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Breves considerações sobre O conceito de ironia,

de Søren Kierkegaard
JACQUELINE OLIVEIRA LEÃO*

Como toda filosofia inicia pela dúvida, assim também inicia pela
ironia toda vida que se chamará digna do homem.
Kierkegaard

Resumo
Este ensaio intenta discutir sobre o conceito de ironia em Søren
Kierkegaard. Além disso, objetiva demonstrar a relação entre
pensamento e palavra, proposição e significado em relação à própria
ironia.
Palavras-chave: Ironia; Kierkegaard; Subjetividade.

Abstract
This essay intends to discuss the concept of irony in Søren
Kierkegaard. Furthermore, it aims to demonstrate the relationship
between thought and word and meaning and proposition in relation to
the irony itself.
Key words: Irony; Kierkegaard; Subjectivity.

*
JACQUELINE OLIVEIRA LEÃO é Doutora em Literatura Comparada pela UFMG, Pós-Doutora em
Estudos Literários pela UFMG e docente no Programa de Pós-Graduação (FEAD); docente e
pesquisadora institucional da FAMINAS-BH.

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O texto que ora se tece (1991), a ironia configura-
persegue uma perspectiva se no mal-entendido, na
ensaística, e tem como dualidade entre o
principal objeto a análise, fenômeno e o conceito. O
a leitura, de O conceito de início da ironia [e o seu
ironia1 [na verdade, a próprio esgotamento]
Dissertação de Mestrado, manifesta-se em Sócrates
defendida em 1841], de pelo silêncio da pergunta
Søren Kierkegaard. Daí sem resposta. A ironia é a
decorre o seguinte determinação da
questionamento: como subjetividade, pois, com
entender a relação irônica Sócrates, a subjetividade
entre interioridade e sobrepôs o seu direito na
exterioridade, pensamento história universal,
e palavra, proposição e elevando-se à segunda
significado? potência, subjetividade da
subjetividade ou à reflexão
O entendimento da concepção de ironia
em Kierkegaard é base para o estudo de da reflexão: a realidade tomou
sua dialética, principalmente, nas obras consciência da ironia declarada,
que compõem o estádio estético. Para nitidamente, como ponto de vista.
Muecke (1995, p. 46-47), a ironia é o Além disso, Kierkegaard também
eixo que orienta e articula as discussões afirma que, para Sócrates, a realidade
e os pontos de vista da filosofia substancial perdera o valor, passando a
existencial kierkegaardiana, pautada nas ser, cada vez mais, irreal, infinitamente
determinações subjetivas do indivíduo irônica, fato que levou o filósofo grego
em particular: por isso, é impossível ser a ser estrangeiro para si mesmo, a ter
irônico de tempos em tempos ou em sempre comportamento estranho,
determinadas situações para ser, apenas, caricatural, diante da realidade dada.
admirado como ironista. Nesse sentido, imbuído do
Por outro lado, para os leitores de comportamento irônico, configurado
Kierkegaard, talvez, a grande pela subjetividade dialética (jogo de
dificuldade encontrada no entendimento movimento infinito com a realidade),
do conceito de ironia refira-se à ampla Sócrates fingia ser ignorante, fingia
carga semântica intrínseca à própria nada saber no intuito de ensinar os
ironia. Essa palavra, que carrega outros e combater o helenismo, arruinar,
diversas possibilidades de interpretação, indiretamente, a ordem existente.
de incertezas significativas e ambíguas, Contudo, é tão irônico “fingir saber
quando aplicada no uso corrente da quando se sabe que não sabe, como
linguagem, estabelece uma relação fingir não saber quando se sabe que se
inesgotável de hiperonímia entre termos sabe” (KIERKEGAARD, 1991, p. 218).
que se confundem com dissimulação,
hipocrisia, fingimento e mentira. Vale o registro de que a atuação docente
de Sócrates era informal, sem qualquer
Já sob o ponto de vista de Kierkegaard semelhança com a ação dos sofistas,
pois ele acreditava que sua missão de
1
Para este estudo, veja-se: KIERKEGAARD,
parteiro da verdade fora outorgada por
Søren. O conceito de ironia. Trad. Álvaro Delfos. A prática da maiêutica, voltada
Valls. Petrópolis: Vozes, 1991. para o conhecimento de si mesmo,

