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Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 43, n.

3, 195-198 · 2009 195

Sonhar, dormir e psicanalisar: viagens ao informe

Autor: Decio Gurfinkel


Editora: Escuta/Fapesp, São Paulo, 2008, 336 p

Resenha: Cecilia Luiza Montag Hirchzon,1 São Paulo

Quando o tema “sonho” parecia ter se esgotado, quando tem sido predominante-
mente trabalhado em seus aspectos funcionais ou transferenciais, eis que… aparece esta
obra original de Decio Gurfinkel, resgatando e recriando em torno do “real caminho para
o inconsciente”.
Partindo de farta pesquisa bibliográfica, o autor vai incluindo muito do que existe
sobre o assunto no panorama mundial contemporâneo, ao mesmo tempo em que realiza
um levantamento minucioso de tudo o que se tem escrito entre nós.
No decorrer do livro, Decio se dá a conhecer através de dados autobiográficos e de
sonhos próprios, trazendo-nos também sonhos ouvidos em sua clínica e vários aportes que
evidenciam uma vasta cultura psicanalítica. Um conhecimento diversificado de literatura,
poesia, filosofia, mitologia, música, cinema e campos afins, colabora para ilustrar e enri-
quecer suas contribuições.
O estilo da escrita, embora denso, é claro, transitando continuamente da teoria à
prática e vice-versa. A sequência em que vão sendo considerados os vários assuntos é fre-
quentemente precedida por questões que instigam a busca de respostas.
No campo teórico, o autor, ao mesmo tempo em que esclarece os conceitos, circuns-
creve–os, situando-os no contexto mais amplo, o que facilita o reconhecimento de suas
semelhanças e diferenças. Entre as várias abordagens, privilegia as de Freud e Winnicott:
estabelece diálogos entre ambas, polemiza e revitaliza as questões, levando o leitor a refletir
e se posicionar diante de cada uma.
Ao longo do livro, Decio vai tecendo pontos de intersecção e rotas alternativas entre
os vários elementos do processo onírico. Salientando o conceito de “transicionalidade”, in-
fere que desde 1900 (“A interpretação dos sonhos”) o sonho é um intermediário entre o sono
e a vigília, posição para ele, central e ao mesmo tempo oculta na teoria de Freud.
A sua hipótese básica é que é nas funções intermediárias que se encontra a raiz do
trabalho de simbolização do sonhar, sendo que por sua vez, a simbolização dá origem ao
sonhar dentro do processo analítico.
O autor parte da afirmação de que para estudar o sonho é indispensável que se co-
nheça o sono – o correspondente do holding para o sonho. Ao ampliar o objeto de estudo
para o processo onírico como um todo, considera básicas as intermediações entre sono,
sonho e vigília. O “gesto”, entendido como ação simbólica (“poesia do ato”), que também
implica em transformação, é outro elemento indispensável para esclarecer a atividade sim-
bolizante do sonhar. O entrejogo – transicionalidade – entre estes elementos, pouco obser-
vado nos trabalhos sobre o sonho, revela uma contribuição singular de Decio.

1 Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Membro do Departamento de
Psicanálise do Instituto Sedes Sapientae.
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O campo intersubjetivo, que aponta para a função do outro na constituição do psi-


quismo, às vezes entendido como ausente na atividade do sonhar, também é estimado por
Decio como determinante enquanto função intermediária. O isolamento do sono/ sonho,
expressão da capacidade do estar só, articula-se paradoxalmente com o outro e ao mesmo
tempo em que se isola, também espera se comunicar e ser encontrado.
Recorrendo a Winnicott, acrescenta aos tradicionais mecanismos do sonho, o papel
de reorganização da função onírica na relação da experiência cotidiana com o passado e
o futuro, proporcionando “a experiência da continuidade do ser” e portanto, a “própria
essência da experiência de um si mesmo”.
Para Decio é crucial ressaltar que: “se o estudo do sonho enfatizou o papel do in-
consciente recalcado, o estudo do sono já coloca, desde o começo, a problemática do Eu.”
Despertar e adormecer, momentos de transição entre estados fundamentais da experiência
humana, expressam um ir e vir de um estado integrado a um não-integrado (o Fort-Da do
“eu sou” ao puro estado de Ser”).
Os rituais do adormecimento que fazem parte do cotidiano saudável do processo
de adormecimento, na neurose obsessiva apenas acentuam fortemente a delicadeza desta
passagem. Nesta transição ganha relevo a importância do objeto transicional, pois a perda
da consciência pode também ser associada à perda do objeto. Sem a certeza de seu objeto,
o sujeito fica à deriva.
“Talvez o mais temível sejam justamente as passagens: da vigília para o sono, do
sono para a vigília”. A preparação para dormir recria cotidianamente um enquadre para o
sonhar, análogo ao ritual da análise.
Baseando-se fundamentalmente em Winnicott, o autor assinala que o sonhar sem-
pre é uma experiência psicossomática (por oposição a uma atividade mental). Embora seja
difícil afirmar que há pessoas que não sonham, alguns autores relacionam a ausência de
sonhos à somatização, sinalizando uma desorganização circunstancial do psiquismo.
Preocupado com o “colapso do sonhar”, Decio destaca a necessidade de deslocar o
foco do sonho enquanto objeto (seu conteúdo e interpretação) para o sonhar enquanto
função. Quando a função onírica está preservada é possível colocar-se em ação a atividade
simbolizante do psicossoma. Sob esse ponto de vista, traz a questão do uso dos psicotrópi-
cos, alertando para o perigo dos medicamentos induzirem à redução do psíquico e portan-
to, do potencial de simbolização.
A comparação do sonhar com o criar enquanto dimensão estética é também assina-
lada, sustentando ambos a condição de paradoxo entre a solidão essencial e a dependência
ao outro; o máximo de holding e as melhores condições para o informe.
Se para Freud o sono pode ser entendido como uma fuga da realidade ou mesmo
como uma volta para o inorgânico, para Winnicott “dormir é a busca positiva do reabaste-
cimento do si-mesmo através da comunicação com os objetos subjetivos”. A paz procurada
no adormecimento não tem nada a ver com uma tendência em relação à morte. Na verdade
o que se busca é uma restauração da “continuidade do ser”.

