que caminhamos, e é justamente ela que nos espera
na próxima esquina, como aconteceu com Breton ao passar por aquele cruzamento,
fato que mudaria sua vida para sempre.

O amor surrealista

Na terceira parte, escrita após quatro meses de interrupção, Breton relê sua
história com o coração curvado pelo peso de uma nova emoção.
Retoma os lugares pelos quais passaram, e percebe o quanto estão diferentes,
da mesma forma que o seu modo de ver também já não é mais o mesmo.
Se no início do livro foram os olhos de Nadja que lhe chamaram a atenção,
agora são os olhos provocantes da estátua de uma mulher, que em sua pose imutável,
finge apertar furtivamente a liga de sua meia.
Em nota o autor faz então a última referência a Nadja, relatando o dia em que
viajavam de carro, quando ela buscou tapar-lhe os olhos, enquanto ele dirigia,
convidando-o a existir para todo o sempre, um para o outro, no olvido de um beijo
interminável. Uma prova trágica de amor.
No final, a história vivida por eles é contada para uma outra mulher, que
Breton conheceu depois de Nadja, e que no livro é chamada apenas de “Tu” (Toi).
Trata-se de uma pessoa sem nome, também maravilhosa, que não conhece o
mal, a não ser por ouvir falar, e que não é nenhum enigma, e nem nunca será.
Com suas mãos erguidas para o alto, apontando ”AS ALVORADAS”, ela
recebe um pouco desta chuva ao ouvi-lo contar sua história. Esta é uma cena que faz
lembrar a esperança anunciada por Nadja, que em sua reclusão forçada, repousa
agora em algum lugar frio e distante, uma estrela intocável, plantada no coração do
finito. (BRETON,1999)

“Que a grande inconsciência viva e sonora que inspira meus próprios atos
probantes disponha para sempre de tudo que sou”. (BRETON,1999, p.147)

A integração da anima, além de permitir a descoberta da própria feminilidade,


o que consequentemente leva a uma relação mais criativa com os aspectos irracionais
e instintivos da psique, tão bem representados em Nadja, permite também que o
relacionamento com o sexo oposto seja menos impulsivo e mais amadurecido, pois,
com a integração da anima, o ego consegue lidar melhor com a impetuosidade do
inconsciente, sem se deixar dominar.
Percebe-se que o autor inicia este novo relacionamento de forma confiante,
sabendo que “isto ainda é amor” (BRETON,1999, p.150). Isso significa que o eros,
enquanto capacidade de amar e se relacionar, está fortalecido, afinal, uma nova
relação se iniciou sem os riscos da aventura anterior, que, embora tenha sido uma
aventura fantástica, surreal, poderia ter terminado em uma morte trágica.
Esta é uma das conclusões psicológicas do livro, ou seja, um bem sucedido
encontro com a anima, o que permitiu ao autor se lançar nesta nova aventura
amorosa, sinalizando sua capacidade renovada de amar. O encontro com Nadja
proporcionou-lhe a aventura do amor, e com isso uma transformação importante no
seu modo de ser e de viver, pois o amor surrealista conduz ao maravilhoso, visando à
libertação e reconciliação do homem com a vida, e, consequentemente, com a sua
anima, este poder interior e daimon fundamental para a realização plena de si mesmo.

f.massao@psicologiajunguiana.psc.br
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