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Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Departamento de Ciências Sociais


Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Disciplina: Memória, Tradição e Oralidade
Professor: Drº Luiz Assunção
Aluna: Maíra Moraes Cardoso Leal

Ficção e esquecimento:
Breve análise de Brilho Eterno de uma mente sem lembrança

Natal 06 de Agosto de 2010

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O objeto de análise neste ensaio é Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança (the
eternal sunshine of the spotless mind, Michel Gondry, 2004) é um filme escrito por
Charlie Kaufman (em 2003) e dirigido por Michel Gondry (2004) e as questões por ele
sugeridas em relação à memória e o esquecimento. No mais, avançaremos um pouco
nas discussões sobre a relação entre a ficção (na forma de filme) e a memória.

i. O filme e a questão da autoria

O diretor de um filme é considerado, normalmente, seu autor, mas dentro da indústria


normalmente por trás dele existe não apenas uma equipe de profissionais técnicos e
artísticos mas há um texto que serve como sedimentação para dar movimento a todo um
maquinário de produção. Em muitos casos um roteiro não é essencial, especialmente se
estamos falando da indústria de filmes hollywoodiana que em muitos casos sacrifica o
roteiro em detrimento de efeitos especiais e ou atores bonitos.

Num filme longa metragem, especialmente em um de ficção como este a autoria


depende de vários fatores. A primeira é que a princípio o Diretor é o autor direto,
embora não seja incomum que ele divida essa autoria com o roteirista, porque este
afinal criou a história que o primeiro decupa1 do roteiro. Ele é responsável pela criação
artística, por toda a transformação das palavras em imagens.

Há quem acredite e quem dê crédito de um filme ao produtor deste (é assim que


acontece, por exemplo, no prêmio Oscar 2 - no qual o produtor do filme recebe o prêmio
de melhor filme) porque o produtor é responsável por levantar o dinheiro necessário
para produzir um filme, e também pode apenas comprar os direitos de um roteiro e

1
Decupagem é o processo pelo qual as cenas escritas são decupadas para processos de filmagem e
sonorização, no qual a idéia e o diálogo descritos no papel são transformados em imagem.
2
Oscar (Academy Awards, no original em inglês) é um prêmio entregue anualmente pela Academia de
Artes e Ciências Cinematográficas, fundada em Los Angeles, Califórnia, EUA.

2
montar uma equipe de profissionais que trabalhe independentemente. Sem falar nos
outros profissionais responsáveis por partes importantes do filme: o diretor de arte, o de
fotografia, e um grupo de técnicos que pode variar de tamanho. Onde fica a autoria
nestes casos? Como determiná-la?

Para tentar esclarecer a questão da autoria num filme tomarei de empréstimo a análise
de Paul Zuntor (1915 – 1995), sobre a questão da autoria 3 na poesia medieval e tentarei
transportá-la pra cá*. Segundo Zuntor, antes de sua produção o texto existe enquanto
voz (devemos nos lembrar que ele analisa a poesia medieval) antes de se tornar texto
qualquer história é viva. Num certo sentido, a morte da história é a sua escritura, porque
é quando a história é escrita que ela tem um fim em si. Ela deixa de ser livre para ser
aprisionar no seu próprio léxico.

A partir desse entendimento, podemos considerar o roteirista Charlie Kaufman, como


autor de Brilho Eterno de uma mente sem lembrança, mesmo que esta seja uma obra
original, o escritor toma dentro da linguagem formal o universo da voz*, e como boa
parte da pesquisa acadêmica exige que encontremos uma base sólida (quer dizer,
escrita) é no roteiro de Kaufman que nos concentramos para estabelecer o suporte
material desse trabalho pois ele contém os elementos para estabelecer os problemas que
estão no filme e são de interesse das nossas investigações. Consequentemente, deixarei
a cargo de Michel Gondry o trabalho de intérprete ainda que considere os atores, por
exemplo, como intérpretes menores.

Finalmente, apenas para efeito de compreensão é necessário apontar que Brilho


Eterno4 não é um caso isolado dentro da obra de Charlie Kaufman ele repetidamente
nos oferece um panorama interessante sobre como o ser humano e lida com as questões
de sua mente: ele escreveu entre outras coisas três roteiros que foram dirigidos por
diferentes intérpretes (diretores): Quero Ser Jonh Malcovich (Being John Malcovich,
Spike Jonze, 1999) e Adaptação (Adaptation, Spike Jonze, 2001) e depois escreveu e
dirigiu uma obra antológica chamada Sinedoche, Nova Iorque ( Synecdoche, New
York, 2008).