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propiciava aos seus interlocutores a representar qualquer experiência
realização do trabalho de parto da centrada na realidade dada, pois, por
verdade, levando-os a buscar, através da trás do papel, não existe o mundo real,
razão, o significado das palavras de seus mas a imensidão que se dá além da
próprios discursos. O discurso socrático escritura, além do livro.
não se fazia representar objetivamente
Ademais, a ironia, às vezes, sobrepõe-se
pela ideia, pois o dito correspondia a
a si mesma quando o sujeito pressupõe
significados diferentes ou opostos,
ter sido compreendido. Nesse caso,
passíveis de múltiplas interpretações, já
pressupõe-se a relação idêntica entre a
que “o exterior não estava
sua palavra e o seu pensamento.
absolutamente numa unidade harmônica
Entretanto, se de fato o enunciado
com o interior, mas antes era o contrário
corresponde à opinião implícita ou
disto” (KIERKEGAARD, 1991, p. 25).
explícita do sujeito, a coisa dita
Dessa forma, a ironia manifesta-se no representa, identicamente, o
momento em que a palavra (fenômeno) pensamento. Dito de outro modo, o
se mostra em oposição ao pensamento interlocutor compreende o enunciado, o
(essência), e, no jogo irônico, o sujeito é sujeito encontra-se positivamente livre,
negativamente livre, pois o enunciado amarrado por suas palavras, tanto em
não corresponde ao seu pensamento, relação a si mesmo, como em relação
sendo, ao contrário, distorcido do aos outros, porque solucionado o
sentido imediatamente pretendido. A enigma, a ironia anulou a si mesma, foi
definição mais apropriada de ironia, superada.
segundo Kierkegaard (1991, p. 215), é De modo geral, pode-se afirmar que o
“figura do discurso retórico, cuja discurso comum difere, e muito, do
característica está em se dizer o discurso irônico, à medida que, no
contrário do que se pensa”. Contudo, o primeiro, busca-se a relação de verdade
conceito de ironia não se apresenta de entre a palavra e o pensamento, ou seja,
forma sistematizada, devido à a identificação entre a essência e o
inconsistência da linguagem e à re- fenômeno. Dessa forma, pode-se dizer
significação do próprio conceito ao também que se houvesse o pensamento
longo da história universal. A ironia sem a palavra, não haveria o
permanece na sua expressão mais pensamento, e, se houvesse a palavra
simples como estratégia dicotômica da sem o pensamento, também não haveria
enunciação implicada no caráter de a palavra. Essa linha de raciocínio alude
significação oposto ao que é dito. a Platão ao associar verdade e
identidade: “todo pensar é um falar”
Além do mais, se todas as concepções
(KIERKEGAARD, 1991, p. 215).
de ironia se encontram subordinadas à
Logo, o sujeito que se submete ao jogo
ironia em si, a aceitação do conceito
irônico angustia-se diante da descoberta
formulado por Kierkegaard não encerra
de que a realidade não tem um sentido
a dimensão significativa da ironia, pois,
único ou não é imediatamente legível.
o pensamento irônico diz mais do que o
pensamento objetivo é capaz de Corriqueiramente, para Kierkegaard, a
explicitar. Por outro lado, a ironia, ironia consiste em dizer, em tom sério,
como extensão do ponto de vista o que não é pensado seriamente,
reflexivo e crítico do sujeito diante da embora, de forma mais rara, seja
realidade que o circunda, atesta a possível lançar mão da retórica irônica
própria incapacidade da linguagem em ao dizer algo sério em tom de