Dormir e sonhar

A transposição de alguns elementos da fisiologia do sono para a clínica, revela recur-


sos especialmente úteis na pesquisa e discriminação de estados alterados de consciência.
Resenhas 197

A relação entre sonhar e dormir também é abordada sob o ponto de vista psicofisio-
lógico, referindo-se, o autor às pesquisas que tem corroborado certas propostas psicanalíti-
cas. A título de ilustração: os vários tipos de sono (sono rápido e sono lento), relacionados
a níveis diversos de inconsciência (do mais superficial ao mais profundo) tem sido associa-
dos à presença/ ausência de sonhos desde Freud.
À medida que a imobilidade é considerada parte integrante essencial do processo
onírico, os sobressaltos ou “pequenos espasmos” funcionam como “despertadores motores”
autoativados como defesa diante da angústia despertada pelo sonho. A sensação de queda
às vezes é acompanhada de “visões do semi-sono”, traduções de pensamentos em lingua-
gem imagética, costumam se manifestar no momento do adormecimento. O sonambulis-
mo, o sonilóquio, o pesadelo e o terror noturno que podem ser conotados como “passagens
ao ato”, levantam diferentes questões e prenunciam um fértil campo de investigação.

A gestualidade e o psicanalisar

Ao abordar a “gestualidade” do sonhar, Decio esclarece: “Uma psicanálise do gesto


nasceu também de uma revisão crítica do conceito de acting out, que nos levou a conceber
a situação analítica como um teatro de transferência.” (Gurfinkel, D., 2008, p. 127). A ges-
tualidade, considerada fundamental por Winnicott na constituição da subjetividade, ganha
para o autor, lugar de “fundamento”.
Focalizar o lugar da ação na situação analítica conduz a questões técnicas, que im-
plicam, entre outros aspectos, na consideração do papel do corpo no setting psicanalítico:
O psicanalista se interroga: “como repensar o lugar do agir e do gesto durante o tratamen-
to…?” (Gurfinkel, D., 2008, p. 130).
Para ele “o setting original da psicanálise deve ser concebido como análogo à situação
sono-sonho”. Levando em conta os três processos básicos do desenvolvimento emocional
segundo Winnicott (personalização, integração e realização), também inerentes ao sonhar,
propõe que se considere um “quarto” processo: a “gestualização”, colocada à prova no es-
tudo do sonhar.
Para o autor “se a inação caracteriza o dormir, a gestualidade é a marca do sonhar”.
A passagem ao sono não é uma passagem ao ato, mas sim, uma passagem ao gesto. Quando
o sonho tem seu espaço resguardado, não é a atuação que sobrevem. A quebra do habitual
desperta o self adormecido, convidando-o para uma viagem ao viver criativo, que emerge
por desfocalização da atenção, reconfigurando sentidos. O que anima o sonho é a força
vital. Quanto mais avançamos na viagem do sonho, mais nos dirigimos ao território do
informe e da solidão essencial.
De acordo com Winnicott, o sonhar é análogo ao viver. Para Decio “o sonhar põe
em movimento o viver do sujeito, dando voz ao gesto que nasce no poço profundo do si
mesmo”.
São esses em síntese alguns pontos de destaque de Sonhar, dormir e psicanalisar: via-
gens ao informe, livro que recomendo com insistência. Para além do encantamento do tema
e da escrita, para além do estabelecimento de relações entre “dormir, sonhar e psicanalisar”,
sua leitura enfatiza a ressignificação do sonho enquanto paradigma da situação analítica.
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Referências

Gurfinkel, D. Por uma psicanálise do gesto. In Volich, R.M. et al. Psicossoma IV: corpo, história, pensamento.
São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008.

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