3
No livro A Letra e a voz, 1987
4
A partir daqui farei referência ao filme Brilho Eterno de uma mente sem lembrança apenas com as
palavras Brilho Eterno, para facilitar a leitura

3
ii. Enredo, memória e esquecimento

“O esquecimento constituí antes de tudo um dos fundamentos de toda a


ficção, aos níveis do imaginário e do discurso” (Paul Zumtor, Tradição
e Esquecimento, )

A temática memória e imaginação são reincidentes em toda a sua obra de Charlie


Kaufman e a sua abordagem é realmente única: suas personagens não são um fim em si,
são verdadeiras construções conceituais que no decorrer de sua narrativa entram em
conflito consigo mesmas, com outras personagens e até mesmo com o público que
assiste aos filmes.

Em Brilho eterno somos apresentados a duas dessas personagens kaufneanas:


Clementine (interpretada por Kate Winslet) é uma mulher verborrágica energética, que
pinta os cabelos de cores extravagantes e trava conversas que logo se tornam
argumentações com pessoas estranhas sobre qualquer assunto. Já Joel (interpretado por
Jim Carey- no que é considerado o melhor trabalho de sua carreira) é um homem tímido
que se sente intrigado pela energia dela, um sujeito que sem muita explicação parece
miserável e triste.

4
Conforme o filme avança somos informados que a primeira cena dele, em que
Clementine e Joel se conhecem no trem (eles se conhecem num trem saindo da cidade
para uma praia num ambiente invernal), não é de fato a primeira vez que se vêem
embora não saibam disso. O interesse que tem um no outro não era inédito. Eles voltam
a se encontrar ali, sem ao menos lembrarem que alguns meses antes viviam como casal
num mesmo apartamento.

Durante o filme eles descobrem isso, nós também descobrimos que eles são, mais do
que qualquer coisa memória afetiva um do outro e também esquecimento um do outro.
Eles (e peço desculpas por entregar o enredo) escolheram passar por um procedimento
médico para esquecerem um do outro em uma clínica chamada ironicamente – e
propositalmente – Lacuna ltda.

Nessa clínica pessoas podem um médico chamado Dr. Howard Mierzwiak (Tom
Wilkinson) atende pessoas que querem esquecer de alguma coisa e é fato que os amantes
são aqueles que encabeçam a lista dos que querem esquecer. O processo se dá, com as
palavras que Dr. Mierzwiak diz para Joel: “Nós vamos começar por suas memórias
mais recentes e depois vamos para as mais antigas – existe um cordão emocional que
liga todas nossas memórias – e conforme nos erradicarmos esse cordão isso dá início a
uma degradação das memórias – na hora que você acordar pela manhã, todas as
memórias que tivermos mirado terão sido apagadas e desaparecerão. Como acontece
com um sonho na medida em que acordamos.”

Mas Dr. Mierzwiak não trabalha sozinho nessa clínica, ele tem um assistente chamado
Stan outro chamado Patrick e uma secretária chamada Mary, que tem uma quedinha por
ele. Essas personagens parecem meramente secundárias, mas mesmo assim são elas que
interferem na vida de Clementine e Joel, conforme vamos descobrindo no decorrer do
filme, e elas mesmas têm problemas e implicações, suas memórias também são parte da
história.

Somos apresentados através de cortes bruscos e nada convencionais, ao passado e o


presente dessas duas pessoas enquanto seguidamente se lembram e tentam se esquecer,
especialmente Joey, que funciona como personagem principal no filme, quando na

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verdade a memória de sua relação com Clementine é o fio condutor da história. (sendo
lembrada, esquecida ou a tentativa de preservá-la).

Gondry como excelente intérprete, nos leva, através de uma série de imagens às
construções da memória de Joey, que embora tenha decidido racionalmente fazer
Clementine desaparecer de sua vida, durante o processo técnico protege suas
lembranças dela do seu próprio esquecimento, escondendo a lembrança daquela que
uma vez amara, dentro de outras completamente fora de contexto (como por exemplo a
lembrança de Joey pouco mais de um bebê sendo banhado por sua mãe na pia da
cozinha, na qual ele esconde Clementine quando está esta sendo apagada de sua
memória, até que as lembranças se confundem ver: imagem abaixo).

Nesse momento somos intrigados por uma série de perguntas que em parte são
respondidas no filme, mas que em sua maioria permanecem misteriosas: porque alguém
resolve esquecer outra pessoa, apagar suas memórias? E a partir desta pergunta
podemos nos entregar a muitas outras: como as memórias se impregnam uma das
outras? Quais são as nossas memórias e o que são as dos outros de nós?

Quando chegamos ao final da história – do filme e também do roteiro – percebemos


uma discrepância entre os dois. Essa diferença nos permite um escopo muito maior do
tratamento da memória e do esquecimento no filme.