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brincadeira. De ambas as maneiras, a podem ser provocados tocando de
ironia é arte sedutora, encerrando algo uma certa maneira; aqueles
de enigmático, paradoxalmente, parecem ter uma necessidade
revelador. Por outro lado, a ironia pode natural em si, enquanto nos
assumir, às vezes, certo aspecto de perturba tanto que os lados bons
sejam submetidos a tantas
nobreza ao se permitir ser
inconseqüências.
compreendida indiretamente e com
dificuldade. Contudo, ainda que Por outro lado, mostrar-se como figura
rebaixada à categoria de discurso de oposição é também característica da
simples, a ironia “viaja na carruagem de ironia. Dessa forma, são
um incógnito e desta posição elevada comportamentos extremamente comuns
olha com desdém para o discurso de um do irônico: aparentar-se simplório
pedestre comum”. (KIERKEGAARD, demais; jogar falso, rebaixando-se para
1991, p. 216) exaltar a suposta sabedoria do outro; ser
o verdadeiro ingênuo e, ao mesmo
Acredita Kierkegaard que, ao longo da tempo, mostrar-se tão interessado em
existência, o indivíduo depara com aprender – que o outro, supostamente,
saberes pretensiosos e sem conteúdo. dono da ironia, sente mesmo grande
Assim, jogar ironicamente com o saber alegria em deixá-lo “dar uma olhada nos
adversário, elevando-o cada vez mais é seus vastos terrenos, diante de um
a decisão mais acertada. Cabe ao entusiasmo sentimental e lânguido”.
irônico, pois, ou passar a se identificar (KIERKEGAARD, 1991, p. 218).
com a suposta desordem que ele quer
combater, ou desfrutar a relação de A tolice irônica coloca a ironia no
oposição, mas, sempre, consciente de movimento contínuo de duplicidade: o
que sua aparência é o contrário do seu irônico, parecendo ser simplório, ser
pensamento. Aqui, a ironia do jogo honesto e ser sincero, capta o
discursivo é, justamente, parecer entusiasmo sublime do outro. Logo,
aprisionado na própria idéia que quanto menos irônico se aparenta ser,
mantém o outro preso. É nessa mais a ironia é elevada, pois o irônico,
perspectiva que afirma Kierkegaard escondido em sua interioridade,
(1991, p. 217): “E quanto mais o irônico incógnito, mantém-se ainda mais livre
tiver sucesso com a fraude, quanto para encenar, embora sempre
melhor aceitação sua moeda falsa tiver, permaneça consciente e distante do
tanto maior será sua alegria. Mas ele próprio jogo da encenação.
saboreia esta alegria sozinho e tem todo Ironizar não é o mesmo que dissimular,
o cuidado para que ninguém perceba mas comumente a palavra ironia
sua impostura”. absorve o sentido de dissimulação e
fingimento, levando à dúbia
Nesse sentido, ainda, pode-se entender interpretação2. A dissimulação é
que o maior prazer do irônico, seu grau
máximo de alegria é manejar os pontos 2
fracos do outro, tê-lo em seu poder, Aristóteles, contudo, talvez porque tivesse
Sócrates em mente, considerava a eironeia, no
manipulá-lo como títere, mexendo os sentido de dissimulação autodepreciativa,
cordões conforme deseja. Ironicamente, superior a seu oposto, a alazoneia, ou
Kierkegaard (1991, p. 218) destaca: dissimulação jactanciosa. A modéstia, ainda que
apenas simulada, pelo menos, parece melhor
É curioso que os pontos fracos das que a ostentação. Mais ou menos na mesma
pessoas, mais do que seu lado bom, época, a eironeia, que a princípio denotava um
se assemelham aos acordes que modo de comportamento, chegou também a ser

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mistificação, o ludibriar finito em frente irônico pode-se identificar com o
do objeto. A ironia é necessidade de ser comportamento hipócrita, à medida que
outro em determinada circunstância, a ironia se apresenta com o exterior em
porém com infinitude poética, com arte. oposição ao interior. O hipócrita,
Ressalte-se, pois, o sedutor, Johannes3, porém, para Kierkegaard, tem incutido
que, no ápice de sua ironia, de sua arte o sentimento da maldade, embora se
de sedução, desencaminhou totalmente esforce por parecer bom. Ao irônico, só
Cordélia, sentindo-se livre dentro da interessa parecer diferentemente do que
realidade individual por ele criada. é, escondendo sua brincadeira na
seriedade ou sua seriedade na
Por outro lado, Kierkegaard ressalta que
brincadeira, princípio que, até certo
a diferença essencial entre ironia e
ponto, se confunde com escárnio. A
dissimulação é que a conduta
ironia situa-se, somente, no campo
dissimulada denota ato objetivo, pois
tem objetivo exterior, desvinculado da metafísico, porque determinações
morais como bondade ou maldade são a
própria dissimulação. Já a ironia é
imanente a si própria, é gozo subjetivo, rigor, “demasiado concretas para a
ironia”. (KIERKEGAARD, 1991, p.
prazer desfrutado à medida que o sujeito
223).
se liberta da realidade ao qual está
vinculado, porque o irônico se isenta de
qualquer intenção imediata, de qualquer Além do mais, se na concepção irônica,
fim em si mesmo. A exigência da ironia o “tudo se torna o nada; mas o nada
é que se viva poeticamente, poetizando pode ser tomado de várias maneiras”
a si mesmo. (KIERKEGAARD, 1991, p. 224), a
ironia, como dito, é determinação
Além disso, o irônico, ao conseguir subjetiva, estando o sujeito
impor veracidade à sua dissimulação, negativamente livre do vínculo com a
atuar na realidade encenada por ele, realidade dada. Certamente, o irônico se
sente-se livre. Essa liberdade é acerca de infinitas possibilidades a
concedida por força da ironia, mas é serviço da ideia, mas sempre imerso na
impossível categorizar, ante a postura reflexão e sem usar de ironia consigo
irônica, os limites do certo, do mesmo. Por outro lado, se o irônico
verdadeiro, do absoluto e do definitivo, notar que sua existência se tornou nada,
pois o irônico nada pode garantir, a não poetizará isso também, porque esta é a
ser, paradoxalmente, a sua própria mais nobre posição ou colocação
postura irônica, tal postura se dá pelo poética preconizada pela ironia. A
convencimento, de comoção, de ironia se dá, ao mesmo tempo, em toda
percepção, jogo cujo resultado é efeito parte, ratificando cada traço individual,
causado no outro. desfazendo os excessos e os defeitos,
Se a liberdade concedida pela ironia é o para que se tenha o verdadeiro
viver poeticamente, o comportamento equilíbrio na relação microcósmica da
poesia que gravita em torno de si
mesma. “Quanto mais a ironia se fizer
aplicada a um uso enganoso da linguagem. E
onipresente, mais livre e poeticamente o
eironeia é, atualmente, uma figura retórica:
censurar por meio de um elogio irônico ou poeta flutuará suspenso sobre sua obra
elogiar mediante uma censura irônica”. (Cf. poética, a ironia liberta ao mesmo
MUECKE. A Ironia e o Irônico, p. 31). tempo a poesia e o poeta”.
3
Veja-se: KIERKEGAARD, Søren. O diário (KIERKEGAARD, 1991, p. 275).
de um sedutor. São Paulo: Abril Cultural,
Ressalta o autor dinamarquês:
1979. (Os Pensadores)

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O que às vezes custa tempo ao suas escritas estéticas. Do jogo estético
irônico é o esmero que ele emprega emerge a idéia, o juízo, o engajamento
para vestir a roupagem correta, da imaginação com o real, mas, também
adequada à personagem que ele ao estético vincula-se a coisa dada, a
mesmo inventou de ser. Neste
burla, o fingimento, a própria ilusão. A
aspecto o irônico entende do
estética de Kierkegaard é irônica,
assunto e possui um lote
considerável de máscaras e recortada pelo jogo livre da imaginação,
fantasias à sua livre escolha. jogo esse dissolvido em possibilidades
(KIERKEGAARD, 1991, p. 244). existenciais fictícias.
Diante do todo exposto, por fim, pode-
se dizer que, em O conceito de ironia, Referências
Kierkegaard redimensiona o jogo entre KIERKEGAARD, Søren. O conceito de ironia.
palavra e ideia, poética e ironia, Trad. Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 1991.
transformando a própria escrita em KIERKEGAARD, Søren. O Diário de um
instrumento de rebeldia, processo de sedutor. Trad. Carlos Grifo. São Paulo: Abril
libertação, de afirmação perante os seus Cultural, 1979 (Os Pensadores).
questionamentos de ser no mundo. A LEÃO, Jacqueline Oliveira; CURY, Maria Zilda
ironia kierkegaardiana define-se por Ferreira. A escrita autoficcional do Diário do
discurso retórico em que o sentido é o sedutor, de Søren Kierkegaard. In: ALMEIDA,
contrário do que se pensa, embora o Jorge Miranda de; LIMA, Fransmar Costa
(ORGS.). Subjetividade, filosofia e cultura.
conceito de ironia não seja
São Paulo: LiberArs, 2011.
sistematizado devido à inconsistência da
linguagem e à re-significação do MUECKE, D. C. Ironia e o Irônico. Trad.
Geraldo Gerson de Souza. São Paulo:
próprio conceito ao longo da história Perspectiva, p.46-47, 1995.
universal, permanece na sua acepção
mais simples, esse significado de
oposição ao que é dito. A raiz da ironia Recebido em 2013-05-01
de Kierkegaard é socrática e alcança, Publicado em 2013-05-13
sobretudo, as relações contextuais de

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