No rascunho de Charlie Kaufman, no final, nós vemos Clementine, voltando ao


consultório do Dr. Mierzwiak e pedindo para que sua memória de Joel seja apagada
novamente, e descobrimos que aquela fora a 15ª tentativa durante toda uma sua vida,
que Clementine tentava apagar Joel de sua memória. Por quinze vezes eles voltaram a
se encontrar e rememorar um do outro. É um final amargo que nos diz que algumas
coisas nunca são esquecidas por mais tempo que tenha se passado, por mais que se

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tenha tentado e é triste porque ao contrário do que esperamos o amor não vence no final,
durante anos das suas vidas a convivência dos dois acaba afastando um do outro de
maneira irreversível e mesmo que se amem não conseguem superar os seus próprios
ímpetos e Clementine parece ser aquela que tem a coragem para tirar as coisas de suas
formas cotid.

Por outro lado, o filme nos oferece um desfecho muito mais esperançoso, o que a partir
de uma memória desfalcada se pode criar uma nova relação, que o esquecimento é o
responsável pela invenção, que ele impulsiona o movimente de recriação e que é a
recriação a principal função da memória.

iii. Filme, memória e performance

A história de Brilho Eterno nos oferece um circulo completo de interrogações sobre a


natureza da memória, da nossa relação com ela e da necessidade subseqüente de lembrar
ou esquecer.No entanto, além das questões previamente debatidas, ele nos uma de visão
interessante sobre a relação entre as formas visuais de comunicação, especialmente o
filme, que aqui aparece sobre forma de longa metragem de ficção, e as questões
pertinentes na cultura. Um filme pode discutir tanto a relação entre memória e
esquecimento, quanto pode discutir, por exemplo, a relação entre invenção e tradição
(que era um bom tópico para escrever um artigo sobre o “Narradores de Javé” de
Eliane Jardine,, por exemplo).

Ele não serve aqui como metáfora para simplesmente ilustrar uma idéia, ele possui em
si uma idéia e a desenvolve independentemente de conceitos, embora aplique,
sutilmente muitos deles e ele mesmo, o filme, apresenta-se em situação performática
enquanto uma ação que inexiste sem seu contato com um público.

A vantagem do filme como produção áudio-visual é que ele é constantemente afetado


pela cultura à sua volta e não estar preso a qualquer tipo de erudição – num filme

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podemos encontrar uma referência a Niezsche e a música pop num mesmo diálogo (em
Brilho Eterno temos um bom exemplo disso.)

Como o momento em que um autor, um intérprete e uma idéia, um texto e um público –


além de um momento em que todas essas partes – se realizam. Num ato, ele pode ser
que é mais do que uma instância comunicativa, transforma-se fundamentalmente, numa
instância performática e pode trazer para uma discussão conceitual, sujeitos que num
outro cenário ( com o perdão do trocadilho) não se sentiriam à vontade – como na
academia – em discutir memória, esquecimento, autor, escritor, história e por aí vai.

Como Walter Benjamim (1892-1940), acreditamos no filme como espaço de produção e


como veículo democrático, não só de produção (um tendência que só aparece hoje,
setenta anos depois de sua morte), mas como lugar de afetação: o filme ressente a sua
incapacidade de definição, por um lado ele é popular, por outro é erudito, é arte e
também é comunicação em massa. Antes uma vantagem do filme que um defeito.

A escolha de Brilho Eterno de uma mente sem lembrança não foi à toa, pelo
contrário, acredito que uma história de ficção, especialmente se transformada num
filme, pode fazer um apanhado conceitual tão vasto quanto toda uma teoria social, ainda
mais porque enquanto performance, ele (filme) nos permite uma dupla afetação (a
condição performática) e possíveis ramificações, como por exemplo, esse pequeno
ensaio.

Ele não seria possível se de alguma maneira ao ver Brilho Eterno, as questões acerca de
memória e esquecimento não teriam sido trazidas à tona e não teriam encontrado
representações visuais tão específicas quanto aquelas de Brilho Eterno, de modo que
essas representações povoam um espaço visual (dentro de uma cultura que se torna a
cada dia mais visual) e os conceitos discutidos por um número considerável de teóricos
como: Zuntor, Benjamim, Hawbacks, Balandier e demais os teóricos da cultura, cujos
conceitos presos a dimensão escrita podem nos escapar – a despeito da intenção
duradoura da palavra escrita – se transformados em imagens podem nos levar à novos
níveis de entendimento. Um entendimento que aceite a existência de uma mobilidade e
especialmente de sua própria recriação.

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